COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Civilizalhas >
  4. Falcatruas, fraude contra credores e o requisito da anterioridade do crédito

Falcatruas, fraude contra credores e o requisito da anterioridade do crédito

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Atualizado em 13 de setembro de 2011 09:45

No Brasil, diariamente brotam notícias sobre escândalos, corrupções, subornos, desvios de dinheiro público, enriquecimentos inexplicáveis, entre outras condutas ilícitas e antiéticas. As punições, escassas, não têm sido suficientes para intimidar os infratores. As atitudes desonestas parecem incrustadas na sociedade de maneira indissolúvel. Alguns até se gabam quando agem de forma a obter vantagens, ainda que à margem da ética e da moral, reforçando a ideia de que aqui, no Brasil, tudo é permitido. Em vez de reprovação, a astúcia, a malandragem e o "jeitinho brasileiro" fazem despertar, nos bastidores, certo louvor e até algum charme. A propósito do tema, difundiu-se entre nós uma lei, a Lei de Gérson, no sentido figurativo, para rotular esse tipo de comportamento, expressão originada em propaganda comercial feita na década de 70.

Assim, não se pode esperar do cidadão comum conduta diversa, se muitos daqueles que deveriam dar o exemplo fazem exatamente o contrário do que recomendam a lei, a moral e os bons costumes. É exatamente nesse contexto que se enquadram as transferências fraudulentas de bens feitas para o patrimônio de terceiros.

1) Os bens do devedor constituem garantia implícita a todo e qualquer credor, nos termos do art. 591 do CPC. Por isso, aquele que esvazia o seu patrimônio com o objetivo de não pagar aquilo que deve comete fraude. O verbo "fraudar", proveniente do latim fraudare, significa, segundo os lexicógrafos, lesar, enganar, burlar, espoliar, iludir, frustrar.

2) Para combater tais atitudes praticadas pelos devedores, um dos instrumentos disponíveis ao credor frustrado é o da fraude contra credores, disciplinado nos artigos 158 a 165 do Código Civil. A fraude contra credores é um dos defeitos do negócio jurídico, ao lado do erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão. Por meio de ação própria, desde que preenchidos os requisitos legais, o credor pode pretender a anulação do negócio praticado pelo devedor já insolvente ou por ele reduzido à insolvência.

3) O instituto é muito antigo. Advém do Direito Romano. A ação própria para a anulação é chamada de pauliana (actio pauliana), porque a sua criação é atribuída ao pretor Paulus, no Direito justinianeu. Deve ser ajuizada em quatro anos a contar da data do negócio fraudulento, sob pena de decadência (art. 178 do CC).

4) É importante observar que este tipo de vício ocorre tanto se o negócio realizado for verdadeiro quanto se for simulado, isto é, não verdadeiro. Se for simulado, poderá o negócio fraudulento ser atacado também sob esse fundamento, muito mais contundente e confortável ao credor, porque a consequência é mais grave. Enquanto os negócios fraudulentos são anuláveis, os negócios simulados são nulos de pleno direito. Assim, o credor não se sujeita ao prazo decadencial, relativamente exíguo, de quatro anos.

5) Sempre foi e continua sendo objeto de discussão o efeito da fraude contra credores. A lei diz que é anulação (art. 158, caput, do CC). Alguns juristas, principalmente os processualistas, insistem, não obstante o texto legal, que o efeito é o de ineficácia relativa. A questão é extremamente relevante, pois se o negócio jurídico é anulado, o bem transferido fraudulentamente retorna ao patrimônio do devedor. Como consequência, pode ser alcançado até mesmo por outros credores, ainda que posteriores à prática da fraude. Por outro lado, se o negócio fraudulento for considerado ineficaz, o bem não retorna ao patrimônio do devedor. O credor, vítima da fraude, e somente ele, pode alcançar referido bem nas mãos de terceiro, porque tal alienação lhe é ineficaz, ou seja, não produz efeitos em relação a ele.

6) Apesar da discussão sem fim sobre o correto efeito da fraude contra credores e muito embora o sistema da ineficácia apresente vantagens consideráveis, o Código Civil brasileiro, não só o vigente como o revogado, de Clóvis Beviláqua, acolheu o sistema da anulabilidade. A propósito do tema, enquanto tramitava perante o Congresso Nacional o então projeto do CC que atualmente vige, Moreira Alves, jurista responsável pela elaboração da Parte Geral, recebeu formalmente sugestão de alteração do regime de anulabilidade para ineficácia. Apesar do forte coro em prol da ineficácia, a proposta foi rejeitada pela Comissão Revisora, sob a explicação de que não haveria vantagem prática efetiva que justificasse a mudança da tradição.

7) Os requisitos para a configuração da fraude contra credores são diferentes para os negócios jurídicos onerosos e gratuitos. Se o negócio jurídico praticado pelo devedor for gratuito, isto é, gerar vantagens patrimoniais tão somente para o beneficiado, como ocorre na doação, o credor precisa apenas demonstrar o seu prejuízo (eventus damni) em decorrência do ato fraudulento. O eventus damni é o elemento objetivo da fraude e precisa sempre ser demonstrado, tanto nos negócios onerosos quanto nos gratuitos. Se não há prejuízo, o credor não tem sequer interesse de agir para a ação pauliana. A lei contenta-se apenas com esse requisito para os negócios gratuitos porque entre preservar o interesse daquele que recebeu algo sem contraprestação e o interesse do credor frustrado, naturalmente, a balança deve pender para o credor.

8) Porém, se o negócio jurídico praticado pelo devedor for oneroso, como compra e venda, aquele que comprou tem interesse jurídico mais relevante do que o donatário do exemplo anterior. O donatário, diferentemente do comprador, nada paga para se beneficiar do acréscimo. Logo, o interesse do adquirente passa a ser igualmente relevante se confrontado com o do credor baldado. Por essa razão, a lei exige um requisito a mais para autorizar a anulação do negócio em situações como essa. Isso porque, se o terceiro adquirente age de boa-fé, a alienação deve ser considerada hígida e inatacável. O art. 159 do CC prescreve, nesse sentido, o seguinte: "Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante". Quer dizer, a lei exige a coparticipação, ou ao menos negligência, do comprador para que ele seja alcançado nos negócios onerosos, diferentemente dos negócios gratuitos. É o que a doutrina chama de scientia fraudis.

9) Os autores, de maneira geral, reportam-se ao requisito chamado de consilium fraudis para autorizar a anulação nos negócios onerosos. Esse requisito consiste na trama, no ardil, no concerto fraudulento engendrado pelo devedor e pelo terceiro. Decorreria, segundo os civilistas, da presunção de mancomunação entre devedor e adquirente, implícita no art. 159 do CC. No entanto, tal ponderação parece-nos totalmente irrelevante. O credor não tem, com o devido respeito aos juristas que sustentam o contrário, o ônus de demonstrar o consilium fraudis. Basta demonstrar a scientia fraudis, que deve ser analisada objetivamente, comparando o comportamento do adquirente com o do homem médio. Se houve trama ou não, se houve má-fé ou não, tudo isso passa a ser de pouca importância em face da presunção estabelecida pela insolvência "notória" ou pelo fato de haver motivos para a insolvência "ser conhecida do outro contratante".

10) Outro requisito da fraude contra credores, comum aos negócios gratuitos e onerosos, é o da anterioridade do crédito, consubstanciado no art. 158, § 2º, do CC, verbis: "Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles". De acordo com esse requisito, se não há dívida no momento da transferência, onerosa ou gratuita, não há fraude.

11) Referido requisito, da anterioridade do crédito, contido no art. 158 do Código Civil vigente, repete a regra contemplada no passado pelo Código Civil de 1916 (art. 106). Portanto, entre nós, o texto já tem quase cem anos. A fraude, no entanto, é dinâmica e rica. Os fraudadores sempre estão um passo à frente. A imaginação para as atitudes ardilosas é sempre muito fértil. Assim, tem sido notado, em circunstâncias bastante específicas, que algumas pessoas (físicas ou jurídicas) que podem antever o nascimento de dívidas, principalmente por causa da atividade que exercem ou mesmo por ilícitos, vêm transferindo seus bens a terceiros, antecipadamente à própria existência da dívida. Tudo com o objetivo de fulminar a possibilidade de serem alcançados com base na fraude, pela ausência do requisito da anterioridade do crédito.

12) Pela letra fria da lei, tais negócios seriam inatacáveis. Porém, decisões recentes têm flexibilizado esse requisito em circunstâncias especiais. O TJ/SP assim já procedeu. E o STJ chancelou a decisão no final do ano passado (clique aqui).

13) Há legislações de outros países, como o Código Civil Peruano (art. 195), que expressamente admitem a caracterização da fraude por atos anteriores à existência da própria dívida. No Brasil, não há previsão legal nesse sentido. Assim, embora esse tipo de interpretação extensiva cause, por um lado, certo incômodo, pela insegurança que pode gerar se mal aplicada, por outro lado constitui uma resposta rápida e eficiente às demandas originadas de comportamentos não expressamente previstos.