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África do Sul Connection nº 50

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Atualizado em 8 de setembro de 2020 13:12

Eu me lembro bem daquele dia. "Você pode escolher qualquer lugar do mundo. E então, para onde você quer ir?", perguntou-me Sérgio Farina Filho, o coordenador da minha área no escritório onde trabalho, o Pinheiro Neto. Lá, tendo chegado a um determinado ponto da carreira, há a possibilidade de passar uma temporada no exterior, estudando e trabalhando. É uma tradição na firma. A minha vez havia chegado. A escolha foi inusitada. "Eu quero morar no continente africano. Eu escolhi a África do Sul", respondi, com aquele nó na garganta por medo da rejeição. Ninguém jamais havia escolhido algo tão "fora da rota". Veio, então, uma longa jornada formatando o projeto. Ao final, ele foi aceito até mesmo com algum entusiasmo. O escritório sempre foi bom em enxergar o amanhã.

O anúncio para os amigos, colegas e familiares, diferentemente, não ganhou essa compreensão. "Mas e o Ebola?", me perguntaram. Uma médica chegou a enviar uma mensagem dando como certo o meu contágio. Não adiantou eu explicar que Libéria e África do Sul são países diferentes. Também avisaram sobre a violência. Era como se eu estivesse me mudando para uma zona de guerra. A resistência foi tremenda. O que não mudou em nada a minha escolha. Só eu, respeitando meu coração, sabia o que eu queria.

Vendi o meu jipe 2004. O dinheiro se transformou em passagens aéreas na classe econômica (nunca soube o que é outra classe), um curso e seis meses de estada na Cidade do Cabo. Todos os bens materiais que possuía se transformaram em caixas de papelão. O apartamento foi entregue ao seu dono. Comprei um tênis e algumas calças jeans. Dali em diante seria "do jeito que Deus quiser". E Ele quis.

No meio desse turbilhão, recebi uma mensagem generosa. Miguel Migalhas me escreveu desejando felicidades. Ao mesmo tempo, me disse que os leitores de Migalhas seriam premiados caso eu resolvesse dividir com eles a experiência. Foi quando nasceu a África do Sul Connection. A ideia, portanto, foi dele, não minha. O Miguel merece esse crédito. Eu passei a escrever a coluna semanalmente.

Hoje, estamos na edição de número 50. Já se passou mais de um ano. Abordando questões jurídicas, culturais e de negócios, a coluna tem um foco especial na África do Sul, mas toca em todo o continente. Eu não escrevi sobre uma África pobre, a África do Ebola ou da violência. Esse estereótipo cruel não encontrou espaço na África do Sul Connection. Falei sobre as riquezas do continente, sua urbanização acelerada, o crescimento da classe média, a formação de uma nova elite negra, a consolidação de uma das mais fascinantes Corte Constitucional de todo o mundo, a da África do Sul..., eu escrevi sobre prosperidade, não miséria.

Na África do Sul encontrei juristas singulares, a exemplo de Albie Sachs, o homem que arriscou a vida para manter firme seu compromisso com a igualdade. Nomeado para a Corte Constitucional por Nelson Mandela, ele iluminou o mundo por meio da leitura que fez da Constituição.

A geração seguinte foi premiada com Edwin Cameron, alguém com quem tenho a honra de trabalhar. Cameron perdeu duas irmãs, é filho de um presidiário, estudou graças a cotas, se assumiu gay e é portador do HIV. Ele tem se notabilizado como um dos mais brilhantes juízes constitucionais de todo o mundo. Seus votos são simplesmente majestosos.

Há, ainda, uma terceira geração de constitucionalistas sul-africanos, cuja excelência pode ser ilustrada por Pierre De Vos, da Universidade da Cidade do Cabo e David Bilchitz, na Universidade de Joanesburgo. Ambos foram meu supervisores e, agora, são bons amigos. Gays, eles têm contribuído muito com o enriquecimento dos debates constitucionais na África do Sul. Além disso, têm levado o constitucionalismo sul-africano para todo o mundo. É fascinante.

Em 2016, as atividades na Corte Constitucional serão ainda mais intensas. Há, nisso, um comprometimento grave quanto ao conteúdo dividido com os leitores por meio da África do Sul Connection. À medida que passo a me envolver, como clerk, em novos casos submetidos à jurisdição constitucional, deixo de poder escrever sobre eles. Isso, por si só, diminui muito o âmbito da coluna e suprime dos leitores o seu mais relevante material. Portanto, o número 50 somado ao final do ano abrem espaço para uma breve despedida. Breve mesmo.

A coluna, entrando em recesso junto com o Migalhas, não retornará próximo ano. Eu estarei imerso na Corte Constitucional tentando contribuir com os casos apreciados pelo tribunal. Como clerk junto ao juiz Edwin Cameron será a vez de imergir ainda mais no constitucionalismo sul-africano.

Contudo, como toda breve despedida, o "até logo" tem data para acabar. Tão logo a Corte entre em recesso, levarei um novo projeto ao Migalhas. Sendo aceito, estaremos juntos mais uma vez, seguindo adiante nessa missão fundamental: mostrar a África com o fascínio que o continente desperta e apresentar o constitucionalismo sul-africano com toda a sua riqueza histórica, teórica e dogmática da qual ele é dotado.

A vantagem dessa curta interrupção é a possibilidade de um retorno repleto de experiência. Imagino que isso enriquecerá muito as nossas discussões.

Na África do Sul não encontrei Ebola. Também não vi qualquer zona de guerra. O que vi foi honra, orgulho de sua própria história e uma capacidade impressionante de um país se reconstruir democraticamente por meio da reconciliação, não da revanche. É a África do Sul que me ensina, não o contrário.

Portanto, em algum lugar no futuro, estaremos juntos mais uma vez com a África do Sul Connection. Aos leitores, deixo o meu respeito. Ao Migalhas, a minha gratidão. Ao Brasil, a minha saudade. Uma saudade, felizmente, passageira.