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África do Sul Connection nº 35

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Atualizado às 07:53

A coluna de hoje faz uma pausa para uma reflexão fundamental. O ator Eduardo Sterblitch, na primeira grande bola fora da sua carreira, criou o personagem Africano. Ou ele não pesquisou o personagem e, se foi isso, errou feio, ou estudou meticulosamente todos os estereótipos que mais denigrem os africanos. Qualquer que tenha sido sua atitude, o resultado foi terrível.

Parodiando o programa MasterChef, o personagem foi anunciado no Pânico, na Band, como "Africano caça e colhe". Semelhante ao desenho animado Monstro da Tasmânia (de Robert McKimson), o Africano fala como um selvagem iletrado. Os jurados alternam entre susto e graça. Preparando o vinho, ele se mexe como um macaco e fica pendurado sobre a plataforma de madeira onde as uvas são pisadas. Daí, bebe um gole e surta, arregalando os olhos. A cena lembra o estereótipo do "Preto Velho", que bebe cachaça e passa a dançar como um louco.

Destruindo um ramalhete de flores, o Africano faz voz de guerreiro. Depois, dança em ritmo africano. Quando a câmera o enquadra, ele se esconde, assustado. Em seguida, cheira a lente. Parece um animal. O elenco - todo branco - ri.

Para beber água, não usa copos. Liga a torneira e lambe a água. Lembra um cão cortando o jato com a língua. Premiado na competição, ouve a apresentadora, "Ana Paula Padrão FIFA", dizer: "Estou com medo da reação dele". É quando ele a morde. Celebrando, o Africano pega as lixeiras e começa a bater tambor. Ao final, foge.

As controvérsias entre a comédia e os tipos que ela retrata não é algo novo, nem deve ter fim. Quando Chico Anysio apresentou o personagem Canavieira, que retratava, no Estados Anysios de Chico City, os prefeitos corruptos, boa parte dos prefeitos o procurou. "É que não há prefeitos ladrões no Brasil", criticou a delegação. Chico finalizou: "Mas os Estados Anysios de Chico City não fica no Brasil".

Apesar de essa tensão fazer parte da comédia e de estar intrinsecamente ligada à liberdade de expressão artística, que é protegida constitucionalmente, é claro que há limites. É bom que haja. A ideia do princípio do nunca mais é uma baliza. Segundo ele, a sociedade, de tempos em tempos, avalia quais grupos têm sido alvos de injustiças a serem reparadas. Além da reparação, costuma-se fixar a ideia do nunca mais, segundo a qual jamais se tolerará algo que, de algum modo, remeta à situação anterior.

O princípio do nunca mais não é uma demonstração de que nos tornamos chatos ou de que nos rendemos ao politicamente correto. É um modo de aceitar que a sociedade, quando civilizada, faz renovações de acordos quanto ao que é aceitável ao semelhante. Mudar comportamentos, o que inclui o humor e seus tipos, é elevar nossos padrões e reforçar o papel da arte como compromisso social.

Há pouco tempo, Danilo Gentili twittou o seguinte: "Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que entraram num vagão foram parar em Auschwitz". A região paulistana de Higienópolis é caracterizada por sua colônia judaica. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo tem envidado esforços para não só reparar a injustiça do Nazismo, mas também deixar claro que isso jamais se repetirá. Usar os campos de Auschwitz como trampolim para uma piada é mostrar-se miserável, exatamente por ter de recorrer à dor coletiva para tentar arrancar um riso. Gentili se desculpou. Foi o certo a fazer.

É natural que a jornada de proteção a determinados grupos renove sua pauta. No Brasil, a violência doméstica é uma pauta atual e pode, consequentemente, interferir no humor.

Essa semana, o país conheceu Gisele, de 22 anos, que teve as duas mãos decepadas pelo namorado, com quem vivia numa relação de violência extrema há sete anos. Ela foi esfaqueada seguidas vezes em diferentes regiões do corpo. Antes disso, havia sido esfaqueada na cabeça. É a violência doméstica mostrando a sua face.

Segundo os nossos padrões atuais, felizmente elevados, não seria mais aceitável a personagem Dona Santinha Pureza, exibida na Escolinha do professor Raimundo no começo da década de 90. Num dos episódios, Dona Santinha aparece arrebentada. Ela explica que o marido a transformara numa "cavala". Ele costumava montá-la. Revelando a única coisa que a incomodava, Dona Santinha citou as esporas: "tô com as coxas tudo esporiada". Em seguida, justificou a razão de aceitar aquilo: "Eu gostio!". O jargão imortalizou a personagem.

Noutro episódio, ela explicava o jogo "Bola à boca", segundo o qual o concorrente que acertasse a bola de gude na boca ganhava um prêmio. Perguntada sobre qual era a boca, ela mostra a dela. "Só leva o prêmio todo quando quebra um dente. Quando bate no olho, é tiro de canto. Quando eu engulo a bola, o concorrente é desclassificado. Só ontem, eu engoli 48". Dona Santinha Pureza explica o que o marido achava: "Ele ficou tão feliz que me deu uma surra".

Hoje, esse personagem não sobreviveria. Não é que nos tornamos chatos ou perdemos o senso de humor. O que mudou foram os nossos padrões. Deixamos de enaltecer a dor alheia - no caso, das mulheres - porque o tempo mostrou que a violência doméstica não é algo a ser tolerado, sob qualquer que seja a forma, nem mesmo por piadas. É o estabelecimento do princípio do nunca mais, pilar dos direitos humanos.

Edu Sterblitch, com seu novo personagem, mexeu em algo caro aos africanos nativos e àqueles que se associam às dores geradas pelas crueldades cometidas contra eles. Como consequência, foi denunciado à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da presidência da República. A iniciativa foi da respeitada Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, ligada à OAB. Edu fez questão de pontuar, em seu twitter, que não é racista. Antes, o site senegalês Seneweb, falando sobre o caso, perguntava se o Brasil seria um país racista.

O Africano reforça incrivelmente tudo o que de pior foi construído contra o povo daquele continente. Retrata-o como selvagem, louco, analfabeto, bruxo e ignorante. Como se não houvesse fundo nesse poço infeliz, o elenco, branco, se diverte com a estupidez simbolizada pelo ator, igualmente branco, que brinca com o passado negro.

O povo africano sofreu muito. Ainda sofre. Usar um canal aberto de televisão, no país que tem o maior número de negros fora da África, é a mais contundente resposta ao site senegalês. Sim, o Brasil é racista. Apesar de o país seguir tentando reparar as injustiças passadas e encerrar qualquer tipo de recordação a esse tempo vergonhoso, estamos longe da nossa redenção.

O certo que o ator Edu Sterblitch tem a fazer, além de pedir desculpas sinceras, é tirar, imediatamente, o personagem do ar. E, claro, aprender com o lamentável episódio.