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África do Sul Connection nº 40

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Atualizado às 07:52

Ubuntu: o pilar do constitucionalismo da África do Sul

"O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer". Eis a declaração imortalizada por Antoine de Saint-Exupéry, uma verdadeira profissão de fé que também pode ser dirigida a todos aqueles que se dão à missão de interpretar uma constituição.

A tarefa de revelar, da leitura do texto constitucional, o que é invisível aos olhos, tem sido executada de modo fascinante pela Corte Constitucional da África do Sul, fiel ao seu propósito transformador. Sob críticas de que seria um enclave elitista, a Corte tem respondido às hostilidades juvenis resgatando a alma sul-africana condenada ao esquecimento pelo urbanismo acelerado, a globalização e o avanço do capitalismo. O objeto precioso desse resgate tem nome: ubuntu.

Ubuntu é uma palavra Zulu, cujo significado dificilmente seria perfeitamente compreendido por nós. Ele deve vir da leitura de toda a expressão que lhe dá origem: "ubuntu ngumuntu ngabantu, motho ke motho lo batho ba bangwe". Um ser humano é um ser humano por causa dos outros seres humanos. A expressão mais simples, "umuntu ngumuntu ngabantu", tem tradução direta: "uma pessoa é uma pessoa por, ou através, de outras pessoas". No Brasil, ubuntu tem aparecido como: "Eu sou, porque você é".

Considerada a filosofia fundamental do povo banto na África do Sul, ela ultrapassa a ideia de comunitarismo ou coletivismo. Segundo John Donne, "ubuntu é um princípio constitucional ativo e central. É uma profunda má-compreensão confundi-lo com o lugar comum do comunitarismo". Marcado pela relação entre as pessoas e pela necessidade de tomada coletiva de decisões, o ubuntu imortaliza a compreensão do ser humano como um ser social, cuja finalidade da existência não reside em compromissos individuais, mas na capacidade de se projetar como alguém que só desenvolve seu potencial por meio das relações com outras pessoas. "Eu sou, porque nós somos".

É de arrepiar o modo como essa filosofia foi abraçada pelo constitucionalismo do país. A África do Sul contou com uma Constituição Interina, de 1993, cujo preâmbulo abriu uma ponte rumo à reconciliação. Segundo o texto, há uma necessidade de entendimento, não de vingança, e uma necessidade de reparação, não de retaliação. A Constituição reconheceu a necessidade de "ubuntu", em lugar da vitimização. Em seguida, a Lei da Promoção da União Nacional e Reconciliação, de 1995, estabeleceu a Comissão da Verdade e Reconciliação, tendo, como pilar, o ubuntu.

Apesar disso, a Constituição definitiva, de 1996, não o menciona. Mas não há razão para desapontamentos. O essencial é invisível aos olhos. Enquanto a Constituição Interina estava em vigor, a Corte Constitucional, no caso Azanian Peoples Organization e Outros v. o Presidente da República da África do Sul e Outros, reconheceu o status constitucional do ubuntu.

A professora da Universidade da Cidade do Cabo, Drucilla Cornell, entende o ubuntu como um conceito ético que moraliza as relações sociais. Para ela, é através da participação dialética que os seres humanos desenvolvem tanto sua própria personalidade como criam representações compartilhadas da realidade que permitem um mundo comum, e, na linguagem moderna, o desenvolvimento da noção de bem público. "O ubuntu é materializado em ações éticas e, mais especificamente, no aperfeiçoamento da justiça entre indivíduos em conflito", diz Cornell, no livro Ubuntu and the Law (Fordham University Press, 2012).

Posteriormente, sob a égide da atual Constituição, a Corte Constitucional apreciou o caso S v Makwanyane, no qual derrubou uma previsão de pena de morte anterior à Constituição. Ao votar, a juíza Yvonne Mokgoro conectou o direito à dignidade e o direito à vida ao ubuntu. "A vida biológica, por meio da qual todos nós nascemos, não é exatamente a vida humana aos olhos do ubuntu. Simplesmente existir não é o que dá ao ser humano seu valor intrínseco", disse. Para ela, "geralmente, ubuntu é traduzido como humanidade. No seu sentido mais fundamental, como pessoalidade e moralidade. Metaforicamente, se expressa como 'umuntu ngumuntu ngabantu', descrevendo o significado da solidariedade do grupo quanto a questões de sobrevivência tão centrais como a sobrevivência da comunidade". De acordo com a juíza, "enquanto isso encarta os valores-chave da solidariedade do grupo, compaixão, respeito, dignidade humana, conformidade com as normas básicas e unidade coletiva, no seu sentido fundamental, denota humanidade e moralidade. O seu espírito enfatiza respeito pela dignidade humana, marcando uma migração da confrontação para a conciliação".

O fato de o ubuntu não constar na Constituição atual, não significa que ele não exista ou que não seja incrivelmente influente. "Apesar de a palavra ubuntu ter sido omitida da Constituição, seu espírito não pode ter sido, porque se trata de uma base ética sobre a qual o futuro da reconstrução e da reconciliação pode ser construído por meio da institucionalização da Comissão da Verdade e Reconciliação", disse Yvonne Mokgoro. Para ela, "negligenciar dar ao ubuntu um lugar proeminente no texto final da Constituição, preferindo-se deixá-lo às sombras, como um preâmbulo, teve um efeito negativo na construção de uma rica e complexa jurisprudência, que é, de algum modo, recente. Agora, nós estamos vendo um 'revival' do ubuntu, como uma base de toda a Constituição e, de fato, como um princípio constitucional concretizável que tem grandes implicações sobre o direito privado".

Mokgoro não está sozinha. Seu então colega de Corte Constitucional, Albie Sachs, decidindo um importante caso relativo ao direito à moradia, registrou: "o ubuntu impõe uma obrigação sobre as cortes no sentido de buscar a reconciliação, que é baseada no aperfeiçoamento do bem-estar de todas as pessoas da África do Sul. O ubuntu é trazido, em verdade, para tocar a definição de responsabilidade judicial".

No julgamento desse caso - Port Elizabeth case -, Sachs disse: "O espírito do ubuntu, que parte de uma profunda herança cultural da maioria da população, permeia toda a ordem constitucional. Ele combina direitos individuais com uma filosofia comunitária. É um motivo unificador de todos os direitos fundamentais que não é nada se não uma estruturada, institucionalizada e operacional declaração na nossa sociedade envolvida com a necessidade de interdependência humana, respeito e cuidado. No caso, impor que as pessoas sejam dignamente realocadas ao invés de serem simplesmente despejadas era uma forma de reconhecer que uma pessoa é uma pessoa através dos outros".

A fundamentalidade do ubuntu no constitucionalismo da África do Sul é tamanha que, ao apreciar o caso Barkhuizen v. Napier, em 2007, tratando sobre direito dos contratos, a Corte Constitucional, por meio do juiz Sandile Ngcobo, reconheceu a importância da filosofia não só para as decisões judiciais, mas como meta a ser perseguida pelas políticas públicas. "Noções de justiça, equidade e razoabilidade não podem vir separadas da politica pública. Política pública leva em consideração a necessidade de promover uma justiça simples entre os indivíduos. Ela é formada pelo conceito de ubuntu. O ubuntu está, em verdade, dando um significado moral para a políticas públicas", disse o magistrado.

São muitos os temas decididos, pela Corte Constitucional, à luz do ubuntu: justiça restaurativa, pena de morte, horizontalização dos direitos fundamentais, anistia e reconciliação, direitos sócio-econômicos e de personalidade, intitulamentos, direito costumeiro e direito à cultura.

Mas é claro que esse resgate virtuoso, de uma filosofia que a urbanização, a globalização e o capitalismo estavam sufocando, não passa imune a críticas. Drucilla Cornell aponta que uma das acusações é a de que o ubuntu não é específico o suficiente para ser usado como pilar de uma Constituição moderna que dá forma ao significado de dignidade. Também se diz que o ubuntu, em suas origens, por estar associado à vida tribal e a uma profunda religiosidade, tem características destoantes dos propósitos de uma democracia constitucional moderna. Contra essas críticas, Cornell diz: "nós precisamos restaurar esses valores e ideais, mas isso não significa que tal restauração será feita acriticamente". O ubuntu, portanto, renasceu sem seus excessos. Ele foi polido.

Não há qualquer constrangimento em reconhecer que, de fato, o ubuntu não está explícito na Constituição da África do Sul. Nem por isso a jurisdição constitucional desprezou o relevo histórico que essa filosofia tem. Vários casos têm sido decididos à sua luz. Sua importância é tamanha que não precisou vir realçada pelo texto constitucional. Nem precisaria. "O essencial é invisível aos olhos".