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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Foi anunciada, nos últimos dias, a abertura de novas vagas no Programa Mais Médicos, que seleciona profissionais formados no Brasil e no exterior. Aproveito, então, o tema para, mais uma vez cuidar dos direitos e obrigações que envolvem o atendimento médico e hospitalar: os aplicáveis à relação médica/médico-paciente no consultório e no hospital, assim como à relação paciente-hospital/clínica. Naturalmente, o respeito ao Código de Defesa do Consumidor e demais normas aplicáveis vale para os médicos brasileiros, médicas brasileiras e para os estrangeiros e estrangeiras que aqui estiverem trabalhando. Daí que, de fato, o problema da comunicação entre profissional e paciente é algo que deve ser realçado e deve ser um dos primeiros entraves a serem superados. Às vezes, até o/a profissional brasileiro não se faz entender por que, ao invés de utilizar uma linguagem direta e inteligível, adota jargões científicos que o/a cliente/paciente não compreende, gerando, só por causa disso, falha no serviço e até sérios danos. Vejamos, então, um panorama geral. Tanto no consultório como no hospital, o médico ou a médica tem obrigação de prestar um atendimento adequado e dentro dos parâmetros legais. Ele ou ela   prestam serviço e, como tal, deve fazê-lo de forma técnica compatível com sua especialidade, sem ações precipitadas ou omissões injustificadas. E, sem pressa. Ele  ou ela deve gastar o tempo que for necessário para concluir o atendimento. Evidentemente, qualquer comunicação feita ao/a paciente e/ou familiar, responsável ou acompanhante há de ser feita em português, em linguagem comum de forma clara e compreensível. Repito: não importa a nacionalidade do médico ou da médica; a comunicação deve sempre ser feita nos termos da lei. É também por isso que tem o consumidor o direito de receber receitas escritas de forma legível. Nada daquilo que era comum no passado: "caligrafia de médico é assim mesmo". Não é nem um pouco engraçado ficar decifrando os "quase-hieróglifos" da receita para descobrir qual medicamento comprar e como tomá-lo. Além de sem graça, é ilegal, posto que é uma falha na informação. Esta deve ser clara, precisa, detalhada. Ademais, é evidente que a compra do remédio errado, bem como sua equivocada utilização, pode causar sérios danos ao consumidor. Nesse assunto, por sorte, cada vez mais as receitas são digitadas e entregues impressas em papel ou via e-mail/WhatsApp, o que evita o problema. A consulta é confidencial e, resguardados os casos de doenças de notificação compulsória (epidemias, por exemplo) ou risco real para terceiros, o médico ou médica deve proteger as informações que recebe de seus clientes. Na violação desse sigilo, o consumidor pode pleitear indenização. O/a profissional deve tratar o consumidor com educação e respeito a sua dignidade como ser humano, jamais podendo usar expressões preconceituosas. Esse direito se estende ao acompanhante, aos familiares e, caso ocorra, ao falecido ou falecida. Nos hospitais, os profissionais devem se apresentar devidamente identificados com crachá, no qual conste nome completo, profissão e cargo (médico, médica, anestesista etc.). Quanto ao prontuário, é direito do consumidor receber uma cópia, quer seja no consultório, quer seja no hospital ou clínica. Quando não estiver consciente, a cópia do prontuário tem que ser entregue a seu responsável legal (geralmente um familiar próximo: cônjuge, filha, filho, mãe, pai etc.). É direito do consumidor receber por escrito (também de forma legível, de preferência datilografado ou impresso via microcomputador) o relato do diagnóstico feito, bem como quais serão as condutas médicas a serem adotadas, com a descrição das etapas da doença pelas quais o/a paciente irá passar, os tratamentos que serão empreendidos, os riscos envolvidos etc., pois o/a paciente pode recusar os diagnósticos e tratamentos. Seu consentimento deve vir depois de ter recebido claras e totais informações sobre o caso em linguagem simples. Ademais, o/a paciente pode dar o consentimento e depois, se quiser, pode revogá-lo. Quando se tratar de doença grave e/ou desconhecida, é direito do/da paciente saber da expectativa que se tem sobre o resultado do tratamento, além de ser esclarecido/a a respeito do diagnóstico e do tratamento, quando se tratar de pesquisa ou procedimento experimental, assim como, também, conhecer os riscos na relação com os benefícios. É obrigação de todos:  médico/médica/hospital/clínica fazer testes antialérgicos para uso de medicamentos que apresentem riscos quando ministrados (por exemplo, penicilina), bem como teste para verificação de diabetes, quando o procedimento ou o uso do medicamento trouxer riscos em função dessa doença. É também obrigação de todos a utilização de material esterilizado ou descartável, tudo dentro das mais estritas regras de segurança e higiene. Se for necessária a utilização de sangue, o/a paciente tem direito de conhecer a procedência do sangue que irá receber. Nas consultas e intervenções o/a paciente pode ter presente um/uma acompanhante e isso é válido para o parto: o pai, querendo, pode assistir. O/a paciente tem direito de receber um orçamento prévio do serviço que será prestado e dele devem constar: o valor dos honorários; o preço dos materiais a serem empregados; as condições de pagamento (ou seja: se é à vista, parcelado, com ou sem entrada etc.); as datas de início e término do serviço ou a previsão da necessidade de sua continuidade; e o prazo de validade do orçamento. Se o orçamento não falar do prazo de validade, ele valerá por dez dias. Após a sua aprovação, não pode ser alterado. Em casos de internação de urgência, realço que a Lei 12.653, de 28-5-2012 tipificou o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial1 para coibir os abusos praticados pelos hospitais. Por fim, lembro que todos os direitos do consumidor aqui narrados são extensivos aos familiares do/da paciente. __________ 1 A Lei acrescentou o art. 135-A ao Código Penal: Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial  Art. 135-A.  Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:   Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único.  A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.
Uma das coisas bem estruturadas e entregues ao consumidor no mercado de consumo para que ele use e que, de fato, não possa ficar sem, é o cartão de crédito. Sua implementação é um dos maiores sucessos do mercado de consumo. Meu amigo Outrem Ego trabalhou num grande banco estrangeiro, que tem agências no mundo todo. Há muitos anos, na década de oitenta, ele fez um curso sobre concessão de crédito de massa e sua cobrança (isto é, cobrança de créditos do varejo e no qual se incluem as dívidas dos cartões de crédito). Foi um excelente aprendizado, como ele diz, e cujo modelo acabou sendo implantado em todo o planeta. Veja o que ele contou sobre cartões de crédito: "O professor", disse ele, "perguntou a nós, alunas e alunos, quais eram as prioridades do consumidor no que dizia respeito ao pagamento de suas dívidas: 'Quando ele recebe seu salário no fim do mês, o que ele escolhe pagar em primeiro lugar?'. Nós respondemos que, logicamente,  pela ordem de importância: medicamentos, alimentação, serviços públicos essenciais como energia elétrica, água e gás, escola do filhos, aluguel da casa etc." Meu amigo prosseguiu: "O professor, então disse: 'É isso mesmo! O consumidor estabelece uma escala de prioridades. Ele, consciente ou inconscientemente, constrói uma pirâmide de prioridades. No topo estão os itens de primeira necessidade e na medida em que se desce a montanha vão aparecendo os débitos menos necessários ou menos urgentes. É natural, portanto, que os débitos com os bancos estejam na base da pirâmide. Ele paga todo mundo apenas se tiver dinheiro para tanto'" Outrem Ego disse que, na sequência, o professor apresentou o pulo do gato: "Nós, que trabalhamos nos bancos, temos que dar um jeito de inverter a pirâmide. Temos que colocar no topo nossos créditos. E dá para fazer: basta conseguir colocar o cartão de crédito em todas as operações existentes. No comércio, na indústria, na prestação de serviços, o que inclui médicos e hospitais, e até nas escolas, nos serviços públicos etc. Como o cartão será o instrumento mais importante do poder de compra do consumidor, a primeira coisa que ele deverá fazer quando receber seu salário será pagar sua fatura.  Estaremos no topo da pirâmide". E deu certo! Já faz bastante tempo que se pode pagar quase tudo com cartão de crédito. Existe uma verdadeira invasão de cartões, uma superexposição ao cartão de crédito; inclusive, os grandes estabelecimentos comerciais se utilizam de seu próprio cartão. Quem ainda não cansou de ouvir o caixa dizer: "Você tem cartão de crédito X?". Aliás, não é incomum, o consumidor possuir 3, 4, 5 ou mais cartões. E, na atualidade o cartão pode ser real ou virtual. De fato, tendo em vista sua praticidade, o cartão de crédito talvez seja o exemplo mais representativo da evolução das formas de pagamento na sociedade de consumo. O pagamento em moeda corrente e mesmo através do cheque foi sendo substituído pelo chamado "dinheiro de plástico". E isso por uma série de facilidades que ele oferece, além daquelas apresentadas pelo professor americano. O cartão poupa o consumidor das complicadas tarefas de assinar contratos para obtenção do crédito; idas e vindas aos bancos ou acessos via online; permite compra sem gasto, enquanto o dinheiro está em alguma aplicação financeira ou ainda não chegou; colabora com o controle do orçamento doméstico, uma vez que o extrato aponta todas as compras feitas; além de uma série de outros benefícios e serviços oferecidos pelos administradores (seguros automáticos, saque de moeda corrente etc.). Tudo isso, é claro, aliado à enorme facilidade que é ter no aparelho celular uma imagem ou no bolso apenas um pequeno documento de plástico, substituindo papel moeda, talão de cheques etc. Como no Brasil os juros cobrados pelos administradores dos cartões ainda são elevados, nem todas essas vantagens estão implementadas. O consumidor acaba fugindo do financiamento - aliás, deve fazê-lo para não correr o risco de se endividar1 --, e o cartão de crédito acaba funcionando mais como um cartão de compra. E, ademais, por isso mesmo, o cartão tem também sido muito usado na função de débito, firmando-se cada vez mais como um instrumento de compra, além do financiamento. Mas, sem dúvida, não dá para viver sem eles. __________ 1 O lado negativo do uso excessivo do cartão de crédito é exatamente este: o consumidor acaba se perdendo nas aquisições a prazo, se descontrola e se endivida ou, pior, se superendivida.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores (artigos 12, 13 e 14) pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços. E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Os vícios dos produtos e serviços seguem o mesmo modelo e rigor (artigos 18, 19 e 20). Essa responsabilidade tem como base a escolha do fornecedor para o exercício de sua atividade. Na verdade, o risco da atividade está na raiz dessa escolha. Com efeito, a Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é a escolha do empreendedor na sociedade capitalista contemporânea. E uma das características principais da escolha na atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. Por isso, a boa avaliação dessas possibilidades é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é de quem decide escolher. É claro que são muitas as variáveis em jogo, e que devem ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou serviço a serem  produzidos, a qualidade destes, o preço, os tributos etc. são preocupações constantes. Some-se  o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e  em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. O empreendedor, claro,  deve levar  sempre em consideração todos os elementos envolvidos. Aqui o que interessa é o aspecto do risco, que se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescentarei um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, finalidade, proteção à saúde, segurança e durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série1. Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo. A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso,  era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um custo de produção menor de cada um dos produtos, possibilitando que fossem vendidos a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas. A partir da Segunda Guerra Mundial,  esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélites, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc. Muito bem. O risco da atividade é decidido pelo fornecedor dentro de sua área de atuação e, no caso de danos por vícios ou defeitos, ele responde de forma objetiva. Pode ser o fabricante de veículo ou de bebidas, o prestador de serviço se água ou energia elétrica, o construtor, o banco ou a financeira etc. A escolha e o risco são do fornecedor. Se o fabricante de automóveis quiser produzir veículos com custos mais baratos, correndo o risco de aumentar os vícios de sua utilização, é decisão dele. Se um banco quiser oferecer crédito para pessoas de baixa renda, que estejam desempregadas ou com problemas de negativação, o risco é dele. No primeiro caso, o fabricante pode ter que recolher os veículos e consertá-los ou pagar indenizações e no segundo, o banco pode não receber o valor emprestado. O risco é deles. E, no caso de vícios ou defeitos, a responsabilidade civil objetiva também. __________ 1 Por causa disso, a responsabilidade objetiva tal como regulada  remanesce como um grande problema, praticamente insolúvel, para aqueles que não produzem em série especialmente  pequenos produtores, microprodutores e fabricantes pessoas físicas de produtos manufaturados e pequenos prestadores de serviços (pessoas físicas e jurídicas). A lei consumerista não abre exceção para tais fornecedores, que acabam tendo de arcar com o peso da responsabilidade objetiva, como se grandes fornecedores de produtos e serviços em série fossem.
Um dos grandes problemas do consumidor na sociedade capitalista é o de sua dificuldade em se defender publicamente contra tudo o que lhe fazem de mal. Se ele é enganado, sofre um dano etc. tem de recorrer aos órgãos de proteção ao consumidor ou contratar um advogado. É verdade que, com as redes sociais da internet e do surgimento de sites de reclamações, aos poucos, ele vai encontrando um caminho para expressar sua insatisfação com os produtos e serviços adquiridos e, também, contra toda forma de malandragem existente. Mas, ainda é pouco diante do poder de fogo de certos fornecedores que se utilizam de todas as maneiras de comunicação existentes no mercado,  tais como publicidade massiva nas redes sociais, tevês, rádios, nos jornais e revistas ainda existentes etc., e que fazem promoções milionárias constantemente, que se servem de mídias integradas, se utilizam de artistas e esportistas famosos para divulgar seus produtos (em confessionais ou por meio de merchandising e participação em anúncios), enfim, é mesmo uma luta desproporcional. Muito bem. A liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. Mas, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que para os gregos na antiguidade era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Todavia, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado,  há um limite que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha ao depor em Juízo, fale a verdade.  Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil e criminal ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa, proibindo-a e tipificando-a como crime. No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para de maneira confusa ou ambígua iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação  à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: Não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos trabalhadores da agência. Sua razão de existir se funda em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, se vê que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada ao regramento legal. Por isso, não só não pode oferecer uma opinião (elemento subjetivo) como deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação.   Além disso, é de considerar algo evidente: o anúncio será enganoso se o que foi afirmado não se concretizar. Se o fornecedor diz que o produto dura seis meses e em dois ele está estragado, a publicidade é enganosa. Se apresenta o serviço com alta eficiência, mas o consumidor só recebe um mínimo de eficácia, o anúncio é, também, enganoso etc. Enfim, será enganoso sempre que afirmar algo que não corresponda à realidade do produto ou serviço de acordo com todas as suas características. As táticas e técnicas variam muito e todo dia surgem novas, engendradas em caros escritórios modernos onde se pensa frequentemente em como impingir produtos e serviços iludindo o consumidor.
Como se sabe, no direito do consumidor, é decadencial o prazo para a apresentação de reclamação por vícios, conforme disciplinado no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), verbis: "Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 2° Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II - (Vetado). III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento. § 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito".            À primeira vista, a leitura do inciso I do § 2º do art. 26 traz fácil entendimento, uma vez que, realmente, a interpretação gramatical aponta um dos sentidos do texto: obsta a decadência a reclamação feita pelo consumidor ao fornecedor. Todavia, é de se perguntar: a) A reclamação pode ser verbal? b) Tem que ser feita pessoalmente ou pode ser pelo telefone e pela internet? c) Tem que ser feita pelo próprio consumidor ou por alguma entidade de defesa do consumidor em seu nome? d) A que pessoa real no fornecedor a reclamação tem que chegar? É evidente que uma norma protecionista que tenha conferido prazos curtos (30 e 90 dias) para o consumidor agir e não decair de seu direito tenha que ser interpretada da maneira mais ampla e abrangente possível em relação à forma de constituição dessa garantia. Além do fato de que a regra básica é de proteção ao consumidor (art. 1º), reconhecido como vulnerável (inciso I do art. 4º), cuja interpretação necessariamente deve buscar igualdade real (art. 5º, caput e inciso I, da CF), para gerar equilíbrio no caso concreto (art. 4º, III) etc. Essas características devem ser levadas em conta para o sentido de tudo o que está estabelecido no § 2º. Assim, a lei exige que o consumidor comprove que fez a reclamação, mas nada impede que esta seja verbal, pessoalmente, por telefone ou via internet. A prova dessa reclamação, se necessária, será feita no processo judicial, por todos os meios admitidos. É claro que, para o consumidor se garantir plenamente e não correr o risco de perder seu direito, o ideal será que faça a reclamação por escrito e a entregue ao fornecedor: por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos; mediante o serviço de correios com aviso de recebimento; ou protocolando cópia diretamente no estabelecimento do fornecedor etc. Acontece que não se deve olvidar da realidade do mercado e da dinâmica do atendimento existente. São centenas de empresas que têm colocado à disposição do cliente os Serviços de Atendimento ao Consumidor, conhecidos como SACs, exatamente para receber, via telefone ou pela internet, as reclamações relativas a vícios dos produtos e dos serviços. Supor que o consumidor, em vez de se servir desse atendimento oferecido, vá burocratizar a relação, preparando um documento escrito e remetendo-o pelo Cartório, é ir contra o andamento natural das relações de consumo. Além do que, quando há SAC oferecido pelo fornecedor e posto à disposição do consumidor, esse serviço integra a oferta e assim vincula o ofertante (arts. 30 e segs. do CDC).
A partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), ficou claro que a pessoa jurídica é, além de fornecedora -- fabricante, importadora, produtora, prestadora de serviços etc. - consumidora por expressa designação legal (Art. 2º, CDC). Assim, tanto na posição de fornecedora quanto na de consumidor, ela goza de direitos.  Mas, subindo um degrau na hierarquia legal, no que diz respeito à imagem, pergunta-se: em relação às garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal (CF), a pessoa jurídica está abrangida? Lembremos, primeiramente, o texto normativo da CF: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". A doutrina e a jurisprudência são consensuais na resposta: sim, no quadro de proteção da norma constitucional em análise, a pessoa jurídica está incluída. Contudo, há algumas limitações de ordem prática: a) A pessoa jurídica não sofre dano estético, pois este diz respeito ao aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano; b) Não pode ser violada em sua honra, eis que esta somente pode ser atribuída ao indivíduo. Anoto que, quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo (que tratarei adiante); c) Não sofre, também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor e sofrimento é uma exclusividade humana. É verdade que parte da doutrina fala em dano moral da pessoa jurídica e muitas decisões judiciais fazem o mesmo. No entanto, cuida-se de uma impropriedade do uso do termo. Sempre que se fala em dano moral da pessoa jurídica ou de indenização pelo dano moral causado à pessoa jurídica, está-se abordando a violação à sua imagem. Não devemos esquecer que há consenso no Brasil de que dano moral implica em dor, constrangimento excessivo, angústia, sofrimentos de vários tipos etc., sentimentos que somente a pessoa natural pode experimentar; d) A pessoa jurídica não goza das garantias relativas à intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. Apenas para a pessoa humana é que se pode falar em vida íntima e intimidade. Por outro lado, porém, a pessoa jurídica goza de privacidade. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente (além de decisões internas, reuniões de diretoria etc.). Esses são os elementos que compõem sua esfera privada. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica no que tange aos consumidores, às demais pessoas jurídicas,  às autoridades e aos órgãos governamentais etc. se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a imagem da pessoa jurídica é protegida constitucionalmente. Para se compreender em que consiste essa imagem, eu recorro à mesma classificação que adoto para pessoa física1. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. Obviamente, coloco aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física2. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva, quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto, mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. Além disso, a pessoa jurídica possui imagem-atributo3. E é aqui que reside certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. É uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. Por isso,  embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem--atributo depende da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Por fim, anoto que a Constituição Federal não faz distinção de pessoa jurídica: esta pode ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1 Acompanho neste ponto o Professor Luiz Alberto David Araújo, A proteção constitucional da própria imagem: pessoa física, pessoa jurídica e produto. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 2 Diz o professor Luiz Alberto David Araújo que o direito à imagem possui duas vertentes: a primeira delas é a relativa à reprodução gráfica, como o retrato (fotografia),o desenho, a filmagem. Esta tem o nome de "imagem-retrato" (ob. cit., p. 27-30). 3 Continuando a exposição da nota anterior do Prof. Luiz Alberto, anoto, então, que a segunda vertente é a que revela as características do conjunto de atributos cultivados pelo indivíduo e que são reconhecidos pelo corpo social. Esta tem o nome de "imagem-atributo" (ob. cit., p.31-32).
quinta-feira, 4 de maio de 2023

Os contratos nas relações de consumo

Quando se pensa no contrato que envolve relações de consumo, é preciso lembrar que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece uma série de princípios e regras que precisam ser respeitados, como exponho a seguir. Começo tratando do dever de informar, que é princípio e norma no CDC, por disposição do art. 6º, III, e art. 31. De fato, na sistemática da legislação consumerista  o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preço etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões.        Trata-se de um dever exigido mesmo antes de se iniciar qualquer relação. Impõe-se ao fornecedor o dever de informar, na fase pré-contratual, isto é, na oferta, na apresentação e na publicidade. E essa informação obrigatória vai integrar o contrato. Concomitantemente ao dever de informar, aparece no CDC o princípio da transparência, traduzido na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de conhecer o conteúdo do contrato previamente, ou seja, antes de assumir qualquer obrigação. Tal princípio está estabelecido no caput do art. 4º e surge como norma no art. 46, de modo que, em sendo descumprido tal dever, o consumidor não estará obrigado a cumprir o contrato.          O CDC reconhece um fato: o de que o consumidor é vulnerável na medida em que não só não tem acesso ao sistema produtivo como não tem condições de conhecer seu funcionamento (não tem informações técnicas), nem de ter informações sobre o resultado, que são os produtos e serviços oferecidos.           Esse reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal. Significa que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico.           O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está referindo apenas aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido.         O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômica e às vezes até superior à de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral.         Claro que essa vulnerabilidade se reflete em hipossuficiência no sentido original do termo - incapacidade ou fraqueza econômica. Mas o relevante na vulnerabilidade é exatamente essa ausência de informações a respeito dos produtos e serviços que se adquire.          Por isso que, na interpretação dos contratos, tem-se de levar em conta a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor. Com base na proibição de qualquer forma de abuso do direito, expressamente estabelecida nos arts. 39 a 41 do CDC, que regula as práticas abusivas, firmou-se o entendimento de nenhuma forma de abuso está permitida. A questão está fortemente enraizada e surge de vez e definitivamente como princípio basilar nas relações de consumo, obrigando o intérprete a considerá-la sempre como fonte para entendimento do contrato. Na realidade, é preciso lembrar que o princípio do protecionismo é o que inaugura o sistema da lei consumerista. Decorre diretamente do texto constitucional, que estabelece a defesa do consumidor como um dos princípios gerais da atividade econômica (inciso V do art. 170) e impõe ao Estado o dever de promover a defesa do consumidor (inciso XXXII do art. 5º). Por isso, no que tange às questões contratuais, não se pode olvidar o protecionismo que, superadas as demais alternativas para interpretação, tem de ser levado em conta para o deslinde do caso concreto. Assim, vige o princípio da interpretatio contra stipulatorem. Com base nele, nos contratos de adesão, havendo cláusulas ambíguas, vagas ou contraditórias, a interpretação faz-se contra o estipulante. Contudo, na lei consumerista, esse princípio veio estampado de maneira mais ampla no art. 47, que estabeleceu que "as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor". Isto é, toda e qualquer cláusula, ambígua ou não, tem que ser interpretada de modo mais favorável ao consumidor. Por fim, lembro que o princípio da boa-fé objetiva acabou formando um "chapéu" em torno dos direitos subjetivos das partes, de modo que nenhuma forma de abuso do exercício do direito pode ser tolerada. Isto é, a boa-fé limita o exercício do direito subjetivo para evitar qualquer tipo de abuso, o mínimo que seja. E, neste caso, o princípio aplica-se tanto ao fornecedor como ao consumidor. Como subproduto do princípio da boa-fé está o dever de cooperação e o dever de cuidado, que examino na sequência. O verbo "cooperar" tem o sentido de operar simultaneamente, trabalhar em comum, colaborar. Em termos contratuais, então, o dever de cooperação nada mais é do que sempre colaborar para que o contrato atinja o fim para o qual foi firmado. Será contrária ao dever de cooperação a ação do contraente que inviabilize a atuação da outra parte quando esta tentar cumprir sua obrigação. Por exemplo, a ação do fornecedor impondo certas dificuldades para que o consumidor efetue o pagamento: limitação de horas, especificação de locais especiais etc. O dever de cuidado, por sua vez, diz respeito ao resguardo da segurança dos contraentes. Em poucas palavras, pode ser traduzido no dever de um contraente para com o patrimônio e a integridade física ou moral do outro contraente. É a obrigação de segurança que a parte deverá ter para não causar danos morais ou materiais à outra.
O mercado oferece a felicidade abertamente. Nos anúncios publicitários, por exemplo:"Pão de açúcar, lugar de gente feliz". Nos nomes de produtos e nas promoções como a dos brindes no Mc Lanche Feliz ou do Mc Dia Feliz do Mc Donald's. O mercado oferece também a paixão, que, claro, leva à felicidade: "Grandes paixões a gente nunca explica. Apenas sente. Seja sócio Premiere FC e viva a emoção de ver as conquistas do melhor time do Brasil: o seu!" etc. Examinando-se os anúncios publicitários, como regra, o que se vê são pessoas bem-sucedidas, sempre sorridentes, alegres, cantando, se abraçando, passeando, dançando, enfim, felizes. E não é para isso que os produtos e serviços são oferecidos? Para que as pessoas se sintam bem, se satisfaçam, atinjam seus sonhos, cheguem ao patamar desejado, isto é, se sintam felizes? Para a insatisfação com o corpo, partes postiças; para as rugas, cremes miraculosos; para as gordurinhas indesejadas cintas e roupas adequadas ou academias repletas de promessas ou, ainda, dietas que adornam a esperança; tudo, naturalmente, para que, no final das contas, nós consumidores atinjamos um excelente patamar de vida. Férias? É o momento de suprema felicidade. Pacotes de viagem, hotéis, lugares paradisíacos ou simplesmente indispensáveis (Paris, por exemplo, ou Nova York). Desfrutar os momentos de lazer, passeando à beça e conhecendo muitos lugares ou simplesmente não fazendo nada etc.; mais uma vez, para quê? Ora, sermos felizes. Quer emoção? Paixão? Não perca as finais do campeonato de futebol e sinta-se sublime. O modelo de produção muito bem engendrado foi capaz de, aos poucos, encontrar e preencher certos espaços vazios encontrados na alma humana. As pessoas foram muito bem estudadas em seus anseios, suas dificuldades, seus desejos, suas necessidades, seus comportamentos etc. Além disso, a vida social foi esmiuçada e acabou por ser penetrada pelo modelo de produção capitalista. Desse modo, aos poucos, o mercado foi avançando no meio social e penetrando no coração das pessoas. Os espaços encontrados foram sendo preenchidos pelos produtos e serviços oferecidos no mercado. Atualmente, o poder do mercado é tamanho que praticamente nada se lhe escapa. Pergunto: será que o que se esconde por detrás dessa enorme profusão de produtos e serviços é uma promessa de encontro da felicidade? Ou, dito de outro modo, será que o sucesso do mercado de consumo no atual modelo capitalista ocorre porque, no fundo, o que se está oferecendo, ainda que não declaradamente, é a felicidade? Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade e compra, para tanto, sapatos, relógios, roupas, viagens etc. Mas, como nem sempre consegue ser feliz por esse meio, ele continua comprando, incessantemente, sai ano entra ano, na esperança de encontrá-la.
Continuo abordando o tema do sucesso ou fracasso do modelo de capitalismo vigente, a partir do final do Século XX. No artigo anterior deixei em aberto as seguintes questões: o modelo deu certo? É isso? O planeta está indo bem? A humanidade conseguiu atingir seu objetivo de viver em paz, harmonia, bem-estar? Ou, estamos num dos piores períodos da história da humanidade? Os números, como todos sabem, podem ser manipulados a bel prazer de quem redige os textos científicos ou não. É possível, por exemplo, apontar o desenvolvimento da medicina como algo positivo, o aumento da produção agrícola e as melhoras das condições de higiene ou mostrar os casos de confortos como o uso de telefones celulares, de ar condicionado e chuveiro com água quente, o uso de lentes de contato etc.. No entanto, infelizmente, os dados reais estão longe das ilusões vendidas pelos controladores do sistema. Indico um dado inexorável: o planeta Terra está sendo destruído pelo modo de produção e consumo existentes. As catástrofes climáticas estão à  mostra de todos. Secas de um lado e enchentes de outro, ar venenoso circulando livremente, frio no verão e calor no inverno, o aquecimento global em números nunca vistos, novos tipos de ciclones e tufões etc., o esgotamento de reservas naturais importantes etc.. Ironicamente, não só os povos dos países pobres e emergentes sofrem, mas também os dos países desenvolvidos. Gaia não escolhe pessoas por sua capacidade de riqueza, nem por suas roupas de grife ou dinheiro depositado no banco (declarados e não declarados). Gaia apenas devolve o que lhe tiraram,  para voltar ao seu equilibrado ecossistema. Como se sabe, Gaia, na mitologia grega, é o nome da deusa da Terra, companheira de Urano (Céu) e mãe dos Titãs (gigantes). Gaia é a personificação do planeta Terra, representada como uma mulher gigantesca e poderosa. O cientista britânico James Lovelock, em sua homenagem à deusa grega, criou a Hipótese de Gaia, na qual descreve o planeta Terra como um organismo vivo, que apresenta algumas características como a atmosfera com química e a capacidade para manter e alterar suas condições ambientais. Lovelock acredita que o planeta recuperará seu equilíbrio sozinho, mesmo que demore milhões de anos. Todavia, prevê, que a civilização humana pode acabar ou restar poucas pessoas. "É bem possível considerar seriamente as mudanças climáticas como uma resposta do sistema que tem como objetivo se livrar de uma espécie irritante: nós, os seres humanos... Ou pelo menos fazer com que diminua de tamanho."1 Bem, se isso é já um imbróglio criado em larga medida pelo modelo de produção e consumo, há ainda o lado humano e civilizatório. A população mundial está em explosão demográfica desde a época da Revolução industrial a partir de meados do século XVIII. Para se ter uma ideia, demorou 126 anos para que a população do planeta passasse de 1 bilhão de habitantes para 2 bilhões (de 1802 a 1928). Para atingir 3 bilhões, apenas 33 anos (em 1961) e para chegar aos 4 mais 13 anos (em 1974). E assim, numa média de 12 a 15 anos, chegou  a 7 bilhões em 2011. Atualmente, somamos mais de 8 bilhões de habitantes.2 A Terra nunca foi habitada por um tão grande contingente de seres humanos. Aliás, basta olhar o quadro acima da evolução do número de habitantes para ver que isso tornou-se um problema (em termos de ocupação do espaço existente) e uma oportunidade de aumento de vendas e receitas (para os produtores e prestadores de serviços). Contudo, com o modelo de produção e consumo implantado, o planeta está sofrendo. Infelizmente, ao chegarmos ao século XXI, vê-se que não atingimos um estágio civilizatório de que possamos nos orgulhar. Há coisas boas, mas muitas ruins como a miséria nas sociedades, a violência, o desemprego, o desamparo, os crimes de todos os tipos, as doenças comuns, os problemas de saneamento e atendimento médico,  as guerras etc.. __________ 1 Entrevista concedida à Revista Rolling Stone. Tradução de Ana Ban. 2 Disponível aqui.
É lugar comum dizer que o capitalismo é o regime vitorioso sobre todos os demais; é aquele que deu certo. E para defender essa afirmação, os neoliberais de plantão sempre têm na manga dados e números que o demostrariam. A pergunta que faço é: do que  trata essa vitória? Quem são os vitoriosos? Quais foram os louros colhidos? Se essa vitória está ligada ao marco civilizatório, este foi atingido? A humanidade, de fato, tornou-se melhor, mais feliz? E o planeta Terra como está? Abordarei uma parte dos temas capazes de responder a algumas dessas perguntas e tentar descobrir se os benefícios são maiores que os prejuízos ou vice-versa. Com efeito, os historiadores costumam apontar a origem do modelo de capitalismo que vingou ao final do feudalismo vigente na idade média. Mas, para não entediar o leitor, passando pelos vários momentos históricos, vou direto ao século XVIII. Neste, as características que conhecemos do regime capitalista já estão quase todas determinadas: a exploração da mão de obra assalariada e do meio ambiente, a moeda como base de pagamento e compra de produtos, as relações financeiras e bancárias, o aumento dos lucros, o acúmulo de riquezas, o fortalecimento da burguesia etc.   Com a revolução industrial no século XVIII, o sistema capitalista se fortalece e se expande não só na Europa como em outras regiões do planeta. Surgem as fábricas, começam as produções massificadas e em série, diminuem os preços dos produtos que podem ser oferecidos a um maior número de consumidores e aumentam as receitas e os lucros dos fabricantes. Esse modelo homogeneizador se expande aos serviços, que por sua vez vão se massificando também. Quando chegam ao crédito, o cerco sobre os consumidores está fechado: mesmo quem não tem dinheiro pode comprar; surge o endividamento - que se torna interminável e, atualmente, o superendividamento.   Muito bem. Olhando assim, parece que a expansão do modo de produção era algo favorável às pessoas, pois lhes possibilitaria adquirir cada vez mais produtos e serviços para seu conforto e bem estar, de tal maneira que, talvez, ao chegarmos ao século XXI teríamos sociedades e, consequentemente,  um planeta com pessoas mais felizes. Com a queda dos regimes socialistas e comunistas na maior parte das nações, a esperança aumentou, pois o capitalismo tornou-se o regime majoritário no século XX e, praticamente absoluto no século XXI. Some-se a isso o incremento da tecnologia - que permitiu enormes avanços na medicina e área de medicamentos -, as telecomunicações, os transportes modernos etc. e estávamos chegando num admirável mundo novo (Aldous Huxley que nos diga...). De fato, havia alguma esperança. Veja-se que o  modelo existente até início dos  anos oitenta do século XX oferecia elementos para que pudéssemos acreditar. Havia, por exemplo, concorrência entre as empresas. Era pela concorrência que se acreditava que as empresas poderiam, de um lado, oferecer melhores produtos e serviços a menores preços e, de outro, multiplicarem-se. Quanto mais empresas, mais postos de trabalho, menos concentração de renda (e de poder), mais distribuição de riquezas, mais benefícios para um maior número de pessoas, enfim, mais justiça distributiva e social. Acontece que, muito antes, ainda no Século XX, e fortemente incrementado após a segunda grande guerra, as corporações financeiras e os executivos com formação em finanças, passaram a exercer enorme influência não só na forma de produção, como na distribuição e no controle das vendas aos consumidores. Com o passar do tempo, os empregos, ou melhor, os empregados passaram a ser enxergados como custos e as oportunidades do mercado alvo (leia-se uma vaga/uma chance de venda  = um certo preço) como commodities. A relação entre as empresas e seus empregados tornou-se impessoal (um empregado = um número na planilha de custos). O mesmo ocorreu com o consumidor (um consumidor = uma oportunidade de receita na planilha de vendas). As pessoas reais, isto é,  trabalhadores e consumidores, passaram a não ter mais tanta importância:  são números que ajudam ou atrapalham. A melhora dos sistemas de distribuição e transporte permitiu que a produção se "globalizasse". As grandes empresas passaram a fabricar seus produtos (e, também, a explorar seus serviços) fora das sedes dos países desenvolvidos. Instalaram-se em outros locais, onde a mão de obra era mais barata e os trabalhadores podiam ser mais fortemente explorados, com a ajuda ou não dos governos locais. Estava, pois, tudo pronto para as fusões e incorporações. Antes concorrentes, agora as empresas passaram a se associar e trabalhar juntas. Antes disputavam o mesmo consumidor, oferecendo melhores produtos e serviços a menores preços, agora, em conjunto, nos gabinetes, os executivos das corporações,  planejam como explorar cada vez mais o mesmo consumidor, que lhes pertence. Além disso, com as fusões, milhões de seres humanos (os números para os executivos) ficaram desempregados. Diminuindo o número de empresas, a concorrência foi se esvaindo, e a receita e o lucro das corporações tornam-se monstruosos. A concentração de renda transformou-se em algo jamais visto na história da humanidade. Esse é, em resumo, o quadro atual. Pergunto: deu certo? É isso? O planeta está indo bem? A humanidade conseguiu atingir seu objetivo de viver em paz, harmonia, bem-estar? Ou, estamos num período ruim da história da humanidade? ***  É o que tentarei responder na próxima semana.
quarta-feira, 15 de março de 2023

O Dia Mundial do Consumidor

Hoje, dia 15 de março, é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso porque foi nesse dia, há mais de 60 anos (em 1962), que o então presidente norte-americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, tais como o direito à segurança, à informação e à escolha e o direito de ser ouvido. E no fim de semana passado (11 de março) o nosso Código de Defesa do Consumidor (CDC) fez 32 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). Aproveito, pois, essas datas para lembrar algumas virtudes de nossa famosa lei consumerista. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então deputado Geraldo Alckmin, que  fez nascer o CDC,  pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Trata-se de uma lei tão importante que fez com que nós, conhecidos importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas. Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e, também, em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nos esportes em geral, nas diversões públicas,  em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como cursos, livros, filmes etc.; as compras via web/internet; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; as matrículas e os cursos realizados em escolas particulares de todos os níveis de ensino;  a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição de imóveis e da tão sonhada casa própria e um interminável etc. Tudo  regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo  que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a Constituição Federal de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Realço algo importante: o CDC não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege a parte vulnerável que é a pessoa consumidora, aliás, como é em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Ademais, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente há mais tempo ajudou em muito o crescimento do mercado. E, como também já disse aqui, o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, uma data sempre lembrada. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. De todo modo, apesar da longeva vigência e forte proteção, ainda há abusos em várias situações. Mas, repito, dá orgulho saber que o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores.
Empresas mentem para seus clientes? O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão1. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, para os fornecedores que souberem aprender com ela (e, também, com várias outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento da clientela. Lembro que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que sempre pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte do empresariado não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns empresários mais inteligentes e menos gananciosos). Trato, pois, da "empresa mentirosa" para lembrar que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente (embora, claro, os altos salários pagos sempre sejam depositados na conta da pessoa física!). Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais. De fato, a mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços que impõe que um trabalhador ou colaborador engane outro ou, dito de outro modo, é o procedimento amplamente implementado (embora não conscientizado) de batalha de um consumidor contra outro. Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados só tem a ganhar com isso. Não são conhecidos casos de empresas que não deram certo simplesmente porque agiram corretamente na relação com seus consumidores. __________ 1 "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:         Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.         § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta.         § 2º Se o crime é culposo;         Pena Detenção de um a seis meses ou multa".
Após os terríveis desastres naturais causados pelas chuvas no litoral norte do Estado de São Paulo, surgiram denúncias de que alguns produtos essenciais haviam sofrido aumento abusivo de preços. Infelizmente, esse tipo de conduta é recorrente em casos de catástrofes não só no Brasil como em outros lugares do mundo. São exemplos da ganância, a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população  da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Como eu disse acima, esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil algumas vezes. São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos fornecedores. Ademais, colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Lembro que, na concepção cristã, a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo que vivemos, tudo parece possível.  E o Código de Defesa do Consumidor proíbe expressamente esse tipo de conduta. Com efeito, dispõe o artigo 39, V e X do CDC: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...)    V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (...)                     X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;" O que se espera é que os órgãos de defesa do consumidor investiguem esses casos e punam os infratores. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade).
Infelizmente, todo início de ano é a mesma coisa: as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras. E parte disso é previsível. Volto, pois, ao tema da responsabilidade do Estado no caso das catástrofes climáticas. Os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc. em vários pontos do país são o retrato de uma política de omissão que, ao que tudo indica,  repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano  passado e nos anteriores. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos.  A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer,  passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio.  De nada adianta ficar acusando as vítimas depois das ocorrências, como se vê em alguns casos, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada  e, também, nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Lembro, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme  § 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra  considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização.  Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro.  Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e, também, pela vítima.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), como se sabe, regula uma série de direitos subjetivos individuais dos consumidores. E, além disso, tem uma preocupação especial com a proteção coletiva dos direitos estabelecidos. Se observarmos o título III da lei 8078/90, "Defesa do Consumidor em Juízo", perceberemos como isso é significativo. Muito embora a proteção individual não esteja excluída - o que, aliás, era mesmo de se esperar -, a natureza do regramento é claramente coletiva. Tanto que, como se sabe, o CDC é o responsável, no Sistema Jurídico Nacional, por fixar o sentido de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. A lei consumerista permite a proteção dos consumidores em larga escala mediante Ações Civis Públicas (ACP). É por elas que o consumidor pode ser protegido por iniciativa de associações privadas e do Ministério Público (MP) em todas as esferas. Naturalmente, existe uma luta intensa no Judiciário contra esse direito fundamental por parte de algumas empresas de grande porte, por causa do impacto que decisões nesse tipo de ação judicial pode causar. E, olhando bem de perto o CDC, o que se percebe é que ele, digamos assim, "gostaria" que existissem muitas ações coletivas, pois um de seus alicerces fundamentais na questão processual é exatamente este de controlar como um todo os atos dos fornecedores. Além disso, é importante lembrar que as ações coletivas são, talvez, as únicas capazes de fazer cessar aquilo que os consumeristas chamam de "abusos de varejo": uma tática empresarial dolosa de impingir pequenas perdas a centenas ou milhares de consumidores simultaneamente. Veja-se um exemplo disso, que eu transcrevo a seguir. Trata-se de uma antiga mala-direta enviada por um grande Banco: "Prezado(a) Cliente, Temos uma novidade que vai aumentar ainda mais a sua tranquilidade. O Serviço de Proteção do seu Cartão de Crédito (...) foi ampliado e, a partir do vencimento de sua próxima fatura, você contará com o novo Seguro Cartão (...). Agora, além da proteção contra perda e roubo de seu cartão de crédito, você terá a mesma proteção para saques feitos sob coação em sua conta corrente. E mais: com o Seguro Cartão (...) você contará com um conjunto de coberturas e serviços, como renda por hospitalização e cobertura por Morte Acidental e Invalidez Permanente em consequência de crime, além de serviços de táxi, despachante, transferência inter-hospitalar e transmissão de mensagens. Por apenas R$3,50 mensais, somente R$1,00 a mais do que você paga atualmente, você terá acesso a todos esses benefícios. Esta é uma segurança da qual você não deve abrir mão. Porém, caso você queira manter apenas a cobertura atual, basta que nos próximos 30 dias você entre em contato com o (...) por Telefone. Cordialmente," Perceba o abuso: o Banco já lançou o valor de R$1,00 na fatura do consumidor. Se este não tiver interesse no novo produto/serviço enviado/lançado, terá que tomar a iniciativa de telefonar para o banco para cancelar o que nunca pediu. Agora, como se trata de apenas R$1,00 ao mês, muito provavelmente os consumidores nada farão, nem reclamarão. Individualmente não compensa. Mas, o banco terá enorme vantagem com seus milhares de clientes. Lembre-se, também, de um outro exemplo vergonhoso: o da maquiagem de pesos e medidas feita diversas vezes pelas grandes indústrias de alimentos, na qual os produtos tiveram seu peso líquido diminuído sem que os consumidores soubessem. Manteve-se o preço e diminuiu-se o peso ou a medida dos produtos em pequenas quantidades e metragens, de modo que não só os prejuízos foram individualmente pequenos, como por isso mesmo, quase não são notados. Esse tipo de manobra sempre existiu e ainda existe no mercado de consumo. A tática de abusar em pequenos volumes e valores para ganhar na quantidade está presente em ofertas e publicidade de vários tipos. É a Ação Coletiva que tem eficácia para impedir e/ou eliminar esse tipo de abuso.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O problema da doença das compras compulsivas

Volto ao tema do vício, que é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. Há vícios de todo tipo e um específico ligado às compras, contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e, também, é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles.   Mas, veja leitor, que interessante: a pessoa compradora compulsiva não é aquela que se satisfaz  com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode adquirir qualquer coisa que lhes surja pela frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra gerará satisfação. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, essa pessoa é uma  consumidora  típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ela mesma quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas joias etc. e com isso, às vezes, nem ela, nem as demais pessoas que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Vivemos numa  sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas e medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. E, no século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e  de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista criou muitas facilidades para o pagamento das aquisições. Durante muitos anos, o comprador pagava em papel moeda, depois simplesmente passava um cheque, que representava o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possuía concretamente, pois estava no banco. Quer dizer, estava num número numa conta. Nem no cofre da agência bancária estava. O sistema financeiro foi ampliando esse modelo. Num certo momento, então, como disse, o consumidor passava um cheque, que representava o dinheiro que ele possuía. Mas, depois, por conta do sistema de créditos, ele passava o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque especial, o crédito que estava à disposição funcionava como uma tentação dizendo "me usa que eu te satisfaço". Isso é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, passou a ser colocado na conta corrente -- acoplado a ela --, sem que o cliente pedisse. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo. Mudou mais ainda. O cheque está desaparecendo. O sistema de cartão de crédito é hoje um outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro. Na atualidade, com o espetacular incremento da web/internet e dos aplicativos, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Muitos consumidores  não se dão conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se a oneomania for de uma pessoa de posses, com liberdade para gastar, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize e sem se endividar.                                   Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulados "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A educação escolar como produto de consumo

Um amigo meu, fez uma observação interessante. Disse que, quando estava cursando a graduação numa faculdade privada, viu, mais de uma vez, seus colegas se comportarem como consumidores estranhos: se o professor ou a professora faltava, eles comemoravam ao invés de reclamarem. Eles pagavam por um serviço que não estavam recebendo e ainda assim não se incomodavam. No artigo de hoje, cuido de alguns pontos da prestação privada do serviço escolar que envolve pais, mães, filhos e filhas.  Focarei meu artigo no ensino básico (infantil, fundamental e médio). Como se sabe, o ensino escolar particular é típico produto de consumo, isto é, trata-se de prestação de serviços regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Se perguntarmos para os pais por que eles colocam seus filhos em escolas particulares (a maior parte delas bastante caras) a resposta natural estará ligada à qualidade do ensino. "A escola pública não é boa", dirão. Muitos pais, inclusive, sacrificam-se para conseguir pagar as mensalidades. Na verdade, com o incremento  cada vez maior do capitalismo de produtos e serviços essenciais que foram saindo das mãos do Estado e passando para a iniciativa privada, e com a queda da qualidade de ensino nas escolas públicas (refiro especialmente o Brasil, embora o mesmo fenômeno possa ser verificado em outros lugares), o que assistimos nos últimos trinta, quarenta anos, foi a transferência de vagas da escola pública para a privada e o incremento das escolas privadas, muitas delas, atualmente, empresas enormes e altamente lucrativas. Muitas delas adotaram o regime integral, oferecendo refeições e vários cursos extras como atividades para preencherem o espaço de tempo dos alunos, o que se coaduna com a falta de tempo dos pais, que trabalham o dia inteiro, de modo que se acabou fazendo um encaixe de interesses: os pais trabalham enquanto os filhos estudam, fazem esportes ou atividades artísticas, lúdicas etc. Coloco, então, uma questão básica em relação à lei: o que a escola particular oferece? Qual é sua oferta? Não responderei pensando na questão do marketing (muito bem desenhado por muitas delas). Respondo com o aspecto  lógico: a escola presta serviços essenciais de educação. Os pais, quando colocam seus filhos na escola particular, esperam que eles aprendam o conteúdo indicado e necessário. Não é isso? Espera-se que sim. É a obrigação essencial da escola. É para isso que ela existe e, como recebem boas remunerações para tanto, essa é sua contraprestação jurídica principal. Mais eis que, com o passar do tempo, algumas situações esquisitas em termos de cumprimento da oferta têm ocorrido. Por exemplo, em algumas escolas quando os alunos são matriculados ou no início do ano letivo, a Secretaria fornece o nome e telefone de professores que dão aulas particulares. Isso! A escola, desde logo, está dizendo: "Eu ensino, mas não tanto assim. Por isso, segue uma relação para que sua filha ou seu filho receba um reforço no aprendizado". Vejamos, agora, outro aspecto: o da lição de casa. Nas escolas que oferecem serviços de ensino de tempo integral, se a aluna ou o aluno permanece nas instalações da escola o dia inteiro, tem sentido que ela ou ele chegue em casa e ainda tenha que fazer lição? Ou passe os feriados e fins de semana fazendo lição? Será que a infância e adolescência não tem mais espaço para a convivência com os pais, amigos e demais familiares? Em atividades de lazer e mesmo culturais, mas fora do âmbito do conteúdo das disciplinas escolares?  Essa convivência tão importante na formação dos jovens foi abandonada?  Então, para que serve passar o dia na escola? Para que as mensalidades sejam mais caras? Seria um caso de vício na prestação do serviço? Pensemos na relação jurídica da prestação dos serviços de ensino. O fornecedor, uma escola, ou seja,  uma empresa, se oferece para ensinar aos alunos certos conteúdos ditados pelos órgãos governamentais e/ou decididos por ela e com métodos também criados e decididos por ela (escola). Para tanto, ela cobra certo valor mensal (a maioria das mensalidades tem preços bastante elevados). Estabelecida a relação jurídica de consumo, pelo contrato escolar, cabe aos pais pagar as mensalidades e ao prestador do serviço cumprir sua parte: ensinar.  Quero consignar que, evidentemente, não estou me referindo à aluna ou ao aluno que tenha algum tipo de dificuldade própria de aprendizado. Faço uma abordagem relativamente ao grande número de alunos que não apresentam nenhum tipo de problema para estudar e incorporar conhecimento.  Por fim, anoto que, algumas vezes, a situação beira ao absurdo quando, por exemplo, grande parte dos alunos de uma determinada sala não consegue aprender. Para mim, como professor, quando numa sala 50% ou mais dos estudantes fica de recuperação, a falha é claramente do professor e da escola e não dos alunos! É esse o ponto: a escola, na hipótese,  não cumpriu a oferta; não cumpriu com seu dever de ensinar.  
Em período de férias e com a volta das viagens nacionais e internacionais; com o fim das fortes restrições da locomoção por causa da pandemia da Covid, é sempre bom lembrarmos de alguns direitos dos passageiros dos aviões. Assim, hoje, cuido dos atrasos e dos direitos envolvidos. O tema está regulado pela resolução nº 400 de 13-1-2016 da ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil. Começo lembrando que esse setor do transporte aéreo de passageiros é um daqueles em que o consumidor está numa situação de extrema vulnerabilidade: ele fica literalmente nas mãos do transportador que decide como será sua viagem, se adequada ou inadequada, livre de problemas ou cheia de transtornos. Qualquer pessoa que viaje entende muito bem do que falo: nunca se sabe se dará tudo certo. Quer seja uma viagem de negócios ou de lazer, sempre se está numa expectativa incerta. Atrasos e falta de informações são muito comuns. Ao consumidor só resta torcer para que tudo dê certo.  Há, é verdade, atrasos honestos, tais como aqueles que envolvem eventos climáticos, acidentes ou problemas mecânicos com aeronaves ou, ainda, eventuais entraves com o tráfego aéreo envolvendo outras aeronaves. Mas não esqueçamos de que há, infelizmente, como já se constatou algumas vezes,  os atrasos programados: os que envolvem voos em que as aeronaves estão com pouca ocupação. Nesta hipótese,  um voo é cancelado para que um outro, posterior, saia lotado e para o qual os passageiros foram realocados. De todo modo, nesse assunto, lembro que, independentemente, do motivo, sempre que o atraso for superior a 4 horas, o consumidor pode pleitear indenização por danos morais. A citada Resolução garante assistência material ao passageiro e o faz do seguinte modo: "Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos: I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II - superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III - superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta."  O que interessa aqui são os atrasos superiores a 4 horas. Neste caso, o consumidor tem o direito de pleitear indenização por danos morais. Importante consignar que, em várias decisões judiciais, o atraso em período menor do que 4 horas é considerado mero aborrecimento. Logo não cabe pedir indenização.  Mas acima das 4 horas o pleito é viável. Lembro, também, que a responsabilidade das companhias aéreas é objetiva, como decorrência da incidência do Código de Defesa do Consumidor, especificamente o artigo 14 da lei. Alegações de que o atraso superior a 4 horas deu-se por problemas climáticos ou por ausência de piloto,  do copiloto ou de membros da equipe de bordo, ou, ainda, problemas mecânicos ou de segurança  da aeronave etc. não excluem a responsabilidade, pois são hipóteses de fortuito interno (previsíveis dentro da análise do risco da atividade). As exceções são as relacionadas aos fortuitos externos (e não previsíveis), tais como um terremoto ou a eclosão de um vulcão. Desse modo, na medida em que o atraso se dê por período superior a 4 horas, existe nexo de causalidade,  que pode gerar, então, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Não existe, claro,  um valor definido,  mas a pesquisa jurisprudencial mostra que as indenizações dependem daquilo que o consumidor demonstrar em juízo e que envolve o dano efetivamente sofrido, o real tempo de atraso e espera após as 4 horas e, também,  as condições de atendimento oferecido pela cia aérea (as informações, a alimentação, a hospedagem, o transporte etc.). Por fim, anoto que é relevante para o aumento do valor da indenização, e tem sido levado em conta nas decisões judiciais, a demonstração da perda de compromissos  profissionais ou familiares.
Continuando a exposição da semana anterior, lembro que para a teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não importa a motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou "sem querer") nem a capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem ainda os interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.).  O que vale é a seleção objetivamente operada. Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, pressão do pai, da mãe ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de Medicina, Engenharia, Administração de Empresas etc.  Os papéis sociais foram-se criando por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais. Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que para o indivíduo as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações1.  Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais - ações e comportamentos - preenchidos temporalmente por indivíduos.  Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para ter um  comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte. Isso traz vantagens e desvantagens.  A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade.  A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe "por detrás" do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido. Essa relação indivíduo-papel, do ponto de vista social, pode gerar conflitos. Não resta dúvida de que, apesar da fixidez do papel, o indivíduo real nele absorvido irradia, no comportamento resultante do exercício do papel, vários aspectos de sua personalidade, além de nele desempenhar suas aptidões pessoais, tais como habilidades manuais, inteligência, ponderação, discrição etc.  E a teoria dos papéis sociais pode, então, contribuir sobremaneira para a elucidação da questão do público e do privado no que diz respeito ao indivíduo.  Continuo no próximo artigo. __________ 1 É muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente "crie" um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais preexistentes entre os demais papéis sociais.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

E um milagre, quanto custa?

Como já comentei aqui, nesta época do ano, eu adoro rever filmes que festejam o Natal e seus milagres. Tenho alguns preferidos como, por exemplo, "O Milagre da Rua 34" (em qualquer versão) e "A felicidade não se compra" (de Frank Capra). Gosto também dos diversos contos de Natal, que, como esses filmes, fazem bem  à mente e ao coração. E é esse o tema de minha última coluna do ano: um conto de Natal para celebrar o milagre. Trata-se de um trecho de meu Romance "A Visita", que intitulei "E um milagre quanto custa?" Desejo Feliz Natal aos leitores e leitoras!  Segue:  E um milagre, quanto custa? Essa é a história de Lucas, um menino de 7 anos. Ele era muito atento, curioso e um dos melhores alunos de sua sala do 2º ano do Ensino Fundamental de uma excelente escola pública numa cidade do interior paulista. Ele estava muito animado com o fim das aulas que se anunciava para os próximos dias, pois teria mais tempo para brincar com seu irmão menor, Pedro, de apenas três anos de idade. Sempre que havia chance, eles jogavam futebol na quadra do prédio onde moravam. Seu pai trabalhava como vendedor em uma concessionária de veículos e sua mãe voltara a trabalhar como costureira. Sua avó materna ajudava a cuidar da casa e a tomar conta dele e de seu irmão. Mas, naquele mês de dezembro, Lucas percebeu uma movimentação estranha e diferente em casa. Ao que lhe pareceu, seu pai havia perdido o emprego e estava nervoso em busca de outro. A mãe mostrava-se muito preocupada com o pagamento do aluguel do apartamento onde moravam. Para piorar o clima reinante, Pedrinho adoecera. Não podia mais jogar bola nem brincar mesmo dentro de casa. Sua avó vivia assustada para lá e para cá com seu irmãozinho. Os dois dormiam no mesmo quarto, mas, na última semana, a cama dele fora colocada no quarto dos pais. Ficou um pouco apertado, mas sua mãe havia dito que era importante por causa da doença. Numa noite, Lucas estava deitado e ouviu um barulho agitado na sala. Seus pais e sua avó conversavam e pareciam muito nervosos. Ele, então, resolveu sair na ponta dos pés para escutar a conversa no canto da parede do corredor. Os três estavam muito apreensivos. A voz de sua mãe denunciava uma enorme aflição. Ele não compreendeu muito bem as expressões que ouvia nem os sentimentos manifestados, mas viu que se tratava de algum problema muito grave. Esticou a cabeça e espiou. Quando viu que seu pai enxugava lágrimas nos olhos, voltou para seu quarto e chorou no travesseiro. No dia seguinte, à noite, Lucas parou atrás da porta do quarto dos pais para ouvir a conversa dos dois. Sua mãe estava chorando, sendo acudida pelo pai. Entre soluços, ela disse:  - Querido, você sabe, somente uma cirurgia pode salvar a vida do Pedrinho e nós não temos dinheiro para pagá-la. - É... Desesperador... - Numa época em que se pode comprar de tudo, em que se desperdiça tanto, nós não podemos pagar pela saúde de nosso filho. Pela vida de nosso filho! Somente um milagre pode salvá-lo! Lucas também ficou muito triste. Voltou para seu quarto e teve dificuldade para dormir. No dia seguinte, um domingo pela manhã, enquanto assistia à TV, viu um anúncio que dizia: "Produto milagroso. Não é remédio. É produto natural que opera milagres. Emagreça sem aborrecimento".        Ele sentiu algo que nunca havia sentido - diríamos que se tratava de um misto de ansiedade com esperança -, e uma ideia brotou em sua cabeça: "Vou comprar um milagre para salvar meu irmãozinho". Foi até seu quarto, esvaziou seu porquinho-cofre e contou as moedas. Tinha vinte e dois reais. Colocou tudo numa pequena bolsa e começou a planejar o que fazer. Na segunda-feira, no intervalo das aulas, ele pegou a bolsinha com as moedas e foi até a enfermaria. Lá chegando, viu que a enfermeira abraçava fortemente um homem. Lucas parou na porta e esperou. Ouviu o homem e a enfermeira conversarem animadamente. Percebeu que eles eram irmãos. De repente, ela notou a presença dele e disse: - Olá. Tudo bem? Você precisa de alguma coisa? - Sim... Quer dizer, meu irmão precisa... O Pedrinho está muito doente. - Ele estuda aqui na escola? - Não. Ele ainda não vai para a escola. Só tem três anos. - Então, acho que não posso fazer nada. Desculpe. - Mas a senhora sempre ajuda as crianças... E meu irmão precisa de um remédio que tem aqui... Uma vez eu fiquei com febre e... Eu me lembro, a senhora me deu umas gotas e disse: "Pode tomar. É amargo, mas faz milagres. Você logo ficará bom". Fez-se um silêncio e, se alguém olhasse o rosto da enfermeira, poderia claramente identificar o ponto de interrogação que ali pairava. O homem, então, interveio: - Diga uma coisa. O que o seu irmão tem? - Não sei direito... Mas ouvi minha mãe dizer pro meu pai que ele tem um caroço crescendo dentro da cabeça. Meu pai falou que não tem dinheiro para pagar a operação. Minha mãe disse que só um milagre pode salvar o Pedrinho. Eu quero comprar o milagre. Olha... Eu tenho dinheiro - e mostrou as moedas. - E, um milagre, quanto custa? O homem deu um sorriso. Colocou Lucas numa cadeira, agachando-se para ficar na altura dos olhos dele e perguntou: - Quanto dinheiro você tem? - Vinte e dois reais. - Nossa! Que coincidência! Vinte e dois reais é exatamente o preço de um milagre. Quem é que vem te buscar na escola? - Hoje, é minha mãe. - Ficarei aqui conversando com minha irmã, que eu não vejo faz tempo. Levantou-se e abraçou novamente a enfermeira. Depois, voltou-se para Lucas e perguntou: - Você ainda tem aula hoje? - Tenho. - Então, vá estudar. Quando acabar a aula, volte aqui. Nós dois iremos juntos até a saída encontrar sua mãe. Aquele homem era um neurocirurgião que morava na capital e trabalhava num dos maiores hospitais da cidade. Muito atarefado, fazia anos que devia uma visita à irmã. Naquela manhã, ele havia acabado de fazer surpresa para ela, chegando de repente e dizendo que passaria três ou quatro dias por lá. Após a aula, Lucas foi encontrá-lo. Então, o médico foi com ele e sua mãe para casa, onde a avó tomava conta de Pedrinho. Examinou-o e, também, as análises de laboratórios que haviam sido feitas. Depois, pediu licença para poder falar a sós com Lucas e foi com ele até o quarto. - Temos um segredo - falou em voz baixa. - Sim, sim - disse, com o rosto iluminado, Lucas. - Dê-me as moedas. Você acaba de comprar um milagre! Lucas as entregou ao médico, que as colocou no bolso e disse: - Esse é nosso segredo. Não conte para ninguém, viu! Vem cá, me dê um abraço! E recebeu um abraço tão gostoso que seus olhos científicos de cirurgião se encheram de lágrimas. Na véspera do Natal, Pedrinho foi levado para a capital pelos pais e operado num centro cirúrgico especializado, no qual o médico trabalhava. Foi salvo! E tudo de graça! No dia de Natal, Lucas e sua avó receberam a notícia de que a operação fora um sucesso. Foi o melhor presente natalino que eles poderiam ganhar. A avó proclamou: - Um milagre o salvou... Isso não tem preço! Lucas olhou para a avó e deu um sorriso gostoso e bem aberto, sentindo uma enorme alegria com seu segredo bem guardado.
Desde sempre a mentira esteve presente nas relações de consumo. E pergunto: "afinal quem é que mente? As empresas mentem para seus clientes?" O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena Detenção de um a seis meses ou multa". Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, para os fornecedores que souberem aprender com ela (e, também, com as outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento da clientela. Lembro que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que  pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte dos fornecedores não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns mais inteligentes e menos gananciosos). O fato é que existem "empresas mentirosas". Mas, lembro que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente. Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais, o que não é o caso em exame. A mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços trabalhistas, que impõem que um trabalhador engane outro. Na realidade dos fatos, isso gera uma espécie de batalha de um consumidor contra outro: o consumidor é enganado por um representante de um fornecedor que é, por sua vez, também um consumidor. Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados só tem a ganhar com esse procedimento ético e legal.
Este é um artigo que publico nesta época do ano para lembrar o leitor-consumidor de cautelas que ele pode tomar para fazer algum tipo de compra, projeto de compra, planejamento etc envolvendo os presentes das crianças para o Natal que se avizinha. Na correria natural de fim de ano, é comum esquecer-se de alguma coisa. Ademais a compra é compulsória e emocional. Por isso, penso que vale a pena relembrar algumas dicas que podem envolver as  dificuldades para a escolha, a necessidade de testar brinquedos, os problemas das trocas etc. Pesquisando preços Em primeiro lugar e como sempre, lembro que não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Nem se deve deixar levar pela aparência inicial, pelos descontos oferecidos, pela boa conversa do vendedor ou da oferta feita no site. Vale pesquisar e não comprar por impulso.  As condições para troca Anoto que, de fato, fazer troca em função de tamanho, cor ou porque o presente é repetido não é obrigação do comerciante. Contudo, se ele propõe a troca, tem que cumprir o prometido, pois cria um direito para o consumidor. Trata-se de oferta e esta vincula o ofertante, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor. Essa oferta de troca torna-se, inclusive, típica obrigação contratual. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como as peças de vestuário, podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Mas, há alguns problemas. Por exemplo, a exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota de compra e venda ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, a saída é guardar a nota fiscal e, se necessário, usá-la. De todo modo, anoto que a maior parte das lojas entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., procedimento que deveria ser adotado por todos os estabelecimentos. Outro aspecto que deve ser levado em conta diz respeito às etiquetas. Há comerciantes que se negam a trocar o produto se a etiqueta foi removida. Para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja retirada até que o presente seja experimentado e aprovado. De todo modo, com ou sem etiqueta, o comprador não perde o direito à troca, pois essa é uma exigência é abusiva. Cabe reclamar num órgão de defesa do consumidor. Vícios nos brinquedos Não se pode esquecer  de perguntar se a loja faz troca do brinquedo e em quais condições. Alguns comerciantes negam-se a fazer troca de brinquedos que apresentem problemas de funcionamento (vícios), limitando-se a mandar o consumidor para a assistência técnica. Assim, para evitar transtornos, vale perguntar antes de comprar se o estabelecimento faz troca em caso de vícios (o que, aliás, é sua obrigação legal) e decidir se vale a pena comprar lá.  Testando o brinquedo É importante testar o brinquedo na loja, inclusive os eletrônicos. Não se pode esquecer que, apesar de se poder trocar ou consertar posteriormente o brinquedo com defeito, a criança que ganhou o presente - às vezes tão esperado - já se frustrou.  É verdade, que nessa época do ano, com as lojas cheias é mais difícil fazer os testes, mas vale a pena insistir assim mesmo. Se não der por algum motivo justo ou se a compra for feita via web/internet, então, a saída é testar o brinquedo logo que for recebido. Idade adequada É preciso atenção com a questão da adequação do brinquedo à idade das crianças. Brinquedos muito sofisticados e caros nem sempre satisfazem. Alguns são complicados; outros fazem tudo sozinhos e a criança só fica olhando. Além de ser bom que a criança participe ativamente do uso do brinquedo, é necessário que ele possibilite a utilização do raciocínio e da imaginação. No caso de jogos, há que se checar a idade para a qual os fabricantes os indicam. Segurança é fundamental É necessário um cuidado especial com certos produtos, o que vale para todas as crianças e especialmente para os bebês: não se deve adquirir objetos pontiagudos ou cortantes, nem os que tenham cordões que o bebê possa enrolar no pescoço; da mesma forma não se deve adquirir pequenos objetos que as crianças possam engolir; e o mesmo cuidado deve-se ter com sacos plásticos, por causa de sufocamento. Os materiais devem ser laváveis e as tintas e demais componentes devem ser atóxicas e não descascarem. É bom lembrar: apesar da responsabilidade dos fabricantes, é a mãe e o pai que devem, em primeiro lugar, estar atentos para o que adquirem. Ela e ele são diretamente responsáveis por checar os brinquedos que estão na posse de seus filhos e filhas. É fundamental examinar mesmo depois da compra, direta e detalhadamente o brinquedo, verificar se não há peças que podem se soltar, pedaços pequenos que as crianças podem colocar na boca, se não há partes pontiagudas etc. É importante,  também, checar os brinquedos que as crianças ganham de presente, inclusive, aqueles distribuídos nas festas das escolas (conselho que vale para todas as festas das quais as crianças participam). Não é incomum que nessas festas sejam dados brindes de má qualidade que podem causar danos. Além disso, é preciso fiscalizar a qualidade dos brinquedos mesmo depois de usados pelas crianças.  Os brinquedos, com o desgaste,  podem acabar gerando os mesmo problemas que produtos novos mal feitos. Esse tipo de vigilância constante deve sempre ser exercido pelos responsáveis. Propaganda enganosa Cuidado com publicidade enganosa. Não se deve esquecer que muitas propagandas de brinquedos são dirigidas às crianças e não ao adulto. Por isso, para avaliar esse tipo de publicidade é preciso levar também em consideração a visão que a própria criança tem - ou teria - ao ver o anúncio. De qualquer forma, há que se avaliar com calma e comparar o produto real com o oferecido no anúncio publicitário. Em relação às embalagens, é bom saber que, às vezes, a enganosidade pode estar nas fotos e informações nelas contidas. Nem sempre a apresentação corresponde ao produto real. Certificado de garantia e manuais Se o produto tiver garantia do fabricante, o certificado deve estar junto do mesmo. E, os brinquedos, jogos e outros produtos que devem ser instalados e usados mediante instruções devem ter manuais claros, escritos em português. Não se deve instalar  ou utilizar o produto antes de ler, entender e seguir à risca as disposições trazidas pelo fabricante. Roupas Não se pode esquecer que as crianças crescem rapidamente, bem como mudam de hábitos, desejos e necessidades com a mesma velocidade. Assim, vale a pena levar em conta tais fatos para adquirir, por exemplo, roupas, comprando-as sempre um pouco folgadas e nunca em quantidades exageradas. Livros Uma dica importante: dar livros é fundamental, também levando em consideração a idade da criança. O mercado está repleto de excelentes livros para todas as idades e alguns são bem baratos. É um presente de total utilidade. Pode-se, claro, dar outros presentes, mas um livro junto deles é sempre bem-vindo.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Ainda não aprenderam a tratar bem o consumidor

Recentemente, meu amigo Outrem Ego, bastante nervoso, disse-me o seguinte: "Sou cliente de uma operadora de tevê a cabo há mais de dez anos. Nunca atrasei uma só prestação. Nenhum mês. Há dias e semanas em que nem assisto nada. Algumas vezes o sinal foi cortado, fiquei sem imagem por falha técnica deles e jamais me deram um desconto. "Pois bem, não sei bem o que aconteceu, mas a conta do mês de outubro ficou enroscada em outras - tenho muitas contas pra pagar. Vencia dia 10 e eu só vi dia 15. Paguei, então, no dia seguinte, 16. Mas, não é que recebi uma cobrança grosseira por e-mail, expedida no mesmo dia 16, dizendo que se eu não regularizasse meu débito em dois dias o sinal iria ser cortado. "Empresários grossos e mal-educados. Será que não viram que foi um engano? Será que não distinguem bons clientes de maus clientes? Esses milhares de reais que eu entreguei para eles esses anos todos não valem nada? "Fico pensando: se eu fosse cliente de um restaurante por igual tempo e fosse lá uma vez por mês comer e pagasse a conta direitinho... Será que, depois de dez anos, se eu tivesse esquecido a carteira, o dono do restaurante me faria lavar os pratos? "É assim que eu me sinto: ultrajado. Os administradores desse capitalismo moderno são muito grossos!" Infelizmente, sou obrigado a concordar com ele. O desprezo ao consumidor é ainda muito grande. Veja esse exemplo: nos anos oitenta do século passado, os bancos de primeira linha tinham uma técnica de cobrança que sempre levava em consideração o histórico dos clientes. "Uma coisa", diziam seus executivos, "é um novo cliente que logo no primeiro empréstimo deixa de pagar alguma prestação; outra, bem diferente, é um cliente antigo que sempre pagou em dia e que, de repente, atrasa". Isso era não só elegante, como inteligente e técnico mesmo: se um cliente nunca deu problema, a probabilidade de que ela venha a dar, é  menor que daquele que começou na contramão. Ademais, o cliente antigo já rendeu muitos benefícios ao fornecedor e, por isso, merece uma maior consideração. O que se observa é que, muitas vezes, o consumidor real é esquecido. A empresa trabalha com o número de clientes (consumidores) que tem, considerando-o um ativo do fundo de comércio dos negócios em geral. Assim, se o consumidor não é considerado como uma pessoa real, mas como um mero número que tem certo valor econômico, não há mesmo necessidade de respeitá-lo e nem de enxergá-lo. A hipótese de perda de um cliente não é vista como uma descontinuidade dos negócios nem como um rompimento indesejado: basta que a situação esteja prevista dentro do quadro estatístico que cuida da inadimplência e das rupturas. Se estiver dentro do previsto, não haverá preocupação. São números. O consumidor é um número.  E em alguns casos, o que se percebe é que a relação com os clientes piorou. Certas empresas agem com a mesma estratégia indelicada, considerando o consumidor apenas um número que representa uma certa receita mensal. Se for mais barato violá-lo, nem que seja por um aviso automático mandado via computador, é assim que será. O lamentável é que, mesmo nesse automatismo, daria para criar modelos de cobrança para consumidores diferenciados: bastava corrigir a programação.
No artigo anterior, falei sobre a Black Friday e as promoções de todo tipo em todas as mídias, sites etc. que já haviam se iniciado. E, ainda no mesmo clima, retorno ao tema das compras compulsivas.  Trata-se de uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. É um vício contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e, também, é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles.   E, talvez, até pior: a pessoa compradora compulsiva não é aquela que se satisfaz  com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode adquirir qualquer coisa que lhes surja pela frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra gerará algum tipo de satisfação. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, essa pessoa é uma  consumidora  típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ela mesma quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas joias etc. e com isso, às vezes, nem ela, nem as demais pessoas que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. E, no século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e  de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro que se gasta quando se compra. Se uma pessoa tivesse que pagar em papel moeda toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as moedas, "o peso" de sua perda. Ela estaria trocando, por exemplo, alguns maços de papel moeda por um terno,  um sapato ou uma bolsa. Trocaria muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e entregaria uma mala cheia dele para adquirir um automóvel. A pessoa "enxergaria" o quanto estava gastando. E o sistema financeiro foi ampliando essa ocultação. Num primeiro momento, o consumidor passava um cheque, que representava o dinheiro que ele possuía. Mas, depois, por conta do sistema de créditos, ele passava o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque especial, o crédito que estava à disposição funcionava como uma tentação dizendo "me usa que eu te satisfaço". Isso é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, passou a ser colocado na conta corrente -- acoplado à ela --, sem que o cliente pedisse. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo. Mudou mais ainda. O cheque está desaparecendo. O sistema de cartão de crédito é hoje um outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro. E os pagamentos feitos no sistema bancário que já eram rápidos (Doc e Ted), agora são instantâneos com o Pix. Na realidade, com o espetacular incremento da web/internet e dos aplicativos, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se a oneomania for de uma pessoa de posses, com liberdade para gastar, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize e sem se endividar.                                   Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de auto-ajuda intitulados "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
quinta-feira, 10 de novembro de 2022

A Black Friday já começou

A edição do ano da Black Friday já começou. Há promoções de todo tipo em todas as mídias, sites etc. O termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os empresários norte americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia.   Mas, como não poderia deixar de ser, por aqui há ofertas de todo tipo e nem tudo é desconto verdadeiro. Todo ano, os veículos de comunicação apontam dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos  comerciantes, que usam uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais). Aumentar o preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no Código de Defesa do Consumidor - CDC (Art. 37, caput e §1º) Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa tipificado no art. 67 do CDC e ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa (CDC, art. 66). Naturalmente, descontos são bons... Se precisamos do produto ou do serviço! Apesar de tudo, é possível conseguir e encontrar produtos com bons descontos e preços baixos na Black Friday e nos dias que a antecedem. E há outros perigos: cada vez mais os hackers e os sites falsos estão presentes no mercado em geral. Por isso, listo, mais uma vez, as cautelas que o consumidor deve tomar nessas compras, não só agora na Black Friday, mas sempre que fizer aquisições via web/internet/aplicativos. Seguem itens obrigatórios fixados pelo decreto presidencial 7.962/13 e, também, dicas usuais para esse tipo de compra. Com efeito, o consumidor deve:  a. Conhecer e investigar o site por intermédio do qual pretende comprar. Primeiramente, examinando o endereço na web. Do lado esquerdo deve haver um cadeado e o endereço deve iniciar com https://. Do site deve constar o nome empresarial, o CPF (se o vendedor for pessoa física) ou o CNPJ; o endereço físico completo, o endereço eletrônico e os dados para contato.  b. Verificar se o site está em alguma lista de restrições dos órgãos de defesa do consumidor, como, por exemplo o Procon-SP; c. Checar via web os preços praticados anteriormente, para tentar descobrir se realmente está sendo oferecido desconto;  d. Comparar preços nos diversos sites de vendas para os mesmos produtos, levando em consideração os acréscimos por fretes e seguros e, também, formas de pagamento;    e. Evitar de fazer as compras por intermédio de em celulares ou computadores de terceiros e/ou desconhecidos; f. Manter o sistema operacional do computador e/ou do smartphone atualizado;  g. Certificar-se de que os dispositivos tenham antivírus;  h. Ativar o serviço que o informa via SMS a respeito das transações financeiras efetuadas;  Outra boa dica é a de fazer pesquisa em sites de proteção ao consumidor como, por exemplo, o ReclameAqui, para checar reclamações e respostas do fornecedor.  Lembro, ainda, que as ofertas devem  apresentar: as características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; a discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; as condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. Por fim,  e como se sabe, para as compras feitas via web/internet/aplicativos, o consumidor tem o prazo de 7 dias para se arrepender, cancelar a compra e/ou devolver o produto e receber o que pagou de volta. O artigo 5º do Decreto Presidencial citado estabelece expressamente: "O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor."
O direito à saúde é uma garantia constitucional (arts. 196 e segs da Constitucional Federal). Lembro que uma das virtudes da sociedade capitalista contemporânea é a do desenvolvimento da ciência, embora tenhamos descoberto recentemente, na pandemia do Covid-19, que ela não é tão desenvolvida como pensávamos. De todo modo, a sociedade tem de se aproveitar das verdades científicas - quando elas são incontestáveis - em seu benefício. Eis um exemplo: em boa parte do século XX fumar era sinal de bom gosto e distinção. Nos filmes de Hollywood dos anos 40, 50, 60 e até 70 os personagens quase sempre estavam portando um cigarro, especialmente em situações sociais. Cigarro e glamour andavam juntos. E, não só em Hollywood, mas também no cinema europeu etc. Fumar era algo natural de se fazer. Muito bem. Na medida em que a ciência avançou, foi-se descobrindo os malefícios do tabaco e  começou-se  a catalogar as diversas doenças causadas por seu consumo, assim como um número enorme de mortes. O Estado, por sua vez, passou a fazer a contabilidade dos prejuízos ocasionados com as doenças e as mortes. Conclusão: muitos países passaram a proibir a publicidade de produtos fumígenos, os impostos sobre esses produtos foram aumentados, passou-se a proibir seu uso em locais fechados e públicos etc., tudo visando fazer cair seu consumo. E, apesar da grita de alguns fumantes e, claro, dos fabricantes, as limitações e proibições vingaram muito bem. Outro problema: a obesidade. Excetuando as tendências genéticas, os fatos demonstram que ela é uma doença e assim está definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O foco aqui é a questão ambiental: a ciência demonstra que a obesidade está ligada em boa parte ao consumo de produtos de baixa qualidade nutritiva e alta concentração de açucares, sais, gorduras, conservantes etc. Assim, com o apoio da ciência, vê-se que pode o Estado atuar no mercado para exigir, por exemplo, que os produtos alimentícios estampem informações mais precisas e mais claras. As embalagens poderiam também dizer dos malefícios que podem ocorrer pela ingestão excessiva. A publicidade poderia ser restringida. Nas escolas de ensino fundamental e médio,  poder-se-ia proibir que as cantinas vendessem porcarias. Enfim, o problema da obesidade ligada à alimentação deve ser tratada com o cuidado que o caso exige. Quanto à publicidade, a existente atualmente é muito bem produzida para encantar pais e filhos, levando-os a mundos maravilhosos e oferecendo porcarias e bugigangas. As propagandas são belíssimas, com produção de dar inveja a filmes hollywoodianos, mas nunca dizem a quantidade de gorduras, açucares sais etc. E esses elementos são fortes nas redes sociais. Mas, há também uma questão de tomada de consciência por parte do consumidor, que pode dizer não às ofertas, assim como pode mudar  seus hábitos alimentares. E em relação aos mais jovens, cabe aos pais regularem o modo de alimentação de seus filhos, crianças e adolescentes. Há, de fato, um problema, como apontei: é a desproporção entre, de um lado,  a oferta e, de outro, a capacidade de crítica e obtenção de informações precisas pelos consumidores. Estes estão acuados, lutando pela vida no dia-a-dia do trabalho ou procurando empregos, estudando, cuidando dos filhos etc. Sobra pouco  tempo para refletirem sobre seus hábitos de consumo e se organizar para tanto. Por isso, muitas vezes o consumidor acorda tarde demais. Uma ajuda viria a calhar. É por essas e outras que os consumeristas entendem que o Estado pode dar uma mãozinha. Sempre lembrando, que nós já temos uma excelente lei de proteção ao consumidor (o CDC), que garante direitos e regula obrigações, funcionando como uma boa alternativa para a defesa dos interesses e direitos de forma individual e coletiva. De todo modo, é preciso que a informação dos produtos que os consumidores adultos e especialmente as crianças e adolescentes possam ingerir seja clara e ostensivamente oferecida e apresentada.  Para terminar lembro a frase atribuída a Otto Von Bismark que diz "Se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas, não dormiria tranquilo". Penso que nesta sociedade em que vivemos, dominada pelo mercado, seria importante atualizar esse pensamento: "Se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas e demais embalados e enlatados, os biscoitos, os sucos artificiais, os refrigerantes e várias bebidas de caixinhas etc. não as comprariam".
O princípio pacta sunt servanda, isto é, de que os pactos devem ser respeitados não se aplica aos contratos de consumo. Apresento aqui uma retrospectiva histórica que, penso, permite entender as modificações operadas nos contratos, que acabaram desembocando naqueles típicos de consumo. Vejamos. Inicio colocando um ponto: o CDC, como sabemos, foi editado somente em 11 de setembro de 1990; é, portanto, uma lei que chegou muito atrasada para a proteção do consumidor. O vetusto Código Civil entrou em vigor em 1917, fundado na tradição do direito civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao direito civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante praticamente todo o século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que iam surgindo e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como nós enxergamos as relações de consumo. E, eventualmente, gerou toda sorte de dificuldade para interpretar e compreender um texto que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. Muito bem. O CDC, apesar de atrasado no tempo, acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa para entender a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Parto do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização de produtos e serviços. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, a melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaca-se uma que interessa ao presente artigo: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade, quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, securitário a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele  que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. No caso das relações contratuais privatistas, trata-se de uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto deve ser respeitado. Ora, esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo não serve para as relações de consumo, porque o consumidor não se senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. Repito, para finalizar: em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.
Passados os efeitos da pandemia da Covid 19, os aeroportos já estão lotados pelo mundo afora. Os consumidores estão deixando milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Novamente mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos para serem distribuídos aos acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão. No entanto, velhas táticas de violação aos direitos dos consumidores continuam em vigor.  Em recente viagem aérea à Europa, meu amigo Outrem Ego ouviu de um atendente de uma cia aérea que o avião estava lotado e alguns passageiros não poderiam embarcar por causa do overbooking. Sim, o atendente admitiu abertamente a prática ilegal.  O overbooking é uma tática absurda e uma clara demonstração do modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Esses administradores não estão preocupados com seus clientes o que é especialmente reforçado nos setores de baixa competividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha (ou seja, em muitos setores). A qualidade cai, mas gera economia financeira que na escala, representa maior faturamento, apesar do desprezo ao consumidor.  Mas, ainda temos leis e estas precisam ser cumpridas. O overbooking, por exemplo, é quase um estelionato, pois é a venda do mesmo assento para mais de uma pessoa (Tente fazer o mesmo, vendendo seu automóvel ou seu imóvel para duas pessoas diferentes ao mesmo tempo...). Ademais, em alguns casos as cias aéreas descobriram uma fórmula para continuar a burlar: quando acontece o problema, elas saem distribuindo alguns trocados para receberem de volta o assento vendido. São verdadeiras migalhas (sem ofensa, claro, a este poderoso rotativo!) em troca de direitos. O overbooking é uma prática ilegal e grosseira que precisa ser punida e que tem que ser banida.
quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A democracia, o voto e a liberdade

O domingo que se passou foi dia de eleições obrigatórias. Por isso, trago esta reflexão. Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, de fato, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos, inicialmente, um dos aspectos de nossa democracia, a do fato do voto ser obrigatório entre nós. No mundo há 193 países reconhecidos internacionalmente. Destes, apenas 25 ainda adotam esse modelo1, isto é, somente 12,95%. E dentre os 10 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever (na França o voto obrigatório é apenas para o Senado)2. Os que são contra o voto obrigatório argumentam que ele transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa legítima democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão, pois a liberdade é sua base. Isso porque, como dizem, a obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. Todos os anos muitos brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder os vários direitos retirados de quem não vota e, também, porque é mais fácil e prático votar do que justificar a ausência. Esse argumento, de outro lado, apresenta o voto facultativo como algo positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, suas opiniões, assim como a do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. (Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso - sem partido -  etc. Mas, o fim do voto obrigatório, como dizem os que o defendem, seria um bom começo). Assim, as pessoas que quisessem exercer sua liberdade, participariam das eleições por escolha feita. Com isso, teriam mais interesse em tudo o que ocorre direta ou indiretamente nas próprias eleições e no que é feito depois pelos candidatos eleitos.  Parece certo que, de um modo ou de outro, é preciso mesmo aprimorar o sistema político, que está inserido numa sociedade capitalista que o tempo todo busca a modernização, especialmente para que a representação seja efetiva e a liberdade individual seja respeitada.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Brasil volta ao top 10 no ranking de maiores economias do mundo...
Continuo, no artigo de hoje,  a tratar da boa-fé objetiva, como elemento de harmonização das relações de consumo, que comecei a examinar na semana passada. Como adiantei, é importante que se conheça bem o funcionamento da boa-fé objetiva, eis que ela pode ser a indicação e a base para solução de uma série de conflitos envolvendo as relações jurídicas de consumo. Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que  se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mal intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência.   A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes.  Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes. Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º).1 Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI,  muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura  reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios. A boa-fé objetiva é, pois,  um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. __________ 1 E o Código Civil   incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em  cada relação jurídica.