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É por ela que ainda estamos aqui

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Atualizado às 09:52

Que tão sedutora palavra é essa, cuja ausência na Constituição Federal de 1988 parece não ter sido notada e, ainda assim, os feiticeiros da política não deixam de invocá-la sempre que precisam encantar o eleitorado? A miúda palavrinha lustra discursos, entusiasma gabinetes e anima o grande auditório nacional. Ela habitou todas as Constituições que tivemos, até que, a de 1967, entregue por um Congresso sem opositores a mando de um presidente sem voto popular - o marechal Castello Branco -, atreveu-se a rifá-la do nosso duradouro convívio.

Nação. Duas sílabas apenas. Pelo prazer de jurá-la a torto e a direito, presidentes se disfarçam de camponeses, se preciso for. Todos os que querem nos tornar súditos dos palácios e do poder justificam-se à exaustão: "Pela Nação! Pela Nação!".

Mas onde está essa palavra na Constituição de 1988? Não está. Apenas o seu plural, nações, aparece, e num contexto outro, voltado à aspiração de estabelecer uma "comunidade latino-americana de nações". Nada mais. Não há "Nação brasileira".

A Constituição Imperial de 1824 assim se anunciava: "O Imperio do Brazil é a associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre (...)". Eis trecho do juramento do Imperador: "Juro observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira (...)". "Nação" se repete dezessete vezes.  

Em 1891, trocamos o Império pela República. A Constituição mudou, mas manteve a tradição: "A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889 (...)". Passo seguinte, a Constituição de 1934 fundou "um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico (...)", e repetiu o comando do art. 1º da Constituição anterior. Nem a "Polaca" ousou fazer de conta que a Nação não existe. Usou-a várias vezes, boa parte delas para o que o presidente Getúlio Vargas queria, é verdade.

A Constituição de 1937 - a Polaca - alertava que a situação ideológica do Brasil naquele momento terminaria "colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil". E concluiu: "Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o País".

Já a Constituição de 1946, cuidando da "lei que decretar o estado de sítio", se valeu da expressão "crimes contra a segurança da Nação ou das suas instituições políticas e sociais". Foi a única menção que fez.   

Da Constituição do Império até a de 1967 são quase 150 anos. A Nação abria boa parte dessas Constituições. Jamais ficou de fora. Até que desapareceu. Removeram a palavra da nossa história constitucional. Como puderam?

Ela já não constava do anteprojeto elaborado pela Comissão Especial de Juristas formada por Levi Carneiro, Orozimbo Nonato, Miguel Seabra Fagundes e Themístocles Brandão Cavalcanti. Seguiu de fora com a promulgação da Constituição de 1967 e permaneceu apagada na Emenda de 1969. O que temiam? A palavra ou o sentimento?

Na Constituição de 1988, a Pátria está presente: as Forças Armadas destinam-se à "defesa da Pátria". República também: "são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais". No preâmbulo, estão os "representantes do povo brasileiro". "Território nacional" aparece dezenove vezes. A cabeça do art. 5º, por exemplo, traz "País". Mais à frente, diz que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Ou seja, tem Pátria, tem República, tem povo, tem Território nacional, tem País, tem Estado..., há de tudo, menos Nação.

A Constituição manteve a palavra de fora, mas reconstituiu o seu significado. Como há formas institucionalizadas de cumprimento dos comandos constitucionais, esse conteúdo está vivo e livre, expressado em outras construções semânticas. Diz: "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira".

Nação é patrimônio cultural, mas é mais do que isso. São aqueles bens sentidos, mas difíceis de serem vistos ou tocados. São conhecidos e percebidos. Ainda assim, não é fácil explicá-los. De tão diversos e intangíveis que são, não cabem num rol. Por isso, são "imateriais, tomados individualmente ou em conjunto". O conceito é fluido, mas a fluidez de um conceito não prova que o fenômeno a ser conceituado não existe. Ele existe e é definitivo na conformação da nossa comunidade.   

Há muito da Nação numa Festa Junina, na feijoada temperada pelo samba no sábado ou no churrasco em casa no domingo. Há farta Nação numa apresentação da Esquadrilha da Fumaça, no Desfile de 7 de setembro, num atendimento num posto médico do Sistema Único de Saúde ou no anúncio do resultado das eleições pelo Tribunal Superior Eleitoral. Há espetáculos desportivos agregadores, há festivais musicais que ilustram, com a arte, nossas dores, há livros mostrando o Brasil pelos nossos escritores e há filmes e novelas falando dos nossos amores. Há um país repleto de arte à disposição do mundo. Há a geografia, a língua, as referências nacionais e as datas oficiais. Há folclore, há nomes de pessoas, há festas populares, há histórias, há registros e memórias. São elementos formadores da Nação.

Símbolos estatais que combinam heroísmo e graça também adornam essa ideia. Quando as Forças Aéreas transformam o céu num arco-íris repleto de cores, com as cambalhotas mágica da Esquadrilha da Fumaça, colocamos as crianças nos ombros, dançamos e aplaudimos. As Forças Armadas batem à porta dos nossos lares não para levar nossos meninos para guerras onde a única vencedora é a morte. Batem nos convidando a conhecer os fardados artistas de um céu azul infinito que, manobrando com perícia, imitam a Mãe Natureza pintando riscos coloridos no ar que pertence a todos nós. A fumaça deles não é ruína, não é destruição, não é morte. É arte e arte feita por pilotos e mecânicos. É claro que esses símbolos ornamentam a Nação.

E não precisa ser estatal. Pelo contrário. Devem ser populares também. Quando um nordestino deixa para trás a vida conhecida que vivia para abraçar, num ambiente hostil, uma outra por ele desconhecida e, na partida, leva consigo um isopor com a última refeição preparada pelos seus, o que ele carrega, na verdade, é a liga invisível constitutiva da Nação, a base afetiva e identitária que o alimentará na solidão.

Essas são "brasilidades". Por que os brasileiros, morando no exterior, tendo deixado voluntariamente o país, se entregam ao encanto dos nossos artistas que desfilam de live em live legando ao mundo nossas raízes? Por que procuram a comida brasileira em lugares onde reina a abundância gastronômica? Será que ali comem comida ou comem suas saudades? Por que se reúnem no domingo para exercitar a lembrança, fazer churrasco e beber cerveja? Por que, em sua intimidade, oram em língua portuguesa e dizem para seus companheiros e companheiras "eu te amo!", mantendo o pertencimento à língua oficial? Essas práticas mostram que o país pode ter ficado para trás, mas a Nação, não. Ela permanece viva neles.

Nação não é apenas um bem, ainda que imaterial. É um valor. Valores existem e a Constituição não é indiferente a eles. Tanto que, no preâmbulo, chama de "valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" os "direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça". Diz mais: "Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais". Indo adiante, "a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais". Por fim, compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios "proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural". Em resumo: formação, incentivo e proteção dos nossos "valores culturais".  

Como se vê, a Constituição de 1988 foi espalhando a Nação em seu texto. Torna inviolável "a liberdade de consciência e de crença", assegurando "o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Torna "livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Veda "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". Não há a palavra, mas há a essência.

Trata-se de algo que integra todas as memórias construídas no feliz lazer ao redor dos nossos. Lazer tanto é um direito social como uma "necessidade vital básica". Nele nasce boa parte das nossas histórias. Somos feitos delas. Ao assegurar um lugar de destaque para algo que parece banal, a Constituição de 1988 realçou mais um dos elementos do espírito da Nação.   

E quanto ao Brasil, que país somos? Beligerante ou pacífico? Da pólvora ou da diplomacia? Da bomba ou do diálogo? Da invasão ou da negociação? Da arma em punho ou da mão estendida? Da cura ou da ferida? Da morte ou da vida?

Somos uma República de paz, que se vale, interna e externamente, da "solução pacífica dos conflitos" e "controvérsias"; que assegura o direito de todos reunirem-se, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que "pacificamente e sem armas"; que diz ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, "vedada a de caráter paramilitar"; que qualifica como crime inafiançável e imprescritível "a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático"; que veda "a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar"; e que condiciona a admissão de atividade nuclear em território nacional a "fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional". Por isso, mais do que um país, somos uma Nação da paz.  

E não se esqueçam: no Brasil, Nação é respeito à diferença. Segundo a Constituição de 1988, "o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro". Em nossa penosa caminhada, muitas culturas e etnias deram às mãos em prol de um ideal comum, fazendo isso, a propósito, com indescritíveis sacrifícios. Ao estudarmos História, valorizaremos esse esforço resiliente, digno, corajoso e plural.

Não bastasse, "a lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais". Diferença novamente.

"O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". Não há estranhos entre nós. Para cada "outro", deve haver uma casa, em nossa individualidade, para abrigá-lo em nossas relações humanas, porque o manancial infinito de possibilidades individuais é elevado quando reverbera coletivamente. 

Há mais demonstrações de pertencimento como diferença. Apesar de o idioma oficial ser a língua portuguesa, e do ensino fundamental regular ser nela ministrado, é "assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas". Ou seja, sequer a língua é um tabu. Abrimos espaço para outras possibilidades. É reconhecido "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Os índios não são hóspedes incômodos ou estranhos exóticos numa terra "colonizada" ou "descoberta". Não sejamos cínicos. Não houve descoberta, houve pilhagem. Eles são, historicamente, os donos da terra e a Constituição assim os reconhecem no espaço que tradicionalmente ocupam. Respeito à diferença uma vez mais. O outro sou eu.    

Somos uma Nação cujo país qualifica como brasileiros natos os nascidos aqui, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; e os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço do Brasil. Sensível ao fato de que o rigor do Direito não pode intensificar a crueza da vida, tratamos de aprovar a Emenda Constitucional nº 54, de 2007, abraçando como nossos os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, "desde que sejam registrados em repartição brasileira competente" - uma grande inovação - ou venham a residir no Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira. Foi a forma de dizer que, em nossa Nação, nenhum brasileiro ou brasileira será deixado para trás.  

Em 2020, quando muitos radicais em todo o mundo adoravam os demônios da xenofobia, nós, no Brasil, por meio de um julgamento unânime do Supremo Tribunal Federal, derrubamos o pedaço de uma lei excludente e reafirmarmos a crença includente que nos forma, ao fixarmos a tese nº 373, cujo trecho essencial diz: "vedada a expulsão de estrangeiros cujo filho brasileiro foi reconhecido ou adotado posteriormente ao fato ensejador do ato expulsório, uma vez comprovado estar a criança sob a guarda do estrangeiro e desde depender economicamente". Como poderíamos, sentindo o que sentimos pelos nossos filhos, não conferir dignidade e proteção aos filhos do outro, ainda que, esse outro, não seja um nacional?   

Mas na Nação também é há tristezas. O que diz a Constituição sobre a possibilidade de haver algo de profundamente doloroso apto a gerar trauma e rejeição à própria ideia de Nação? Falo do tipo de experiência que enseja ojeriza a tudo o que lembre o país de origem, sua gente e costumes, por mais que esse país seja o seu.  

A Constituição de 1988 trouxe algumas armaduras. Ela diz ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, "o direito à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

Anteviu que, para aqueles que iniciam a caminhada, há muita sabotagem na trilha. Negligência. Discriminação. Exploração. Violência. Crueldade. Opressão. A proteção se inicia quando criança, mas não cessa quando adulto. Há a determinação geral de que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". São blindagens contra horrores que podem se impor sobre nós.

É opressor erguer um país que se comporte com os seus como uma espécie de festa esnobe, na qual aos ricos tudo é dado e aos pobres é servido apenas sofrimento. Isso corrompe o sentimento de Nação. A desigualdade persistente é uma predadora inveterada. Por isso, a Nação não pode reduzir o potencial de contribuição dos seus ao tamanho dos bolsos. Quem faz isso é o dinheiro. O dever dela é o de reconhecer, em cada um, o mesmo potencial cívico para, preservadas as individualidades, aglutinar a força capaz de criar a obra coletiva comum que será entregue às futuras gerações.

"A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", diz a Constituição de 1988. Dispõe ainda que "o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal". O país tem regras e propósitos que devem servir ao "bem comum", o qual não é a mesma coisa de "bem do Estado", assim como "qualidade de vida" não quer dizer "quantidade de bens", como bem advertiu Eduardo Galeano.

Mesmo o sistema financeiro nacional tem, segundo a Constituição de 1988, o seu propósito: "promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade". Isso não quer dizer que seja esse o propósito dos bancos e dos banqueiros. Eles são livres para escolherem suas aspirações, mas esses atores, que formam a Nação, estão juridicamente submetidos às regras de um sistema que precisa funcionar bem e para todos, de modo a promover o desenvolvimento equilibrado do País, servindo ao interesse coletivo.

Assim, como privar o país da sua humanidade pode resultar numa repulsa à Nação, numa ojeriza à nossa brasilidade, a Constituição de 1988 tenta evitar abismos, para que assim a Nação contemple memórias que mais elevem do que destruam.

Há, por fim, a raiz histórica. A literatura diz que foi o presidente Franklin Delano Roosevelt quem sugeriu o nome "Nações Unidas" para o que hoje é a ONU. Ocorreu durante a visita de Winston Churchill a Washington, em dezembro de 1941. Churchill aceitou citando Lord Byron, que usou a expressão "Nações Unidas" no poema "Childe Harold's Pilgrimage", referindo-se aos Aliados na Batalha de Waterloo, em 1815. Para Roosevelt e Churchill, a palavra Nação deveria estar lá.   

Foi um erro histórico Castello Branco - ou sua entourage -ter aquiescido ou patrocinado, em 1967, a retirada da palavra Nação da nossa trajetória constitucional. Ela sobrevive, nos une e dá sentido à nossa vida coletiva. Se esse acidente tiver sido planejado, miraram a palavra, querendo apagar o sentimento. Qualquer que tenha sido a intenção, fracassaram nisso também. A verdade é que a Nação tem sido alimentada por nós muito mais do que pelos governantes. É por ela que ainda estamos aqui.