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A justiça como fundamento das relações jurídicas de consumo

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:28

Hoje cuido da justiça e de sua capacidade de funcionar como fundamento para as relações jurídicas de consumo.

Lembre-se que o art. 3º, I, da Constituição Federal estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

O conceito de justiça espelhado no texto maior é aquele dirigido à realidade social concreta.

Não se trata de uma abstração da norma máxima, mas sim de um objetivo a ser alcançado realmente no contexto histórico atual pela República. Isso dará ao intérprete, tanto das regras constitucionais quanto das infraconstitucionais e, naturalmente, nas do Código de Defesa do Consumidor, alternativas de resolução de problemas não só a partir dos princípios regulares da justiça, como daqueles tradicionalmente conhecidos como equidade na aplicação de cada caso concreto.

Com efeito, dada a "natureza social" do ser humano, sua vivência em grupos fez com que certos conflitos nascessem da natural relação surgida nesse agrupamento social.

O ajuntamento gerava conflitos interpessoais em função das capacidades, possibilidades e exigências próprias de cada indivíduo, como, também, por sua vez, necessidades próprias à sociedade que surgia, quer em relação a seus componentes, quer em relação a outras sociedades.

Em função da complexidade das relações nascentes, tornou-se necessário, então, que se estabelecessem normas para que, atendendo-as, os indivíduos e a própria sociedade pudessem caminhar rumo àquilo a que se haviam proposto: busca de harmonia e paz social.

Esse aspecto de normas sociais válidas, visando encontrar harmonia e paz social, impõe-se, na verdade, a qualquer sociedade, desde uma pequena sociedade comercial até a sociedade de consumo contemporânea, ainda que o objetivo da primeira seja apenas econômico ou financeiro.

Assim, numa sociedade comercial, o objetivo pretendido é, naturalmente, a obtenção do lucro, mediante o cumprimento de determinados requisitos preestabelecidos. Acreditam os componentes dessa sociedade que, cumpridas as normas fixadas, satisfeitas suas exigências, o objetivo será alcançado. Essas normas, por sua vez, podem e devem ir-se modificando na medida em que a sociedade se aproxime ou se afaste de sua finalidade, pois é próprio a qualquer sociedade o movimento contínuo, uniforme ou não, com a modificação de suas normas, visando ao atingimento do fim estabelecido.

Numa macrossociedade moderna, como as atuais, esses conceitos se aplicam da mesma forma. É sabido que o objetivo da sociedade, entendida como uma nação ou comunidade, é a busca da paz e harmonia social. As normas jurídicas são o instrumento para que tal fim seja atingido. E esse objetivo só será alcançado numa sociedade justa.

Pode-se aqui, a título de ilustração, apresentar uma dentre as várias posições doutrinárias que pretendem construir uma teoria da justiça, capaz de explicitar seu funcionamento.

Vejam-se, por exemplo, os dois princípios da justiça na teoria de John Raws1. Diz o autor, desenvolvendo sua estratégia contratualista, que as partes, estando numa posição original do contrato, perguntar-se-iam o que iriam escolher. A resposta estaria coberta por um véu de ignorância que as impediria de ver os próprios interesses.

E, assim, dentre várias concepções de justiça postas à sua disposição, as partes nessa posição original escolheriam os seguintes princípios de justiça:

a) cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos;

b) as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma que, simultaneamente:

b.1) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de forma compatível com o princípio da poupança justa;

b.2) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos, em circunstâncias de igualdade de oportunidades.

Não resta dúvida de que tais princípios abstratos são interessantes, mas necessitam de toda uma história real para se realizar, pois a justiça se faz concretamente, e é isso que espera o texto constitucional: realização social real e justa.

A justiça soma-se ao princípio da intangibilidade da dignidade humana, como fundamento de todas as normas jurídicas, na medida em que qualquer pretensão jurídica deve ter como base uma ordem justa.

Valem aqui as conhecidas palavras de Eduardo Couture no seu Os mandamentos dos advogados:

"Teu dever é lutar pelo direito, mas no dia em que encontrares o direito em conflito com a Justiça, luta pela justiça"2.

A justiça é, assim, o objetivo da República e fundamento da ordem jurídica, como condição de sua possibilidade de realização histórica. Por isso, na aplicação das normas jurídicas aos casos concretos, muitas vezes tem-se de atenuar os rigores do texto normado, mitigando seu apelo formal: é necessário agir com equidade.

Cícero, tratando dessa questão, citou o adágio summum jus, summa injuria: supremo direito, suprema injustiça. Mas a equidade já aparecia antes em Aristóteles3. Ele diz que o equitativo é justo, mas é uma correção da justiça legal.

A razão disso, diz o filósofo, é que a lei é universal, mas, relativamente a certas coisas, não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta.

Dessa forma, quando é necessário falar de modo universal, não sendo possível fazê-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, sem ignorar a possibilidade de erro.

Logo, quando surge um caso que não é abrangido pela declaração universal da lei, é justo corrigir a omissão. A essa correção dá-se o nome de equidade.

A equidade supre o erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. Ela é, portanto, a justiça levada a cabo no caso concreto.

__________

1 Uma teoria da justiça, p. 27 e s. Lisboa: Presença, 1993.

2 4º Mandamento: "Lucha. - Tu deber es luchar por el derecho; pero el día que encuentres en conflicto el derecho con la justicia, lucha por la justicia" (Los mandamientos del abogado - traduzi).

3 Ética a Nicômaco, Livro V, 10.