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A interpretação do sistema jurídico, como base para o conhecimento do CDC

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Atualizado em 22 de novembro de 2023 13:55

No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consumidor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a figura do consumidor, em larga medida, equipara-se à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são também, simultaneamente, extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição Federal são, no que forem compatíveis com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo constitucional.

Lembre-se, que o motivo que deve levar todo estudioso de qualquer sistema dogmático infraconstitucional à análise, em primeiro lugar, dos princípios e normas da Constituição aplicáveis ao setor jurídico escolhido é simplesmente o fato irretorquível da hierarquia do sistema jurídico.

Como se sabe, o sistema jurídico brasileiro (como de resto os demais sistemas constitucionais contemporâneos) é interpretável a partir da ideia de sistema hierarquicamente organizado, no qual se tem no topo da hierarquia a Constituição Federal.

Qualquer exame de norma jurídica infraconstitucional deve ser iniciado, portanto, da norma máxima, daquela que irá iluminar todo o sistema normativo. A análise e o raciocínio do intérprete se dão, assim, dedutivamente, de cima para baixo. A partir disso o intérprete poderá ir verificando a adequação e constitucionalidade das normas infraconstitucionais que pretende estudar. 

A inconstitucionalidade ele resolverá, como o próprio nome diz, apontando o vício fatal na norma infraconstitucional. A adequação será norteadora para o esclarecimento, ampliação e delimitação do texto escrito da norma infraconstitucional, bem como para a apresentação precisa de seus próprios princípios. É a Constituição Federal, repita-se, o órgão diretor.

É um grave erro interpretativo iniciar a análise dos textos a partir da norma infraconstitucional, subindo até o topo normativo e principiológico magno. Ainda que a norma infraconstitucional em análise seja bastante antiga, aceita e praticada, e mesmo diante do fato de que o texto constitucional seja muito novo, não se inicia de baixo. Em primeiro lugar vem o texto constitucional.

Com efeito, o ato interpretativo está ligado diretamente à noção de sistema jurídico. Na verdade, é da noção de sistema que depende grandemente o sucesso do ato interpretativo. A maneira pela qual o sistema jurídico é encarado, suas qualidades, suas características, são fundamentais para a elaboração do trabalho de interpretação.

A ideia de sistema está presente em todo o pensamento jurídico dogmático, nos princípios e valores dos quais ele parte e na gênese do processo interpretativo, quer o argumento da utilização do sistema seja apresentado, quer não.

Sua influência é tão profunda e constante que muitas vezes não aparece explicitamente no trabalho do operador do direito - qualquer que seja o trabalho e o operador -, mas está, pelo menos, sempre subentendido.

Diríamos também, aqui, que a noção de sistema é uma condição a priori do trabalho intelectual do operador do direito.

O sistema não é um dado real, concreto, encontrado na realidade empírica. É uma construção científica que tem como função explicar a realidade a que se refere.

Além de ser um objeto construído, o sistema é um objeto-modelo que funciona como intermediário entre o intérprete e o objeto científico que pertence à sua área de investigação. É uma espécie de tipo ideal, para usar da expressão cunhada por Max Weber1.

O tipo ideal é construído a partir da concepção de sentido, como sendo aquilo que "faz sentido", como se, de repente, todas as conexões causais fossem uma totalidade.

Não surge o sentido como significação de acontecimentos particulares, mas como algo percebido em bloco: unidades que não se articulam são captadas em conjunto.

O tipo ideal é um produto racional que seleciona as conexões causais, removendo o que há de alheio. É uma espécie de modelo; o que não se encaixa não serve e é deixado de lado. Construído o modelo, capta-se o sentido.

Como produto, tipo-ideal, objeto-modelo, o sistema é uma espécie de mapa, que reduz a complexidade do mundo real, à qual se refere, mas é o objeto por meio do qual se pode compreender a realidade.

No sistema jurídico os elementos são as normas jurídicas, e sua estrutura é formada pela hierarquia, pela coesão e pela unidade.

A hierarquia vai permitir que a norma jurídica fundamental (a Constituição Federal) determine a validade de todas as demais normas jurídicas de hierarquia inferior.

A coesão demonstra a união íntima dos elementos (normas jurídicas) com o todo (o sistema jurídico), apontando, por exemplo, para ampla harmonia e importando em coerência.

A unidade dá um fechamento ao sistema jurídico como um todo que não pode ser dividido: qualquer elemento interno (norma jurídica) é sempre conhecido por referência ao todo unitário (o sistema jurídico).

Mas a construção do sistema jurídico, como objeto-modelo que possibilite a compreensão do ordenamento jurídico e seu funcionamento, ainda não está completa (na verdade, a história mostra que o objeto-modelo "sistema jurídico" está sempre sendo aperfeiçoado pelo pensamento jurídico como um todo).

Por isso se fala em completude, cuja definição remete ao conceito de lacuna. Esta, por sua vez, pressupõe ausência de norma, que se colmata pelo princípio da integração executada pelo intérprete2 e que, no sistema jurídico brasileiro, tem regra de solução expressa: a do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Civil Brasileiro3.

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1 Economía y sociedad, p. 706 e 1057.

2 Sobre o tema da completude e das lacunas ver o nosso Manual de introdução ao estudo do direito, Capítulo 6, subitem 6.7.

3 "Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.