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O exercício de propriedade do aparelho celular

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Atualizado às 08:25

Eu e muitos consumeristas brasileiros pensamos e estudamos o Direito do Consumidor há mais de 30 anos, antes mesmo da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078/90).

Vimos muitos abusos serem praticados e foram muitas as vitórias a favor do consumidor, a começar exatamente com a edição do CDC.

Muitas empresas foram obrigadas a mudar seus procedimentos para respeitar seus clientes, o que só fez bem para o mercado capitalista.

Muito bem. As normas que protegem o consumidor estão em vigor e muito bem desenhadas. No entanto, às vezes aparecem coisas estranhas. No artigo de hoje, cuido de um caso em que, como penso, alguns intérpretes estão fazendo uma enorme confusão na aplicação da lei aos fatos e, com isso, acabaram violando o consumidor que muito precisa de auxílio.

Vou ilustrar o que quero dizer, com uma narrativa de uma situação comum no Brasil. É só um exemplo fictício, que pode ser modificado em alguns pontos diversas vezes e que ocorre de fato, de forma similar, em vários lugares do país.

Vamos lá.

José da Silva, casado com dois filhos adolescentes, ficou desempregado. O salário que sua esposa ganha no emprego dela não é suficiente para cobrir todas as despesas mensais.

Ele está negativado no Serviço de Proteção ao Crédito por não ter conseguido pagar as prestações do empréstimo que havia feito em seu banco.

Está precisando muito de dinheiro para dar conta das despesas de produtos e serviços essenciais. Seu filho mais velho está doente e os gastos com medicamentos são altos.

José da Silva não tem bens de valor para o mercado. Na verdade, ele apenas possui um aparelho celular dos mais simples.

Ele precisa de dinheiro para pagar a conta de energia elétrica e da água, que estão atrasadas. Se não conseguir pagá-las, ficará sem água e sem energia elétrica em casa. Além disso, também não tem dinheiro para pagar a conta da linha telefônica. Ficará, portanto, sem poder usar seu aparelho celular.

E, cara leitora, caro leitor, eu não me enganei: se José da Silva não puder pagar as contas dos serviços essenciais de água, energia elétrica e linha telefônica, terá esses fornecimentos cortados. E tudo de acordo com a lei e  com as regulações.

Mas, seria diferente se ele pudesse usar o próprio aparelho celular para pedir um empréstimo.

No entanto, por causa de uma Ação Civil Pública proposta em Brasília e em nome de uma suposta proteção, uma empresa que oferecia esse tipo de empréstimo está proibida de fazê-lo. O argumento é que, como o aparelho celular é bem essencial, ele não pode ser oferecido em garantia.

Conclusão: José da Silva, como foi decidido judicialmente numa Ação Coletiva, tem uma proteção contra o bloqueio de seu aparelho celular. Porém, como ele não tem dinheiro para pagar a conta da linha telefônica, não vai poder utilizá-lo. Aliás, ele e seus familiares ficarão sem água para as necessidades básicas e sem energia elétrica para manter a geladeira e as luzes acesas. Ficarão na escuridão.

Eu não entendi o que pretenderam fazer. Depois de tanta luta pelos direitos do consumidor, surge este caso que se diz de proteção, mas que deixa o consumidor à margem do sistema capitalista.

Como é que esse consumidor, que necessita de dinheiro emprestado, vai obtê-lo? Ele está impossibilitado de utilizar um produto que lhe pertence para obter um empréstimo, o que é direito seu.

Trata-se de violação ao seu direito de propriedade garantido constitucionalmente:  o direito de poder dispor de bem que lhe pertence. Simples exercício do direito de propriedade. E ele também está sendo violado em sua dignidade por não poder exercer um direito básico do sistema capitalista de solicitar em empréstimo para poder suprir suas necessidades humanas.

O argumento de que o aparelho celular não pode ser entregue em garantia porque é essencial é equivocado. Se assim o fosse, então, outros produtos e serviços também não poderiam ser oferecidos em garantia. A título de comparação, cito a seguir outras hipóteses.

O bem de família, por exemplo. Como se sabe, o imóvel residencial, chamado bem de família, é impenhorável por força do disposto na lei 8009/90. Trata-se de bem essencial e impenhorável. No entanto, esse imóvel pode ser oferecido em hipoteca para garantir empréstimo/dívida. E uma vez oferecido em hipoteca, ele pode ser penhorado (inciso V do art. 3º da lei 8009/90).

Outro exemplo: o empréstimo consignado. A Lei nº 10.820/2003 permite que o trabalhador ofereça parte de seu sagrado salário como garantia de empréstimos, financiamentos etc., conforme definido em seu art. 1º:

"Art. 1o  Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos."

Apenas com esses dois exemplos, percebe-se que o sistema legal não só permite como estimula que bens essenciais e fundamentais como moradia e salário possam ser oferecidos em garantia.

E lembro: na hipoteca do bem de família, em caso de inadimplemento, o imóvel será levado a leilão público para venda e pagamento da dívida. Não há dúvida a esse respeito, inclusive com clara posição do Supremo Tribunal Federal1.

No caso do consignado, todo mês o empregado tem já descontado de seu salário o valor da prestação, independentemente de qualquer medida administrativa ou judicial.

E há mais: os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás são bens absolutamente essenciais. No caso de inadimplência do consumidor, o fornecimento é interrompido.

E o aparelho celular funciona com linha telefônica oferecida pelas empresas existentes no mercado, tais como a Claro, a Vivo e a Tim. E ainda que o aparelho seja usado pelo modo WiFi, também depende do oferecimento do sinal dessas companhias.

Muito bem. O aparelho celular é um produto essencial, como do mesmo modo o sinal para seu uso o é.  No entanto, ninguém duvida que o atraso do pagamento da conta relativa ao sinal gere cancelamento do serviço. Se o consumidor não pagar uma conta mensal de alguma dessas companhias, terá o serviço suspenso após simples aviso, depois de certo prazo. (Nesse sentido, vide Resolução da ANATEL nº 632, artigos 90 e segs2). 

Eis a enorme ironia: o serviço de fornecimento de linha telefônica pode ser cortado se a conta não for paga. Nesse caso, o consumidor possui um aparelho celular, mas não poderá usá-lo por falta de acesso à linha ou ao WiFi. Se pudesse pedir um empréstimo para pagar as contas atrasadas oferecendo seu aparelho celular como garantia, poderia utilizá-lo.

Mas, o consumidor está sendo impedido de fazê-lo. Repito: pelo que penso, trata-se de violação ao seu direito de propriedade.

No exercício do direito de propriedade, o consumidor pode doar seu celular para quem bem entender; pode vendê-lo pela metade de seu preço de mercado; pode simplesmente descartá-lo; enfim, o consumidor tem essas prerrogativas como proprietário. Mas, não pode oferecê-lo em garantia?

Não vejo sentido.

__________

1 (STF - RE: 1307334 SP 2061577-47.2020.8.26.0000, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 09/03/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 26/05/2022).

2 Disponível aqui.