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Conversa Constitucional

Fatos do cotidiano à luz da CF e a rotina do STF.

Saul Tourinho Leal
terça-feira, 21 de julho de 2020

Fracassocracia

Não se fracassa persistentemente em algo sem que haja, para além da vocação para a derrota, certa engenharia de procedimento. É preciso cometer, de forma planejada, os mesmos erros, sempre. Se o sucesso tem um método, o fracasso também tem. Na edição de 18/7/2020, O Globo trouxe entrevista de Joel Birman à jornalista Maria Fortuna. Médico pela UFRJ onde leciona psicanálise, com consultório há mais de 40 anos, doutor em Filosofia pela USP e dono de um Jabuti (2013) pela obra "O sujeito na contemporaneidade", Birman disse: "O brasileiro hoje, diante do mundo, aparece como um ser violento, xenófobo, agressivo, racista, homofóbico, ressentido."1 Não foi o primeiro alerta. Em maio, Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout publicaram o artigo "A reconstrução da política externa brasileira". Referindo-se ao governo, destacaram "o desapreço por questões como a discriminação de raça e de gênero" e "os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária".2 Antes, em 2019, Ricupero já havia chamado a atenção, em entrevista a Jamil Chade, no Uol, para o seguinte: "Hoje em dia, o que caracteriza um governo admirado, merecedor de prestígio internacional, é seu comportamento nos domínios que integram o conjunto de aspirações da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, promoção de igualdade entre mulheres e homens, tolerância e respeito pelas minorias, combate à desigualdade social e racial. Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis".3 A partir de constatações como essas, intelectuais brasileiros enxergam a consolidação entre nós de uma "caquistocracia", que seria, na expressão de Michelângelo Bovero, "o governo dos piores".4 No meu modo de ver, o que temos experimentado, desde o dia 1º de janeiro de 2019, é algo diverso. O compromisso inarredável não é o de ter os piores nas posições de poder do governo. A profissão de fé é, na verdade, o fracasso. Vamos começar pela primeira crítica a essa atmosfera: o racismo. A escravidão, catapultada pelo tráfico de africanos pelo globo, foi um modo de produção, além de indigno, alheio aos princípios de democracias liberais com economias dinâmicas reconhecedoras dos direitos fundamentais. Não enxergava a dignidade da pessoa humana como um valor intrínseco de cada um. Era um absurdo moral. Tampouco conferia o status de cidadania aos escravos. Portanto, um vandalismo político. Para Adam Smith, em 1776, que a tinha como um jogo de soma negativa5, a escravidão não estimulava o nascimento de um mercado consumidor emergente. Logo, era também uma contradição econômica, pois negligenciava a necessidade de cooperação e confiança. Pilhagem desumana, apenas. A barbárie dos mais fortes sobre os mais fracos. Nos Estados Unidos, resultou numa guerra onde os vitoriosos foram os anti-escravagistas que, triunfando sobre o Sul, impuseram a 13ª Emenda à Constituição, pondo fim a essa história. A colonização de nações europeias sobre o continente africano foi outro fracasso. Mais um tipo de pilhagem que gerou disfuncionalidades sociais, violações de toda ordem, concentração de riqueza e ressentimentos políticos eternos. Uma tragédia em nome da "civilização". A segregação racial nos Estados Unidos, por meio das Leis Jim Crow, foi atirada ao chão pela Suprema Corte a partir da década de 1960. Já o apartheid sul-africano partiu o país em pedaços, social e economicamente, além de expor as vísceras de um regime político não apenas repulsivo, mas insustentável. Uma vez derrubado e humilhado, o apartheid cedeu espaço para eleições que consagraram Nelson Mandela, alguém que havia lutado - com palavras, livros e armas -, contra aquele mal completo. Alguém duvida que, além da indignidade que impôs, o racismo fracassou? Em 2015, um estudante jogou fezes e urina na estátua de Cecil Rhodes, na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul. Eu estava lá. A presença do colonizador racista britânico causava vergonha e o fato de o seu dinheiro ter servido para ajudar a fundar a universidade pouco importou. A estátua simplesmente tinha que sair dali. E saiu, retirada pela própria instituição. Esse ano, foi a vez da estátua de Cecil Rhodes ser retirada do espaço de destaque que ocupava em Oxford, Inglaterra, de onde fora aluno e para quem deixara um pedaço da sua fortuna. A decisão foi tomada graças a uma votação envolvendo os funcionários da instituição.6 Uma vez mais o dinheiro doado por Rhodes foi indiferente à desonra que o seu racismo hoje representa. Numa democracia liberal moderna alicerçada na ideia de direitos fundamentais, o racismo não merece qualquer espaço de glória. No Brasil, o racismo não é apenas um vício moral. É um crime. O mesmo se diga da homofobia. Julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4733, o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do decano, o ministro Celso de Mello, definiu que as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se à Lei nº 7.716/1989, constituindo, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, "in fine").7 Quanto mais civilizada é a nação e mais progresso alcançou a alma coletiva, maior abertura há para o reconhecimento dos mistérios que envolvem a sexualidade humana. No Brasil, a comunidade LGBTI+ é articulada, tem pauta bem definida, acumula vitórias perante o STF e tem avançado em sua justa luta por reconhecimento e conquista de espaços de poder. Tanto o racismo como a homofobia são violadores da Constituição. Dois dos princípios que regem as nossas relações internacionais são a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao racismo (art. 4º, II e VIII). O racismo, no qual a homofobia se inclui, constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII da Constituição e Lei nº 7.716/1989). Somos, a partir do Preâmbulo constitucional, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. "Construir uma sociedade livre, justa e solidária" e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" são objetivos da nossa República (art. 3º, I e IV), cujo um dos fundamentos é exatamente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Mesmo a liberdade partidária é condicionada ao respeito aos "direitos fundamentais da pessoa humana" (art. 17). Até o pacto federativo ganha exceção quando os direitos da pessoa humana estiverem em risco. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para assegurar a observância desses direitos (art. 34, VII, "b"). Ou seja, o racista ou o homofóbico não é um sujeito chato que deve ser ignorado. Ele é, no Brasil, um criminoso que precisa ser exposto, investigado, denunciado, condenado e chamado a cumprir a sua pena, nos termos da lei e da Constituição. Quanto à violência, à agressividade e o ressentimento encontrados por Joel Birman na imagem internacional do brasileiro atualmente, parece haver nesse movimento um "militarismo romântico" baseado na ideia de que "a guerra é nobre, enaltecedora, virtuosa, gloriosa, heroica, empolgante, bela, santa, emocionante".8 O romantismo é a forma de ver a vida pelo passado, em desprezo ao presente e sem antever traços do futuro. É como o filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen. Uma fuga infantil. Em março de 2019, em entrevista ao jornal chileno La Tercera, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, referindo-se à Venezuela, afirmou que "o uso da força será necessário em determinado ponto", apesar de o Brasil não "querer uma guerra".9 Voltou atrás posteriormente, sob a justificativa de que "a guerra custa caro".10 Como assim, guerra? O Preâmbulo da Constituição reafirma que somos uma sociedade fundada na harmonia social comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, solução pacífica essa que reaparece no inciso VII do art. 4º como um dos princípios regedores das nossas relações internacionais. A Constituição se refere à paz como algo a ser defendido (art. 4º, VI) e celebrado (arts. 21, II; 49, II; e 84, XX). Quando a ONU nos entregou a liderança da MINUSTAH ("Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti"), no Haiti, sabia que não era uma missão de guerra, mas de paz e, nessa tarefa, somos um dos melhores do mundo. Cumprimos o nosso papel e o fizemos com graça. Em 19 de agosto de 2004, na capital haitiana, Port-au-Prince, aconteceu o "Jogo da Paz". A Seleção Brasileira de Futebol participou de uma partida com a Seleção Haitiana. Repetiu-se a lógica de Nelson Mandela, segundo a qual o esporte há de ser usado para unir, não para separar. Basta lembrar a final da Copa do Mundo de Rugby, em 1995, quando o capitão da seleção sul-africana, François Pienaar, ao ouvir que o time contava no estádio com 16 mil sul-africanos dando apoio, fez uma correção: "Não. Nós tivemos 43 milhões de sul-africanos nos dando suporte".11 Referia-se a toda a população do país. A estratégia da paz pelo esporte já havia sido adotada para conseguir um cessar-fogo na guerra de Biafra, na Nigéria, em 1969, quando o Santos, liderado por Pelé, jogou um amistoso na cidade de Benin e interrompeu um conflito que durava dois anos.12 Então, se somos da paz, como explicar essa agressividade? Esse culto messiânico às armas de fogo? Qual a fonte de inspiração dos delírios relativos à guerra? O art. 5º da Constituição assegura, no inciso XVI, que todos podem reunir-se em locais abertos ao público, desde que pacificamente e sem armas. O inciso seguinte dispõe ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar. Segundo o inciso XLIV, é crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. O art. 17, § 4º, por sua vez, veda "a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar". Somos da paz. E somos uns dos melhores nisso. Também veio à tona nos textos que abrem essa coluna a advertência quanto a algum flerte com episódios de xenofobia. Acontece que os líderes xenófobos foram derrotados. Genocídios nasceram da xenofobia. Massacres também. Ufanismos nacionalistas excluíram o capital humano essencial à prosperidade das nações. Comunistas, nazistas, fascistas..., todos eles depositavam suas fichas ideológicas num nacionalismo extremo, isolacionista e profundamente opressor. Esses xenófobos, além de derrotados, foram capturados e presos. Eles não são heróis, são criminosos condenados por um tribunal internacional - o Tribunal de Nuremberg. O nazista Adolf Eichmann foi enforcado em Ramla, Israel, depois de julgado e condenado. Foi esse o final decadente de gente da sua estirpe. Quem é capaz de aplaudir personagens como esses? Enquanto isso, Nova York, nos Estados Unidos, seguia inspirando o mundo com a Estátua da Liberdade dando boas-vindas aos imigrantes. Abrir-se é manter-se firme na crença kantiana: "democracia, comércio, cidadania universal e direito internacional como meio para implementar a paz".13 A vitória não é xenófoba. O fracasso é. No Brasil, o caput do art. 5º da Constituição garante aos estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O inciso LII dispõe que "não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião". Estrangeiros podem assumir cargos, empregos e funções públicas (art. 37, I), podem ser admitidos em nossas universidades como professores, técnicos e cientistas, (art. 207, § 1º) e podem adotar as nossas crianças (art. 227, § 5º). Eles são bem-vindos. Ainda segundo a Constituição, uma das competências da União é manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais (art. 21, I). Na Corte Internacional de Justiça, em Haia, há Cançado Trindade e, antes, havia Francisco Rezek. Na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Flávia Piovesan. A Organização Mundial do Comércio (OMC) era até bem pouco tempo dirigida por Roberto Azevêdo, diplomata brasileiro. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) foi, de 2012 a 2019, dirigida por José Graziano. A projeção que muitos nomes brasileiros granjearam na cena mundial inspira orgulho. Coube a um brasileiro e a um chinês encaminharem a proposta que resultou na criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), agência internacional especializada, fundada em 1948, subordinada à ONU. Geraldo Horácio de Paula Souza, médico sanitarista, e Szeming Sze, médico e diplomata, fizeram história. Um ano antes, em 1947, o mundo teve de lidar com a catástrofe do Holocausto após a Segunda Guerra Mundial. O fato de os judeus não terem para onde ir tocava a própria autodeterminação dos povos, deixando exposta uma vulnerabilidade permanente. Foi quando a ONU decidiu aprovar uma resolução criando o Estado de Israel. Quem esteve à frente do processo foi Oswaldo Aranha, representante do Brasil na Assembleia Geral. Coube a ele presidir a sessão da aprovação da Resolução nº 181. Em sua autobiografia, Shimon Peres, que exerceu as mais elevadas posições em Israel, registrou: "Nós podíamos ouvir Oswaldo Aranha, o presidente da Assembleia Geral, chamando para a votação da resolução. Nós ouvíamos com toda a atenção, ao lado de comunidades judaicas de todo o mundo".14 Em homenagem a Aranha, foi construída uma praça em Jerusalém, além de terem atribuído o seu nome a uma rua em Tel Aviv.15 Alguém tem dúvida do quão vitoriosos nós somos no tabuleiro da diplomacia? Que país conseguiu ir tão longe valendo-se dos meios que dispúnhamos e dispomos? Não nos esqueçamos que a maior liderança individual da história da ONU foi um brasileiro, Sérgio Vieira de Mello. Sérgio ajudava a construir e a reconstruir nações. Fez isso no Timor Leste. Morreu em Bagdá, Iraque, vítima de um ataque terrorista. É uma tradição de longa data. Em 1907, o mundo parou pela Convenção sobre a Resolução Pacífica de Controvérsias Internacionais, a "Segunda Convenção de Haia". Nela, Ruy Barbosa defendeu que selecionar para o Tribunal Internacional que ali se desenhava países com maior poderio militar estimularia uma corrida armamentista que desembocaria em guerra, o que contrariaria os objetivos daquela Conferência de Paz. Impressionou as potências. Saiu aclamado mundialmente como a "Águia de Haia". Logo, como é possível a uma nação que deu tanto ao mundo na defesa da paz e dos direitos humanos atualmente determinar, pelo Itamaraty, por exemplo, que seus diplomatas sabotem uma iniciativa da ONU que ajudaria no combate à mutilação genital feminina em garotas na África?16 Querem nos transformar no que, exatamente? A nossa democracia é aberta ao mundo e muito maior do que obsessões cruéis. A República rege-se nas suas relações internacionais pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e pela concessão de asilo político (art. 4º, IX e X da Constituição). Buscamos a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (art. 4º, parágrafo único). Os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (§ 2º do art. 5º). Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos podem ser aprovados pelo Congresso Nacional de modo a equivalerem às emendas constitucionais (§ 3º do art. 5º). Por fim, o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão (§ 4º do art. 5º). Fomos juridicamente empoderados para a cooperação internacional, não para o isolacionismo. Não podemos negar essa vocação. Há ainda a nossa originalidade. Quando o mundo buscava uma solução para os ciclos de hiperinflação, entregando-se ingenuamente aos planos do Fundo Monetário Internacional, criamos o real17, graças à experiência acumulada ao longo de tanto tempo e às custas de muitos fracassos que serviram de aprendizado, não como referencial a ser imitado. O real não é uma moeda, é um tesouro nacional. Na Índia, as notas da rupia estampam a face de Mahatma Gandhi. O rand sul-africano traz o rosto de Nelson Mandela. Todas as cédulas de libra têm a Rainha Elizabeth II. O real brasileiro não copiou nenhum desses modelos. Quem aparece nas nossas cédulas são o beija-flor-de-peito-azul, a tartaruga-de-pente, a garça-branca-grande, o mico-leão-dourado, a onça pintada e a garoupa. Ao contrário de festejar políticos ou heróis, adotamos os animais, especialmente os que correm o risco de serem extintos. Homenageamos os nossos bichos. Tempos depois, quando o desafio global era o combate à fome e não se sabia ao certo qual a melhor resposta estatal a esse drama, montamos o Bolsa Família18, citado pela FAO como um dos responsáveis pela saída do país do Mapa Mundial da Fome, em 2014. Fizemos o que nenhum outro país em desenvolvimento fez. Recentemente o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, disse que o Brasil, que já foi exemplo mundial em questões de meio ambiente, voltou, no governo do presidente Jair Bolsonaro, a ser um "pária internacional".19 Meses antes, o diretor-geral para as Américas da consultoria Eurasia, Christopher Garman, afirmou que a questão ambiental é o principal risco para o Brasil em 2020.20 Não são "ongueiros" ambientalistas que estão pedindo respeito à natureza. É o dinheiro. O mercado global. Esse chamamento mundial à responsabilidade ambiental apenas rememora a liderança assumida pelo nosso país desde 1992. Ocorreu no Brasil a convocação para uma nova ética universal relativa à produção e ao consumo. Na reunião - Rio-92, Eco-92 ou Cúpula da Terra -, há quase 30 anos, representantes de 178 países reuniram-se para decidir que medidas tomar para conseguir diminuir a degradação ambiental e garantir a existência de outras gerações. Eles reconheceram o conceito de desenvolvimento sustentável. A Eco-92 foi realizada por nós, em nosso país. Uma nação que conduziu algo dessa magnitude e alterou por completo a lógica global de produção e consumo não pode se entregar a discussões mesquinhas, tais como se devemos transformar a Amazônia em pasto para bois ou não. Chega a ser bárbaro, de tão estúpido que é. O art. 225, § 4º, da Constituição reconhece a Floresta Amazônica brasileira como patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. Fiéis a esse compromisso, mantivemos de pé, na Amazônia, uma zona de livre comércio, a Zona Franca de Manaus, que gera meio milhão de empregos diretos e indiretos. Produzimos tecnologias. Com os empregos, ajudamos a preservar a floresta. Quem foi capaz, em qualquer parte do mundo, de erguer, numa floresta, algo assim? O desenvolvimento econômico indiferente ao compromisso ambiental é mais uma ideia fracassada. O mundo não quer esse tipo de produção. O mercado reclama uma ética alicerçada no desenvolvimento sustentável. Quem nega isso ficará para trás. Segundo a Constituição, um dos princípios da ordem econômica é a defesa do meio ambiente (art. 170, VI).21 O Capítulo VI é dedicado ao "meio ambiente". Segundo o art. 225, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.22 Preocupado com o que o país tem feito contra o meio ambiente, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, acaba de convocar audiência pública para que integrantes do governo, entidades de proteção ambiental, especialistas e outros interessados contribuam para um relato sobre o quadro ambiental no Brasil. A decisão foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 60, apresentada por quatro partidos - PT, PSOL, PSB e Rede Sustentabilidade. Segundo o ministro, "o quadro descrito na petição inicial, se confirmado, revela a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural. Vale reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional". Há mais ideias derrotadas de volta ao palco dos acontecimentos. Veja-se, por exemplo, os pedidos de intervenção militar feitos por simpatizantes histriônicos. Esquecem eles que o general João Baptista Figueiredo, esmagado por algo que lhe era estranho - a democracia - saiu pelos fundos do Palácio do Planalto recusando-se a transmitir a faixa presidencial ao eleito, em 1985. Assumiu a presidência com inflação em 40,81% e entregou a 215,27%. Em entrevista ao jornalista Alexandre Garcia, pediu que o povo o esquecesse.23 O povo obedeceu. Não foi difícil. Percebam que são derrotas atrás de derrotas. O mesmo se diga quanto ao culto retórico à tortura. Segundo o art. 5º, III, da Constituição, "ninguém será submetido a tortura". Indo além, a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura (art. 5º, XLIII). Ressuscitar, mesmo que retoricamente, esse tema, é perseverar numa visão obtusa da vida que foi suplantada pelo humanismo. Há mais tragédias. Até o fechamento dessa coluna, eram mais de 80 mil brasileiros mortos pelo Covid-19. Como é possível assistirmos a essa falta de liderança nacional que temos visto na condução das políticas de combate à pandemia do coronavírus, se a nossa experiência conquistada nesse tipo de desafio nos credencia a sermos o farol do mundo? O Ministério da Saúde já havia estabelecido, em 1985, o Programa Nacional de DST e AIDS -PNDST /AIDS (Portaria nº 236) e criado o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, visando estimular políticas públicas de prevenção e assistência aos portadores da enfermidade, em sintonia com os princípios e diretrizes do SUS. Em julho de 1996, na Conferência Internacional de Aids, em Vancouver, Canadá, foi anunciado a descoberta do chamado coquetel. Em novembro, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.313, obrigando o Estado a fornecer medicamentos de combate a AIDS. No ano 2000, na Conferência Internacional de Aids de Durban, África do Sul, a comunidade internacional reconhecia o acerto da política brasileira, indicando "o protagonismo e a liderança do país nas discussões sobre acesso universal, propriedade intelectual e patentes de medicamentos".24 "Protagonismo e liderança". Com essas ferramentas montamos um programa universal e gratuito de combate aos males do HIV. Mas, hoje, cá estamos nós ouvindo uma homilia pregada no Palácio do Planalto - às vezes no Alvorada - sobre a hidroxicloroquina. Para entender a obsessão, é importante ir ao ano de 2016. Foi da iniciativa do então deputado federal Jair Bolsonaro, o Projeto de Lei nº 4.510/2016, que dispunha sobre o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes com neoplasia maligna (câncer), sem autorização da Anvisa. A Associação Médica Brasileira ajuizou no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5501, contra a Lei nº 13.269/2016. A Advocacia-Geral da União, o Conselho Federal de Medicina e o Instituto Nacional do Câncer também eram contrários à lei. O Supremo deferiu a liminar. Para o relator, ministro Marco Aurélio, "a esperança depositada pela sociedade nos medicamentos, especialmente naqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência. Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias. O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano". O ministro Roberto Barroso fez uma indagação e advertiu que, nesses casos, "o Estado poderá ser responsabilidade pelos danos causados". Eis a sua colocação: "O que acontecerá se a substância produzir efeitos colaterais adversos ou tóxicos no organismo de pacientes? E se portadores da doença, impulsionados pela medida estatal de liberação, abandonarem os tratamentos médicos convencionais para utilizarem a pílula e, posteriormente, for comprovada a sua inocuidade? Certamente, o Estado poderá ser responsabilizado pelos danos causados." Já a ministra Carmen Lúcia justificou assim o seu voto: "para que não se amplie e não se veja nisso, na pílula do câncer, mais uma pílula de engano para quem já está sofrendo com o desengano a que a doença pode conduzir". O arremate veio com o ministro Ricardo Lewandowski: "o Estado contemporâneo, esse Estado que nós conhecemos, o Estado de Direito, é o Estado que se organiza em bases racionais, e ele é limitado a partir de regras legais de caráter objetivo. Então, não me parece admissível que hoje o Estado, sobretudo num campo tão sensível como é o campo da saúde, que diz respeito à vida, e à própria dignidade da pessoa humana, possa agir irracionalmente, levando em conta razões de ordem metafísica, ou fundado em suposições, enfim, que não tenham base em evidências científicas". Se antes era a fosfoetanolamina, agora é a cloroquina. O fracasso tem método. Em maio desse ano, o Supremo apreciou sete ADIs contra a Medida Provisória nº 966/2020, que trata sobre a responsabilização dos agentes públicos durante a crise de saúde pública. Ela prevê, entre outros pontos, que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados com as medidas de enfrentamento à pandemia e aos efeitos econômicos e sociais dela decorrentes.25 No julgamento, o ministro Luiz Fux, que está na iminência de assumir a presidência do STF, vaticinou: "O erro grosseiro previsto na norma é o negacionismo científico. O agente público que atua no escuro o faz com o risco de assumir severos resultados". É o que os estudiosos chamam de "signaling", uma sinalização judicial de postura a ser adotada caso o comportamento potencialmente inconstitucional persista. Não há outra conclusão a se chegar, quanto ao percurso histórico do Brasil em muitas frentes de ação, que não seja a de que o nosso sucesso, local e globalmente, é estrondoso. Isso porque muitas de nossas figuras públicas depositaram nas luzes da razão e do conhecimento suas esperanças. Fizemos a nossa parte com cooperação e empenho. Por isso, é inaceitável que estejamos na condição que estamos. Mais do que um regime de governo, a fracassocracia é um plano que, para vingar, precisa da perseverança dos que, dispostos a segurar a sua alça, querem a todo custo implementá-lo. Como eu anotei no início, se o sucesso tem um método, o fracasso também tem. Mas essa perseverança destrutiva só será possível se nós nos omitirmos. E isso não acontecerá. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Smith, Adams. A riqueza das nações (1776). São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 281. 6 Disponível aqui. 7 O precedente seguiu a linha jurisprudencial firmada no julgamento do Habeas Corpus nº 82424 (DJ 19/3/2004), o "caso Ellwanger", cuja redação para o acórdão soube ao ministro Maurício Corrêa. Eis um trecho seminal: "8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma". Outro trecho: "Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem". 8 Pinker, Steve. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Tradução Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 269. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Evidentemente, há certa propaganda nesse feito. De todo modo, vale conferir. 13 Pinker, Steve. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Tradução Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 342. 14 Peres, Shimon. No room for small dreams. Courage, imagination, and the making of modern Israel. Weidenfeld & Nicolson, 2017. 15 O Brasil também esteve presente na primeira Missão de Paz da ONU - a Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF-1), que em 1948 monitorou a assinatura do Acordo de Armistício entre Israel e seus vizinhos árabes. Desde então participou em mais de 50 dessas operações. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Armínio Fraga participava de uma live organizada pelo CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável) que contou com presença do ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan. 20 Disponível aqui. 21 É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; e preservar as florestas, a fauna e a flora (art. 23, VI e VII). Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24). A função social é cumprida quando a propriedade rural atende à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (art. 186, II). Compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos ao meio ambiente (art. 220, § 3º, II). 22 Dispõe ainda a Constituição que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao meio ambiente (art. 5º, LXXIII). Uma das funções institucionais do Ministério Público é promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do meio ambiente (art. 129, III). 23 Disponível aqui. 24 Green, Duncan. Da pobreza ao poder: como cidadãos ativos e estados efetivos podem mudar o mundo. Tradução de Luiz Vasconcelos. São Paulo: Cortez; Oxford: Oxfam International, 2009. Logo no começo de 2001, o Brasil declarou a possibilidade de licenciamento compulsório das patentes de dois medicamentos. No mês de março, conseguiu a redução do preço de um deles. Quanto ao outro, em agosto de 2001, o Ministério da Saúde anunciou o licenciamento compulsório de patente do medicamento, sustentando emergência em razão do custo e do interesse público. Contudo, após o anúncio a detentora da patente reduziu o preço. Todo o histórico nacional pode ser conhecido acessando o site mantido pelo próprio Ministério da Saúde no Brasil. Disponível em: https://www.aids.gov.br/. O Decreto Presidencial nº 4.830/2003, autorizou a importação de medicamentos genéricos, em caso de emergência ou interesse público. Tentava-se, ao tempo, reduzir os custos. O Decreto autorizava ainda a produção, em grande escala, dos referidos antirretrovirais pelo laboratório estatal Far-Manguinhos. 25 As ações foram ajuizadas pelos partidos Rede Sustentabilidade (ADI 6421), Cidadania (ADI 6422), Partido Socialismo e Liberdade (ADI 6424), Partido Comunista do Brasil (ADI 6425), pela Associação Brasileira de Imprensa (ADI 6427), pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6428) e pelo Partido Verde (6431). Sustentam que esses critérios poderiam implicar a anistia ou o salvo-conduto a toda e qualquer atuação estatal desprovida de dolo ou erro grosseiro. Por maioria, o Supremo firmou as seguintes teses: "1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos".
O jurista uruguaio Eduardo Couture, em sua sabedoria imortal, deixou um alerta não apenas para os juristas, mas para todos aqueles que enxergam no tempo um inimigo a ser combatido. "O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração". O tempo existe e não adianta ser indiferente a isso. Em muitas sociedades esse elemento está associado à sabedoria, à experiência e à segurança, especialmente à segurança jurídica. Nas nações mais avançadas na realização de direitos, o valor de suas políticas é medido a partir das respostas a perguntas simples, mas poderosas, como essa: como a sua comunidade cuida dos idosos? Os idosos são, entre nós, a demonstração mais cabal da força do tempo, assim como o são as tradições, os costumes e a própria história. Na sede da Corte Constitucional da Coreia do Sul - uma nação que confere dignidade ao tempo - há, no topo do edifício, um agradável terraço de onde é possível ver Seul inteira. Lá se enxerga também o "Baeksong" (Pinheiro Lacebark), uma árvore de mais de 600 anos reconhecida como o Monumento Natural nº 8 da Coréia. O tronco branco é associado aos cabelos brancos adquiridos com a maturidade. A primeira premissa desse texto é essa: o tempo existe e é perigoso negligenciá-lo. Ele não precisa ser demasiadamente longo, nem absurdamente curto, precisa apenas ser o tempo justo, como reclama o próprio conceito de justiça em seu sentido material quando associada à prestação jurisdicional eficiente e à razoável duração do processo, previstos respectivamente no parágrafo único do art. 126 e no inciso LXXVIII do art. 5º, ambos da Constituição Federal. Se o raciocínio acima é crível, então vale a pena investir um instante de energia intelectual para analisar a Proposta de Emenda à Constituição n. 199/2019, de autoria do deputado federal Alex Manente, em tramitação na Câmara dos Deputados. Eis um breve trecho da sua justificativa: "(...) a transformação dos recursos extraordinário (art. 102, caput, III) e especial (art. 105, caput, III) em ações revisionais, possibilitando que as decisões proferidas pelas cortes de segunda instância transitem em julgado já com o esgotamento dos recursos ordinários". Se o que há hoje são recursos entregues ao jurisdicionados para que tentem se socorrer, pela vez derradeira, do STF e do STJ, e a PEC os substituem por uma ação revisional, então não se trata de uma "transformação", mas, sim, de uma "extinção". A Proposta acaba com os recursos extraordinário e especial. Em português claro, é isso o que faz. A PEC 199/2019 aponta os seus propósitos. São os seguintes: "a) reconfigurar o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça enquanto cortes destinadas à, respectivamente, proteção e afirmação da Constituição da República, e à uniformização da interpretação do direito nacional; b) estabelecendo as cortes superiores enquanto cortes de vértice, impinge-se a busca pela racionalização do Direito brasileiro, reduzindo a contradição em pronunciamentos judiciais, e reduzindo o déficit de fundamentação que por vezes afeta pronunciamentos judiciais; c) com o fim dos recursos extraordinário e especial, vinculando o trânsito em julgado das decisões ao julgamento prolatado pelas cortes ordinárias, retoma-se a responsabilização institucional, e a valorização das instâncias ordinárias da Justiça - responsáveis pela análise probatória; d) ainda, como consequência do trânsito em julgado após o julgamento em segunda instância, permite-se a efetiva execução das sentenças judiciais, satisfazendo mais rapidamente os interesses jurídicos tutelados nas demandas; e) a execução imediata da sentença, por sua vez, qualifica-se como desestímulo à interposição automática de recursos protelatórios, traduzindo-se enquanto remédio especialmente necessário nas ações penais, como forma de efetivação da tutela penal; f) por fim, ressalta-se que a medida proposta não se qualifica enquanto afastamento do direito de petição, e de submeter-se à jurisdição da das cortes superiores, sendo, contudo, meio proporcional e eficaz à racionalização do sistema jurídico recursal". O item "c" é franco e a franqueza tem o seu valor. Ele diz: "o fim dos recursos extraordinário e especial". Ponto. É a partir daqui que passo à segunda premissa do artigo em forma de questionamento: é possível simplesmente acabar com esses recursos? A PEC altera o sistema processual-constitucional brasileiro de natureza extraordinária para acabar com os recursos especiais e extraordinários e criar uma ação revisional de natureza especial denominada "ação revisional", em que o autor só poderá dela se valer após o trânsito em julgado do pronunciamento judicial. Para responder o questionamento anteriormente feito, é preciso compreender qual a teleologia constitucional quanto à relação que os cidadãos devem ter com a sua aspiração por direitos perante um Judiciário que, como se vê no Capítulo III da Constituição, contempla o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça (art. 92, I e II). O preâmbulo da Constituição Federal visa a instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício da justiça como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Um dos objetivos da República é o de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Como disciplina o art. 1º, a República constitui-se em "Estado Democrático de Direito", que traz, como um dos seus Poderes - Legislativo e Executivo - o Poder Judiciário (art. 2º). Segundo o inciso XXXIV do art. 5º, "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal." O inciso XXXV do mesmo art. 5º, por sua vez, dispõe: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Esse mesmo art. 5º apresenta o habeas corpus (LXVIII), o mandado de segurança (LXIX), o mandado de segurança coletivo (LXX); o mandado de injunção (LXXI), o habeas data (LXXII) e a ação popular (LXXIII), dispondo que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (LXXIV). Assevera ainda que o "Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença" (LXXV), sem descuidar do fato de que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (LXXVIII). A Seção IV do Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça) apresenta a Defensoria Pública como "instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado" (art. 134). Por fim, o inciso XXIX do art. 7º insere como um dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, a ação quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. Da leitura harmônica de todos esses comandos acima referidos parece clara a conclusão de que a Constituição brasileira de 1988 pretendeu abrir inteiramente os caminhos do acesso à justiça para as pessoas, não o contrário. E não é só isso. A Constituição também condiciona à sentença judicial a incursão em um plexo de garantias, reservando, inclusive, para as decisões judiciais transitadas em julgado, a possibilidade de desconstituição de determinados direitos. A perda da nacionalidade do brasileiro que tiver cancelada sua naturalização em virtude de atividade nociva ao interesse nacional reclama sentença judicial (art. 12, §4º, I). Também o cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, de serviço público de radiodifusão sonora e de sons e imagens também reclama igual medida (art. 223, §4º). Como se vê, a Constituição de 1988 teve a intenção de fortalecer uma cultura de proteção a direitos, num ambiente no qual ninguém jamais tema elevar sua voz contra injustiças valendo-se do Poder Judiciário para tal mister, o que inclui a possibilidade de alcançar o STF e o STJ em suas vindicações pela proteção de direitos violados. Tanto que, segundo o inciso XIII do art. 93, na redação da Emenda Constitucional n. 45/2004, lei complementar, de iniciativa do STF, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados, dentre vários princípios, que o número de juízes na unidade jurisdicional seja proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população. A atividade jurisdicional, inclusive, há de ser ininterrupta (inciso XII do art. 93). O §3º do art. 107, por sua vez, dispõe que os Tribunais Regionais Federais poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo. Há uma base normativa muito densa abrindo os caminhos do Poder Judiciário para que a comunidade dele faça uso, não de forma abusiva ou em violação às regras e princípios que estruturam o Sistema de Justiça, mas com o desembaraço de quem enxerga no Judiciário um ambiente ao qual as pessoas não devem temer tampouco se sentirem intimidadas ou sem esperança de que suas vindicações serão ouvidas e respondidas. Não custa recordar que a defesa judicial, além de ampla, há de ser munida dos meios e recursos a ela inerentes: "LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º). Por tudo isso é que alterar o marco constitucional do trânsito em julgado é uma medida grave. Como o ministro Cezar Peluso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, registrou na audiência pública da qual participou na Câmara dos Deputados exatamente para discutir essa PEC, é algo, pelo menos, "radical". Não toca apenas o inciso LVII do art. 5º, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Impacta múltiplos comandos vitalizadores de direitos fundamentais, de preceitos fundamentais, de garantias institucionais, de princípios constitucionais sensíveis e de cláusulas pétreas. A Constituição é cuidadosa com os marcos temporais a partir dos quais direitos são cristalizados. Tanto assim o é que o inciso XXXVI do art. 5º determina que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". A PEC, contudo, reconstrói a dimensão da coisa julgada que se consolidou em nosso histórico processual, enfraquecendo-a. Isso, enquanto a Constituição enxergou no trânsito em julgado o marco a ser observado nas hipóteses de desconstituição de bens da vida constitucionalmente assegurados em conexão com os elementos que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito. Veja-se o caso das associações. Elas só poderão ser compulsoriamente dissolvidas por decisão judicial "com trânsito em julgado" (inciso XIX do art. 5º). E não é só. O servidor público estável perderá o cargo somente em virtude de sentença judicial "transitada em julgado" (art. 41, § 1º, I). Essa garantia institucional não se volta ao servidor em si, mas ao aperfeiçoamento das instituições estatais. A vitaliciedade, uma das garantias da magistratura e do Ministério Público, só pode ser perdida através de sentença judicial "transitada em julgado" (art. 95, I; art. 128, § 5º, I). A vitaliciedade é realizadora tanto da independência do Poder Judiciário como da autonomia do Ministério Público. E quanto à perda ou suspensão de direitos políticos? O art. 15 da Constituição condicionou-a ao cancelamento da naturalização por sentença "transitada em julgado" e à condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. Outro elemento fundamental é a independência do Poder Legislativo e a legitimidade popular de seus integrantes granjeada pelo mandato pelo povo outorgado. Consta no texto constitucional que perderá o mandato o Deputado ou Senador que sofrer condenação criminal em "sentença transitada em julgado" (art. 55, VI). Ou seja, a partir da própria Constituição parece evidente a gravidade de qualquer medida que intente remodelar o instituto do trânsito em julgado de modo a reduzir a sua eficácia, encurtando o tempo necessário a alcançá-lo subtraindo dar a parte, como regra e a partir de agora, a oportunidade de chegar ao STF ou ao STJ1. Por isso é importante questionar se a PEC n. 199/2019 não tende a abolir direitos fundamentais ao antecipar a presença do instituto do trânsito em julgado. Nem se diga que pode o Poder Legislativo estabelecer, da forma que bem entender, o que é trânsito em julgado sem se basear em qualquer parâmetro, em alguma organicidade do próprio sistema constitucional e em absoluto desafio à compreensão histórica da hermenêutica constitucional construída e legada às nossas gerações. Na Constituição, o conceito é associado, em várias oportunidades, a uma realidade só configurada historicamente com a decisão judicial contra a qual não cabe mais recurso pelo fato de já ter percorrido os degraus jurisdicionais que ela mesma, a Constituição, oferece, o que não pode deixar de incluir, mesmo que haja filtros - e eles devem existir -, o STF e o STJ, que são integrantes do Poder Judiciário à luz dos inciso I e II do art. 92. Adiantar-se ao trânsito em julgado para que os recursos extraordinário e especial deixem de existir não se trata de criar um filtro, mas de extinguir a única via de acesso recursal do cidadão a esses tribunais. Quais as regras de calibração? Quais as salvaguardas? Quais os equivalentes funcionais colocados no lugar daquilo que deixará de existir? Quais os canais regedores das excepcionalidades que advirão de uma medida tão drástica? E quanto aos vários direitos fundamentais elencados nesse texto cuja desconstituição reclama o trânsito em julgado da decisão judicial? A PEC 199, pelo menos até aqui, destrói e não coloca nada no lugar. Na prática, pôs-se fim aos recursos extraordinário e especial. Optou-se por esse caminho enquanto é sabido que medidas de realização da celeridade processual passam pelo uso, por exemplo, da inovação tecnológica como forma de desafogar o Poder Judiciário. Elas podem reclamar reformas constitucionais ou infraconstitucionais. A Emenda Constitucional n. 45/2004 deu provas disso. Essas alterações se deram sem qualquer impedimento. O nosso modelo de prestação jurisdicional é, a partir da própria Constituição, reparador e transformador, entregue a um povo que em sua história multissecular foi mais intensamente convidado a uma vida com escassez de justiça do que com abundância dela. Todos devem encontrar na vindicação por direitos, na aspiração por justiça, e na esperança de acesso, mesmo limitado, racionalizado e funcional, a todas as instâncias do Poder Judiciário, a razão de ser do Estado Democrático de Direito. Trata-se de uma cidadania judicial inerente a democracias jovens que precisam de aportes persistentes da lei e da ordem para constituírem uma cultura de respeito a direitos, cultura essa que qualifica uma sociedade como politicamente civilizada e juridicamente elevada. Por tudo isso é que, pelo menos a partir do seu texto original, é possível constatar que a PEC n. 199/2019 enfraquece direitos e garantias individuais, fazendo disparar o §4º do art. 60, que diz: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais". Compreender o instituto do trânsito em julgado como inclusivo, em regra, do STF e do STJ, é uma forma de dizermos que, na vida e no direito, o tempo tem o seu próprio papel. Por isso é perigoso nós nos colocarmos na função de alquimistas dele, tentando encurtá-lo radical e artificialmente para driblarmos os seus efeitos. Não nos esqueçamos de Couture: "O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração". Um tempo que, como disse, não precisa ser demasiadamente longo nem absurdamente curto. Apenas o tempo justo. E um tempo que, pela Constituição, inclui a possibilidade de enxergar o STF e o STJ como amparo último possível para quem pede a reparação de uma injustiça violadora da Constituição ou das leis do país. __________ 1 A própria Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942), por exemplo, dispõe, § 3º do seu art. 6º, que "chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso".
terça-feira, 9 de junho de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O racismo entrou, uma vez mais, a partir da dor e do sofrimento que impõe, na agenda global. Manifestações em diferentes democracias em todo o mundo têm enfatizado a necessidade de enfrentar a questão com coragem e de uma vez por todas. No tempo atual, a associação entre o preconceito e a nova era marcada pela desinformação pode representar uma combinação explosiva. Exatamente por isso, o webinar "A Judicialização da Crise no STF" amanhã, 10/6, abordará a temática recebendo o Subsecretário de Políticas de Direitos Humanos e Igualdade Racial do Distrito Federal, Juvenal Araújo, e a coordenadora de Políticas de Promoção e Proteção dos Povos e Comunidades do Distrito Federal, Edcleide Martins Honório.O advogado constitucionalista Saul Tourinho Leal tratará ainda do caso que está na pauta do Supremo Tribunal Federal nessa quarta-feira, a Medida cautelar na ADPF 572, de relatoria do ministro Edson Fachin, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade, questionando a Portaria GP 69/2019, do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que instaurou inquérito (Inquérito 4.781/DF) visando apurar a existência de notícias fraudulentas (Fake News), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares. Clique aqui e inscreva-se para o debate.
No plenário virtual do Supremo Tribunal Federal dessa semana, a Lista nº 103-2020, da ministra Cármen Lúcia, trouxe, sexta-feira da semana passada, voto divergente do ministro Alexandre de Moraes relativo ao estabelecimento, à luz da Constituição de 1988, do regime jurídico dos empregados dos Conselhos Profissionais, no sentido de saber se esse regime pode ser regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), quando há lei expressa nesse sentido, ou se necessariamente deve se dar pelo regime jurídico único dos servidores públicos, sob pena de ser declarado inconstitucional. Vale recordar que o Partido da República (PR) ajuizou, em 30/4/2015, a ação declaratória de constitucionalidade nº 36, visando converter em absoluta a presunção relativa de constitucionalidade do § 3º do art. 58 da lei 9.649/98, que diz: "§ 3º Os empregados dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são regidos pela legislação trabalhista, sendo vedada qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta". Em seguida, a Procuradoria Geral da República ajuizou a ação direta de inconstitucionalidade nº 5367 e a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 367, todas de relatoria da ministra Cármen Lúcia. Abaixo, um resumo: (i) ADC 36: §3º do art. 58 da Lei 9.649/98 (Organização da Presidência da República e dos Ministérios); (ii) ADI 5367: art. 58, § 3º, da Lei 9.649/98 (Organização da Presidência da República e dos Ministérios); art. 31 da Lei 8.042/90 (Conselhos de Economistas Domésticos); e art. 41 da Lei 12.378/2010 (Conselhos de Arquitetura e Urbanismo); (iii) ADPF 367: arts. 35 da Lei 5.766/71 (Conselhos de Psicologia); 19 da Lei 5.905/73 (Conselhos de Enfermagem); 20 da Lei 6.316/75 (Conselhos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional); 22 da Lei 6.530/78 (Corretor de Imóveis); 22 da Lei 6.583/78 (Conselhos de Nutricionistas); e 28 da Lei 6.684/79 (Conselhos de Biologia e Biomedicina). A ministra Cármen Lúcia, relatora, entende que todos os empregados desses conselhos hão de ser regidos pelo regime jurídico único dos servidores públicos, sendo inconstitucional qualquer disposição legal em contrário1. O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, contrapõe que há espaço constitucional de conformação legal no sentido de que podem ser celetistas2. O julgamento virtual segue até a sexta-feira, 5/6. É digno de nota o fato de que, em 22/9/99, o STF julgou prejudicada a medida cautelar pedida no bojo da ação direta de inconstitucionalidade nº 1717, no ponto em que impugnava o mesmo §3º do art. 58 da Lei nº 9.649/98, tendo declarado a inconstitucionalidade do caput e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do art. 58. Derrubou-se previsão que qualificava os Conselhos como de direito privado. O STF entendeu-os como autarquias, sem, contudo, esgotar seus elementos constitutivos. O § 3º não teve sua constitucionalidade analisada3. Posteriormente, deliberando sobre aspectos jurídicos dos conselhos profissionais, o ministro Alexandre de Moraes pontuou: "Há a possibilidade de afastamento de algumas regras que se impõem ao Poder Público em geral e, no caso específico, à Fazenda Pública". E arrematou: "Veja-se, por exemplo, a discussão quanto à possibilidade de contratação de empregados pelo regime celetista, pendente de análise na ADC 36, na ADI 5.367 e na ADPF 367, todas de relatoria da Minª. CÁRMEN LÚCIA"4. Prosseguindo, o ministro Alexandre de Moraes, em manifestação majoritária do pleno do STF, estabelece as distinções que singularizam esses Conselhos: "Os Conselhos profissionais gozam de ampla autonomia e independência; eles não estão submetidos ao controle institucional, político, administrativo de um ministério ou da Presidência da República, ou seja, eles não estão na estrutura orgânica do Estado. Seus recursos financeiros não estão previstos, como salientou o Ministro MARCO AURÉLIO, na lei orçamentária. Eles não têm e não recebem ingerência do Estado nos aspectos mais relevantes da sua estrutura - indicação de seus dirigentes, aprovação e fiscalização da sua própria programação financeira ou mesmo a existência, podemos chamar, de um orçamento interno. Eles não se submetem, como todos os demais órgãos do Estado, à aprovação de sua programação orçamentária, mediante lei orçamentária, pelo Congresso Nacional. Não há nenhuma ingerência na fixação de despesas de pessoal e de administração. Os recursos dessas entidades são provenientes de contribuições parafiscais pagas pela respectiva categoria. Não são destinados recursos orçamentários da União, suas despesas, como disse, não são fixadas pela lei orçamentária anual. Há, então, essa natureza sui generis, que, por mais que se encaixe, como fez o Supremo Tribunal Federal, anteriormente, na categoria de autarquia, seria uma autarquia sui generis, o que não é novidade no sistema administrativo brasileiro: as agências reguladoras também foram reconhecidas como autarquias sui generis. Aqui, no caso dos Conselhos profissionais, teríamos uma espécie mais híbrida ainda5." No caso acima, o STF concluiu: "O caráter sui generis, portanto, híbrido, dessas entidades exige uma cautela no exame de todas as implicações decorrentes da sua caracterização a priori como pessoa jurídica de direito público"6. Agora, o ministro Alexandre de Moraes torna a ressaltar essa circunstância em seu voto-vista lançado na ADC 36, na ADI 5367 e na ADPF 367: "há, então, essa natureza sui generis, que, por mais que se encaixe, como fez o Supremo Tribunal Federal, anteriormente, na categoria de autarquia, seria uma autarquia sui generis, o que não é novidade no sistema administrativo brasileiro: as agências reguladoras também foram reconhecidas como autarquias sui generis. Aqui, no caso dos Conselhos profissionais, teríamos uma espécie mais híbrida ainda". E acrescentou: "por esses motivos, merece ser franqueado ao legislador infraconstitucional alguma margem de conformação na discriminação do regime aplicável a esses entes, entendida a necessidade de se fazer incidir certas exigências do regime jurídico de direito público, na linha do afirmado na ADI 1717, mas bem entendida também a importância de se identificar que destoam do regime puro de Fazenda Pública". Mesmo antes no STF, eis a firme ponderação do ministro Maurício Corrêa: "Seria o cúmulo do absurdo que pretendesse o Constituinte, ao votar o artigo 39 da Carta Política, o que não fez, ter requerido dizer que tal regime e planos de carreira para "os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas" - porque assim é o que diz literalmente a norma - tivesse intuído também incluir os empregados de Conselhos Profissionais, sob a alcunha de servidores públicos, como beneficiários da infortunada classificação de autarquia especial, que na lei ordinária fez-se dimensionar"7. Ao liderar a divergência nessa ADC 36, na ADI 5367 e na ADPF 367, o ministro Alexandre de Moraes rememorou: "não por acaso, o anteprojeto da Nova Lei Orgânica da Administração Pública, elaborado por comissão de juristas constituída no âmbito do Ministério do Planejamento, e presidida pelo Professor Paulo Modesto, reserva aos Conselhos a categoria de entidades paraestatais, não integrantes da Administração, embora com personalidade de direito público, o que demonstra a precariedade, ou insuficiência, na qualificação dessas entidades como autarquias". O fato é que a ratio decidendi do voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, reside no fundamento de que "enquanto pendentes os efeitos da cautelar proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2135, juridicamente não há como relativizar - na persistência da jurisprudência sedimentada sobre a matéria neste Supremo Tribunal - a obrigatoriedade de adoção do regime jurídico único para os Conselhos de Fiscalização Profissional". Todavia, divergindo, o ministro Alexandre de Moraes assinalou o seguinte: "não obstante os sólidos fundamentos declinados pela Ministra Relatora, em especial no tocante ao art. 39, caput, da CF, e ao precedente firmado pela CORTE no julgamento da ADI 1717, observo que a peculiar situação dos Conselhos Profissionais dentro da organização do Estado brasileiro, recomenda maior reflexão sobre a aplicabilidade de certos aspectos do regimente jurídico administrativo a essas entidades". E prosseguiu: "a compreensão dos diversos aspectos que distinguem esses entes - como a autonomia na escolha de seus dirigentes, o exercício de funções de representação de interesses profissionais (além da fiscalização profissional), desvinculação de seus recursos financeiros do orçamento público, desnecessidade de lei para criação de cargos - permite a conclusão de que configuram espécie sui generis de pessoa jurídica de Direito Público não estatal". O ministro Alexandre de Moraes então ressaltou que "exigir a submissão do quadro de pessoal dos Conselhos Profissionais ao regime jurídico único atrairia uma série de consequências - como a exigência de lei em sentido formal para a criação de cargos e fixação das remunerações respectivas - que atuariam de forma desfavorável à independência e funcionamento desses entes". Sua Excelência concluiu no sentido de ser válida a opção do legislador de permitir a formação dos quadros dos Conselhos Profissionais com empregados celetistas. Essa coluna entende que, diante da divergência liderada pelo ministro Alexandre de Moraes, e respeitosamente convencido de que a posição de Sua Excelência a doutra relatora, ministra Cármen Lúcia, não coloca a discussão em conformidade com a Constituição, os demais ministros e ministra da Suprema Corte - Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello - devem, conhecendo os fundamentos apresentados pela divergência, segui-la, reconhecendo a possibilidade de as leis, sem violação à Constituição Federal, estipularem que o regime jurídico dos empregados dos Conselhos Profissionais sejam regido pela CLT. Isso por serem robustos os fundamentos constitucionais relativos aos referidos Conselhos, fundamentos esses que podem ser resumidos da seguinte forma: (i) não se submetem à tutela ou supervisão ministerial; (ii) não são vinculados a Ministérios ou órgãos da Administração Pública; (iii) não se adequam à estrutura organizacional do Executivo (Leis 9.649/98 e 10.683/2003); (iv) não possuem receitas e despesas regidas pela LDO e LOA; (v) não recebem auxílio ou subvenção da União; (vi) seus orçamentos não se vinculam ao orçamento da União; (vii) seus dirigentes não recebem remuneração e são eleitos dentre os seus membros, sem interferência da Administração Pública; (viii) além das funções típicas de Estado de fiscalizar e regular o exercício das profissões, representam e defendem os interesses das categorias profissionais que fiscalizam; (ix) seus órgãos jurídicos não são vinculados à AGU para representação judicial ou extrajudicial; (x) não desfrutam de isenção de custas na Justiça Federal; (xi) não existe autorização legal para criação de cargos públicos para os Conselhos na LDO; (xii) não existe lei criando cargos públicos com denominação própria; (xiii) não há previsão legal acerca da remuneração e concessão de aumentos e vantagens, não existindo publicação anual de seus valores; (xiv) o regime próprio da previdência social (RPPS) é incompatível, já que os Conselhos Profissionais são excluídos do orçamento do RPPS. __________ 1 Trecho dos votos da Min. Cármen Lúcia, relatora: "Enquanto prevalecente a conclusão deste Supremo Tribunal no sentido da eficácia da norma originária do caput do art. 39 da Constituição da República, pela qual se determina a imperatividade de adoção do regime jurídico único para os entes da Administração Pública direta e indireta, entre os quais se incluem os Conselho de Fiscalização profissional, o regime jurídico dos seus servidores acompanha o regime jurídico da entidade, a saber, de direito público, sem opção pelo regime trabalhista, próprio das entidades particulares". 2 Trecho dos votos do Min. Alexandre de Moraes, divergente: "Mesmo o precedente firmado na ADI 1717 não parece ter força para alcançar essa conclusão, visto não ter tratado do art. 58, § 3º, da Lei 9.649 /1998, mas da inviabilidade de delegação, a entidade privada, de atividades de poder de polícia, tributação e sancionamento disciplinar. E exigir a submissão do quadro de pessoal dos Conselhos Profissionais ao regime jurídico único atrairia uma séria de consequências - como a exigência de lei em sentido formal para a criação de cargos e fixação das remunerações respectivas - que atuariam de forma desfavorável à independência e funcionamento desses entes. Assim, tenho por válida a opção feita pelo legislador, no sentido da formação dos quadros dos Conselhos Profissionais com pessoas admitidas por vínculo celetista". 3 Eis: "(...) 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao §3º do atr. 58 da lei 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, e 8º do mesmo art. 58. (...) 3. Decisão unânime. 6. Desta forma, em relação ao §3º do art. 58 da Lei nº 9.649/98, vê-se que não houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca de sua constitucionalidade, de modo que o inteiro teor do parágrafo 3º do art. 58 mantém-se vigente e incólume". 4 RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). Tese 877: "Os pagamentos devidos, em razão de pronunciamento judicial, pelos Conselhos de Fiscalização não se submetem ao regime de precatórios". Página 32 do acórdão. RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). 5 Página 33 do acórdão. RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). 6 Página 37 do acórdão. RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). 7 MS 21.797 (Min. Carlos Velloso, DJ 18/5/2001), página 24 do acórdão.
segunda-feira, 1 de junho de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. Nesta quarta-feira, 3/6, às 13h, o constitucionalista Saul Tourinho Leal receberá a presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), a juíza Renata Gil. Essa semana, o pleno do STF não traz em sua pauta temas relacionados ao coronavírus (Covid-19). Na quarta-feira, 3/6, os casos são os seguintes: - Continuidade do julgamento do RE 597.124 (Min. Edson Fachin), com o voto-vista do ministro Marco Aurélio, do Tema 222, que visa a saber se é constitucional a extensão do adicional de risco portuário ao trabalhador portuário avulso. Após os votos dos Ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que negavam provimento ao recurso, reconhecendo a constitucionalidade do referido adicional, pediu vista o ministro Marco Aurélio. - Continuidade do julgamento da ADI 2167 (Min. Ricardo Lewandowski), que discute a constitucionalidade de dispositivos estaduais que condicionam a indicação de dirigente de sociedade de economia mista e interventores de município a arguição prévia pela Assembleia Legislativa. Também, aferir a constitucionalidade de dispositivos estaduais que estabelece critério de indicação de conselheiros em Tribunal de Contas estadual. - Continuidade do julgamento da ADI 2200 (Min. Cármen Lúcia), que, à luz da Medida Provisória nº 1.950-66/2000 e da Lei nº 10.192/2001, discute a possibilidade de revogação de dispositivos de lei ordinária por medida provisória. Apensada à ADI 2288. - Continuidade do julgamento da ADI 4776 (Min. Gilmar Mendes), que visa a saber se é inconstitucional dispositivo que determina que o Tribunal de Contas Municipal será composto por cinco Conselheiros, aos quais aplicam-se as normas pertinentes aos Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado. Apensada à ADI 346. Na quinta-feira, 4/6, o pleno irá deliberar sobre a ADI 6082 (Min. Gilmar Mendes), que definirá se são constitucionais os dispositivos impugnados que estabelecem parâmetros para a reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho. Apensada às ADIs 5870, 6050 e 6069. Clique aqui e inscreva-se para o debate.
quarta-feira, 27 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O webinar traz, essa semana, o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil - AJUFE, o doutor Fernando Mendes. O que parecia um fôlego semana passada para que o plenário do Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez em 11 sessões, dedicasse energia a outros temas que não os relativos à pandemia do Covid-19, não se confirmou.Inseridas na noite da terça-feira, sete ações diretas de inconstitucionalidade de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso levaram à Suprema Corte a discussão sobre a MP 966/2020, que trata sobre a responsabilização dos agentes públicos durante a crise de saúde pública. Por maioria, os ministros concederam parcialmente a cautelar para conferir a interpretação no sentido de que os atos de agentes públicos em relação à pandemia devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias.Essa semana, caso não haja novidades o Supremo sairá do tema da Covid-19. Consta para julgamento na quarta-feira a ADPF 403, de relatoria do ministro Edson Fachin, discutindo a constitucionalidade de decisão judicial que suspende os serviços de aplicativo de comunicação por mensagem. A ação vem na companhia da ADI 5527, relatada pela ministra Rosa Weber, que discute se a disponibilização do conteúdo das comunicações privadas dos usuários de aplicações de internet somente pode se dar mediante ordem judicial para fins de persecução penal. Ainda, se as sanções de suspensão temporária e de proibição de exercício das atividades dos provedores de conexão de aplicações de internet ofendem a Constituição.Na quinta-feira, o RE 587.108, de relatoria do ministro Edson Fachin, com o Tema 179: "Aproveitamento de créditos calculados com base nos valores dos bens e mercadorias em estoque, no momento da transição da sistemática cumulativa para a não-cumulativa da contribuição para o PIS/COFINS". Após o relator ter negado provimento ao recurso do contribuinte, o caso retorna agora com o voto-vista do ministro Marco Aurélio. Em seguida, o RE 599.316, de relatoria do ministro Marco Aurélio, cuja Tema 244 trata da "limitação temporal para o aproveitamento de créditos de PIS/COFINS". Apesar desse intervalo que o pleno do STF se deu quanto à temática do Covid-19, a intensidade da judicialização da crise tende a seguir impondo a sua força sobre a agenda da Suprema Corte.
quarta-feira, 20 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O webinar semanal "A Judicialização da Crise no STF" contará com a participação do professor da faculdade de Direito da USP, André Ramos Tavares e do assessor no Supremo Tribunal Federal, José dos Santos Carvalho Filho. Na pauta do STF na quarta e quinta-feira, constam os seguintes processos: - QO na ADO 25 (Min. Gilmar Mendes), do Gov. do PA. Amici: OAB/PA e Estados da BA, DF, ES, GO, MA, MT, PA, PR, RJ, RN, RS, RO, SC, SE, SP e MG. Tema: ICMS. Operações de exportação. Compensação financeira. Omissão do Congresso na edição de lei complementar. Prazo de 12 meses para que fosse sanada a omissão. Prorrogação. - ADPF 403 (Min. Edson Fachin), do Cidadania. Amici: IBIDEM, Assespro Nacional, ITS, Proteste, NIC.BR, UBC, AMB e Defensoria Pública da União. Tema: Se ofende a liberdade de comunicação decisão judicial que suspende os serviços de aplicativo de comunicação por mensagem. - ADI 5527 (Min. Rosa Weber), do PR. Amici: IBIDEM, Frente Parlamentar pela Internet Livre e Sem Limites, ITS, Assespro Nacional, UBC, AMB e Whatsapp INC. Tema: Se a disponibilização do conteúdo das comunicações privadas dos usuários de aplicações de internet somente pode se dar mediante ordem judicial para fins de persecução penal. Se as sanções de suspensão temporária e de proibição de exercício das atividades dos provedores de conexão de aplicações de internet ofendem a Constituição. - ADI 5545 (Min. Luiz Fux), da PGR. Tema: Lei estadual que obriga a adoção de medidas de segurança que evitem, impeçam ou dificultem a troca de recém-nascidos nas dependências de hospitais públicos ou privados, casas de saúde e maternidades e que possibilitem a posterior identificação através de exame de DNA. Se os dispositivos impugnados são inconstitucionais. - Ag.Rg. na Rcl. 11427 (Min. Ricardo Lewandowski). Tema: se cabe reclamação contra decisão que aplica o instituto da repercussão geral. O relator, Min. Ricardo Lewandowski, nega provimento ao agravo, acompanhado pela ministra Ellen Gracie e pelos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso. O Min. Marco Aurélio diverge, dando provimento ao agravo.
Se a penosa história percorrida pela humanidade de nada servir para evitar que essa mesma humanidade experimente sofrimentos persistentes, então talvez seja mesmo o fatalismo do eterno erro a condenação merecida a quem despreza a sabedoria do passado. A história sempre traz consigo lembranças teimosas. Vamos a uma delas. Em 2 de fevereiro de 1933, o periódico da comunidade judaica na Alemanha, Der Israelit, publicou um editorial alusivo à chegada de Adolf Hitler no poder. Intitulado "A nova situação", o editorial tem início com a seguinte afirmação: "Não concordamos com a opinião de que Herr Hitler e seus amigos, agora finalmente possuidores do poder que desejavam há tanto tempo, aprovarão as propostas que circulam nos jornais alemães Angriff ou Völkischer Beobachter". Em seguida, o texto garante que os nazistas "não alienarão repentinamente os judeus alemães de seus direitos constitucionais, nem os trancarão em guetos de raça ou os sujeitarão aos impulsos avarentos e assassinos da multidão". A razão pela qual aquele editorial acreditava que nada do que o líder radical eleito prometeu se realizaria era o fato de que "eles não apenas não podem fazer isso, porque muitos outros fatores cruciais mantêm seus poderes sob controle, desde o presidente do Reich até alguns dos partidos políticos a eles associados, mas também claramente por não quererem seguir esse caminho"1. Foi a forma de o jornal dizer: "As instituições seguirão funcionando". No Brasil contemporâneo, quase um século depois, sempre que ouvimos os pedregulhos adiante de nós rolando precipício abaixo, alguém aparece para nos dizer que não tenhamos medo, afinal de contas, as instituições estão funcionando. É preciso ter um olhar mais crítico sobre essa afirmação que, se falada e ouvida como se um mantra fosse, pode se tornar um cala a boca retórico, algo desprovido de aderência à realidade. Vamos cavar um pouco a nossa situação institucional para tentar encontrar alguma luz. O Congresso Nacional, pelas suas duas Casas - Câmara dos Deputados e Senado Federal - tem conselhos de ética responsáveis por zelar pelo decoro parlamentar de seus integrantes. Há normas regimentais, eleições para a escolha dos presidentes desses conselhos, membros, servidores são colocados à disposição dos trabalhos lá realizados, existem pautas..., há tudo. Mesmo assim, esse arranjo institucional robusto do Poder Legislativo pouco contribuiu para evitar que alguns parlamentares passem uma parte do dia na penitenciária cumprindo pena privativa de liberdade para, na outra parte, legislarem e falarem em nome da ética nos corredores do Congresso Nacional. Não para por aí. Jamais faltou na Administração Pública brasileira órgãos de controle responsáveis por averiguar a quantas anda o gasto do dinheiro público. Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União, o próprio Poder Judiciário..., são muitas as instituições responsáveis por se antecipar aos fatos e fechar preventivamente as torneiras sujas dos desvios antes que toda a água republicana simplesmente escape pelo ralo da corrupção. Mesmo assim, fizeram o que fizeram com a Petrobras. Depois de feito, claro, muitos foram atrás do dinheiro. Mas por que tão tarde? Podemos ir além. Alguém duvida que em março de 1990 a Constituição Federal já assegurava o direito de propriedade bem como um vasto plexo de outros direitos? Mesmo assim, por meio de uma medida provisória, o então presidente Fernando Collor de Mello confiscou as economias das pessoas (bloqueio de ativos financeiros sob certas condições e limites por um período de 18 meses). É difícil entender como uma nação inteira assistiu a uma medida econômica dessa intensidade sem que ninguém levantasse a mão e dissesse: "por favor, talvez não seja esse o melhor caminho. Vamos discutir melhor a implementação desse plano ou simplesmente paralisá-lo". Em nossa história, a existência e o funcionamento de instituições jamais impediram que fôssemos vilipendiados, que a injustiça triunfasse e que espertalhões do poder levassem a melhor. Os exemplos pululam nas manchetes dos jornais, nas comissões parlamentares de inquérito, nas roupas pretas dos agentes da polícia federal, nas salas do Judiciário, nas cadeias e no imaginário popular. As instituições brasileiras não raramente são capturadas, estranguladas, esperneiam gritando pela própria sobrevivência até serem profundamente machucadas. Às vezes até mortas. É um ciclo. Há dias de glória, é verdade, mas há muito fracasso também. A vida delas não é uma vida fácil. Exatamente por isso, precisamos ser mais críticos com o álibi cômodo revelado por esse mantra segundo o qual "as instituições estão sempre funcionando". Esse olhar é de fundamental importância agora. Collor confiscou a poupança das pessoas, mas devolveu depois. O escândalo da Petrobras foi em parte reparado pelo trabalho posterior das instituições em recuperar os recursos desviados. Mas, quanto às bases da democracia, se elas nos forem roubadas, como conseguiremos tê-las de volta? Da última vez que as levaram de nós só devolveram 21 anos depois. É muito tempo. Nenhuma das preocupações que o Brasil já teve desde 1988 foi tão umbilicalmente ligada ao justo receio que temos agora de que as bases da democracia pelas quais todos os muitos abusos perpetrados pelos governantes puderam ser fustigados, estão sendo pouco a pouco minadas, erodidas. O que o momento atual apresenta no tabuleiro do xadrez nacional é a consolidação de um movimento popular radical dedicado a comprometer os pilares das nossas conquistas mais relevantes. Não é possível ser dúbio nesse particular. Esse movimento nasceu graças à democracia, mas tem demonstrado uma dificuldade impressionante de conviver com ela. E nada mostra que em algum lugar no futuro essa relação melhorará. O que tem sido feito com a imprensa é um bom termômetro. Sem imprensa livre não há democracia. No julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 130, o STF rechaçou "um modelo de imprensa que investe no atraso mental das massas e ainda se disponibiliza para o servilismo governamental, quando não para o insidioso desprestígio das instituições democráticas e o dogmatismo tão confessional quanto mercantil". É como se reafirmasse que a imprensa nasceu para ser crítica, para investigar, para ser incômoda. A sua razão de ser é, acima de tudo, o controle do poder em proveito da comunidade. Acontece que não se intimida a imprensa apenas estabelecendo um órgão de censura estatal. Esse trauma coletivo precisa ser ressignificado, sob pena de não percebemos as tantas outras formas, até mais influentes, de destruir no tempo presente o ambiente no qual um jornalista sinta que tem liberdade para fazer o seu trabalho. Usar a força do estado para ameaçar jornalistas é algo demasiadamente grave. A internet e especialmente as redes sociais têm sido utilizadas para esse tipo de investida. Se a prática contar com organização, dinheiro, poder e a tolerância por parte do líder a quem os ataques digitais aproveitam, então estamos diante da tempestade perfeita. Por mais corajosos e vocacionados que esses profissionais sejam, com o tempo eles sentirão na pele as consequências do compromisso jornalístico que insistem em preservar. Será quando todos perceberão que a democracia brasileira tem algumas rachaduras. O cinema ajuda a entender. No documentário estadunidense City of Ghosts, um grupo de ativistas sírios utiliza os meios de comunicação para lançar nas redes sociais a campanha "Al Raqa está sendo massacrada em silêncio", em alusão à cidade síria que foi tomada pelo Estado Islâmico em 2014. Uma cena mostra a foto da fachada da casa de um dos ativistas - Sarmad - sendo publicada no twitter. "O Estado Islâmico consegue informações sobre nós. Eles postam fotos online com os nossos nomes e fotos de onde estamos morando" diz o ativista, enquanto lê no seu feed o último post de um terrorista: "@Sarmad eu gostei da entrada da sua casa. Mal posso esperar para vê-lo na próxima vez". Esse tipo de senha tem sido usado com frequência pelos agentes mais engajados e radicais que dão suporte ao governo atual, notadamente no twitter. É um método. Quando radicais financiados pelo dinheiro e pelo poder lançam o nome de uma pessoa como sendo alguém a quem seguidores devotados devem perseguir ou escarafunchar a vida pessoal, já não é mais a liberdade de expressão que está sendo exercitada, mas, sim, a covarde intenção de colocar a vida de alguém em risco. Não é só a Constituição que deve lidar com a questão. O Código Penal também. Essa não é uma prática democrática. Em Ruanda, militantes hutus usavam uma estação de rádio para hostilizar os tutsis. O uso do rádio era estratégico porque se sabia que ele era um veículo de massa, que todas as casas, por mais simples que fossem, teriam acesso a esse meio de comunicação. Era como as redes sociais hoje. Dentre as muitas formas usadas pelos radicais para desumanizar seus opositores, a principal delas era associá-los a animais, no caso, às baratas. No Brasil, milícias digitais tentar intimidar autoridades ou instituições associando-as a porcos ou hienas. Também a ratos. Isso não quer dizer que o Brasil seja Ruanda, mas mostra que há identidade de métodos e que esses métodos são perigosos, eles podem intimidar e até matar pessoas. Em Ruanda, num primeiro momento, pouca coisa acontecia no tecido social daquela sociedade. Mas a prática de ódio foi ganhando corpo ao longo do tempo, os tabus morais foram sendo deixados de lado, as pessoas foram se sentindo mais à vontade para usar a violência nas ruas, até que, quando se viu, cerca de 70% da população tutsi havia sido exterminada. Um genocídio teve início com discursos de ódio no rádio. Como eu já afirmei, o Brasil não é Ruanda e o genocídio daquele país tem complexidades próprias, não há dúvidas quanto a isso. Mesmo assim, é fato que campanhas de ódio veiculadas por meios de comunicação social de larga acessibilidade popular sem que haja um líder que diga basta, nem um aparato de segurança e justiça que impeça esses militantes radicais de seguirem por esse caminho sombrio, são algo que têm a aptidão de ganhar escala e, por isso, de provocar danos coletivos irreparáveis. Samantha Power, na obra "Chasing the Flame: Sergio Vieira de Mello and the Fight to Save the World", recorda que Osama Bin Laden, em 2001, havia lançado um comunicado dizendo que jihadistas de todo o mundo deveriam pegar armas não só contra os Estados Unidos, mas contra a ONU. Foi a senha para que um ataque terrorista à sede da organização, no Iraque, resultasse na morte do brasileiro Sérgio Vieira de Mello. A tentativa de obstrução à independência do Poder Judiciário por meio da ameaça persistente a seus integrantes, somada ao silêncio imposto a opositores incômodos e, ainda, a intimidação organizada a profissionais de imprensa que agem com independência são práticas que têm se consolidado no Brasil. Milícias digitais que intimidam testemunhas, ameaçam opositores e assassinam a reputação de profissionais da imprensa e de seus familiares precisam encontrar imediata resposta das autoridades de segurança para que possam ser identificadas, desbaratadas e suas fontes de financiamento secadas. Os responsáveis precisam ser punidos. Outro aditivo a esse caldeirão de violações é a desinformação. Movimentos políticos compostos por populistas que se apresentam falsamente com o verniz conservador, mas que são, na verdade, apenas radicais violentos, quase sempre apostam na desinformação. Nos ares da internet, esse método ganha uma potência incalculável. No Irã, a partir de 1979, explodiu uma revolução. No filme estadunidense "Setembro em Shiraz", uma cena ilustra o importante papel da desinformação para se alcançar a finalidade daquela guinada rumo ao fim das liberdades civis. A patroa judia Farnez, interpretada por Salma Hayek, conversa em seu carro com a empregada muçulmana Habiben (atriz Shohreh Aghdashloo). Depois de se queixar da situação do país, Habiben, mãe do militante radical Morteza (ator Navid Navid), começa a explicar por que passou a se sentir seduzida ideologicamente pelo séquito violento. Ao desenvolver o seu raciocínio, ela, uma mulher de meia idade, tenta convencer a patroa de que líderes religiosos europeus querem governar o Irã. O diálogo é o seguinte: - Habiben: E se quisermos que nossos Mulás nos governem e não aquele "Santo"? Morteza me falou que ele é idolatrado na Europa. Eu sei. Saint-Laurent ou alguma coisa assim. - Farnez: Yves Saint-Laurent? - Habiben: Sim, esse mesmo. A passagem mostra a virada rumo ao fundamentalismo impulsionada pela desinformação. O estilista Yves Saint-Laurent virou, na mente de senhoras religiosas pouco informadas, um santo francês que impediria a liberdade dos muçulmanos. No Brasil, a propaganda agitada por um certo conservadorismo caricato tem partido de quem o quer na vida alheia apenas, jamais na sua própria. O moralismo exacerbado costuma ser assim, hipócrita. Quem melhor retratou essa hipocrisia foi o escritor Jorge Amado, por meio da personagem Perpétua, a viúva enlutada e pudica que enquadrava as mulheres na rua reclamando de suas roupas e, em casa, guardava o órgão genital do marido falecido numa caixa branca no guarda-roupa. Outro fenômeno é um certo culto às armas de fogo. Não a posse em si, segundo as leis vigentes, mas o exibicionismo narcisista incrementado pelas redes sociais. Pessoas de representatividade popular, mesmo mandatários, têm aparecido fazendo uso de armamento pesado em momentos de lazer ou em sua intimidade. Essa exibição como demonstração de força normalmente é feita por bandidos ou por playboys. Dificilmente um herói a fará. Na casa que tinha no deserto do Negev, o quarto de David Ben-Gurion, primeiro-ministro de Israel, contava com a foto do pacifista Mahatma Gandhi, não com fuzis. O maior cômodo da casa era uma biblioteca, não um galpão de munições. Ele não era um bandido. Tampouco um playboy. Era um herói. E as invocações intelectualmente subalternas à base normativa estadunidense que abre caminho, a partir de uma emenda à Constituição, a um tipo de relação com armas de fogo sem similar em qualquer outra democracia do planeta, são absolutamente irrelevantes para o ordenamento jurídico brasileiro. O Preâmbulo da Constituição reafirma que somos uma sociedade comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. Seguindo adiante, o art. 5º, talvez o mais importante de toda a Constituição, assegura, no seu inciso XVI, que todos podem reunir-se pacificamente em locais abertos ao público, desde que sem armas. O inciso seguinte dispõe ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar. Segundo o inciso XLIV, é crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Não bastasse toda a ênfase na cautela que a ordem constitucional brasileira tem quanto à associação entre armas de fogo e multidões, ou em relação ao uso de armas para propósitos políticos ou contrários à democracia, a Constituição de 1988 fez questão de afastar qualquer espécie de "braço armado" na política e em seus partidos. Segundo o art. 17, § 4º, "é vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar". Essa exegese precisa encontrar o seu destino entre nós. A combinação entre fundamentalismo religioso, fanatismo político e o uso de armas de fogo, num ambiente cuja lei e a ordem têm baixa adesão, é um tipo de alinhamento digno de estados autoritários ou sociedades disfuncionais. Não tem como dar certo. É um campo aberto para a arregimentação de milícias, o nascimento de terroristas, a consolidação de forças paramilitares, de cartéis do tráfico e do crime organizado, além de guerrilhas urbanas ou rurais. Prosperidade alguma nascerá daí. Apenas o medo. E onde reina o medo não há espaço para a esperança, que deve ser a mais poderosa força aglutinadora de uma nação. Radicais políticos, fanáticos religiosos e tarados armamentistas são um perigo. Não sou eu quem diz isso, é a história. Na tarde de 30 de janeiro de 1948, Mahatma Gandhi foi alvejado a caminho de sua oração diária na Birla House, em Nova Déli. Os assassinos eram membros da organização hindu radical Rashtriya Swayamsevak Sangh. Dia 22 de julho de 2011, na Noruega, o militante da extrema-direita Anders Behring Breivik, matou a tiros 69 jovens do Partido Trabalhista Norueguês, na ilha de Utøya. Há um caso ainda mais simbólico. Em 4 de novembro de 1995, numa praça em Tel Aviv, o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, afirmou, num discurso emocionado: "A violência corrói as bases da democracia israelense. Ela deve ser condenada, sabiamente expugnada e isolada". Pregava a paz. Horas depois, um pedaço de papel em seu bolso ficou chamuscado. O papel trazia a letra da "Canção pela Paz", entoada na manifestação. Eram respingos de sangue. Rabin acabara de ser assassinado a tiros pelo judeu ortodoxo de extrema-direita Yigal Amir. O que os três assassinos tinham em comum? Um cérebro lavado pela ideologia política radical e uma arma de fogo na mão. Não fosse esse elemento definitivo, poderiam ser apenas tontos gritando por aí. Porém, armados, e com ódio, eles passam a direcionar o seu fanatismo para as causas que constroem. A partir daí, para se transformarem em assassinos, basta a oportunidade. Condescender pelo silêncio com aqueles que não querem bem aos mecanismos que mantêm a democracia de pé é se portar como um aliado desse terrível comportamento. De onde não se espera nada é de onde não virá coisa alguma. Omitir-se muitas vezes é tudo o que espíritos antidemocráticos precisam para triunfar. É preciso aprender com a história. O editorial do Der Israelit, em 2 de fevereiro de 1933, foi claro ao revelar a sua forma de enxergar a democracia alemã, com instituições fortes, freios e contrapesos, e uma sociedade civil que não renunciaria à sua liberdade para embarcar num projeto de poder populista e radical. O editorial sustentou que os nazistas não privariam repentinamente os judeus alemães de seus direitos constitucionais, nem os trancariam em guetos de raça ou os sujeitariam aos impulsos avarentos e assassinos da multidão. Isso, porque a Constituição não permitiria. A postura descrita acima é natural para quem se comporta de boa-fé e supõe que mesmo o inimigo agirá com alguma integridade. Todavia, a história mostrou quão frágeis podem ser até mesmo as instituições de países de longa experiência institucional. Por isso, confiar de braços cruzados nos poderes das Constituições e das instituições é abrir mão de entregar à democracia a sua própria força realizadora, que é a aglutinação da sociedade civil, com uma imprensa livre, numa comunidade bem informada e disposta a, controlando o poder de todos que o detêm, seguir elegendo ou não elegendo aqueles que, de tempos e tempos, aparecem em nossas vidas pedindo votos. Chega de dizer que as instituições estão funcionando. Esse mantra nos convida para um certo tipo de comodismo. Isso não é bom. A democracia é feita da desconfiança, da mobilização, da certeza da falibilidade humana, do barulho e da persistência. Em países como o Brasil, as instituições estão sempre enfrentando múltiplas dificuldades para realizarem suas missões. O engajamento da sociedade civil, combinado com uma imprensa livre, numa comunidade pacífica e bem informada é o que precisamos para fortalecer essas instituições para que, livres de predadores, possam realizar suas funções e, assim, preservar as nossas conquistas. É nessa trilha que devemos caminhar. __________ 1 A tradução para o inglês do editorial está disponível nesse importante trabalho disponível aqui.
segunda-feira, 11 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas às quartas-feiras, das 13h às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O webinar dessa semana contará com a participação da constitucionalista Christine Peter, que falará sobre os direitos fundamentais em tempos de crise; e também do advogado Francisco Giardina, que abordará a postergação do pagamento de tributos em razão do estado de calamidade pública. Pauta da semana Quarta-feira, 13/5 O pleno deliberará sobre o referendo da cautelar na ADI 6357, ajuizada pelo presidente da República, na qual o relator, ministro Alexandre de Moraes, concedeu a cautelar conferindo "interpretação conforme à Constituição Federal, aos arts. 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, para, durante o estado de calamidade pública decorrente do Covid-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação do vírus". Quinta-feira, 14/5 Será a vez de apreciar o referendo da negativa de cautelar na ADI 6359, ajuizada pelo partido Progressistas, de relatoria da ministra Rosa Weber, na qual se pede a declaração da "inconstitucionalidade progressiva parcial do art. 9º, caput, da lei 9.504/97, e do art. 1º, incisos, IV, V e VII, da Lei Complementar 64/90, e por arrastamento, do art. 10, caput, e seu § 4º, da resolução 23.609/2019, que dispõe sobre o registro de candidatura, e das disposições correlatas da Resolução nº 23.606/2019, que dispõe sobre o Calendário para as Eleições de 2020, ambas promulgadas pelo TSE". Pede-se a suspensão dos prazos de filiação partidária, identificação do domicílio eleitoral e de desincompatibilização.
Não demoraria para que algo assim ocorresse. A deliberação virtual a partir de julgamentos em listas abarrotadas, durante a pandemia da Covid-19, começa a suplantar posições adotadas no plenário da Suprema Corte, até aquelas tomadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, resultando na derrubada de leis estaduais muitas vezes sem que conheçamos expressamente todas as posições do colegiado. Um caso ajuda a ilustrar o todo. O recurso extraordinário nº 740.008, de relatoria do ministro Marco Aurélio, está submetido a julgamento na lista virtual nº 122-2020, com julgamento a se encerrar nessa sexta-feira, 8/5. O atual desfecho, considerando o voto do relator, que foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, tendo a divergência do ministro Edson Fachin, reverte a deliberação do pleno da Suprema Corte na ação direta de inconstitucionalidade nº 4303, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, apreciada em 2014, na qual o ministro Marco Aurélio ficara vencido. Acompanharam a relatora a ministra Rosa Weber e os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. O leading case cuida do Tema nº 6971 da repercussão geral. Eis a conclusão do voto do doutor relator: "é inconstitucional o aproveitamento de servidor, aprovado em concurso público a exigir a formação de nível médio, em cargo que pressuponha escolaridade superior". No entanto, não é de ascensão funcional sem concurso público e tampouco provimento derivado de cargo público que se trata2. Essa posição do douto relator ficara vencida isoladamente em 2014, quando o pleno do STF apreciou a citada ADI 4303 (relatoria da ministra Cármen Lúcia, DJe 28/8/2014), cuja ementa diz o seguinte: "1. A reestruturação convergente de carreiras análogas não contraria o art. 37, inc. II, da Constituição da República. Logo, a Lei Complementar potiguar n. 372/2008, ao manter exatamente a mesma estrutura de cargos e atribuições, é constitucional. 2. A norma questionada autoriza a possibilidade de serem equiparadas as remunerações dos servidores auxiliares técnicos e assistentes em administração judiciária, aprovados em concurso público para o qual se exigiu diploma de nível médio, ao sistema remuneratório dos servidores aprovados em concurso para cargo de nível superior. 3. A alegação de que existiriam diferenças entre as atribuições não pode ser objeto de ação de controle concentrado, porque exigiria a avaliação, de fato, de quais assistentes ou auxiliares técnicos foram redistribuídos para funções diferenciadas. Precedentes. 4. Servidores que ocupam os mesmos cargos, com a mesma denominação e na mesma estrutura de carreira, devem ganhar igualmente (princípio da isonomia). 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente." Agora, a posição vencida acima volta à baila nesse julgamento virtual para um overruling do referido precedente, algo que reclama a atenção da Suprema Corte. Isso porque o Poder Legislativo de Roraima, aprovando projeto enviado pelo Governador que resultou na Lei Complementar nº 142/2008, elevou o nível de escolaridade exigido para ingresso, sempre por concurso público, na carreira de oficial de justiça, substituindo-se o médio pelo superior. A lei pôs em extinção os cargos dos oficiais aprovados em concurso que ao tempo exigia nível médio, equiparando suas remunerações com os de nível superior, haja vista que os oficiais - nível médio e superior - realizam as mesmas funções perante o mesmo Poder. O TJ/RR, todavia, julgando ADI local, declarou, por maioria, a inconstitucionalidade do art. 35 da LC 142/20083 (na redação da LC 175/2011)4, cuja redação é a seguinte: "Ao ocupante do cargo de Oficial de Justiça, código TJ/NM-1, fica assegurada a remuneração equivalente a do cargo de Oficial de Justiça, código TJ/NS-1". Entendeu-se ter havido "provimento derivado de cargo público", em violação dos arts. 37, II da Constituição Federal e do art. 20, caput da Constituição Estadual, incidindo, ainda, as Súmulas 685 e 339 do STF5. Oficiais de Justiça que desempenham o mesmo ofício, que coletam diariamente mandados, todos aprovados em concurso público, para trabalharem no mesmo Tribunal, merecem, à luz do acórdão a quo, remuneração diversa, haja vista que os primeiros, de nível médio e com o cargos em extinção, não seriam "iguais" aos de nível superior posteriormente aprovados. Não é o que diz a Constituição. Consta do caput do art. 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)". O inciso XXX do art. 7º assegura como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil". Segundo o § 3º do art. 39, esse dispositivo se aplica aos servidores públicos6. Como os oficiais de justiça de RR foram aprovados em concurso, o acórdão a quo também viola o art. 37, II: "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração". O acórdão a quo e o voto do douto ministro relator destoam do inciso I do § 1º do art. 39 da Constituição Federal, que em nenhum momento entrega ao sistema remuneratório dos servidores públicos esse tipo de elemento. Eis a íntegra do dispositivo: "a fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: I - a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira"7. Se há a mesma natureza, grau de responsabilidade, complexidade do cargo, naquela que se tornou a mesma carreira, não há como se sustentar, à luz da Constituição, que o nível de escolaridade distinguirá a remuneração dos que exercem iguais funções. O pedido desse leading case, que formará a tese do Tema nº 697, é a aplicação singela, a partir do robusto conjunto de comandos constitucionais acima mencionados, da máxima: "Às mesmas funções, as mesmas remunerações". O art. 35 da LC 142/2008, alterada pela LC 175/2011, diante do incremento do ensino superior para os concursos vindouros de oficial de justiça, conferiu isonomia de remuneração entre os oficiais de nível médio e os de nível superior, transitoriamente, pois os cargos de nível médio foram postos em extinção. Eis trechos do parecer da Procuradoria-Geral da República: "A lei em exame, por razões de administração judiciária, ao estabelecer um regime de transição consistente na criação de uma carreira com requisitos de acesso mais dificultosos e na extinção paulatina dos cargos da carreira já existente, define, assentada em parâmetros de proporcionalidade, a equivalência remuneratória, não existindo qualquer irregularidade ou inconstitucionalidade a ser observada. Inexiste, a configurar uma espécie de ascensão, uma típica progressão funcional, pois o regime criado pela aludida lei é evidentemente provisório e, por ter essa natureza, tornar-se-á exaurida no momento em que todos os atuais ocupantes do cargo de Oficial de Justiça, código TJ/NM-1, se desvincularem do quadro funcional do Tribunal de Justiça de Roraima8". Daí a questão: os oficiais de justiça de RR, de nível médio e superior, concursados, exercem as mesmas funções9? A resposta vem do Anexo VIII da LC 175/2011. Além da ADI 4303 (Min. Cármen Lúcia)10, em cujo julgamento ficara vencido isoladamente o ministro Marco Aurélio, e que agora está prestes a sofrer um precoce overruling, há a ADI 2335 (rel. p/ac. Min. Gilmar Mendes, DJ 19/12/2003), cuja ementa diz: "(...) 2. Lei Complementar nº 189, de 17 de janeiro de 2000, do Estado de Santa Catarina, que extinguiu os cargos e as carreiras de Fiscal de Tributos Estaduais, Fiscal de Mercadorias em Trânsito, Exator e Escrivão de Exatoria, e criou, em substituição, a de Auditor Fiscal da Receita Estadual. 3. Aproveitamento dos ocupantes dos cargos extintos nos recém criados. 4. Ausência de violação ao princípio constitucional da exigência de concurso público, haja vista a similitude das atribuições desempenhadas pelos ocupantes dos cargos extintos. (...)". Também a ADI 1561 MC (Min. Sydney Sanches, DJ 28/11/97): "(...) Leis nºs 8.246 e 8.248, de 18.04.1991, não se aludiu a transformação de cargos, nem se cogitou expressamente de aproveitamento em cargos mais elevados, de níveis diferentes. O que se fez foi estabelecer exigência nova de escolaridade, para o exercício das mesmas funções, e se permitiu que os Fiscais de Mercadorias em Trânsito e os Escrivães de Exatoria também as exercessem, naturalmente com a nova remuneração, justificada em face do acréscimo de responsabilidades e do interesse da Administração Pública na melhoria da arrecadação. E também para se estabelecer paridade de tratamento para os exercentes de funções idênticas. Mas não se chegou a enquadrá-los em cargos novos, de uma carreira diversa.(...)". Por fim, a ADI 2713 (Min. Ellen Gracie, DJ 7/3/2003): "(...) Rejeição, ademais, da alegação de violação ao princípio do concurso público (CF, arts. 37, II e 131, § 2º). É que a análise do regime normativo das carreiras da AGU em exame aponta para uma racionalização, no âmbito da AGU, do desempenho de seu papel constitucional por meio de uma completa identidade substancial entre os cargos em exame, verificada a compatibilidade funcional e remuneratória, além da equivalência dos requisitos exigidos em concurso. (...)". Por essas razões, é que se não se imagina outra postura que não seja o posicionamento pela procedência do recurso extraordinário, reafirmando-se a constitucionalidade do art. 35 da LC nº 142/2008, de Roraima, afastando-se a tese fixada pelo doutor Ministro Relator, que negou provimento ao recurso. __________ 1 Tema nº 697 da repercussão geral: "Constitucionalidade de lei que, ao aumentar a exigência de escolaridade em cargo público, para o exercício das mesmas funções, determina a gradual transformação de cargos de nível médio em cargos de nível superior e assegura isonomia remuneratória aos ocupantes dos cargos em extinção, sem a realização de concurso público". 2 "E certo que o Supremo Tribunal Federal, há muito, definiu-se pela impossibilidade de ingresso a cargos públicos diverso do concurso público, dada a vedação constitucional. Contudo, o caso não parece condizer com a pecha de inconstitucionalidade dada ao normativo em questão", p. 9 do parecer da PGR neste RE. 3 LC 142/2008: "Art. 9° Carreira é o agrupamento de cargos de provimento efetivo com a mesma complexidade e vencimentos, organizados em níveis, de acordo com a escolaridade"; "Art. 12. O Quadro de Pessoal Efetivo do Poder Judiciário é composto pelas seguintes Carreiras, organizadas de acordo com o nível de escolaridade: I - Nível Superior - NS; 11- Nível Médio - NM; 111 - Nível Fundamental - NF". 4 A LC 142/2008, dispõe sobre a Organização do Quadro de Pessoal e o Plano de Carreira dos Servidores do Judiciário de Roraima; revoga as LC's Estaduais 018/96, 021/97, 035/2000, 042/2001, 045/2001, 058/2002, 080/2004, 085/2005, 105/2006; 118/2007, 134/2008, 141/2008, e dá outras providências. 5 Súmulas STF 685 e 339, respectivamente: "É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido", e "Não cabe ao poder judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia". 6 "Art. 39, § 3º. Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir". 7 Viola também a compreensão do STF de que o Legislativo pode, por lei, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento da isonomia. Diz a Súmula nº 339: "Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia". 8 Página 9 do parecer da PGR neste RE. 9 Conclui a PGR neste RE: "Com efeito, não há que se considerar inconstitucional a lei em exame, em razão da plena satisfação ao requisito da isonomia entre ocupantes de carreiras afins, traduzindo-se o caráter remuneratório apenas fator de equivalência entre aqueles que ocupam posições funcionalmente idênticas". 10 "1. A reestruturação convergente de carreiras análogas não contraria o art. 37, inc. II, da Constituição da República. Logo, a Lei Complementar potiguar n. 372/2008, ao manter exatamente a mesma estrutura de cargos e atribuições, é constitucional. 2. A norma questionada autoriza a possibilidade de serem equiparadas as remunerações dos servidores auxiliares técnicos e assistentes em administração judiciária, aprovados em concurso público para o qual se exigiu diploma de nível médio, ao sistema remuneratório dos servidores aprovados em concurso para cargo de nível superior. 3. A alegação de que existiriam diferenças entre as atribuições não pode ser objeto de ação de controle concentrado, porque exigiria a avaliação, de fato, de quais assistentes ou auxiliares técnicos foram redistribuídos para funções diferenciadas. Precedentes. 4. Servidores que ocupam os mesmos cargos, com a mesma denominação e na mesma estrutura de carreira, devem ganhar igualmente (princípio da isonomia). 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente".
quarta-feira, 6 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas às quartas-feiras, das 13h às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. Hoje, teremos a participação de dois convidados: O juiz instrutor do STF, Eduardo Sousa Dantas, que falará sobre "Ações Estruturais e o Estado de Coisas Inconstitucional"; e o professor Nilson Franco Júnior, que falará sobre decisões judiciais que suspendem o pagamento de aluguéis durante a crise. Pauta da semana Quarta-feira, 6/5 - Referendo da cautelar na ADI 6343, da Rede, tendo como amicus a Febratel, contra as MPs 926 e 927 que, alterando a Lei 13.979/2020, tratam da competência dos estados, DF, municípios e União para restringir transporte intermunicipal e interestadual durante a calamidade. O Min. Marco Aurélio, relator, manteve o indeferimento da cautelar. O ministro Alexandre de Moraes, divergindo, defere parcialmente para, excluindo estados e municípios, nas suas competências, da necessidade de obediência aos órgãos Federais na adoção de medidas relativas ao transporte interestadual e intermunicipal e de autorização do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena e outras providências na saúde. Acompanharam os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Já o ministro Edson Fachin defere parcialmente para explicitar que, desde que amparadas em evidências científicas e nas recomendações da OMS, estados, municípios e DF podem determinar as medidas sanitárias de isolamento, quarentena, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver. Foi acompanhado pela ministra Rosa Weber. O caso volta com a vista do ministro Dias Toffoli. - Referendo da cautelar na ADI 6389 (ministra Rosa Weber), do PSB, questionando a MP 954/2020, sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de serviço telefônico com o IBGE. Apensadas as ADIs 6390, do PSOL; 6393, do PCdoB; 6388, do PSDB; e 6387, da OAB. Quinta-feira, 7/5 - Referendo da negativa de cautelar na ADI 6359 (ministra Rosa Weber), dos Progressistas - PP, sobre a suspensão, por 30 dias, do Calendário das Eleições de 2020, para definir se pandemia inviabilizará o cumprimento dos prazos de filiação partidária, domicílio eleitoral e desincompatibilização.
quarta-feira, 29 de abril de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas às quartas-feiras, das 13h às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O convidado de hoje é Abhner Youssif Mota Arabi, juiz instrutor no STF. Confira a íntegra do debate: Ao longo do webinar ele conversará sobre as relações entre a judicialização da crise e o federalismo brasileiro, à luz de trabalho que publicou sobre a nossa federação. Pauta da semana Quarta-feira (29/4) Continuidade do julgamento dos referendos das cautelares negadas pelo ministro Marco Aurélio em sete ADI's questionando a MP 927/2020, que autoriza empregadores a adotarem medidas excepcionais em razão da pandemia. O julgamento foi suspenso depois do voto do relator, que mantém a negativa das cautelares. Para o ministro, o presidente da República "pode e deve" atuar provisoriamente nas relações e da saúde no trabalho. A edição da medida teria visado "atender uma situação emergencial e preservar empregos". O ministro Marco Aurélio observou que a norma, ao possibilitar que empregado e empregador celebrem acordo individual a fim de garantir o vínculo, prevê que devem ser observados os limites definidos pela Constituição. Também seria razoável a antecipação de feriados, pois preservaria a fonte de renda dos empregados e reduziria o ônus dos empregadores. Quanto à negociação individual para a antecipação de períodos futuros de férias, a MP busca a manutenção do vínculo empregatício, pois, durante a período de distanciamento ou isolamento social, não haverá campo para a prestação de serviços. Abaixo, as ações: - Referendo da negativa de cautelar na ADI 6342 (Min. Marco Aurélio), do PDT1, que questiona a MP 927/2020, quanto à redução da jornada de trabalho e redução salarial por acordo individual; suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; pagamento do terço de férias após a concessão desta durante o estado de calamidade pública; interrupção das atividades pelo empregador; regime especial de compensação de jornada; dispensa de realização de exames médicos ocupacionais; suspensão do contrato de trabalho; casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais e quanto à convalidação de medidas trabalhistas adotadas por empregadores. Mesma discussão nas ADIs 6344, da Rede; 6346, da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos; 6348, do PSB2; 6349, do PCdoB; 6352, do Solidariedade3; 6354, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria; de relatoria do ministro Marco Aurélio e pautadas com a ADI 6342. Quinta-feira (30/4) Referendo da negativa de cautelar na ação direta de inconstitucionalidade por omissão 56, pelo relator, ministro Marco Aurélio, nessa ação da Rede, que, alegando omissão inconstitucional dos Presidentes da República, da Câmara e do Senado, pede: 1) Definir, para as circunstâncias de pandemia do COVID-19, o mínimo existencial, que se sugere ser a quantia de no mínimo R$ 300,00 per capita durante seis meses, para todos os trabalhadores listados no Cadastro Único e todos os seus dependentes também cadastrados bem como os desempregados que tenham número de identificação social, limitando o valor máximo de R$ 1.500,00 por família de 2 trabalhadores e três dependentes independente da família ser beneficiária ou não do Bolsa Família, ou, de maneira subsidiária, de acordo com os parâmetros que a Suprema Corte entender razoáveis. II. Determinar, aos Presidentes da República, da Câmara e do Senado, seja estabelecido programa de renda mínima emergencial para os brasileiros que estão privados de fonte de renda durante a pandemia do COVID-19 no prazo máximo de dez dias, ou, de maneira subsidiária, no prazo que a Corte entender razoável". 2) Referendo da cautelar concedida pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, na ADI 6347, da Rede, contra o art. 6º-B da Lei 13.979/2020, na redação da MP 928/2020, sobre pedidos de acesso à informação, suspensão dos prazos de resposta nos órgãos ou nas entidades da Administração Pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e o descabimento de recursos contra resposta com fundamento nessa hipótese. Questiona também a possibilidade de reiteração do pedido de acesso à informação no prazo de dez dias após o encerramento do estado de calamidade pública e a exclusividade de apresentação do pedido de acesso à informação por meio de sistema disponível na internet. Estão apensadas as ADIs 6351, da OAB, e 6353, do PSB, todas de relatoria do Min. Alexandre de Moraes. 3) Referendo da negativa de cautelar na ADI 6343 pelo relator, ministro Marco Aurélio, nessa ação da Rede4, contra dispositivos das MPs 926 e 927/2020, relativos à competência legislativa para impor restrições ao transporte intermunicipal condicionadas a evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde, e à recomendação técnica da Anvisa, de autorização do Ministério da Saúde e Ato Conjunto dos Ministros da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura5. Inscreva-se e acompanhe o debate, clique aqui. __________ 1 Amici: CUT, UGT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Força Sindical, Central dos Sindicatos Brasileiros, Nova Central Sindical dos Trabalhadores, Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho - SINAIT. 2 Amici: CUT, UGT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Força Sindical, Central dos Sindicatos Brasileiros, Nova Central Sindical de Trabalhadores. 3 Amici: CUT, UGT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Força Sindical, Central dos Sindicatos Brasileiros e Nova Central Sindical dos Trabalhadores. 4 Amicus: Federação Brasileira de Telecomunicações - FEBRATEL. 5 O STF, julgando a ADI 6341 (relator o ministro Marco Aurélio), confirmou, por unanimidade, que as medidas da MP 926/2020 para o enfrentamento do coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, DF e municípios. A maioria dos ministros aderiu à proposta do ministro Edson Fachin sobre a necessidade de que o art. 3º da Lei 13.979/2020 também seja interpretado de acordo com a Constituição, a fim de deixar claro que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes.
Em 2009, Barack Obama estava radiante diante do púlpito no Parlamento de Gana, em Acra, capital, quando disse: "A África não precisa de homens fortes. Ela precisa de instituições fortes". A mensagem combatia o desmantelamento de instituições importantes motivado por caprichos políticos de governantes que se enxergavam como estando acima das leis e da Constituição. Três anos depois, Daron Acemoglu e James A. Robins publicaram Why Nations Fail (Por que as nações fracassam), no qual apontaram que o destino de uma nação depende, basicamente, das instituições pelas quais ela é governada. A Constituição brasileira de 1988 anteviu isso. O Ministério Público é "instituição permanente" (art. 127), assim como a Defensoria Pública (art. 134). A Advocacia-Geral da União é a "instituição" que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente (art. 131). É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das "instituições" democráticas e conservar o patrimônio público (art. 23, I). O Título V trata "Da Defesa do Estado e das 'Instituições' Democráticas". A essas instituições foram conferidas garantias. Para Paulo Bonavides, garantias institucionais são a "proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza". Constituem "proibições dirigidas ao Legislativo para não ultrapassar na organização do instituto aqueles limites extremos, além dos quais o instituto como tal seria aniquilado ou desnaturado"1. É nesse contexto que surge essa afirmação histórica: "No Direito Privado, o indivíduo pode se comportar com certo 'capricho', embora tal 'capricho' não seja o que deveria ser. Mas, no domínio do Direito Público - Direito Constitucional e Administrativo - o 'capricho' é uma doença terminal"2. A colocação acima compôs a discussão, em 2003, na Suprema Corte de Israel, no caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97), que levou o Primeiro Ministro Ariel Sharon aos Tribunais. A razão? Uma controvertida escolha para o Ministério da Segurança Pública. Tzahi Hanebi havia sido o indicado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas. O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome despertava estilhaçavam o cristal da confiança pública no Ministério, o que terminava gerando obstruções dos populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir atrapalhavam a continuidade do serviço público e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi executar uma agenda com legitimidade. O justice Mishael Cheshin, proferindo o seu voto, arrematou: "Aqueles que exercem autoridade em nome do Estado ou de qualquer outra autoridade pública - no nosso caso, o Primeiro-Ministro e o Ministro da Segurança Pública - devem estar conscientes de que suas questões não são suas. Trata-se de questões que dizem respeito a outros e eles são obrigados a conduzirem-se com justiça e integridade, em estrita conformidade com os princípios da administração pública"3. Ficou vencido. A Suprema Corte de Israel concluiu não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes voluntaristas. No Brasil, sempre que chamado a analisar potencial violação da Constituição em razão da indicação, pelo presidente, de um nome, ou quando demandado a deliberar sobre as consequências de um comportamento desviante dessas autoridades, o STF antecipou que esse tipo de escrutínio judicial é excepcional. No Mandado de Segurança n. 25.579 (Pleno, DJe 24/8/2007), o ministro Joaquim Barbosa, relator, anotou: "Na qualidade de guarda da Constituição, o STF tem a elevada responsabilidade de decidir acerca da juridicidade da ação dos demais Poderes do Estado. No exercício desse mister, deve a Corte ter sempre em perspectiva a regra de auto-contenção que lhe impede de invadir a esfera reservada à decisão política dos dois outros Poderes, bem como o dever de não se demitir do importantíssimo encargo que a Constituição lhe atribui de garantir o acesso à jurisdição de todos aqueles cujos direitos individuais tenham sido lesados ou se achem ameaçados de lesão". No caso acima, a Corte definiu que o membro do Congresso que se licencia do mandato para investir-se no cargo de ministro de Estado não perde os laços com o Parlamento (art. 56, I), devendo seguir observando as vedações e incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como as exigências ético-jurídicas que a Constituição (art. 55, § 1º) e o que os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como elementos caracterizadores do decoro parlamentar4. Noutra oportunidade, a Corte definiu que "os ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, c; lei 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/1992)". O Supremo também precisou definir se a nomeação de um secretário de Estado irmão do governador que o nomeou violaria a posição da Corte contra o nepotismo (Súmula Vinculante nº 13). Julgando a reclamação 6650 MC-AgR (Min. Ellen Gracie, Pleno, DJe 21/11/2008), a Corte afastou a aplicação da citada súmula. Não custa recordar o Mandado de Segurança n. 34.070 (Min. Gilmar Mendes), que questionou o ato de nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de ministro chefe da Casa Civil. O relator, ministro Gilmar Mendes, registrou: "Nenhum Chefe do Poder Executivo, em qualquer de suas esferas, é dono da condução dos destinos do país; na verdade, ostenta papel de simples mandatário da vontade popular, a qual deve ser seguida em consonância com os princípios constitucionais explícitos e implícitos, entre eles a probidade e a moralidade no trato do interesse público 'lato sensu'". Esse racional esteve presente na decisão da Suprema Corte de Israel em "Women's Lobby v. The Minister of Labor and Welfare, (HCJ 2671/98)". Ficou registrado: "Ao agir no domínio do direito público, a autoridade investida do poder de nomeação opera na qualidade de administrador público. Assim como um administrador fiduciário não possui nada próprio, também a autoridade que nomeia não possui nada dela. Deve conduzir-se à maneira do administrador: agir com integridade e equidade, considerando apenas fatores relevantes, atuando com razoabilidade, igualdade e sem discriminação"5. No caso brasileiro, o ministro Gilmar Mendes pontuou: "O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da 'res publica'". Então, arrematou: "o argumento do desvio de finalidade é perfeitamente aplicável para demonstrar a nulidade da nomeação de pessoa criminalmente implicada, quando prepondera a finalidade de conferir-lhe foro privilegiado". Noutra oportunidade, julgando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 388, de relatoria do ministro Gilmar Mendes (DJe 1º/8/2016), a Suprema Corte estabeleceu a interpretação de que membros do Ministério Público não podem ocupar cargos públicos fora do âmbito da instituição, salvo o de professor e funções de magistério (art. 128, § 5º, II, "d", da CF). Derrubou-se a resolução 72/2011 do Conselho Nacional do Ministério Público. Eis a ordem: "Outrossim, determinada a exoneração dos ocupantes de cargos em desconformidade com a interpretação fixada, no prazo de até vinte dias após a publicação da ata deste julgamento". O então Ministro da Justiça caiu. A exoneração de um Ministro de Estado pelo fato de a sua nomeação violar a Constituição encontra a companhia da Suprema Corte de Israel. No citado "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General (2003)", o justice Eliezer Rivlin, relator, registrou em seu voto-vencedor: "Tanto a decisão do Primeiro-Ministro de nomear uma pessoa e sua decisão de não exonerar um indicado ao seu gabinete estão sujeitas a padrões de razoabilidade, integridade, proporcionalidade, boa-fé e ausência de arbitrariedade ou discriminação"6. No Brasil, o presidente da República está constitucionalmente vinculado aos princípios constitucionais da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). Indo além, segundo o art. 78, o presidente e o vice-presidente tomarão posse em sessão do Congresso, prestando o compromisso de "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". Nesse sentido, na Reclamação n. 29.508, de relatoria da ministra Cármen Lúcia (DJe 1º/2/2018), constou: "é bem sabido que não compete ao Poder Judiciário o exame do mérito administrativo em respeito ao Princípio da separação dos Poderes. Este mandamento, no entanto, não é absoluto em seu conteúdo e deverá o juiz agir sempre que a conduta praticada for ilegal, mais grave ainda, inconstitucional, em se tratando de lesão a preceito constitucional autoaplicável". O raciocínio repete a linha da excepcionalidade. Em 2016, a Suprema Corte de Israel apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset - Parlamento israelense -, Rabbi Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980, dentre outras coisas. O justice Salim Joubran anotou: "a intervenção deste Tribunal, na discricionariedade das pessoas autorizadas a remover um Ministro ou Vice-Ministro do cargo, deve ser limitada às situações em que a gravidade da infração não pode ser conciliada com a continuidade do serviço público"7. A verdade é que o poder que chefes do Executivo têm hoje não é nem de longe o que um dia tiveram. Esses governantes cada vez mais sofrem controles variados e não podem usar a caneta que lhe demos para fazer estripulias por aí. Moisés Naím, especialista no tema, chega a ser peremptório: "O poder está em degradação". Para ele, "no século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder". Naím explica que os governantes estão cada vez com mais dificuldades de exercer o poder que sonhavam ter. "De Chicago a Milão e de Nova Délhi a Brasília, os chefes das máquinas políticas irão prontamente admitir que têm bem menor capacidade de tomar as decisões unilaterais que seus predecessores davam como certas"8. Moisés Naím tem razão. São inúmeros os instrumentos de controle. No Brasil, eles decorrem da Constituição e chamam o povo a participar desse tipo de obstrução republicana quando partes legitimadas levam ao Judiciário a discussão sobre temas tais como a qualidade dos nomes apresentados à comunidade, pelo Presidente, para ocupar postos de chefia executando uma agenda de políticas públicas. Destoa da ideia de estado constitucional supor que o chefe do Poder Executivo é absoluto em suas escolhas. Ele está submetido à Constituição. Entendendo ter havido uma escolha que compromete a confiança pública no governo ou mesmo a capacidade do indicado executar uma agenda, parece natural que alguém levante a mão no meio da multidão e diga: "Talvez devêssemos discutir melhor essa indicação". Isso engrandece o espaço público quanto a um assunto genuinamente republicano. Indo além, não parece sábio argumentar que as altas autoridades da Administração Pública Federal não se submetem à moralidade administrativa. Basta ler a apresentação do Código da Alta Administração Federal (CCAAF): "A Constituição Federal de 1988 consagrou, no seu artigo 37, o princípio da moralidade como um daqueles a que todos os Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, devem obedecer no exercício de suas atividades administrativas". Eis o arremate: "Tendo a Constituição positivado, vale dizer, juridicizado a ética, esta deixou de ser um conjunto de normas de conduta voltadas para cada um em particular, pois no centro das considerações morais da conduta humana está o eu, conforme lição de Hannah Arendt. Passou, assim, a ética a ter status jurídico e interessar diretamente ao Estado, visto que ele está no centro das considerações jurídicas da conduta humana". Bela apresentação. Foi escrita pelo jurista Américo Lacombe, presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Segundo o art. 3º do Código, "no exercício de suas funções, as autoridades públicas deverão pautar-se pelos padrões da ética, sobretudo no que diz respeito à integridade, à moralidade, à clareza de posições e ao decoro, com vistas a motivar o respeito e a confiança do público em geral". É claro que não se deve vandalizar as indicações do Poder Executivo, mas é preciso constitucionalizá-las. Tanto que o Ministério Público Federal - exercendo as funções institucionais que a Constituição lhe conferiu (art. 129, IX) - recomendou no passado a troca de todos os vice-presidentes da Caixa Econômica Federal, invocando o artigo 34, o princípio republicano, o princípio da impessoalidade da Administração Pública, o art. 173, 'caput' e §1º, II, o artigo 170, IV e o artigo 219, todos da Constituição. Recomendou-se a "melhoria no processo de seleção de altos executivos" e a "troca imediata dos vice-presidentes"9. O chefe do Poder Executivo atendeu a recomendação. A postura de atuar em harmonia com determinadas recomendações do Ministério Público não é diversa da que se vê em outros países do mundo cuja chaga da corrupção tem gangrenado uma República surrada pela desigualdade. É o caso da África do Sul. No país, a Suprema Corte de Recursos, apreciando o caso "SABC v DA (393/2015) [2015] ZASCA 156", em outubro de 2015, contando com a Corruption Watch como amicus curiae, definiu que as recomendações da "Public Protector" - equivalente ao nosso Ministério Público - tem a mesma eficácia de uma decisão judicial. Logo, toda e qualquer autoridade tem que cumprir a recomendação. Caso entenda-a injusta, é preciso ir ao Judiciário desconstituí-la, numa corrida cara e exaustiva. Por isso, a controvérsia judicial brasileira instalada em certas indicações do presidente da República não é mera artilharia inconsequente de uma batalha política de baixa qualidade. É bom para o país discutir, em sua Suprema Corte, questões ligadas ao princípio republicano, à confiança pública no governo, à moralidade administrativa, ao controle dos atos do Executivo e às condições necessárias, numa democracia contemporânea, para se conseguir uma boa-governança. O século XXI não é o século do Executivo, nem do Legislativo ou do Judiciário. São as instituições os personagens mais influentes do nosso tempo. Isso, para que nunca mais tenhamos nossas vidas inteiramente entregues aos caprichos dos homens. Devem, os destinos de um povo, ser assegurados por meio de suas liberdades e pela virtude de suas instituições. Qualquer presidente da República precisa ter em mente que não há governo fora da Constituição. Simplesmente não há. __________ 1 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 537. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 541. 2 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Within the area of private law the individual can behave with a measure of the "capriche", though such 'capriche' is not what it used to be, nor should it be. But in the realm of public law - constitutional and administrative law - caprice is a terminal illness". 3 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Those exercising authority on behalf of the state or any other public authority - in our case, the Prime Minister and the Minister of Public Security - must constantly be aware that their affairs are not their own. They are dealing with matters that concern others and are obligated to conduct themselves with fairness and integrity, in strict compliance with the principles of public administration". 4 O Ministro de Estado, que era parlamentar, havia sido acusado - e constou dos autos - de haver usado de sua influência para levantar fundos junto a bancos "com a finalidade de pagar parlamentares para que, na Câmara dos Deputados, votassem projetos em favor do Governo" (Representação 38/2005). 5 Consta do parágrafo 24 do acórdão: "When acting in the domain of public law, the appointing authority operates in the capacity of a public trustee. Just as a trustee possesses nothing of his own, so too, the appointing authority possesses nothing of its own. It must conduct itself in the manner of the trustee: acting with integrity and fairness, considering only relevant factors, acting with reasonableness, equality, and without discrimination". 6 No parágrafo 17 do acórdão consta: "Therefore, both the Prime Minister's decision to appoint a person and his decision not to remove one from office are subject to the accepted standards of reasonableness, integrity, proportionality, good faith, and the absence of arbitrariness or discrimination". 7 Consta do parágrafo 28 do voto-vencedor no acórdão: "(...) the boundaries of the Court's intervention in appointments is limited to those instances in which an appointment might seriously harm the standing of the institutions of government and the public's confidence in them". 8 Naím, Moisés. O fim do poder: nas salas da diretoria ou nos campos de batalha, em Igrejas ou Estados, por que estar no poder não é mais o que costumava ser?/ Moisés Naím; tradução Luis Reyes Gil. - São Paulo: LeYa, 2013. 9 Recomendação 87/2017, do Ministério Público Federal (Força-Tarefa Greenfield).
É como se uma corrente prendesse o Brasil, e alguma força desconhecida, sempre que visse o país andar um degrau à frente, o puxasse dois passos para trás. O Partido da República (PR) ajuizou, em 30/4/2015, no Supremo Tribunal Federal, a ação declaratória de constitucionalidade n. 36, visando converter em absoluta a presunção relativa de constitucionalidade do § 3º do art. 58 da lei 9.649/98, cotejado com o art. 39 da Constituição Federal (na redação da EC n. 18/98)1. Eis o teor do dispositivo: "Os empregados dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são regidos pela legislação trabalhista, sendo vedada qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta"2. A Procuradoria-Geral da República, então, ajuizou a ação direta de inconstitucionalidade n. 53673 e a arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 3674, trazendo à tona a questão do regime jurídico dos empregados desses conselhos, se são regidos pelo regime jurídico único dos servidores públicos ou pela Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT. Anunciando seu voto no último dia 10/4, sexta-feira, no julgamento virtual da lista n. 103-2020, a relatora de todas essas ações, a ministra Cármen Lúcia, julgou improcedente a ADC 36 e procedentes a ADI 5367 e a ADPF 367. A relatora reconheceu o regime jurídico único a reger esses empregados. O julgamento se encerrará dia 17/4/2020 e não há ainda qualquer outro voto além do da ministra Cármen Lúcia. A resposta quanto ao regime jurídico dos empregados dos Conselhos Profissionais se inicia no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), da Constituição, especialmente no seu art. 5º, que assegura a liberdade de exercício profissional (XIII: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer"). Ou seja, o nosso modelo de regulação dos profissionais liberais é de "autorregulação", reclamando autonomia e independência quanto ao Estado. As autarquias, diversamente, estão no inciso XVII do art. 37, no Capítulo VII (Da Administração Pública), voltado à "administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios". Consta: "a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público"5. Essa distinção é fundamental, porque a base da fundamentação da posição que entende serem os empregados dos Conselhos Profissionais regidos pelo regime jurídico único, e não pela CLT, parte da assunção de que esses Conselhos são "autarquias". Ocorre que não se encontra neles nada que, substancialmente, os converta em autarquias puras e simples. Tanto que a natureza sui generis jamais foi refutada pelo STF. Um exemplo que ilustra o todo é o trecho de voto recente do ministro Alexandre de Moraes: "Há a possibilidade de afastamento de algumas regras que se impõem ao Poder Público em geral e, no caso específico, à Fazenda Pública". E o arremate: "Veja-se, por exemplo, a discussão quanto à possibilidade de contratação de empregados pelo regime celetista, pendente de análise na ADC 36, na ADI 5.367 e na ADPF 367, todas de relatoria da Minª. CÁRMEN LÚCIA"6. De fato, o STF já o fez quanto à OAB7, em vista da peculiaridade de essa entidade exercer função constitucionalmente qualificada, além de suas finalidades institucionais na defesa dos interesses da cidadania e da sociedade civil. Prosseguindo, o ministro Alexandre de Moraes, em manifestação majoritária do pleno do STF, estabelece as distinções que singularizam esses Conselhos: "Os Conselhos profissionais gozam de ampla autonomia e independência; eles não estão submetidos ao controle institucional, político, administrativo de um ministério ou da Presidência da República, ou seja, eles não estão na estrutura orgânica do Estado. Seus recursos financeiros não estão previstos, como salientou o Ministro MARCO AURÉLIO, na lei orçamentária. Eles não têm e não recebem ingerência do Estado nos aspectos mais relevantes da sua estrutura - indicação de seus dirigentes, aprovação e fiscalização da sua própria programação financeira ou mesmo a existência, podemos chamar, de um orçamento interno. Eles não se submetem, como todos os demais órgãos do Estado, à aprovação de sua programação orçamentária, mediante lei orçamentária, pelo Congresso Nacional. Não há nenhuma ingerência na fixação de despesas de pessoal e de administração. Os recursos dessas entidades são provenientes de contribuições parafiscais pagas pela respectiva categoria. Não são destinados recursos orçamentários da União, suas despesas, como disse, não são fixadas pela lei orçamentária anual. Há, então, essa natureza sui generis, que, por mais que se encaixe, como fez o Supremo Tribunal Federal, anteriormente, na categoria de autarquia, seria uma autarquia sui generis, o que não é novidade no sistema administrativo brasileiro: as agências reguladoras também foram reconhecidas como autarquias sui generis. Aqui, no caso dos Conselhos profissionais, teríamos uma espécie mais híbrida ainda8." O STF concluiu: "O caráter sui generis, portanto, híbrido, dessas entidades exige uma cautela no exame de todas as implicações decorrentes da sua caracterização a priori como pessoa jurídica de direito público"9. Tal conclusão foi reafirmada no RE n. 938.837 (rel. p/ac. ministro Marco Aurélio, DJe 25/9/2017), cujo trecho da ementa diz o seguinte: "EXECUÇÃO - CONSELHOS - ÓRGÃOS DE FISCALIZAÇÃO - DÉBITOS - DECISÃO JUDICIAL. A execução de débito de Conselho de Fiscalização não se submete ao sistema de precatório". Nesse caso, foi fixada a Tese do Tema n. 877: "Os pagamentos devidos, em razão de pronunciamento judicial, pelos Conselhos de Fiscalização não se submetem ao regime de precatórios"10. O fato é que o julgamento virtual da ADC 36, da ADI 5367 e da ADPF 367, pelo pleno do STF, precisa tomar como base o fato de que o modelo brasileiro dos Conselhos Profissionais é inteiramente compatível com a Constituição, pois, primeiramente, é respeitoso ao art. 37, II, que diz: "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração". Mas isso não os converte numa autarquia a justificar o reconhecimento de seus empregados como servidores públicos. Um dos elementos centrais às autarquias, mas faltante aos Conselhos Profissionais, é a supervisão ministerial. O art. 5º, I, do decreto-lei 200/67 conceitua autarquia11. O parágrafo único do art. 4º diz: "vinculam-se ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade". Esse controle se dá pelos Ministérios sobre as entidades da Administração Indireta enquadradas na sua área de competência. Segundo o art. 19, "todo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro de Estado competente, excetuados os órgãos mencionados no art. 32, que estão sujeitos à supervisão direta do Presidente da República". A supervisão ministerial, à luz do decreto-lei 200/67, é feita pelos controles político (art. 26, p. ú, 'a', 'b', 'i'), institucional (art. 26, p. ú, 'c'), administrativo (art. 26, p. ú, 'c', 'h', 'i') e financeiro (art. 26, p. ú, 'c', 'd', 'e', 'f', 'g')12. Mas o secreto-lei 2.299/96, no art. 3º, revogou o parágrafo único do art. 1º do decreto-lei 968/69, que dispunha sobre a vinculação das entidades de fiscalização do exercício das profissões liberais pelo Ministério do Trabalho13. Há mais distinções14. O regime jurídico estatutário, aplicável aos servidores da Administração direta e autárquica, se caracteriza pela (i) criação de cargos; (ii) fixação de vencimentos por meio de lei (arts. 37, X, 39, 61, §1º, II, 'a'); (iii) valores dos subsídios dos cargos públicos publicados anualmente (art. 39, § 6º); (iv) prévia dotação orçamentária para a criação de cargos, a concessão de vantagens, o aumento de remuneração e contratação de pessoal e qualquer título; e (v) autorização específica na LDO para a Administração Direta e autárquica (art. 169, § 1º). O art. 165, §5º da Constituição traz a universalidade do orçamento: "o orçamento deve conter todas as receitas e despesas da União, de qualquer natureza, procedência ou destino, inclusive a dos fundos, dos empréstimos e dos subsídios". O inciso I estabelece que a Lei Orçamentária Anual compreenderá o orçamento fiscal das entidades da administração direta e indireta, inclusive os da seguridade social das autarquias15. Ocorre que os Conselhos não enviam a proposta do seu orçamento-programa e de sua programação financeira para aprovação de qualquer Ministro16. Também não existe lei criando cargos públicos com denominação própria. As remunerações dos empregados não contam com previsão legal e não existe publicação anual de seus valores. As remunerações não são pagas pelos cofres públicos, pois inexiste qualquer dotação orçamentária no orçamento da União para o custeio da remuneração dos empregados desses Conselhos. O § 7º do art. 39 da Constituição prevê que lei deverá disciplinar a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com as despesas correntes das autarquias "para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de adicional ou prêmio de produtividade", o que não se aplica aos Conselhos, já que os seus recursos orçamentários não se vinculam ao orçamento da União, e, além disso, a União não destina verbas para programas aos servidores destes Conselhos, nem para remuneração. O art. 169, §§1º e 2º, por sua vez, dispõe que a criação de cargos, empregos ou funções públicas, concessão de vantagens, aumento de remuneração e a contratação de pessoal a qualquer título pelos órgãos e entidades da Administração Direta ou Indireta só poderão ser feitas se houver prévia dotação orçamentária suficiente para cobrir os custos e, ainda, "se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e sociedades de economia mista". Ou seja, é um modelo orçamentariamente sustentável, uma vez que é financiado fora do orçamento, com contribuições parafiscais dos interessados. Não há emendas, não há lei orçamentária, não há verbas parlamentares, não há rubrica no erário. E isso, de forma isonômica, pois permite a variação da contribuição e do salário, à luz das peculiaridades regionais, realizando um dos objetivos fundamentais da República, no art. 3º, III, que é o de reduzir as desigualdades regionais. Há muitas outras distinções. Segundo o caput do art. 131, cabe à Advocacia-Geral da União, diretamente ou através de órgão vinculado, representar a União, judicial e extrajudicialmente, "cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo"17. Mas no caso dos Conselhos Profissionais, além de não possuírem órgão jurídico vinculado à AGU, fica sob a responsabilidade deles arcar, com seus próprios recursos, com os custos necessários - materiais e humanos -, para que o seu setor jurídico realize a representação judicial e extrajudicial destas entidades. Os seus departamentos jurídicos não passaram a integrar a Procuradoria-Geral Federal nem foram mantidos como Procuradorias Federais. Também não são beneficiários da isenção do pagamento de custas na Justiça Federal (art. 4º, § ú da lei 9.289/96). Por fim, segundo o art. 40, aos servidores titulares de cargos das autarquias é assegurado o regime de previdência de caráter contributivo e solidário (RPPS), pela contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, ao passo que aos servidores ocupantes de emprego público aplica-se o RGPS (§13º)18. Aos titulares de cargos públicos das autarquias é assegurado o regime de previdência de caráter contributivo, garantindo-se o recebimento dos proventos na forma do art. 40, e seus parágrafos. Tanto as contribuições feitas pelos servidores das autarquias, como as despesas com encargos do RPPS para estes servidores, devem integrar o Orçamento da Seguridade Social da União (art. 165, §5º, III). Mas os Conselhos são excluídos do orçamento de receitas e despesas da União da Seguridade Social, de modo que nas LOA's não existe previsão para pagamento de aposentadorias e demais benefícios previdenciários para o pessoal das entidades de fiscalização profissional, consoante o RPPS dos entes autárquicos19. E quanto à irredutibilidade dos vencimentos (art. 37, XV)? E à estabilidade (art. 41)? E às indenizações, gratificações e adicionais previstos na lei 8.112/90? As distinções são evidentes. Não à toa, o ministro Maurício Corrêa concluiu seu voto numa dada oportunidade de maneira tão contundente: "Seria o cúmulo do absurdo que pretendesse o Constituinte, ao votar o artigo 39 da Carta Política, o que não fez, ter requerido dizer que tal regime e planos de carreira para "os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas" - porque assim é o que diz literalmente a norma - tivesse intuído também incluir os empregados de Conselhos Profissionais, sob a alcunha de servidores públicos, como beneficiários da infortunada classificação de autarquia especial, que na lei ordinária fez-se dimensionar"20. É preciso se considerar ainda que os Conselhos Profissionais são potências públicas voltadas à representação de interesses e à defesa de direitos das atividades profissionais, colocando-se muitas vezes em posições antagônicas às medidas de governo adotadas pelo Poder Executivo da União, exatamente em razão da sua autonomia. A lei de criação desses Conselhos obriga a inscrição e o pagamento de contribuição parafiscal, garantindo a existência de apenas uma por categoria. Há um interesse público a ser perseguido, que é o risco potencial de que o exercício da profissão cause prejuízos à sociedade e ao bom nome da profissão. Recentemente, o Colégio de Presidentes, última instância do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), julgou o processo ético-disciplinar contra a enfermeira ré por homicídio qualificado na morte do enteado Bernardo Boldrini, assassinado em abril de 2014, aos 11 anos. A enfermeira foi cassada por 30 anos. Há quase duas décadas, foi o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea) que cassou o registro de engenheiro de um ex-deputado, dono da construtora Sersan, impedindo-o de acompanhar obras de engenharia no País. A empresa foi responsável pela construção do edifício Palace II que desabou em fevereiro de 1998, na Barra da Tijuca, Rio, provocando a morte de oito pessoas. Ele portanto empodera a sociedade civil. Como anotou o ministro Néri da Silveira, em julgamento no pleno do STF, "Todos esses Conselhos, além de exercerem fiscalização, são também órgãos de defesa das atividades profissionais respectivas"21. Precisam, exatamente por isso, de uma liberdade que reclama que os Conselhos Profissionais não sejam atirados nos braços do Estado. Isso comprometerá o necessário papel por eles desempenhado de potência pública aglutinadora da sociedade civil em temas afetos às respectivas profissões regulamentadas22. No modelo que soubemos montar, um grupo de colegas se reúne, com celeridade, para, de maneira equidistante, apreciar uma queixa contra um igual, e, de modo civilizado, afastá-lo de suas atividades, em proveito da integridade da profissão, e da proteção da comunidade. Há muitas outras hipóteses que reafirmam a necessária autonomia desses Conselhos Profissionais. Em 24/4/2019, a ministra Cármen Lúcia determinou a suspensão do trâmite de ação popular na Justiça Federal do Distrito Federal que buscava sustar os efeitos da resolução 1/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). A Resolução estabelecia normas de atuação para os psicólogos em relação à questão de orientação sexual e veda a chamada "cura gay"23. Atuou o Conselho Federal de Psicologia. Essa autonomia existiria caso o Conselho estivesse vinculado a um Ministério do Poder Executivo? Noutra oportunidade, o Conselho Federal de Medicina, pelo seu presidente, questionou o programa Mais Médicos, do Poder Executivo da União. Isso ocorreu na audiência pública sobre o tema realizada pelo Supremo Tribunal Federal24, em mais uma demonstração de necessária autonomia, que será comprometida a depender do que defina o Supremo Tribunal Federal no julgamento virtual das referidas ADC 36, ADI 5367 e ADPF 367. Ainda o CFM, ao lado do Conselho Federal de Psicologia, participou da audiência pública no STF sobre a interrupção voluntária da gestação25, levando, ambos, seus aportes ao equacionamento de um tema impregnado de desacordos morais e que exatamente por isso reclama a participação de potências públicas qualificadas na sociedade civil26. Iniciativas como essas, muitas vezes confrontadoras do próprio Poder Executivo da União, são mais condizentes com a exortação à liberdade emanada do inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal e dos outros incisos voltados à liberdade de associação (XVII, XVIII, XIX, XX e XXI), do que com o inciso XIX do art. 37 que dispõe sobre autarquia. Não custa recordar que os empregados dos Conselhos Profissionais exercem atividades cotidianas, preparatórias, instrutórias. O poder de polícia é exercido pelos conselheiros, que desfrutam um cargo honorífico. O modelo combina, acima de tudo, liberdade com responsabilidade, pois é controlável pela lei, pelo Tribunal de Contas da União e pelo Poder Judiciário. Daí se concluir que a Constituição ampara o §3º do art. 58 da lei 9.649/98, refutando-se a aplicabilidade do regime jurídico único (lei 8.112/90) aos empregados dos Conselhos Profissionais27, que são em verdade regidos pela legislação trabalhista. Conclusão que é a mais harmônica com a Constituição para prevalecer no julgamento virtual que ora ocorre no STF, especialmente nos autos da ADC 36, que cuida especificamente desse ponto. __________ 1 CF: "Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes". 2 Em 22/9/99, o STF julgou prejudicada a ADI 1717 MC no ponto em que impugnava o mesmo §3º do art. 58 da lei 9.649/98, tendo declarado a inconstitucionalidade do caput e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do art. 58. Derrubou-se previsão que qualificava os Conselhos como de direito privado. O STF entendeu-os como autarquias, sem, contudo, esgotar seus elementos constitutivos. O § 3º não teve sua constitucionalidade analisada. Eis: "EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao §3º do atr. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, e 8º do mesmo art. 58. (...) 3. Decisão unânime. 6. Desta forma, em relação ao §3º do art. 58 da lei 9.649/98, vê-se que não houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca de sua constitucionalidade, de modo que o inteiro teor do parágrafo 3º do art. 58 mantém-se vigente e incólume". O entendimento adotado na ADI 1717 já havia sido firmado na ADI 641-0 (rel. p. ac. Min. Min. Marco Aurélio, 1991), quando a Corte decidiu não possuírem os conselhos legitimidade para propor ADI. 3 A ADI 5367 ataca (i) o art. 58, § 3º, da Lei 9.649/98; (ii) o art. 31 da lei 8.042/90 (cria os Conselhos Federal e Regionais de Economistas Domésticos), e (iii) o art. 41 da lei 12.378/2010 (regulamenta o exercício da Arquitetura e do Urbanismo, cria o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e dá outras providências). São amici o Sindicato dos Empregados em Conselhos e Ordens de Fiscalização Profissional e Entidades Coligadas e Afins do Distrito Federal (SINDECOF), o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) e o Conselho Federal de Contabilidade (CFC). 4 A ADPF 367, ajuizada pela PGR, pleiteia a não-recepção, pela CF, do (i) art. 35 da lei 5.766/71; (ii) art. 19 da lei 5.905/73; (iii) art. 20 da lei 6.316/75; (iv) art. 22 da lei 6.530/78; (v) art. 22 da lei 6.583/78; (vi) art. 28 da lei 6.684/79. São amici o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) e o COREN/RJ. 5 Redação da EC 19/98. 6 RE 938.837 (rel. p/ac. Min. Marco Aurélio, DJe 25/9/2017), página 32 do acórdão. 7 ADI 3026, Min. Eros Grau, DJ 29/9/2006: "(...) 1. A lei 8.906, artigo 79, § 1º, possibilitou aos 'servidores' da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como 'autarquias especiais' para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas 'agências'. 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. (...) 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente. (...)". 8 RE 938.837 (rel. p/ac. Min. Marco Aurélio, DJe 25/9/2017), página 33 do acórdão. 9 Eis a ementa da ADI 4697 (Min. Edson Fachin, DJe 30/3/2017): "1. A jurisprudência desta Corte se fixou no sentido de serem os conselhos profissionais autarquias de índole federal. Precedentes: MS 10.272, de relatoria do Ministro Victor Nunes Leal, Tribunal Pleno, DJ 11.07.1963; e MS 22.643, de relatoria do Ministro Moreira Alves, DJ 04.12.1998. 2. Tendo em conta que a fiscalização dos conselhos profissionais envolve o exercício de poder de polícia, de tributar e de punir, estabeleceu-se ser a anuidade cobrada por essas autarquias um tributo, sujeitando-se, por óbvio, ao regime tributário pátrio. Precedente: ADI 1.717, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 28.03.2003. 3. O entendimento iterativo do STF é na direção de as anuidades cobradas pelos conselhos profissionais caracterizarem-se como tributos da espécie "contribuições de interesse das categorias profissionais", nos termos do art. 149 da Constituição da República. (...)". Ainda: RE 611.947 (Min. Ricardo Lewandowski, DJe 6/9/2011); AI 791.759 (Min. Gilmar Mendes, DJe 2/8/2011); RE 539.224 (Min. Luiz Fux, 1ª T, 22/5/2012). 10 O mesmo na Rcl 29.178 AgR (Min. Alexandre de Moraes, 29/9/2018, 1ª Turma): "(...) CONSELHO PROFISSIONAL. PEDIDO DE CONVERSÃO DO REGIME CELETISTA PARA O ESTATUTÁRIO. VIOLAÇÃO À ADI 2.652. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE ESTRITA ADERÊNCIA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO." 11 "Art. 5º. Para os fins desta lei, considera-se: I - Autarquia - o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada". 12 "Art. 26. No que se refere à Administração Indireta, a supervisão ministerial visará a assegurar, essencialmente: I - A realização dos objetivos fixados nos atos de constituição da entidade. II - A harmonia com a política e a programação do Govêrno no setor de atuação da entidade. III - A eficiência administrativa. IV - A autonomia administrativa, operacional e financeira da entidade. Parágrafo único. A supervisão exercer-se-á mediante adoção das seguintes medidas, além de outras estabelecidas em regulamento: a) indicação ou nomeação pelo Ministro ou, se fôr o caso, eleição dos dirigentes da entidade, conforme sua natureza jurídica; b) designação, pelo Ministro dos representantes do Govêrno Federal nas Assembléias Gerais e órgãos de administração ou contrôle da entidade; c) recebimento sistemático de relatórios, boletins, balancetes, balanços e informações que permitam ao Ministro acompanhar as atividades da entidade e a execução do orçamento-programa e da programação financeira aprovados pelo Govêrno; d) aprovação anual da proposta de orçamento-programa e da programação financeira da entidade, no caso de autarquia; e) aprovação de contas, relatórios e balanços, diretamente ou através dos representantes ministeriais nas Assembléias e órgãos de administração ou contrôle; f) fixação, em níveis compatíveis com os critérios de operação econômica, das despesas de pessoal e de administração; g) fixação de critérios para gastos de publicidade, divulgação e relações públicas; h) realização de auditoria e avaliação periódica de rendimento e produtividade; i) intervenção, por motivo de interêsse público". 13 Houve a revogação parcial do art. 5º da lei 6.530/78, suprimindo-se, do texto, a expressão "vinculada ao Ministério do Trabalho" (lex posterior derrogat priori - art. 2º, §1º, da Lei de Introdução ao Código Civil). 14 No Parecer/CONJUR/MTE 094/2001, a AGU defendeu a natureza autárquica sui generis desses Conselhos, além da constitucionalidade do §3º do art. 58 da Lei 9.649/98 e a inaplicabilidade do regime jurídico único aos servidores dos conselhos profissionais. RMS 20.976 (Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16/2/90): "(...) enquanto se mantenha a autarquia profissional no exercício regular de suas atividades finalísticas, carece o Ministro do Trabalho de competência tutelar, seja para decidir, em grau de recurso hierárquico, posto que impróprio, sobre as decisões concretas da entidade corporativa, seja para dar-lhe instruções normativas sobre como resolver determinada questão jurídica de sua alçada. (...) (...) Vigência do §3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, que atribuiu o regime celetista aos servidores dos conselhos. Violação da Súmula Vinculante nº 10, do Supremo Tribunal Federal pelo acórdão proferido no julgamento do REsp nº 507.536, pelo STJ. Manifestações do Advogado-Geral da União sobre a natureza autárquica sui generis dos conselhos profissionais. (...)". 15 Segundo o art. 108 da lei 4.320/64 (Normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do DF), os orçamentos das autarquias federais se vinculam ao orçamento da União, ficando nele incluídos ou como receita, na hipótese de previsão de saldo positivo no orçamento-programa da autarquia (totais das receitas maior do que os totais das despesas), ou como subvenção econômica, em caso de previsão de saldo negativo (totais das receitas maior do que os totais das despesas). A lei 4.320/64, , estabelece que os orçamentos das autarquias devem ser aprovados por decreto do Executivo, ou pelo Legislativo, caso haja disposição legal nesse sentido. 16 Segundo o art. 19 da lei 5.905/73, os Conselhos Federal e Regional de Enfermagem terão tabela própria de pessoal. Todavia, não se diz que tais tabelas sejam construídas nos moldes do serviço público federal. 17 A LC 73/93 (Lei Orgânica da AGU) estabelece, no art. 2º, § 3º, que "as Procuradoras e Departamentos Jurídicos das autarquias e fundações públicas são órgãos vinculados à Advocacia-Geral da União". Já a lei 10.480/2002, tendo instituído a Procuradoria-Geral Federal, em seu art. 10 diz lhe competir "a representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais, as respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos, a apuração da liquidez e certeza dos créditos, de qualquer natureza, inerentes às suas atividades, inscrevendo-os em dívida ativa, para fins de cobrança amigável ou judicial". O § 2º dispõe: "integram a Procuradoria-Geral Federal as Procuradorias, Departamentos Jurídicos, Consultorias Jurídicas ou Assessorias Jurídicas das autarquias e fundações federais, como órgãos de execução desta, mantidas as suas atuais competências". O § 3º: "serão mantidos, como Procuradorias Federais especializadas, os órgãos jurídicos de autarquias e fundações de âmbito nacional". 18 CF: "Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. (Redação da EC 41/2003) (.) § 13 - Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social. (EC 20/98)". 19 CF: "Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: § 5º - A lei orçamentária anual compreenderá: (...) III - o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público". Lei 12.919/2013, "Art. 36. O Orçamento da Seguridade Social compreenderá as dotações destinadas a atender às ações de saúde, previdência e assistência social, obedecerá ao disposto no inciso XI do caput do art. 167 e nos arts. 194, 195, 196, 199, 200, 201, 203, 204 e 212, § 4º, da Constituição Federal e contará, entre outros, com recursos provenientes: (...) II - da contribuição para o plano de seguridade social do servidor, que será utilizada para despesas com encargos previdenciários da União;". 20 MS 21.797 (Min. Carlos Velloso, DJ 18/5/2001), página 24 do acórdão. 21 Página 11 do acórdão. ADI 641 MC (rel. p/ac. Min. Marco Aurélio, DJ 12/3/93). Dai a ilegitimidade 'ad causam' do Conselho Federal de Farmácia e de todos os demais que tenham idêntica personalidade jurídica - de direito público. 22 A Constituição traz um subsistema voltado às associações profissionais privadas: (i) "Art. 5º, XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; (ii) Art. 5º, XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; (iii) Art. 5º, XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; (iv) Art. 8º. É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: (...)". São comandos que exortam à liberdade. 23 A decisão liminar, proferida na RCL 31.818, mantém a eficácia plena da Resolução nº 1/99 do CFP. 24 Questionamento da Medida Provisória 621/2013 (Programa Mais Médicos). ADIs 5035 e 5037. 25 ADPF 442: recepção dos arts. 124 e 126 do Código Penal, que instituem a criminalização da interrupção voluntária da gravidez (aborto), pela ordem normativa constitucional vigente. 26 O Conselho Federal de Psicologia participou, como amicus curiae, do julgamento da ADI 4275 (rel. p. ac. Min. Edson Fachin, DJe 7/3/2019), cujo desfecho pode ser resumido pela transcrição do seguinte trecho da ementa: "A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade". 27 A lei 8.112/90 não revogou a norma especial do decreto-lei 968/69.
terça-feira, 31 de março de 2020

A judicialização da crise no STF

Nem sempre a intensidade de uma grave crise é perfeitamente identificada logo no seu início. Apenas quando ela se vai é que, do rastro desolador que deixa, é possível mensurar a sua força destrutiva. Nesse momento, não haverá mais qualquer espaço para arrependimentos. Será simplesmente tarde demais. Supremas Cortes também enfrentam crises. A de Israel, por exemplo, está habituada a interferir em operações militares do país em territórios vizinhos. A lógica é simples: o poder, mesmo o militar, não pode ser absoluto, ele precisa ser controlado. Na África do Sul, coube à Corte Constitucional contrapor a negação do então presidente Thabo Mbeki que, no epicentro de uma epidemia de HIV, insistia que o vírus não causava a Aids1. O governo sugeriu que combatessem a doença bebendo refresco de beterraba2. Acontece que, diante da morte, as pessoas jamais esperarão inertes soluções apresentadas tardia e equivocadamente por políticos. Por isso, elas procuram o Judiciário. Em nosso país, o tempo presente atirou no colo do STF um pacote embrulhado por um sombrio alinhamento de astros. A Suprema Corte está tentando desembrulhá-lo. Dia 4/2, o ministro Gilmar Mendes decidiu o HC 180.921 (DJe 6/2/2020), impetrado em favor de Indira Mara Santos e outros. Brasileiros que estavam em Wuhan, na China, desejavam retornar ao país, mas a posição do presidente brasileiro era a de que não seria "'oportuno' resgatar família com suspeita de coronavírus"3. Daí a impetração do habeas corpus, para que o Brasil fosse obrigado a resgatar a sua gente. Por não preencher quaisquer dos requisitos formais, o habeas foi negado4. Um mês depois, numa noite de quarta-feira, o presidente do Senado Federal, David Alcolumbre e o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, foram recebidos pelo embaixador do Marrocos no Brasil, Nabil Adghoghi, num jantar de cortesia para a delegação de autoridades brasileiras que visitaria o país5. Quinta-feira da semana seguinte, o presidente do STF embarcou para o Marrocos em viagem oficial. No mesmo dia, 12/3, o Supremo divulgou a Resolução 663/2020, com medidas para prevenção do contágio na Corte. Foram suspensos o atendimento presencial do público externo que pudesse ser prestado por meio eletrônico ou telefônico, a visitação pública e a entrada de público externo no restaurante e na Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal. O acesso às sessões ficou restrito às partes e advogados com processos em pauta. Suspendeu-se ainda as audiências públicas que discutiriam o Marco Civil da Internet (23 e 24/3) e a criação do juiz de garantias (16 e 30/3)6. A crise já havia chegado à Suprema Corte. Na sexta-feira (13/3), o site do STF estampava: "Fake news: Não é verdade que expediente e prazos processuais foram suspensos em razão do coronavírus"7. Dias depois, parte dos prazos seria suspensa. Inacreditavelmente, dia 15/3, domingo, ocorreu em várias cidades uma manifestação popular pedindo, dentre outras coisas, o fechamento do Congresso Nacional e do STF8. O ministro Gilmar Mendes tuitou: "A epidemia do coronavírus exige das nossas instituições uma conscientização mais profunda em torno do valor constitucional da solidariedade. As mobilizações populares devem cobrar intervenções mais efetivas para evitar uma crise ainda mais grave na saúde pública". Não havia outro jeito. O Supremo teria de entrar na equação política da pandemia. O ministro Dias Toffoli, que estava em missão em Marrocos, antecipou o seu retorno9. Na segunda-feira, Luiz Vassallo noticiava, no Blog do Fausto Macêdo, que o presidente do STF não se submeteria à quarentena do coronavírus. Segundo a Corte, o ministro "não apresenta sintomas de coronavírus, nem se enquadra na situação de quarentena"10. De volta, o ministro Dias Toffoli reuniu autoridades dos Três Poderes para discutirem medidas conjuntas. Participaram, além do ministro da saúde, Henrique Mandetta, os ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Roberto Barroso e Edson Fachin; o secretário da Secretaria de Serviços Integrados de Saúde do STF, Marco Polo Freitas; o presidente do Senado, David Alcolumbre; o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; o presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha; a presidente do TST, ministra Maria Cristina Peduzzi; o vice-presidente do STM, ministro José Barroso Filho; o procurador-geral da República, Augusto Aras; e o advogado-geral da União (AGU), André Mendonça. O presidente Jair Bolsonaro estava ausente. Apenas a presidente do TST, ministra Cristina Peduzzi, usava máscara. Não tardaria para que a pandemia começasse a alterar a rotina judicial do Supremo. Na própria segunda-feira, houve a impetração do MS 36.997, no qual o Podemos pediu liminar para sanar "ato omissivo" do presidente da República em reduzir a propagação do vírus. Pleiteou-se a suspensão do desembarque de passageiros vindos de países europeus e asiáticos por no mínimo 30 dias e o deslocamento de tropas das Forças Armadas para o controle terrestre nas fronteiras. É relatora a ministra Cármen Lúcia. Dia seguinte, o ministro Ricardo Lewandowski, 72, anunciou que, durante a pandemia, trabalharia de casa, assim como os servidores do seu gabinete11. A judicialização da crise se fez sentir. A chamada no site do STF dizia: "Chegam ao STF ações e petições em razão da pandemia do coronavírus"12. Ao meio-dia, o ministro Gilmar Mendes tuitou: "O coronavírus demanda iniciativas de coordenação política entre os Três Poderes que envolvam a União, Estados e Municípios. Em situação semelhante (ainda que menos grave), o governo FHC instituiu a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica para lidar com o apagão (MP 2198-5)". Nesse dia, o CNJ divulgou a Recomendação 62, para que os Tribunais e magistrados adotem medidas preventivas à propagação da infecção pelo coronavírus no sistema carcerário. A Recomendação fez explodir no STF pedidos em habeas corpus para que penas cumpridas em regime fechado fossem convertidas em prisão domiciliar, caso o preso integrasse um dos grupos de risco da pandemia. Nas hipóteses cabíveis, os habeas corpus eram concedidos13. Ou então os relatores pediam mais informações para saber da situação do detento à luz da referida Recomendação-CNJ 62/202014. Outra possibilidade era a remessa dos autos à origem para que o juiz da execução aferisse a compatibilidade do caso com a Recomendação15. A grande maioria dos habeas corpus foi negada, por não preencher os requisitos16. Perto da meia-noite, o ministro Gilmar Mendes tuitou: "O judiciário deve trabalhar para impedir que a crise da saúde se torne uma crise da justiça. Parabenizo as iniciativas do Pres. Toffoli de manter as atividades do @STF_oficial e de ampliar o uso do Plenário Virtual. Sejamos fortes! Nem a Ditadura fechou as portas do Supremo". Dia seguinte, quarta-feira, 18/3, numa sessão administrativa realizada num plenário esvaziado, o presidente Dias Toffoli anunciou uma ferramenta para permitir que as partes envolvidas em um processo - como advogados, procuradores, defensores públicos - possam enviar suas sustentações orais por meio digital. Os ministros seguiriam deliberando de quinze em quinze dias. 343 servidores já estavam em trabalho remoto. Nessa sessão, quem brilhou foi o ministro da Saúde, Henrique Mandetta. "E aqui faço questão de parabenizar o ministro da Saúde, o ministro Mandetta, pela liderança nessa crise, pela liderança técnica e efetiva que vem tendo nessa crise", registrou o ministro Alexandre de Moraes. O ministro Gilmar Mendes o aparteou: "acho que todos nós que ouvimos sua exposição, na segunda-feira, quedamos impressionados com a qualidade técnica, com a responsabilidade, com o senso humano, com a responsabilidade política, de modo que, numa quadra que nós vivenciamos às vezes gestões muito medíocres, vemos um quadro dessa dimensão, um homem certo num lugar certo". O arremate veio do presidente Dias Toffoli: "Se há uma pessoa hoje inamovível na República deve ser considerado o ministro Luiz Henrique Mandetta". Na sessão jurisdicional, analisando o pedido do Instituto de Defesa do Direito de Defesa - Márcio Thomaz Bastos (IDDD) para prevenir a propagação do coronavírus no sistema carcerário, os ministros entenderam, por maioria, que o Judiciário deve seguir as recomendações do CNJ e da portaria conjunta dos Ministérios da Saúde e da Justiça e Segurança Pública. Amicus curiae, o IDDD pediu a concessão de livramento condicional a presos com 60 anos ou mais e a autorização para que detentos com HIV, tuberculose, câncer, diabetes e doenças respiratórias, cardíacas e imunodepressoras cumpram regime domiciliar. O pedido foi feito na ADPF 347, na qual o STF havia reconhecido, em 2015, o "estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário". Por unanimidade, os ministros acompanharam o entendimento do relator, ministro Marco Aurélio, sobre a ilegitimidade de amicus curiae para requerer cautelar. Porém, divergiram quanto a recomendação aos juízes de execução penal. O ministro Alexandre de Moraes, que abriu divergência, destacou que, para evitar a disseminação do novo coronavírus nas prisões, o CNJ recomendou a análise de situações de risco caso a caso17. Dia seguinte, o presidente do STF e o presidente da República encaminharam ao Congresso Nacional o projeto de lei emergencial para criar o Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle, alterando a Lei 13.979/2020, sobre as medidas para enfrentamento da pandemia. Além do STF, CNJ e AGU, integram o comitê o TCU, a Procuradoria-Geral da União, o CNMP, a Controladoria-Geral da União e a Defensoria Pública. Como a Suprema Corte seguiria com sessões presenciais quinzenais, vieram os pedidos de adiamentos de julgamentos. O ministro Marco Aurélio deferiu muitos deles18. Já o ministro Luiz Fux optou por determinar a inclusão do feito na pauta virtual, em que se permite sustentação por videoconferência19. A ministra Cármen Lúcia, relatora do RE 574.706, que determinou a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS, retirou o caso de pauta, "em face da pandemia do coronavírus que estamos enfrentando em todo o mundo, bem como pela segurança dos patronos e ministros, e a repercussão do presente recurso extraordinário". Ao meio-dia da sexta-feira, Mariana Oliveira, da TV Globo, estampava: "Toffoli diz que fará teste nos próximos dias para verificar se está com coronavírus". Em entrevista à Radio Bandeirantes, o presidente disse estar em isolamento desde que soube do teste positivo para Covid-19 do presidente do Congresso, o senador David Alcolumbre20. A crise escalou. O atendimento presencial ao público na Central do Cidadão do STF foi suspenso. A sala de apoio aos advogados fechou suas portas. Em petições nas ADIs 5658, 5680 e 5715, o PT, o PSOL e vários amici curiae pediram uma liminar que suspendesse os efeitos de parte da emenda constitucional 95/2016, para que o teto de gastos não seja aplicado à saúde, fazendo com que a ministra Rosa Weber pedisse informações ao Poder Executivo da União sobre os efeitos da EC 95/2016 sobre as necessidades decorrentes da pandemia21. Já não importava mais que horas eram nem em que dia da semana estávamos. No domingo, 22/3, o ministro Alexandre de Moraes determinou a destinação de R$ 1,6 bilhão ao Ministério da Saúde para custeio de ações de combate ao coronavírus. O ministro homologou proposta apresentada pelo PGR, Augusto Aras, na ADPF 568, em que foi firmado, em 2019, acordo sobre destinação de valores oriundos da Operação Lava-Jato. À tarde, o ministro Gilmar Mendes voltou ao Twitter: "O discurso de Merkel é sintomático da gravidade da crise do coronavírus. Para a Chanceler alemã, a COVID-19 representa o maior desafio ao país desde a Segunda Guerra Mundial, superando, portanto, os esforços para a reconstrução e reunificação da Alemanha"22. Na madrugada da segunda-feira, 23/3, o presidente da República, Jair Bolsonaro, editou a MP 927, que, por meio do art. 18, permitia às empresas suspenderem o contrato de trabalho de seus empregos por quatro meses, sem lhes pagar. Nesse mesmo dia, o presidente do STF se pronunciou: "Você colocar o povo dentro de casa, com medo, e sem remuneração, sem garantia, é falta de discernimento"23. O dispositivo foi revogado. As alterações do funcionamento do Supremo continuavam. Veio a Resolução 670/2020, suspendendo os prazos processuais de processos físicos, até o dia 30 de abril, sendo mantidos os atos necessários à preservação de direitos e de natureza urgente. Nesse dia, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu por 180 dias o pagamento das parcelas da dívida do Estado de São Paulo com a União (ACO 3363). Fez o mesmo com os Estados de MS (ACO 3371), AC (ACO 3372), PA (ACO 3373), BA (ACO 3365), MA (ACO 3366), PR (ACO 3367), PB (ACO 3368), PE (ACO 3369), SC (ACO 3370), AL (ACO 3374) e ES (ACO 3375). Esses valores devem ser aplicados em ações de prevenção, contenção, combate e mitigação à pandemia. Determinou, ainda, a realização, com urgência, de audiência virtual para tentativa de composição com a União. Ainda na segunda-feira, na ACO 3359, proposta por sete Estados (BA, CE, MA, PB, PE, PI e RN), o ministro Marco Aurélio determinou que o Governo Federal suspenda os cortes no programa Bolsa Família enquanto perdurar a calamidade pública. O ministro Roberto Barroso, por sua vez, indeferiu liminar no MS 37.018 (DJe 25/3/2020), impetrado pela Federação das Entidades Sindicais dos Oficiais de Justiça do Brasil, visando à análise, pelo CNJ, do PCA 0002293-69.2020.2.00.0000, em que foram requeridas medidas para resguardar os oficiais de justiça da contaminação pelo Covid-19. Já tarde da noite, perto das 22h, o ministro Gilmar Mendes escreveu em sua conta no Twitter: "A imprensa brasileira tem dado um exemplo de excelência na cobertura do #covid19. Os jornalistas têm cumprido a missão de informar a população de forma técnica, mesmo que, para isso, esses profissionais tenham que se expor a riscos. A imprensa livre é um pilar da nossa democracia". Na manhã da terça-feira, 24/3, às 11h, o presidente do STF participou de videoconferência com líderes de movimentos sindicais. Presentes os presidentes da Força Sindical, Miguel Torres; da Central dos Sindicatos Brasileiros, Antônio Neto; da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Adilson Araújo; da Nova Central Sindical de Trabalhadores, José Calixto; e o deputado federal Paulinho da Força. Ancelmo Gois tinha notado algo diferente desde o dia anterior: "O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, raspou a barba. Está com a cara 'limpa'. É por causa do risco, apontado por alguns infectologistas, de que os fios no rosto possam acabar retendo gotículas do vírus"24. O uso da tecnologia para se comunicar no isolamento passaria a ser a tônica do presidente do Supremo. E ele não estava sozinho. No mesmo dia, o ministro Edson Fachin, por videoconferência, ouvia as deputadas Renata Souza e Talíria Petrone, sobre a superlotação do Sistema Socioeducativo, o Degase25. A judicialização da crise ganhava fluxo. Na ADI 6341, do PDT, o ministro Marco Aurélio deferiu em parte liminar para explicitar que as medidas do Governo Federal na MP 926/2020 para o enfrentamento do coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, Distrito Federal e municípios. Já na ACO 3364, a ministra Cármen Lúcia indeferiu pedido de tutela do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, de imposição ao Poder Executivo federal da adoção de medidas de teletrabalho em relação aos servidores públicos federais e aos empregados da administração pública direta, indireta, autárquica, fundacional, empresas públicas e sociedades de economia mista da União lotados no Distrito Federal. Às 20h30, o presidente da República, Jair Bolsonaro, fez um pronunciamento em cadeia nacional de televisão. Criticou as medidas de isolamento social e chamou o coronavírus de "gripezinha". Horas depois, o ministro Gilmar Mendes voltou à carga no Twitter: "A pandemia do covid-19 exige solidariedade e corresponsabilidade. A experiência internacional e as orientações da OMS na luta contra o vírus devem ser rigorosamente seguidas por nós. As agruras da crise, por mais árduas que sejam, não sustentam o luxo da insensatez. #FiqueEmCasa". Dia seguinte, na ADI 6343, o ministro Marco Aurélio indeferiu liminar na qual a Rede pedia a suspensão de pontos das MPs 926/2020 e 927/2020, que tratam do transporte intermunicipal durante a pandemia. O ministro reafirmou que os dirigentes (União, Estados, DF e Municípios) devem implementar as medidas necessárias à mitigação das consequências da pandemia. No entanto, considerando a "crise aguda envolvendo a saúde pública", a recomendação foi a de que o tratamento seja nacional. Já o ministro Gilmar Mendes determinou, na ADPF 662, o prazo de 72h para que o Congresso e o TCU prestem informações. Questiona-se a ampliação do acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) suspensão cautelar da alteração feita pelo Senado no art. 20, § 3º, da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/93), que estabelece o limite de renda familiar per capita para fins de concessão do BPC. Também houve providências por parte do ministro Roberto Barroso, que intimou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sobre o pedido de tutela de evidência no RE 1.253.494, no qual uma empresa de operações portuárias pede o levantamento dos valores depositados em conta judicial do juízo de origem vinculados à controvérsia26. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, ainda pela manhã, o presidente da República, numa reunião por videoconferência, se exasperava com o governador de São Paulo, João Dória. A polarização de ambos seria uma das marcas políticas da crise. Às 21h15, o ministro Gilmar Mendes tuitou: "Interessante medida do @governosp. Para além da questão da reintegração dos detentos, a iniciativa demonstra a possibilidade de se utilizarem equipamentos e mão de obra ociosos no combate à #covid19. A estratégia deve servir de inspiração aos gestores"27. Dia seguinte, 26/3, o presidente do STF teve uma videoconferência com o presidente da Fiesp/Ciesp, Paulo Skaf, e grandes grupos empresariais, para tratar da crise. Enquanto isso, uma notícia reclamou da Suprema Corte nervos de aço. O Globo trouxe a informação de que o ministro Celso de Mello, 74, havia se submetido ao teste para o coronavírus e estava em isolamento em São Paulo. O médico infectologista David Uip havia testado positivo para a doença e o decano da Corte tinha tido contato com Uip28. Naquela manhã, foi publicado artigo do ministro Edson Fachin na coluna Tendências e Debates, do jornal Folha de São Paulo. Dias antes, a imprensa noticiava que o presidente da República, Jair Bolsonaro, pedira à AGU uma posição quanto à eventual decretação de estado de sítio, medida que foi expressamente oposta pela OAB29. Sob o título "A esperança não é um estado de exceção", o ministro Edson Fachin anotou o seguinte em seu artigo: "Para enfrentar a atual emergência sanitária, almeja-se o auxílio esclarecedor da ciência com transparência. Questões críticas de saúde demandam uma sociedade aberta às soluções técnicas, permeadas por constantes e sucessivas ponderações públicas. Debate plural, livre e acessível tornam as interrogações atuais em razões verificáveis e sindicáveis, o que é próprio da normalidade democrática". E arrematou: "é temerária a hipótese excepcional do estado de sítio para essa situação crítica pela qual hoje passamos. Matéria indigesta, mas precaver-se nunca é demais"30. A imprensa estava especialmente focada no STF naquele dia. A jornalista Carolina Brígido, na Revista Época, estampou: "Como é o home office dos ministros do Supremo". As primeiras revelações couberam ao ministro Luiz Fux. "Acorda, toma café, faz uma caminhada - tudo na sala de casa, no Rio de Janeiro, onde tem esteira e bicicleta ergométrica. Depois, vai trabalhar no escritório, também em casa. Em vez de terno e gravata, opta por uma roupa informal. Divide as tarefas do lar com a mulher". O presidente Dias Toffoli narrou outra rotina: "Estou almoçando em casa, eu mesmo lavo minha louça, limpo meu quarto, estou tomando as precauções". O ritmo do ministro Ricardo Lewandowski seguia frenético: "Estou trabalhando mais do que nunca a partir de casa: 12 a 14 horas por dia". O trabalho do ministro Roberto Barroso não era menos intenso, "só não coloco terno". Ficava das 9h às 21h, "com uma parada para almoçar". Um dos ministros fez uma confidência: "Olha, está muito difícil trabalhar em casa, toda hora eu quero comer, fico contando as horas pro almoço, vou na cozinha o dia todo"31. Carolina Brígido guardou segredo quanto à identidade do (ou da) confidente. Apreciando a ADI 6351, da OAB, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a eficácia do art. 6º-B da Lei 13.979/2020, incluído pela MP 928/2020, que limitou o acesso às informações prestadas por órgãos públicos durante a emergência de saúde pública32. Na ADI 6342, ajuizada pelo PDT, o ministro Marco Aurélio indeferiu a liminar contra dispositivos da MP 927/2020, que autorizam empregadores a adotarem medidas excepcionais em razão do estado de calamidade pública33. O ministro fez o mesmo nas ADIs 6344, da Rede; e 6346, da CNTM, ambas contra a MP 927/2020. Tramita ainda, com o mesmo objeto, a ADI 6354, da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria - CNTI. Nesse dia, o STF anunciou a Resolução 672/2020, que permite a participação dos ministros nas sessões do Plenário e das Turmas por videoconferência. A videoconferência assumiria o lugar das sessões com a presença física dos ministros no pleno da Corte. A sessão ordinária convocada para o dia 1º de abril foi convertida em sessão virtual para a semana seguinte. A sustentação oral dos advogados passaria a ser realizada por videoconferência mediante inscrição feita por formulário eletrônico disponibilizado no site do STF até 48 horas antes do dia da sessão. Na mesma quinta-feira, foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Transportes, a ADPF 665, contra decretos Estaduais e Municipais que determinam o fechamento de fronteiras, vias públicas e locais limites entre municípios e divisas entre estados, como forma de contenção da pandemia. A relatoria é do ministro Luiz Fux. A Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis ajuizou a ADPF 666, questionando atos de diferentes Estados e Prefeituras tendo por objeto estabelecer medidas restritivas para o enfrentamento da crise, suspendendo o funcionamento de empresas locadoras de veículos automotores. A ministra Rosa Weber é a relatora.   Também foi ajuizada a ADPF 660, pela Associação Nacional de Membros do Ministério Público Pró-Sociedade, questionando dispositivos da Recomendação-CNJ 62/2020. A relatoria é do ministro Gilmar Mendes. Foram ajuizadas ainda as ADIs 6344, da Rede; 6346, da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos; 6348, do PSB; 6349, do PCdoB, PSOL e PT; e 6352, do Solidariedade. Todas questionam a MP 927/2020, que flexibiliza a legislação trabalhista durante a calamidade. O relator é o ministro Marco Aurélio. Por fim, a ADI 6353, do PSB, questionando a MP 928/2020, em partes que suspendem direitos previstos na Lei de Acesso à Informação - LAI. O relator é o ministro Alexandre de Moraes. No mesmo dia, o PGR, Augusto Aras, pediu ao ministro Edson Fachin que os R$ 51 milhões atribuídos ao ex-deputado federal Geddel Vieira Lima fossem destinados ao combate ao coronavírus. Aquela havia sido a quinta-feira que jamais acabou. Até então, o "Dia D" da judicialização da crise no Supremo. Dia seguinte, a Corte lançou no seu site o Painel de Ações Covid-19, com dados atualizados sobre todos os processos em curso no STF em que existam pedidos relacionados à pandemia, além das suas decisões tomadas no tema34. Nas ADPFs 661, ajuizada pelos Progressistas, e 663, do presidente da República, o ministro Alexandre de Moraes deferiu liminar para, apesar de não suspender os prazos das medidas provisórias, autorizar que, durante a calamidade, elas sejam instruídas perante o plenário da Câmara e do Senado, ficando autorizada a emissão de parecer por parlamentar de cada uma das Casas em substituição à Comissão Mista35. No sábado, 28/3, a jornalista Eliane Cantanhêde noticiava que o presidente Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro Gilmar Mendes, no Palácio da Alvorada, para ouvi-lo sobre a Câmara de Gestão de Crise do colapso de energia elétrica de 2001, que pode ser replicada agora na pandemia. Na época, o ministro Gilmar Mendes era AGU36. Dia seguinte, domingo, o ministro Alexandre de Moraes afastou a exigência de demonstração de adequação orçamentária em relação à criação e expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da Covid-19. A decisão vale para todos os entes da federação que tenham decretado estado de calamidade pública pela pandemia37. Mesmo na segunda-feira, 30/3, enquanto eu tentava terminar a coluna, os acontecimentos se projetavam na tela do laptop. Cedo da manhã, o jornal O Globo trouxe artigo do ministro Luiz Fux, ponderando que, "antes de decidirem, devem os juízes ouvir os técnicos, porque uma postura judicial diversa gera decisões passionais que desorganizam o sistema de saúde, gerando decisões trágicas e caridade injusta"38. Às 11h, o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, entrava numa "live" com o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. "Mas, tudo que tem ocorrido no mundo leva a crer na necessidade do isolamento realmente, que é para puxar a diminuição de uma curva e ter atendimento de saúde para população em geral", afirmou o presidente. O site do STF, por sua vez, disponibilizava a decisão do ministro Marco Aurélio tomada no sábado, na ADO 56, ajuizada pela Rede, indeferindo o pedido para que o STF definisse, para a pandemia, o mínimo existencial apto a garantir a existência digna dos brasileiros, por meio da instituição de uma renda básica emergencial39. O fio segue. Foram ajuizadas as ADPFs 668 e 669, da CNTM e da Rede, respectivamente, questionando a campanha publicitária divulgada nas redes sociais ligadas à presidência da República intitulada "O Brasil Não Pode Parar"40. A relatoria é do ministro Roberto Barroso. Esse é o primeiro capítulo da judicialização da crise no STF gerada pela pandemia do coronavírus. Mais ações serão ajuizadas, novas decisões serão tomadas e muitas outras posturas institucionais terão de ser adotadas. A crise não vai acabar agora e trabalhos como esse tornar-se-ão um mero periódico. Estamos apenas no começo.    __________ 1 Minister of Health v Treatment Action Campaign (TAC) (2002) 5 SA 721 (CC).   2 Ver: https://jus.com.br/artigos/19156/ativismo-judicial-as-experiencias-brasileira-e-sul-africana-no-combate-a-aids/2   3 Em: https://veja.abril.com.br/saude/bolsonaro-suspeita-coronavirus-filipinas/.   4 Os óbices formais verificados pelo relator foram: ausência de legitimidade ativa do impetrante; ausência de ato coator específico; o governo federal indicou a adoção de postura distinta da narrada na impetração.   5 Em: https://brasiliainfoco.com/embaixador-do-marrocos-recebe-autoridades-na-residencia-oficial/   6 A discussão sobre o Marco Civil é objeto dos REs 1.037.396 e 1.057.258. A figura do juiz de garantias e outros dispositivos do Pacote Anticrime são tratados nas ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305.   7 Em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439316&ori=1   8 Em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/na-paulista-apoiadores-de-bolsonaro-atacam-congresso-e-stf-e-chamam-coronavirus-de-mentira.shtml   9 Em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/03/16/em-meio-a-crise-do-coronavirus-toffoli-antecipa-volta-ao-brasil.htm?cmpid=copiaecola   10 Em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/apos-voltar-do-marrocos-toffoli-nao-vai-se-submeter-a-quarentena/   11 Eis o inteiro teor da nota divulgada pelo ministro Ricardo Lewandowski: "Em cumprimento às recomendações das autoridades sanitárias nacionais e internacionais e em atenção à Resolução 663 da Presidência do STF, o ministro Ricardo Lewandowski exercerá suas funções por meio de trabalho remoto, assim como os servidores de seu gabinete. Isso inclui a análise de cautelares e decisões nos processos que lhe forem distribuídos ou pautados para julgamento nas sessões virtuais do plenário e da Segunda Turma".   12 Em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439575&ori=1   13 Apreciando o HC 182.582/SP, em 20/3/2020, o Min. Gilmar Mendes registrou: "(...) a colocação da paciente em prisão domiciliar é medida que se impõe, mormente porque, para além do fato de que seu filho conta com apenas 3 anos e 6 meses, ficou comprovada a imprescindibilidade da paciente aos cuidados da criança, considerada a juntada de documentação médica que atesta a ocorrência de episódios depressivos moderados e alterações comportamentais após a separação da mãe (eDOC 4). concedo a ordem de habeas corpus para determinar que a paciente Ricelli Ravena Ribeiro Zancanaro seja posta em prisão domiciliar, com a obrigação de comparecimento periódico em Juízo para informar e justificar suas atividades. deverá a paciente: a) solicitar previamente autorização judicial sempre que pretender ausentar-se de sua residência (artigo 317 do CPP); b) atender aos chamamentos judiciais; c) noticiar eventual transferência; e d) para fins de apuração da melhor situação para a criança (ECA doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente), submeter-se, periodicamente, juntamente com sua família, a estudos psíquico-sociais". O mesmo no HC 182.670 MC/RJ (DJe 27/3/2020). No HC 182.950, o Min. Ricardo Lewandowski concedeu de ofício pedido para uma presa que amamenta seu filho recém-nascido.   14 HC 143.641/SP, Min. Ricardo Lewandowski, DJe 25/3/2020; Ext 1601/DF, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; Ext 1612/DF, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 167.201 TPI/DF, Min. Edson Fachin, DJe 24/3/2020; RHC 162.575 AgR/SC, Min. Edson Fachin, DJe 24/3/2020; e HC 179.548/SP, Min. Edson Fachin, DJe 25/3/2020.   15 No MS 37.028 (DJe 26/03/2020), a Min. Cármen Lúcia decidiu: "nego seguimento ao presente mandado de segurança, concedendo, entretanto, habeas corpus de ofício para que o juízo da Vara de Execuções Penais responsável pelo Centro de Progressão Penitenciária 2 em Bauru, localizado no Estado de São Paulo, analise, com urgência, a possibilidade de análise da aplicação, ou não, ao paciente de alguma das medidas estabelecidas na Recomendação n. 62/2020 do CNJ". Mais: MS 37.030, Min. Gilmar Mendes, DJe 27/3/2020; RHC 182.510/SP, Min. Gilmar Mendes, DJe 27/3/2020; MS 37.019 MC/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020; HC 180.472/RJ, Min. Gilmar Mendes, DJe 25/3/2020; HC 182.831/PE, Min. Luiz Fux, DJe 24/3/2020; HC 182.854/SC, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 182.596 MC/ES, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 182.793/RJ, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 180.574, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; e HC 181.772, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020.   16 Na AP 1030, por exemplo, o Min. Edson Fachin negou o pedido de Geddel Vieira Lima para ser colocado em prisão domiciliar. Mais: HC 182.934/CE, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 182.729/DF, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 182.904/SP, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 182.966/SP, Min. Edson Fachin, DJe 27/3/2020; HC 183.008/RS, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 183.016/RJ, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 183.044/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 183.052, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 182.869/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.940/RS, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.941/PB, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.963/GO, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.780/SP, Min. Luiz Fux, DJe 25/3/2020; HC 182.860/RJ, Min. Luiz Fux, DJe 25/3/2020; HC 182.917/SP, Min. Luiz Fux, DJe 25/3/2020; Rcl 39.746/PR, Min. Alexandre de Moraes, DJe 27/3/2020; HC 182.990/RJ, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 178.336 AgR-ED/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020; HC 182.772/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; MS 37.012/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 24/3/2020; HC 182.787/PA, Min. Cármen Lúcia, DJe 24/3/2020; HC 182.861/MG, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020; HC 182.789/AC, Min. Cármen Lúcia, DJe 24/3/2020.   17 A divergência foi seguida pelos Min. Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, e Dias Toffoli. O Min. Gilmar Mendes acompanhou o relator na concessão de ofício das sugestões.   18 No HC 175.267/SP (DJe 19/3/2020), o Min. Marco Aurélio relatou que o patrono da parte pedia que fosse "adiado, por 30 dias, o exame do processo, marcado para amanhã, 17 de março de 2020, na Primeira Turma. Destaca encontrar-se em São Paulo, alegando temor de viajar a Brasília, tendo em vista a atual crise sanitária relacionada à pandemia de COVID-19 (coronavírus)". O Ministro decidiu: "Defiro o que requerido. Reincluam o processo na pauta da Sessão seguinte ao prazo postulado". O mesmo em: HC 180.348/TO (DJe 19/3/2020), HC 158.410/RJ (DJe 19/3/2020), HC 172.567/MG (DJe 19/3/2020), HC 180.578/SP (DJe 19/3/2020) e ARE 1.235.950 AgR-ED/DF (DJe 20/3/2020).   19 No AR 2732 AgR/RS (DJe 24/3/2020), o Min. Luiz Fux anotou: "Na ocasião, fixou-se, ainda, que as sustentações orais poderão ocorrer por meio de videoconferência, nos moldes em que realizada recentemente em julgamento Plenário, a partir de recurso audiovisual, dispensando-se o comparecimento físico dos patronos dos feitos, a fim de resguardar a saúde de todos e obedecer ao máximo as diretrizes estabelecidas pelas autoridades para reduzir o risco de contágio da doença. Destarte, diante de tais deliberações, carece de fundamentos legítimos a suspensão ora pleiteada, não se verificando, in casu, nenhuma das hipóteses previstas no artigo 313 do Código de Processo Civil. No afã de preservar o direito do patrono do requerente à sustentação oral, sem prejuízo da observância ao princípio da duração razoável do processo, revela-se benfazeja a retirada do recurso da pauta do Plenário presencial e sua inclusão na pauta do Plenário Virtual".   20 Em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/20/toffoli-diz-que-fara-teste-nos-proximos-dias-para-verificar-se-esta-com-coronavirus.ghtml   21 A Min. Rosa Weber pediu que os Ministérios da Saúde e da Economia, a Secretaria do Tesouro Nacional e o Conselho Nacional de Saúde informem o montante mínimo aplicado em ações e serviços públicos de saúde.   22 Eis o vídeo indicado pelo Min. Gilmar Mendes: https://www.youtube.com/watch?v=IWZiolHnm-w&feature=youtu.be   23 Em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/03/colocar-o-povo-dentro-de-casa-com-medo-e-sem-garantias-e-falta-de-discernimento-diz-presidente-do-stf.shtml   24 Em: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/o-novo-visual-de-dias-toffoli-e-uma-licao-em-tempos-de-coronavirus.html   25 Sobre o HC 143.988/ES.   26 Anotou o Min. Roberto Barroso: "Considerando as informações apresentadas, intimo a Procuradoria da Fazenda Nacional a se manifestar, em 48 horas, sobre: (i) o Parecer PGFN/CRJ/Nº 162/2017; (ii) o interesse em recorrer da decisão monocrática por mim proferida em 11.02.2020". Para a contribuinte, nos termos da Lei Federal 13.979/2020, regulamentada pelo Decreto 10.282/2020, que dispõe sobre "as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus", exerce atividade essencial que não deve ser interrompida, razão pela qual é fundamental a liberação do valor depositado em conta judicial.   27 Eis o link da matéria sugerida pelo Min. Gilmar Mendes: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/24/presos-produzirao-320-mil-mascaras-hospitalares-em-sao-paulo.htm?cmpid=copiaecola   28 O decano do STF, ministro Celso de Mello, foi internado inicialmente em 21/1, em São Paulo, para ser submetido a uma cirurgia no quadril. Em seguida, teve alta hospitalar e permaneceria em casa, na capital paulista, até o dia 19/3. Mas foi diagnosticado com uma infecção e retornou ao hospital. Em: https://oglobo.globo.com/brasil/decano-do-supremo-celso-de-mello-aguarda-resultado-de-teste-para-coronavirus-24327763   29 Em: https://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/oab-diz-que-estado-de-sitio-por-causa-de-coronavirus-e-inconstitucional/   30 Em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/03/a-esperanca-nao-e-um-estado-de-excecao.shtml   31 Em: https://epoca.globo.com/coluna-como-o-home-office-dos-ministros-do-supremo-24328345   32 O dispositivo suspendia os prazos de resposta a pedidos dirigidos a órgãos cujos servidores estejam em regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que dependam de agente público ou setor envolvido no combate à doença. Previa também não caber recursos contra negativa de resposta a pedido de informação.   33 O Min. Marco Aurélio afastou a alegação de vício formal na edição da MP. Em época de crise, não seria possível impedir que o presidente da República atue provisoriamente no campo trabalhista e da saúde no trabalho. Quanto aos demais pontos, o ministro entendeu não haver conflito com a Constituição, uma vez que as normas, como a que sobrepõe o acordo individual aos coletivos, foram editadas com o objetivo de enfrentar o estado de calamidade e permitir que empregado e empregador possam estabelecer parâmetros para a manutenção do vínculo empregatício sem ultrapassar os limites definidos pela Constituição Federal.   34 Em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440336&ori=1   35 Pela decisão do Min. Alexandre de Moraes, "em deliberação nos plenários das casas legislativas por sessão remota, as emendas e requerimentos de destaque podem ser apresentados à Mesa, na forma e prazo definidos para funcionamento do Sistema de Deliberação Remota em cada Casa, sem prejuízo da possibilidade de regulamentação complementar desse procedimento legislativo regimental'.   36 Em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-e-gilmar-discutem-gestao-do-apagao-eletrico-de-2001-e-como-aplica-la-contra-o-coronavirus,70003251905   37 A decisão foi tomada na ADI 6357, ajuizada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. A AGU pediu o afastamento de algumas exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 13.898/2020) relativas a programas de combate ao coronavírus e de proteção da população vulnerável à pandemia. Os dispositivos exigem, para o aumento de gastos tributários indiretos e despesas obrigatórias de caráter continuado, as estimativas de impacto orçamentário-financeiro e a compatibilidade com a LDO, além da demonstração da origem dos recursos e a compensação de seus efeitos financeiros nos exercícios seguintes.   38 Em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-justica-infectada-hora-da-prudencia-24337119   39 "Surge impróprio o pedido formalizado nesta ação. Não cabe a fixação, no âmbito precário e efêmero, nem mesmo no definitivo, de auxílio revelador de renda básica emergencial temporária. Frise-se, por oportuno, que a matéria está sendo tratada pelos dois Poderes - Executivo e Legislativo -, aguardando votação no Senado da República", escreveu o Min. Marco Aurélio, em sua decisão.   40 Eis o pedido liminar da ADPF 669, da Rede: "i. suspender o contrato firmado com a empresa iComunicação Integrada (EXTRATO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO Nº 1/2020 - UASG 110319, processo nº 00170.000322/2020) no âmbito da Campanha "O Brasil não Pode Parar", sem que haja qualquer pagamento pelo Estado à referida empresa - para que se evite qualquer lesão irreversível ao erário e à saúde de toda a população - até o julgamento do mérito da presente ação, já que há patente incompatibilidade do ato público retro com preceitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal e aqui explicitados; e, no mesmo sentido ii. impedir, liminarmente, que sejam veiculadas quaisquer publicidades institucionais pagas, direta ou indiretamente, com dinheiro público no escopo da Campanha 'O Brasil não Pode Parar' (ou seus derivados e assemelhados), pelo manifesto risco de grave lesão à saúde de toda a população".
O caráter da nossa nação jamais poderá ser medido pela disposição dos mais velhos em darem suas vidas pelos mais novos, mas, sim, pelo reconhecimento, por toda a comunidade, do valor intrínseco da vida humana. Aquele que, no vale das sombras, salva uma única vida, em verdade salva toda a humanidade. No Brasil, o idoso compõe um capítulo próprio da Constituição (Capítulo VII), que estabelece, no art. 229, que "os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade". O art. 230, por sua vez, diz que, além da família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, "defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida". Numa antevisão, o § 1º dispõe que "os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares". Um dos objetivos da assistência social é exatamente a proteção "à velhice" (art. 203, I)1. Não há dúvida de que a Constituição reputa os idosos como sendo um grupo vulnerável. Quando essa vulnerabilidade se agrava, é preciso fazer de tudo para protegê-los, realizando um dos objetivos da República, que é o de termos uma sociedade que, além de fraterna (Preâmbulo2), é "livre, justa e solidária" (art. 3º, I). Esse dever se realiza de múltiplas formas, especialmente pelo direito à saúde, um "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (art. 196). Criamos o Sistema Único de Saúde. Cabe-lhe executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 200, II)3. Como o novo coronavírus (COVID-19) é uma pandemia - evento global -, essas ações precisam ter coordenação com os consensos forjados nos órgãos internacionais especializados de saúde com os quais o Brasil mantenha relação por meio dos instrumentos do Direito Internacional Público. O bem não separa. Só o mal separa. A relação entre o Brasil e a China é antiga e profundamente frutífera, apesar das histórias tão distintas dessas duas grandes nações. Coube a um brasileiro e a um chinês encaminharem a proposta que resultou na criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), agência internacional especializada, fundada em 1948, subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU). Geraldo Horácio de Paula Souza, médico sanitarista, e Szeming Sze, médico e diplomata, membros das delegações de seus países na Conferência de São Francisco, em 1945, que reuniu 50 países aliados para criar a ONU4, fizeram história. No crepúsculo da Segunda Guerra Mundial, dois médicos elevaram suas vozes pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Isso se daria por meio da saúde. É dever da União, como ente representante da República em suas relações internacionais, se portar à luz dessa realidade (art. 21, I)5. Não se trata de abrir mão da independência (art. 4º, I)6, nem da soberania (art. 1º, I)7, mas de reconhecer que, em casos de pandemia, o caráter hierárquico do planejamento das ações da União pelo SUS toma como ponto de partida a cooperação com a OMS, assumindo, no Brasil, a sua natureza de rede regionalizada e hierarquizada (art. 198)8. Segundo a Constituição, um dos princípios das nossas relações externas é o da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX). Essa cooperação pode, na necessária adequação doméstica, contar com distinções decorrentes de peculiaridades da nossa comunidade. Todavia, não podemos nos colocarmos como oponentes empedernidos das recomendações oriundas de uma instância internacional especializada em saúde por nós fundada e permanentemente integrada. Nesse sentido, o internacionalista Valerio Mazzuoli anota que "não há qualquer norma constitucional a prever a execução das decisões de organizações internacionais no Brasil, o que não significa que não se tenha que encontrar uma maneira de operacionalizar o comando de tais decisões no país". Isso porque, "o eventual âmbito restrito de tais decisões não lhes retira a característica de serem normas de conduta, ou seja, de direito em sua essência, e cujas violações podem ser passíveis de sanção"9. Mazzuoli conclui: "Não faria qualquer sentido o Estado ratificar um tratado internacional - que, por sua vez, cria e põe em marcha determinado mecanismo de monitoramento - se não for para seguir as suas recomendações e deliberações10. Não deve haver litígio entre a União e a OMS quanto à implementação das recomendações da agência. Compete ao Supremo Tribunal Federal, inclusive, reafirmar esse dever de cooperação, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, qualquer contenda entre organismo internacional e a União (art. 102, I, "e"). Essa é a mensagem que extraio da Constituição, cujo zelo e guarda compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (art. 23, I)11, assim como também lhes compete cuidar da saúde (art. 23, II)12, em especial, a dos idosos. Todo e qualquer cálculo utilitarista que despreze o valor intrínseco da vida humana, a fundamentalidade do nosso sistema de saúde e a vulnerabilidade dos idosos, constituir-se-á num absurdo moral. Como disse Rubens Ricupero: "Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis"13. __________ 1 Constituição: "Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;". 2 Preâmbulo da Constituição: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL". 3 Constituição: "Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;". 4 Roland, Maria Inês de França; Gianini, Reinaldo José. Geraldo Horácio de Paula Souza, a China e a medicina chinesa, 1928-1943. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2013, p.885-912. 5 Constituição: "Art. 21. Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;". 6 Constituição: "Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional;". 7 Constituição: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;". 8 Constituição: "Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade". 9 Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 103. 10 Mazzuolli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 815. 11 Constituição: "Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;". 12 Constituição: "Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;". 13 100 dias que mudaram a posição do Brasil no mundo.
Uma vez mais o pleno do Supremo Tribunal Federal foi chamado a ser o fiador tanto da federação como do futuro da inovação tecnológica no Brasil. Terá que, no desempenho de suas graves competências, traçar destinos nacionais. Nasceu para isso. Consta da pauta dessa quarta-feira, 18/3, um lote de casos conexos que, à exceção da ADI 46231, tratam da repartição de competências tributárias dos entes federados - Estados e municípios - quanto aos programas de computadores. Basicamente, sobre a possibilidade dos serviços de software, já tributados pelo ISS, de competência dos municípios, também serem tributados pelo ICMS, de competência dos Estados. Eis um resumo das ações: (i) RE 688.223 (Min. Luiz Fux), TIM Celular x Curitiba. Tema 590: ISS sobre contratos de licenciamento ou de cessão de software desenvolvido para clientes de forma personalizada; (ii) ADI 1945 (Min. Cármen Lúcia), do PMDB. Tema central: inconstitucionalidade do inciso VI do art. 2º e do § 6º do art. 6º, por bitributação e invasão da competência municipal, dado que o Estado fez incidir o ICMS sobre operações com software, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados, operações já tributadas pelo ISSQN; e (iii) ADI 5659 (Min. Dias Toffoli), da CNS. Tema: inconstitucionalidade do Decreto estadual n° 46.877/2015-MG, e interpretação conforme do art. 5° da Lei n° 6.763/75; do art. 1°, I e II, do Decreto nº 43.080/2002, ambos de Minas Gerais; bem como do art. 2° da LC 87/96, a fim de excluir das hipóteses de incidência do ICMS as operações com software. A primeira fantasia é a que reputa os softwares uma "mercadoria incorpórea"2 sobre a qual se deve incidir o ICMS. Esse conceito - mercadoria incorpórea -, quando aplicado à tecnologia da informação, desmantela a sua base, que se constitui pela divisão em hardwares e softwares, sendo, aqueles, o produto tangível, palpável, material, a parte física que circula, capaz de mudar de titularidade, ou seja, a mercadoria. Os softwares, por sua vez, são o oposto. Intangíveis, não palpáveis, imateriais, sem qualquer corpo físico, frutos das ideias, incapazes de circular mudando de titularidade - o que há são licenças ou assinaturas -, não se tratando de mercadoria. Sobre os hardwares, que são bens, incide o ICMS. Sobre os softwares, que são serviços, o ISS, sabendo-se que a combinação entre as formas contemporâneas de prestação de serviços e a chegada da Quarta Revolução Industrial3 resultam em maneiras cada vez mais criativas e sofisticadas de prestação de serviços. Essa é a fórmula presente na Constituição, que equilibra o pacto federativo e permite que a inovação distribua seus frutos equitativamente, realizando o comando de desenvolvimento nacional equilibrado, presente tanto no art. 3º, II da Constituição, enquanto um dos objetivos fundamentais da República, como no § 1º do art. 174, que cuida da ordem econômica. Quando as águas sobem, todos os barcos se elevam. O Direito Empresarial incorporou a dicotomia "bens e serviços", bens constituindo bens materiais e serviços sendo bens imateriais. Essa dicotomia pode ser vista no art. 170, VI, e no art. 173, §1º, da Constituição4, explicitando-se o conceito de serviço (bem imaterial) em oposição ao conceito de bens (materiais), ambos completando-se como resultado exaustivo de atividade empresarial. O STF, no RE 540.829 (Min. Luiz Fux, DJe 18/11/2014), fixou a Tese 297: "Não incide o ICMS na operação de arrendamento mercantil internacional, salvo na hipótese de antecipação da opção de compra, quando configurada a transferência da titularidade do bem". Enfatizou-se que "a alínea 'a' do inciso IX do § 2º do art. 155 da CF, na redação da EC 33/2001, faz incidir o ICMS na entrada de bem ou mercadoria importados do exterior, somente se de fato houver circulação de mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio (compra e venda)"5. No caso de Minas Gerais, a base de cálculo do ICMS, que antes correspondia ao suporte físico do software (Dec. 43.080/2002), passou a ser o valor total da operação de serviço do software, incluindo o valor do programa, do suporte informático e quaisquer outros valores cobrados do adquirente do software, seja por meio de mídia, seja por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming)6. Houve ainda a publicação do Convênio ICMS 181/2015, do CONFAZ (DOU 29/12/2015), autorizando alguns Estados a concederem inconstitucionalmente redução na base de cálculo do ICMS relativo às operações com softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer meio, de forma que a carga corresponda a 5% do valor da operação. Eis os Estados: AC, AL, AP, AM, BA, CE, GO, MA, MS, PR, PB, PE, PI, RJ, RN, RS, SC, SP e TOi. Acontece que a Constituição limitou aos estados e ao DF o poder de instituir imposto sobre a "circulação de mercadorias" e sobre dois serviços explicitados no art. 155: "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e (serviços) de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; III - propriedade de veículos automotores". Também outorgou aos municípios (e ao DF) competência para tributar os "serviços de qualquer natureza", listados em lei complementar (excetuados aqueles dois que haviam sido reservados aos estados, "serviços de transporte" e de "comunicação"): "Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; II - transmissão 'Inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; III - Serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar". Em 31/7/2003, a LC 116 inseriu o software no âmbito de incidência do ISS: "Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. 1 - Serviços de informática e congêneres. 1.01 - Análise e desenvolvimento de sistemas. 1.02 - Programação. 1.03 - Processamento de dados e congêneres. 1.04 - Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos. 1.05 - Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação. 1.06 - Assessoria e consultoria em informática. 1.07 - Suporte técnico em informática, inclusive instalação, configuração e manutenção de programas de computação e bancos de dados. 1.08 - Planejamento, confecção, manutenção e atualização de páginas eletrônicas". A LC 157/2016, ampliou e descrição dos itens 1.03 e 1.04 e incluiu um novo item 1.09, mantendo o ISS sobre os serviços de Tecnologia da Informação: "Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. 1 - Serviços de informática e congêneres. (...) 1.03 - Processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres. 1.04 - Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em que o programa será executado, incluindo tablets, smartphones e congêneres. (...) 1.09 - Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a lei 12.485/2011, sujeita ao ICMS)". No caso dos softwares, não há lei complementar definindo os contribuintes de ICMS, dispondo sobre substituição tributária, disciplinando o regime de compensação, fixando o estabelecimento responsável e o local e a base de cálculo7. Exatamente por isso, uma área inteira da economia se estabilizou reconhecendo o seu business como uma prestação de serviço sobre a qual incidia o ISS. Fê-lo por expressa determinação constitucional (art. 156, III) e legal (LC 116/2013). Apenas para ilustrar, em 2019, a Confederação Nacional da Indústria - CNI, divulgou pesquisa que fez com empresários das indústrias de transformação e extrativa. Foi a Sondagem Especial 73 - Qualidade do Sistema Tributário Brasileiro, feita em parceria com as federações estaduais da indústria, realizada em outubro de 2018, com 2.083 empresas, sendo 838 pequenas, 754 médias e 491 grandes. Em resposta à pergunta "Qual o tributo que causa a maior impacto negativo sobre a competitividade?", 42% dos entrevistados responderam: o ICMS. Em seu extremo oposto, apenas 1% indicou o ISS. Essa aversão a tudo o que o ICMS representa nos convida a lembrar que demos à ciência e à tecnologia o destaque de um capítulo na Constituição. A ele, diversos dispositivos foram inseridos pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015, resultando no Capítulo IV, da "Ciência, Tecnologia e Inovação". Mesmo assim, Ucrânia, Mongólia, Costa Rica, África do Sul, Sérvia, México, Chile, Índia, Colômbia, Uruguai..., dezenas de países são considerados ambientes mais inventivos e amigáveis à inovação do que nós. O Brasil ocupa a 64ª posição no Índice Global de Inovação de 20188. Por qual razão? Para Daron Acemoglu e James Robinson, a resistência por parte de autoridades locais à inovação decorre do "receio, quase sempre justificado, de que ela desloque o eixo do poder político, transferindo-o dos que dominam hoje para as mãos de novos indivíduos e grupos"9. É uma postura extrativista que se revela pela tributação também. Nesse que é o século das cidades, no tempo que é o da economia digital, e diante da rara oportunidade de vermos o município conquistando sua autonomia financeira (art. 18 c/c art. 30, III, da Constituição), um conjunto de leis estaduais, estimuladas pelo CONFAZ, subvertem a lógica de reconhecer softwares como serviços. Acontece que a jurisprudência do STF jamais permitiu a tributação do software pelo ICMS. Sempre foram reconhecidos como serviços, implicando a incidência do ISS. O que a jurisprudência da Suprema Corte fez foi entender que, no caso dos softwares de prateleira - aqueles não personalizados - as cópias da parte física que hospedava tais programas, como o CD-ROM, serviria de base de cálculo do ICMS. No RE 176.626 (Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T, DJ 11.12.98), consta: "Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de 'licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador' 'matéria exclusiva da lide', efetivamente não podem os Estados instituir ICMS (...)". Em seguida, veio o esclarecimento: "dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado 'software de prateleira' (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio". Apesar da imprecisão da distinção, o fato é que o relator, Min. Sepúlveda Pertence, frisou que "o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo". Segundo o Ministro, "trata-se, pois, de operações que têm como objeto um direito de uso, bem incorpóreo insuscetível de ser incluído no conceito de mercadoria e, consequentemente, de sofrer a incidência do ICMS". O Min. Pertence realçou: "Os contratos de licenciamento e cessão são ajustes concernentes aos direitos de autor, firmados pelo titular desses direitos - que não é necessariamente, o vendedor do exemplar do programa - e o usuário do software". E arrematou: "Licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador, bem incorpóreo sobre o qual, não se cuidando de mercadoria, efetivamente não pode incidir o ICMS"10. Hoje, na quase totalidade as operações com software, além da ausência de suporte físico, sequer a titularidade da licença é transferida ao usuário. Modelos de negócios regidos pelo Direito Civil (e não pelo Direito Comercial), sem que haja transferência de titularidade sequer de cópias do software são as subscrições (assinaturas); os licenciamentos de uso por prazo determinado (mediante pagamento de mensalidades, anuidades, parcelas trienais, etc); e as operações SaaS (Software como Serviço), PaaS (Plataforma como Serviço) e IaaS, (infraestrutura como serviço), quando o contratante terá apenas o direito de usar o software, acessando a plataforma de desenvolvimento ou toda a Infraestrutura, além do próprio software. Quando o STF definiu a incidência do ISS no leasing financeiro e no lease back (RE 547.245, DJe 5/3/2010), o Min. Cezar Peluso afirmou: "as dificuldades teóricas opostas pelas teses contrárias [que definem serviço como obrigação de fazer] a todos os votos já proferidos vêm, (...), de um erro (...) não (...) apenas histórico, mas um erro de perspectiva, qual seja o tentar interpretar não apenas a complexidade da economia do mundo atual, mas sobretudo os instrumentos, institutos e figuras jurídicos com que o ordenamento regula tais atividades complexas com a aplicação de concepções adequadas a certa simplicidade do mundo do império romano, em que certo número de contratos típicos apresentavam obrigações explicáveis com base na distinção escolástica entre obrigações de dar, de fazer e de não fazer". No referido case, o Min. Joaquim Barbosa afastou a classificação das obrigações como critério a definir, numa dada atividade econômica, a incidência ou não do ISS: "[...] a rápida evolução social tem levado à obsolescência de certos conceitos jurídicos arraigados, que não podem permanecer impermeáveis a novas avaliações (ainda que para confirmá-los). Ideias como a divisão das obrigações em 'dar' e 'fazer' desafiam a caracterização de operações nas quais a distinção dos meios de formatação do negócio jurídico cede espaço às funções econômica e social das operações e à postura dos sujeitos envolvidos (e.g., software as service, distribuição de conteúdo de entretenimento por novas tecnologias)". Logo, as atividades in comercium não se aderem à classificação "dar, fazer e não fazer", ensina Alberto Macedo. Diferentemente das mercadorias, em que o dar fica limitado a uma ação e um objeto específico, tangível; nos serviços, cujas espécies ganham uma variedade cada vez maior, a atividade não se resume a uma única ação, e muito menos a um objeto, contendo diversas ações, as quais, sejam imediatas ou mediatas, ensejam utilidades, pelas quais paga o contratante do serviço11. No RE 651.70312, definiu-se que serviço é mais do que obrigação de fazer, sendo um bem imaterial usufruído pelo uso, a facilidade, a utilidade, que vêm com as licenças, as cessões de direito. Nesse sentido, eis o item 3 da Lista de Serviços: "3 - Serviços prestados mediante locação, cessão de direito de uso e congêneres". A verdade é que a autonomia financeira dos municípios é uma ideia cujo tempo chegou. O advento da Indústria 4.0, somada à demanda por cidades inteligentes13 e ao crescimento e consolidação de um robusto setor de serviços fizeram com que o ISS deixasse de ser uma utopia e passasse a significar dinheiro no caixa dos municípios. É a realização da antevisão da Constituição de 1988, no art. 156, III, que assegurou a autonomia financeira às municipalidades, num propósito transformador. E a Constituição levou às últimas consequências a necessidade de os municípios gozarem de autonomia financeira. Tanto que, segundo o art. 34, V, "b", a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para reorganizar as finanças da unidade da Federação que "deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei". Não bastasse, um dos princípios constitucionais sensíveis expresso na alínea "c" do inciso VII do art. 34 é o de assegurar a observância da "autonomia municipal". É um tributo ao passado. Referindo-se ao aumento da receita municipal na Constituição de 1946, o então deputado Aliomar Baleeiro anotou: "A isso se vem chamando a revolução municipal, e, em verdade, essa inovação terá a consequência política de abrandar o domínio que os governadores exerciam ilimitadamente sobre as populações do interior, deles inteiramente dependentes. Enfim, a Constituição foi assinada sobre o papel. Resta, agora, gravá-la em todos os corações e consciências". Victor Nunes, em seu "Coronelismo, Enxada e Voto", registrou: "Apertados por um lado pelo fisco da Nação, as províncias acabavam por espremer os municípios numa estreitíssima faixa tributária, que mal lhes permitia definhar na indigência". Mesmo Alcântara Machado, citado por Victor Nunes Leal, alertava: "Que fazem os Estados, premidos pelas circunstâncias? De uma parte, sacam desvairadamente contra o futuro, comprometendo o erário em ruinosas operações de crédito, de outra parte, invadem a esfera tributária, própria dos municípios, estancando as fontes de vida local... Reduzidas à pobreza pela União, os Estados, por seu turno, reduzem à miséria os municípios". E o triunfo dos municípios chega para somar, jamais para dividir. Não há qualquer razão para temer um esvaziamento da base tributária dos estados com a chegada da economia digital. Temos mais de 50 bilhões de dispositivos físicos conectados à Internet14. A chegada da Internet das Coisas (IoT)15 fará com que tudo tenha potencial de se transformar num hardware. Uma geladeira, um fogão, um carro, um relógio..., todos eles poderão integrar essa vasta economia digital. E não será apenas a IoT que poderá incrementar com mercadorias a realidade econômica. Klaus Schwab, do Fórum Econômico Mundial, anota: "As impressoras 3D, por exemplo, agora podem produzir quaisquer coisas, desde peças de motor até gêneros alimentícios e células vivas; com o surgimento da internet das coisas, podemos pedir aos nossos assistentes pessoais virtuais que desliguem as luzes da sala ou aumentem o aquecimento; robôs, drones e carros autônomos estão aprendendo a interagir com o mundo de forma cada vez mais natural"16. A conclusão não poderia ser outra. É inconstitucional a cobrança do ICMS em qualquer operação com software, já que essas atividades são passiveis da cobrança do ISS, pela lista anexa à LC 116/2003, conforme o art. 156, III, da Constituição Federal. Subscrever o comportamento desleal de alguns estados e do CONFAZ contra os municípios, entes constitucionalmente autorizados a cobrar o imposto devido nessas operações, que é o ISS, será como se, num ato de força, e em violação à Constituição, obrigássemos drones a se moverem como locomotivas a vapor. Um alinhamento raro de astros permitiu o encontro entre o século das cidades e a Quarta Revolução Industrial. Esse encontro representa as chances do florescimento de um mundo ainda virgem. Macular a Constituição para entregar essa aurora ao crepúsculo do ICMS realizaria a advertência de Raymundo Faoro, que, explicando como agem "os donos do poder", imortalizou seu pensamento com as seguintes palavras: "Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity, segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem". __________ 1 ADI 4623 (Min. Cármen Lúcia), da CNI, que questiona o art. 25, § 6º, da Lei 7.098/1998-MT. Cuida de diferenciação de créditos por alíquotas interna e interestadual de ICMS em razão de ser os bens destinados a uso, consumo ou ativo permanente e sobre a utilização de serviço cuja prestação se tenha iniciado em outro Estado e não esteja vinculada a operação ou prestação subsequente. A CNI alega: 1) violação aos arts. 19, III e 152, da CF, eis que o dispositivo atacado cria distinção tributária entre bens em razão de sua procedência; 2) violação ao art. 155, § 2º, I da CF, pois o dispositivo assegura o crédito do montante cobrado nas operações anteriores 'pelo mesmo ou outro Estado ou DF' ao passo que a norma atacada restringe o crédito em função de quem cobrou nas etapas anteriores, causando, assim, cumulatividade; 3) violação ao art. 155, § 2º, XII, c, da CF, que comete à lei complementar a disciplina do regime de compensação do imposto, matéria invadida pela norma estadual atacada, que ainda distingue em função da origem do bem. 2 Na análise da cautelar da ADI 1945, um dos fundamentos apresentados pelo Min. Nelson Jobim foi o de que deve incidir ICMS sobre os serviços de software, pois a Constituição prevê a incidência do imposto sobre energia elétrica. O Min. Ilmar Galvão pontuou: "Mas se não houvesse essa forma, jamais se cobraria ICMS sobre energia elétrica. Porque se diria que não é uma mercadoria que pode ser estocada em armazém etc". O mesmo fez o Min. Marco Aurélio: "Dir-se-á: tem-se a problemática da energia elétrica. Mas, quanto à energia elétrica, o próprio constituinte de 1988 versou a matéria. Tratou de forma específica porque, a rigor, não se poderia cogitar de circulação de mercadorias e de operação de circulação de mercadoria". Por fim, o Min. Moreira Alves: "Aqui há problema de aplicação analógica. Considerar que havia analogia...". De fato, o § 3º do art. 155 dispôs: "À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo [ICMS] e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País". 3 A Primeira Revolução Industrial foi "provocada pela mecanização da fiação e da tecelagem" e "se iniciou na indústria têxtil da Grã-Bretanha em meados do século XVIII". Entre 1870 e 1930, "o rádio, o telefone, a televisão, os eletrodomésticos e a iluminação elétrica mostraram o poder transformador da energia elétrica". Foi a Segunda Revolução Industrial. A partir de 1950, a teoria da informação e a computação digital "passaram por avanços revolucionários". Foi a Terceira. Agora, abriu-se o portal da Indústria 4.0, com a Quarta Revolução Industrial. O retrospecto é de Klaus Schwab, do Fórum Econômico Mundial. 4 "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação"; "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre". 5 Reiterou que "os conceitos de direito privado não podem ser desnaturados pelo direito tributário, na forma do art. 110 do CTN, à luz da interpretação do art. 146, III, c/c o art. 155, II e § 2º, IX, 'a', da CF". 6 Relativamente a 2016, a dívida de Minas Gerais era dramática: 203% da Receita Corrente Líquida - RCL. 7 Na ADI 28 (Min. Sydney Sanches, DJ 12/11/93), o STF derrubou a Lei 6.352/88, do Estado de São Paulo, que criou o "Adicional de Imposto de Renda" (art. 155, II, CF). Tal tributo não pode ser instituído pelos Estados e DF, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista no caput do art. 146, disponha sobre as matérias de seus incisos e alíneas. 8 Global Innovation Index 2018. 9 Acemoglu, Daron. Robinson, James A. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Tradução Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 189. 10 RE 176.626 (Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T, DJ 11/12/98). 11 Como anota Alberto Macedo, "empresas de locação de automóveis, por exemplo, atuam no comércio, exercendo atividade econômica. Certamente desenvolvem suas marcas, e como o objeto de suas atividades (locação de automóveis) não são produtos, obviamente só podem ser serviços". MACEDO, Alberto. ISS - O conceito econômico de serviços já foi juridicizado há tempos também pelo direito privado. In: XII CNET - Direito Tributário e os Novos Horizontes do Processo. São Paulo: Editora Noeses, 2015, p. 21. 12 No RE 176.626 (DJ 11/12/98), registrou o Min. Sepúlveda Pertence: "As cláusulas desses contratos - voltadas à garantia dos direitos do autor, e não à disciplina das condições do negócio realizado com o exemplar - limitam a liberdade do adquirente da cópia quanto ao uso do programa, estabelecendo, por exemplo, a proibição de uso simultâneo do software em mais de um computador, a proibição de aluguel, de reprodução, de decomposição, de separação dos seus componentes e assim por diante". 13 Cidades inteligentes fazem intenso e qualitativo uso da tecnologia e da inovação na superação de seus problemas, pelo particular e pelo Estado. A internet, com bandas cada vez mais largas, e suas múltiplas possibilidades, atreladas a bilhões de dispositivos inteligentes, são peças centrais na constituição desses laboratórios. 14 André Marcelo Panhan, Leonardo Souza Mendes e Gean Davis Breda lembram que "no ano de 2020 serão cerca de 50 bilhões de dispositivos conectados à Internet e este crescimento será exponencial para as próximas décadas". Construindo cidades inteligentes / André Marcelo Panhan, Leonardo Souza Mendes, Gean Davis Breda. 1ª ed. Curitiba: Appris, 2016, p. 64. 15 Klaus Schwab apresenta a IoT como o "elemento central da infraestrutura da Quarta Revolução Industrial". E explica: "Trata de uma gama de sensores inteligentes conectados que coletam, processam e transformam os dados de acordo com a necessidade; os dados são, então, enviados para outros dispositivos ou indivíduos para atender aos objetivos de um sistema ou usuário". Klaus Schwab, p. 148. 16 Schwab, Klaus, p. 56.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

STF em 2020: a cruz, a espada e as colunas

Em 1899, o juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes registrou: "Não é completamente verdadeiro que na realidade prática (e eu não conheço razão alguma pela qual a teoria deveria estar em desacordo com a realidade dos fatos) uma dada palavra, ou até determinada combinação de palavras, tenha um só significado e nenhum outro. Qualquer palavra tem geralmente vários significados, inclusive no dicionário". Holmes sabe o que diz. Merece crédito. E se as palavras têm múltiplos significados, como ele afirmou, muito mais possibilidades há na interpretação dos símbolos, especialmente aqueles que adornam a atmosfera das Supremas Cortes. Se os artistas, os escultores, os arquitetos e todos os tantos agentes responsáveis por imortalizar prédios incutiram em suas criações certos sentidos, somos nós, os senhores e senhoras do hoje, que devemos decidir quais significados nós iremos lhes conferir, nessa que é a jornada do nosso tempo, a era que já chegou. Thomas Jefferson, referindo-se ao originalismo enquanto tabu hermenêutico, disse que "a Terra pertence aos vivos" e que "os mortos não deveriam governar os vivos". Ele foi um homem que preferiu viver a verdade e percorrer o caminho. Não simplesmente escreveu livros ou fez discursos. Ele se tornou o próprio conteúdo dos livros, o tema central dos mais relevantes discursos. Por quê, então, não podemos dizer o mesmo quanto aos símbolos que compõem a nossa Suprema Corte? Há de residir em nós o poder de ressignificá-los à luz das nossas aspirações cívicas, enquanto cidadãos constitucionais que somos. Símbolos têm poder. E, com o poder que têm, se impõem sobre as pessoas, dirigindo seus comportamentos, ainda que contra suas vontades. Não é diferente no Supremo Tribunal. Na capital Federal, Brasília, desde 21 de abril de 1960, o edifício-sede fica na Praça dos Três Poderes, obra do arquiteto Oscar Niemeyer, com projeto original de Lúcio Costa. É um prédio público repleto de símbolos. Primeiro, a espada. Na entrada da sede está a estátua que personifica a Justiça, do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, em granito de Petrópolis e pedra monolítica. A Deusa, vendada e sentada em seu trono, empunha com a mão direita uma espada. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, ela confere o quão afiada está a lâmina. Esse foi o símbolo escolhido para, diante dos olhos de todos os que entram e saem do Tribunal, representar a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal. O próprio site da Corte explica: "Em primeiro lugar, a espada é o símbolo do estado militar e de sua virtude, a barreira, bem como de sua função, o poderio. O poderio tem um duplo aspecto: o destruidor (embora essa destruição possa aplicar-se contra a injustiça, a maleficência e a ignorância, e por causa disso, tornar-se positiva); e o construtor, pois estabelece e mantém a paz e a justiça (CHEVALIER, 2002, p. 392). É aplicada contra a injustiça, maleficência e ignorância. Tornando-se positiva, ela estabelece e mantém a paz e a justiça. De acordo com Udo Becker (1999, p. 101), quando associada com o símbolo da Justiça, simboliza a decisão, a separação entre o bem e mal, sendo misericordiosa com o primeiro e golpeando e punindo o segundo. É a força máxima para punir o culpado e perdoar o inocente. (BECKER, 1999, p. 101)".1 Segundo a descrição oficial, a espada mostra uma Justiça constitucional misericordiosa com uns e cruel com outros, punindo e golpeando, se preciso for. Esse elemento termina por habitar as moradas sem trancas do nosso inconsciente. Acontece que a jurisdição constitucional exercida por uma Suprema Corte não deve expressar o poder, mas moderá-lo, pacificamente, zelando pela sua autoridade. O Preâmbulo da Constituição brasileira nos reconhece como uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias". Somos da paz, não da guerra. Na ordem interna, e na internacional, primamos por soluções pacíficas. Logo, longe de impor cegamente o seu poder, sentada num trono, de posse de uma espada amolada, selecionando pessoas para misericórdia ou punição, o que se reclama de uma jurisdição constitucional humanista é a capacidade de, por meio da sua autoridade, inspirar em nós o que Abraham Lincoln chamava de "os anjos bons da nossa natureza". Ressignificando a espada, fomos capazes de construir uma fórmula original, criativa, a partir da qual passamos a convidar as pessoas a se sentarem juntas, numa mesa redonda - sem cabeceiras -, para olharem reflexivamente para os seus conflitos e, de boa-fé, e com esforço sincero, renunciarem reciprocamente a questões individuais na busca de uma solução coletiva. Como diz o min. Ayres Britto, "uma saída para chamar de nossa".2 Falo das conciliações no STF. A Suprema Corte tem, por meio das conciliações, ressignificado a estátua da Justiça. Levantando a venda para olhar para a angústia das partes, suas expectativas e frustrações, ministros e ministras têm se colocado no lugar do outro, e, sem saírem de sua condição de julgadores, passam a interagir mais em busca de soluções construídas ali, premidas pela realidade, como fazem os bons artesãos. O Tribunal se levanta do seu trono e, de pé, percorre o caminho que precisa ser percorrido. A estátua da Justiça alcança o estado da arte na sua ressignificação ao abrir mão da espada, para que não mais divida as pessoas em merecedoras de misericórdia ou de punição. Humanista e contemporânea, guiada por uma Constituição que é uma heroína generosa, ela passa a, sem espada, de pé, e olhando nos olhos dos que vindicam justiça, convidá-los a, sentados numa mesa sem lugares marcados, nem posições mais elevadas do que as de outros, refletirem, juntos, sobre suas condições, abrindo caminho para a construção mais humana, pessoal e sincera de soluções individualizadas. Aglutinando conciliações e acordos supervisionados, o STF deu novo sentido à jurisdição constitucional brasileira, apresentando ao mundo algo original, que pode até encontrar paralelos em outras jurisdições - como o engajamento significativo sul-africano -, mas que, como sabemos, é fruto de um jeito de ser que é único. Um jeito de ser consistente na máxima: "é conversando que a gente se entende". A expertise nasce com o requinte brasileiro e, na realidade diária de uma prática intensa, já é robusta o suficiente para ser apresentada, com orgulho, ao constitucionalismo global. Mas não é apenas a espada postada na entrada do STF que precisa ganhar um novo significado. O Crucifixo do plenário também. "A arte existe porque a vida não basta". Foi Ferreira Gullar quem disse. No plenário do STF, há uma obra de arte formada pelo painel com relevo em mármore repleto de nichos triangulares de autoria de Athos Bulcão. Os nichos têm três camadas, como três são as instâncias judiciais. Cobrem a parede, estando neles o Brasão de Armas Nacionais, e, num nicho maior, o Cristo Crucificado em madeira pau-brasil, do escultor Alfredo Ceschiatti. A nossa história é feita de cruzes e árvores. Os colonizadores chamaram Terra (ou Ilha) de Vera "Cruz". Preferimos "Brasil", a árvore cujo vermelho interno, de tão intenso, parece um braseiro. Uma interpretação respeitosa da Constituição veria, pregado simbolicamente em toras de pau-brasil, a pessoa que não contou com um julgamento justo nem com as virtudes do caráter contramajoritário da jurisdição constitucional. Tanto que nada há nas turmas do STF, órgãos que não declaram a inconstitucionalidade de leis. Uma pessoa simples se opôs ao poder valendo-se dos direitos fundamentais e terminou sentenciada pelas vozes das ruas. Queria um juiz ou juíza independente para apreciar o seu caso. Terminou diante de alguém que, lavando as mãos, ordenou que o povo, gritando, proferisse um veredito. São episódios como esse que o constitucionalismo contemporâneo visa a impedir. O caráter contramajoritário da jurisdição constitucional existe para impedir que multidões apaixonadas sejam as responsáveis pelo destino de minorias isoladas, de grupos vulneráveis, de indivíduos amedrontados ou esmagados pela força irrecusável dos poderosos. Aquela obra de arte chama a atenção dos ministros e ministras do STF para isso, para a grave responsabilidade que é estar ali. A peça artística que combina o réu com as toras de pau-brasil, cujo vermelho intenso tanto pode remeter-nos para o nosso sangue, como para o sangue derramado pela nossa colonização extrativista em desfavor da Mãe-natureza, realiza o inciso IX do art. 5º da Constituição, que diz ser "livre a expressão da atividade artística". É um bem material portador de referência à identidade, à ação, à memória de um grupo formador da sociedade brasileira, sendo uma "forma de expressão", uma "criação artística" e um "objeto destinado à manifestação artístico-culturais". Tudo conforme os incisos do art. 216 da Constituição Federal. Em outras Supremas Cortes, o espaço para a criatividade humana na construção de símbolos expostos ao público tem sido como deve ser: livre. A Menorá judaica está na Suprema Corte de Israel. Na Coreia do Sul, o yin-yang está na Corte Constitucional, convidando não à religiosidade, mas a sentir o fluxo de forças opostas da natureza, como a luz e a escuridão. Na África do Sul, o plenário imita uma floresta. Na Nova Zelândia, recria o cone de semente da árvore Kauri, popular no país. No Brasil, foi o pau-brasil que foi lembrado para, de uma forma original, exortar o STF a se manter sempre vigilante ao seu caráter contramajoritário, a jamais lavar as mãos, muito menos se guiar em atenção ao que pede a massa que forma as maiorias postadas por aí, gritando e ordenando: "crucifique-o!", numa ação que metaforicamente pode ser associada ao duelo histórico entre maiorias e minorias. A peça de arte de Ceschiatti convida-nos a emprestar-lhe significado. De fato, somos capazes de ressignificar o legado dos nossos antepassados. A arte é assim. Cabe a nós fazê-lo em sintonia com a Constituição. Por fim, as colunas. As linhas arquitetônicas de Oscar Niemeyer dão o tom do STF. Nas colunas de sustentação do prédio da Suprema Corte, há linhas retas na parte externa e linhas curvas no desenho interno. Uma ao lado da outra. Ambas, juntas, mantêm o prédio de pé, dando-lhe conformação, imortalizando-o. É dessa alquimia que nasce a jurisdição constitucional. A missão do STF em 2020 há de ser, por meio dos seus membros, cultivar o equilíbrio entre o Direito e a Justiça, à luz da Constituição. Sem ambos, a estrutura rui, tudo desmorona. A Corte não deve ser temida, mas respeitada, ela não deve exalar poder, mas autoridade e de suas decisões não há de brotar indiferença, mas esperança. O Direito e a Justiça, juntos e em harmonia, são poderosos parâmetros de funcionamento de uma Casa que nasceu para traçar destinos nacionais. No Direito, como na Vida, o essencial é reconhecer os polos e, com sabedoria, mantê-los em harmonia, para o bem do todo. É como combinar razão e sensibilidade. Um elemento alimentando o outro, em nome da unidade que se almeja alcançar. Quando o Direito dizia que a pena era de morte, ele próprio, o Direito, deixava aberta a via da Justiça para que o juiz, por razões de humanidade, convertesse a pena capital em prisão perpétua. E ele o fez, livrando da morte pessoas como Nelson Mandela, um líder essencial para a promoção do reencontro da África do Sul com ela mesma, décadas depois. Direito e Justiça. Não foi diferente em Israel. Lá, o Direito dizia que não havia uma Constituição, mas a Justiça fez com que a Suprema Corte entendesse que onde houver uma lei, mesmo que ordinária, dispondo sobre a liberdade e a dignidade das pessoas, haverá, materialmente, uma Constituição. Dessa exegese nasceu uma Constituição material que consolidou um oásis de democracia no oriente médio. Direito e Justiça novamente. No Brasil, a Constituição usou a expressão "homem" e "mulher" ao dispor, num comando, sobre a família. Era a redação do Direito. Mas a Justiça enxergava além. Quando olhava para o dispositivo, a Justiça enxergava "seres humanos". Que em 2020 haja, no STF, a imaculada harmonia entre as linhas retas e curvas, entre o Direito e a Justiça, para que, juntos, unidos em nossa diversidade, vejamos a chama da nossa democracia constitucional queimar ininterruptamente, vitalizando, com a sua luz, os compromissos firmados pelos nossos antepassados na Constituição de 1988, que sempre serão, pelas gerações presentes, reafirmados de modo ainda mais generoso. A cruz, a espada e as colunas. Há muito poder nesses símbolos. Nós, conscientes que somos do fundamental papel que exercemos na jurisdição constitucional de uma democracia aberta, tolerante e inclusiva como a brasileira, podemos dar-lhes os significados do nosso tempo, todos harmônicos com a Constituição, porque, no fundo, nós, e apenas nós, o povo, somos o poder. E jamais deixaremos de ser. ____________ 1 Disponível em: clique aqui. 2 Disponível: clique aqui.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Sobre estrelas, turmalinas e a Constituição

Todos aqueles que entregam suas vidas para a elevada tarefa de interpretar textos jurídicos deveriam ler a obra "H. Stern: a história do homem e da empresa", da jornalista Consuelo Dieguez, publicada pela Editora Record. É um material profundamente estimulante aos humanistas. Há dor, beleza, desafios e triunfo. Há muita sabedoria também. A obra não fala exatamente sobre pedras, mas como se faz arte a partir delas. Não apresenta um empresário somente, mas um judeu alemão refugiado que se tornou um apaixonado pelo Brasil. Não descreve episódios esparsos, pois o que faz é revelar uma rica biografia. Não constrói narrativas. Apresenta os fatos e eles, de tão marcantes, cantam por si. Traz uma mensagem que toca, transforma e merece ser levada adiante. O véu inaugural cai com o capítulo "Noite dos Cristais", em alusão à madrugada de 9 para 10 de novembro de 1938, na Alemanha nazista. O engenheiro Kurt Stern está recostado em uma das mesas do escritório da sua empresa de instalações elétricas industriais, na cidade de Essen, na Renânia do Norte-Vestfália. Seu filho, Hans, de 16 anos, está de pé, com o rosto colado numa grande janela envidraçada. São judeus alemães. Consuelo Dieguez rememora: "O saldo daquela noite de terror por toda a Alemanha foram 815 empresas totalmente destruídas e 7.500 saqueadas; 119 sinagogas incendiadas e mais 176 completamente destruídas; 20 mil judeus presos e levados para campos de concentração; outros 36 gravemente feridos e mais dezenas deles mortos por assassinato ou chacinados quando tentavam escapar do fogo". A escritora segue expondo as faces do mal: "O governo do Terceiro Reich não só ignorou a violência - que secretamente estimulara através de instruções aos líderes da SS - como decidiu impor uma descabia penalidade à comunidade judaica. Através de um bizarro comunicado do Ministério da Fazenda, os judeus foram avisados de que seriam responsabilizados pelas pilhagens e destruição de suas próprias propriedades, 'em virtude de seus crimes abomináveis'".1 Gustav, pai de Kurt e, portanto, avô do jovem Hans, tinha uma linda casa, em Nassau, cidadezinha de veraneio entre Frankfurt e Wiesbaden, estação de águas onde a alta sociedade alemã se divertia. Era um chalé de três andares, com floreiras sob as janelas brancas que se abriam para um jardim gramado, sombreado por árvores frondosas que, na primavera, ficavam carregadas de flor. Na parte de trás do chalé, havia um imenso pomar onde Hans, criança, colhia maçãs. Depois da madrugada de terror da Noite dos Cristais, autoridades nazistas comunicaram a Gustav que sua casa seria confiscada. Desolado, ele suicidou-se.2 Com a escalada do terror, a solução foi deixar o país. A família Stern parte para o Rio de Janeiro, de navio. Numa carta que enviou aos amigos, na Alemanha, Hans divide as emoções da chegada: "E, ao aparecer o símbolo do Rio, o Pão de Açúcar, sabia que não demoraria muito e eu seria um homem livre, uma emoção que não pode ser compartilhada depois de tudo o que sofri".3 "Eu seria um homem livre". No primeiro registro que fez sobre o Brasil, aquele jovem imortalizou a liberdade. A mesma liberdade prevista no Preâmbulo da Constituição de 1988 e que, pelo caput do art. 5º, parecia destinada a pessoas como ele: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Hans foi, por muito tempo, um "estrangeiro residente no país". Enquanto a Alemanha nazista privava pessoas como ele de tudo, até da própria vida, pelo mero fato de serem judeus - mesmo sendo, os Stern, alemães -, a Constituição brasileira de 1988 olha para o estrangeiro que aqui reside e entrega a ele a base da existência civilizada: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Não bastasse, elege como um dos objetivos fundamentais da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV). Tudo o que os Stern queriam, naquele momento sombrio da história, era cumprir a vida dispondo dos direitos como esses assegurados pelo art. 3º, IV da Constituição de 1988, que cuida, acima de tudo, da vedação a preconceitos e discriminações. Por isso o Brasil era para eles mais do que um esverdeado belo, exótico e um tanto selvagem. Seria o local onde ele viveria a vida em abundância. Tudo com liberdade, que hoje se desdobra no inciso XLI do mesmo art. 5º, ao dispor: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". Também no inciso LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Tempos depois, vieram os tesouros. "Dos duzentos pacotes cuidadosamente embalados na Alemanha, apenas vinte estavam intactos. ... a parte do carregamento que eles aguardavam com mais ansiedade - a biblioteca da família, que incluía uma coleção de livros raros e o acordeão de Hans - chegara intacta"4, anota Consuelo Dieguez. Livros são o início, o fim e o meio. Sequer impostos podemos lhes impor. É vedado, como sabemos, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão (art. 150, VI, "d" da Constituição). A família Stern entregou suas esperanças a eles. Em 1939, todavia, para se sustentar, tiveram de vendê-los. A livraria Kosmos, no Centro do Rio, tornou-se uma grande compradora daquelas obras sobre temas variados - de romances e ensaios filosóficos a tratados científicos.5 O livro de Consuelo Dieguez mostra que Hans Stern teve de se virar cedo. "Pela manhã e à tarde, trabalhava no armazém do tio. À noite, dedicava-se à filatelia."6 Em pouco tempo virou gerente do departamento de organização interna, criado para ele, com dois funcionários à sua disposição.7 Não era raro que se esquecesse de almoçar. "Trabalhava de oito a dez horas por dia, fora as quatro horas que perdia com o transporte de ônibus e bonde para ir e voltar do trabalho". Exercia o direito contemplado no inciso XIII do art. 5º da nossa atual Constituição: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Muito da obra revela a relação sublime entre Hans Stern e seu pai, Kurt. Um hiato de tristeza, todavia, se deixa conhecer quando Kurt foi convidado para dirigir uma usina hidrelétrica em Parnaíba, Piauí. "Aceitou a proposta por absoluta falta de opção. Com seu português precário, tinha dificuldades em se empregar e não podia se dar o luxo de recusar trabalho"8, explica Consuelo Dieguez. O dinheiro que mandava de Parnaíba viabilizara a mudança de Hans e da mãe da pensão onde moravam para um apartamento de quarto e sala na travessa Santa Leocádia, em Copacabana. Cobria a maior parte das despesas.9 A vida de Kurt em Parnaíba não era fácil. Contava com poucas pessoas com quem podia conversar em alemão e ganhava apenas o suficiente para viver e sustentar a mulher e o filho no Rio com o mínimo de decência. Jamais se queixou. Tinha feito alguns amigos e gostava de ajudar a comunidade onde vivia com seus conhecimentos de engenheiro. Virara, em Parnaíba, "uma simpática autoridade".10 Tempos depois, em 15 de agosto de 1942, já decidido a voltar para o Rio de Janeiro, algo impensável lhe ocorre. O Baependi, embarcação brasileira de passageiros e carga, fora torpedeada por um submarino alemão, deixando um saldo de 270 mortos. Imagens mostravam corpos queimados e desmembrados, rostos endurecidos com expressões aterrorizadas, bebês e crianças com as faces enterradas na areia. Um horror. Posteriormente, mais quatro navios seriam atacados na costa nordestina pelo mesmo submarino, provocando a morte de mais de mil pessoas. Getúlio Vargas declarou guerra às potências do Eixo, na manhã do dia 22 de agosto. Cidadãos alemães, italianos e japoneses começaram a ser presos no Brasil, assim como fechadas as empresas desses países, e todos os seus bens confiscados pela polícia do Estado.11 Kurt estava em sua sala, na sede da usina elétrica, esvaziando as gavetas, quando um grupo de policiais armados o levou para a cadeia, em Teresina. Lá, foi trancado em uma cela com outros dois alemães. Os inimigos do Estado, além de Kurt, eram: um padre católico e o cônsul da Alemanha no Piauí. Kurt, de judeu fugido da Alemanha, se viu, no Piauí, na condição de preso como suspeito de "atividades antibrasileiras".12 Indignado, Hans enviou um telegrama ao governador do Piauí, explicando a diferença entre um alemão e um judeu refugiado alemão. O pai foi solto dias depois. Kurt sempre se lembraria, às gargalhadas, daquele episódio. Consuelo Dieguez anota: "a prisão fora amena. Ele e seus compatriotas passaram o tempo jogando skat, um jogo alemão de baralho, semelhante ao bridge, e tomando cerveja".13 Em 1944, Hans se naturaliza brasileiro14. Gozou de seus direitos numa plenitude, como hoje determina o art. 12, § 2º da Constituição: "A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição". É como se a Constituição dissesse: no Brasil, seja brasileira nato, seja naturalizado, todos têm o direito à felicidade. São, ambos, irmãos no seio da nação. Hans não era apenas um empresário. Era um homem que pensava o país. "O Brasil poderia prover o mundo inteiro com tesouros minerais, poderia alimentar com suas regiões de terras férteis toda a humanidade. Poderia..., se quisesse. Mas não quer", registrou. "Outra barreira era a precariedade da educação tanto básica quanto superior"15, disse mais adiante, deixando descoberta a sua fome por uma grandeza nacional. A Constituição brasileira prevê, no art. 6º, que a educação é um dos direitos sociais. O art. 23, V constitui como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios "proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação". Tudo isso numa Constituição que trouxe o Capítulo III, Seção I: "Da Educação", cujo art. 205 diz: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". É, de certa forma, o sonho sonhado por Hans. A desigualdade social igualmente o preocupava. "Mesmo no carnaval, a festa mais popular da cidade maravilhosa do mundo, ficava clara a marcante desigualdade entre classes"16, anotou. Interessante notar que a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais de regionais (art. 3º, III) não é apenas um dos objetivos fundamentais da República. A redução das desigualdades regionais e sociais constitui um dos princípios da ordem econômica (art. 170, VII) na Constituição do Brasil. A obra segue. O encontro entre Hans e as pedras se deu na Cristab S.A., uma empresa de exportação de cristais de rocha e de pedras de cor na qual começou a trabalhar. Ele "tinha inglês e alemão fluentes, além de um francês bastante razoável - conhecimentos fundamentais para uma forma exportadora - e uma datilografia irretocável". Logo foi promovido a gerente.17 Por ter um temperamento sério e responsável, além de enorme curiosidade, Hans foi encarregado de comprar pedras e cristais para a empresa. Maravilhou-se com a variedade e o colorido daqueles minerais que ele nunca imaginara que pudessem existir.18 Turmalinas, topázios, águas-marinhas e ametistas..., ele passou a selecionar, analisar e comprar as pedras, aprendendo a distinguir as mais bonitas, as mais perfeitas e as mais valiosas. Isso o entusiasmou bastante.19 Era, talvez sem saber, um hermeneuta, um intérprete, alguém cuja missão e vocação são, a partir de uma matéria-prima, às vezes bruta, interpretar a realidade morta e estática dando-lhe vida e movimento. Tempos depois, decidiu seguir o seu próprio destino. Por amor às pedras, vendeu por 200 dólares o seu acordeão. Com o dinheiro e mais um pequeno empréstimo bancário, abriu sua firma.20 Hans Stern trazia as pedras em consignação de lapidários e garimpeiros de Minas Gerais e as revendia no Eixo São Paulo, Porto Alegre e Salvador, além de exportá-las para os Estados Unidos. Passava muito tempo viajando, "em busca de novos clientes"21. Aos 27 anos, estava convencido de que as turmalinas verdes, rosas e azuis, os topázios dourados e as brilhantes águas-marinhas atrairiam os turistas americanos tanto quando o atraíram. Se para os nativos pareciam banais, para ele eram magníficas.22 Segundo o art. 20, IX, são bens da União os recursos minerais, inclusive os do subsolo. O art. 22, XII da Constituição dispõe competir privativamente à União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia. O § 3º assevera: "O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros". Numa época em que não havia Código de Defesa do Consumidor, ele criou um "certificado mundial de garantia para suas pedras". Consuelo Dieguez anota: "O certificado era um instrumento absolutamente inovador no mercado brasileiro, que não deixava ao consumidor praticamente nenhum espaço para reclamação".23 Com a ideia, realizava, por antecipação, o inciso V do art. 170 da Constituição atual, que aponta como um dos princípios da ordem econômica "a defesa do consumidor". O livro mostra momentos em que a empresa precisou demitir pessoas. Ricardo, filho de Hans, ao fazer as demissões, tinha o cuidado de "procurar saber se a pessoa era a única empregada da família, se tinha filhos, problemas de saúde ou outro agravante".24 Faz lembrar o art. 7º, I da Constituição: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos". Há mais elementos fascinantes nessa história. A H. Stern era - e segue sendo - uma empresa bem feminina. Para Kurt, pai de Hans, "as mulheres eram mais dedicadas, mais sérias e mais fáceis de lidar do que os homens". Conforme a empresa crescia, as mulheres foram ocupando cargos executivos.25 Vivia-se o que hoje está no inciso I do art. 5º da Constituição: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Também, do inciso XX do art. 7º, que dispõe serem direitos dos trabalhadores, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei". Mas não se tratava apenas de proporcionar empregos às mulheres. Hans vivia a verdade e percorria o caminho em tudo o que fazia. Consuelo Dieguez mostra que ele "se impressionava como os jornais noticiavam diariamente agressões contra as mulheres perpetradas pelos seus maridos, amantes e namorados. E não se conformava com o fato de esses casos violentos serem chamados de 'crimes de amor'".26 Trazia, dentro de si, como se fosse uma pedra preciosa abrigada no peito, o art. 5º, III da Constituição, segundo o qual "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". No fundo, o Brasil de Hans Stern é o descrito pelo preâmbulo da Constituição de 1988, formado por uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". O livro também mostra que a H. Stern sempre oferecia algo novo ao mercado.27 Hans jamais opunha resistência às ideias dos mais novos.28 Uma vez mais abraçava um ideal constitucional atual. Como consta do Capítulo IV da Constituição, dedicado à Ciência, Tecnologia e Inovação, "o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação" (art. 218). Mais do que isso, há a liberdade de inovar, assegurada no inciso IX do art. 5º, que diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Se os brasileiros desprezavam suas pedras por considerá-las de menor valor, os estrangeiros se encarregavam de comprar grandes quantidades delas. E, ao transformar as pedras em joias, com ouro da melhor qualidade e acabamento de primeira, Hans conseguiu "provar para o mundo que chamar de semipreciosas as intensas águas-marinhas, os citrinos cintilantes, os topázios com paleta de cor infinita e as deslumbrantes turmalinas era uma heresia". Ele tratou de "abolir o termo e ao dizer que, da mesma forma que não existe uma pessoa semi-honesta ou semigrávida, não existe pedra semipreciosa".29 Amava verdadeiramente o Brasil. Não bastasse - e o que vimos até aqui já é extasiante -, a H. Stern nasceu cosmopolita. Houve um dia em que recebeu mais de mil turistas em um mesmo dia. Foi no carnaval de 1951.30 Num mundo de líderes e liderados que têm ojeriza ao estrangeiro, Hans, que soube o que era a xenofobia, recebeu-os de braços abertos. Tudo em sintonia com a Constituição atual, a exemplo do que diz o art. 207, § 1º: "É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei". Também, o art. 218, § 7º: "O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput". Orientado por Kurt, Hans acreditava que a cultura da empresa tinha que ser a do comprometimento e da cooperação31. Acontece que hoje em dia, um dos princípios pelos quais se rege a República nas suas relações internacionais é o da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX). Nenhum funcionário jamais o viu levantar a voz ou destratar quem quer que fosse.32 A "única coisa que ele jamais perdoava era a desonestidade"33, anota Consuelo Dieguez. A obra mostra que a H. Stern montou uma área de recurso humanos, instituiu benefícios e criou uma fundação para os funcionários.34 Realizava, numa antevisão, o art. 6º da Constituição: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". Mas, se há pedras, há pedreiras e o senhor Hans teve de enfrentar as suas. Em 1963, com dificuldades de caixa, o governo de João Goulart precisava aumentar a arrecadação federal. Colocou no comando do Serviço Federal de Prevenção e Repressão de Infrações contra a Fazenda Nacional (SFPR) da Guanabara, o general Francisco Saraiva Martins, o "general Saraiva".35 A H. Stern, de grande visibilidade, virou um dos alvos favoritos do militar. Logo a turma encarregada da fiscalização "formou uma gangue e transformou expropriações em um negócio rentável para o grupo".36 Certo dia, ao receber a decisão judicial que dava ganho de causa à H. Stern e determinava a devolução de mercadorias irregularmente apreendidas, o general voltou cedo com os fiscais para apreendê-las novamente. Um dos diretores da H. Stern, Stefan Barczinski, proibiu a entrada. Os funcionários, ao saberem da chegada dos fiscais, cercaram o prédio, impedindo que subissem. O general chamou uma tropa do Exército para invadir a H. Stern, em vários andares do prédio da avenida Rio Branco. Com a empresa ocupada, ligou para Leonel Brizola, seu amigo e então apresentador de um programa popular na rádio Mayrink Veiga, o Grupo dos Onze. Brizola, aos brados, chamava os donos da empresa de "espoliadores da nação".37 A obra de Consuelo Dieguez se desenvolve bem, chegando a informar que os quatro meninos de Hans casaram-se, tiveram filhos, separaram-se e casaram-se novamente. Roberto é pai de uma menina; Ronaldo, de dois rapazes e uma moça; Ricardo, de um rapaz e duas meninas; e Rafael, de duas meninas. Como dizem, a exigência para trabalhar na empresa é a seguinte: "dar duro e trabalhar de verdade".38 Hans Stern, apesar de tudo o que sofreu com o nazismo, jamais deixou de amar a Alemanha. Tanto que, após Israel, foi o segundo país a ter lojas da H. Stern quando elas se expandiram para além das Américas.39 Soube distinguir e perdoar. A obra começa e termina com a imaculada relação entre Hans e seu pai, Kurt. Fora o pai quem lhe transmitira valores "como respeito ao próximo, lealdade e capacidade de resistir". Com Kurt, Hans aprendera a apreciar "a vida, a música, a poesia e a literatura e a jogar xadrez".40 Uma carta prova isso. Nela, Kurt abre a correspondência tratando o filho assim: "Meu querido Hans, meu filho, meu amigo, meu fiel camarada das horas difíceis". A partir daí, oferece um punhado de pedras filosóficas preciosas repletas de sabedoria: "Um ditado de Goeth: 'A vida, seja como for, é bela'".41 "Não podemos esquecer a ambição de subir e melhor a situação." "Aja espontaneamente somente quando as coisas forem boas e, fora disso, com reflexão e retardo." "A honestidade e as atitudes decentes sempre devem vir em primeiro lugar, mesmo que, ao primeiro momento, pareçam desvantajosas." "Seja econômico, mas não mesquinho!" "Domínio de si próprio em todas as coisas." "Não deixe que nada se torne fanatismo!" "Nós, os humanos com certa instrução intelectual, necessitamos, para a verdadeira alegria da vida, de outra ferramenta, ou seja, da cultura e do aperfeiçoamento intelectual." "Esta esperança e a confiança firme nunca nos devem deixar, nem mesmo nas piores horas." "Estamos entrelaçados uns com os outros." "Se você se tornar um bom conhecedor dos homens, evitará desilusões, não ficará mais aborrecido com aqueles que lhe fazem maldades." "Amigos e amigas também fazem parte da vida daquele que não quer passá-la como um eremita, mas sim como um homem saudável, natural, que se alegra com a vida." "Não se esqueça de pensar sobre como poderá alegrar outra pessoa, seja pela personalidade, sociabilidade, camaradagem ou solicitude." "O conhecimento de que a vida é maravilhosa e a vontade de torná-la bela ajudarão você a ultrapassar as muitas horas desagradáveis que não são poupadas a ninguém."42 A carta foi escrita em Parnaíba, no Piauí, em 26 de agosto de 1940, por ocasião do aniversário de 18 anos de Hans. Foi o presente possível naquele momento da vida. Um presente de extraordinário valor. Kurt morreria em janeiro de 1964. Viveu para "o bom e o belo". Para ele, "o equilíbrio entre o hedonismo e a contemplação ornava com a arte de viver."43 A obra "H. Stern: a história do homem e da empresa", da jornalista Consuelo Dieguez, convida todos nós a entendermos por que o mundo é tão fascinado pelas estrelas. Estas existem para dar beleza àquilo que, sem sua presença, seria apenas enfado, vazio e escuridão. Estão, como podemos ver, sempre no topo, acima, no alto. Iluminam e fascinam. Vivemos a contá-las e a fazer desejos encantados pelo seu brilho. Não à toa, em alemão, a palavra estrela é traduzida para "Stern". Na manhã do dia 27 de outubro de 2007, foi a vez de Hans Stern partir, aos 85 anos de idade. Eis a declaração que abre a sua Carta-testamento: "Eu tive uma vida feliz". _______________ 1 Dieguez, Consuelo. H. Stern: a história do homem e da empresa. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 12. 2 Ibidem, p. 19. 3 Ibidem, p. 34. 4 Ibidem, p. 57. 5 Ibidem, p. 74. 6 Ibidem, p. 61. 7 Ibidem, p. 62. 8 Ibidem, p. 74. 9 Ibidem, p. 89. 10 Ibidem, p. 95. 11 Ibidem, p. 106. 12 Ibidem, p. 106. 13 Ibidem, p. 106. 14 Ibidem, p. 110. 15 Ibidem, p. 79. 16 Ibidem, p. 84. 17 Ibidem, p. 89. 18 Ibidem, p. 89. 19 Ibidem, p. 91. 20 Ibidem, p. 111. 21 Ibidem, p. 112. 22 Ibidem, p. 113. 23 Ibidem, p. 114/115. 24 Ibidem, p. 196. 25 Ibidem, p. 116. 26 Ibidem, p. 66. 27 Ibidem, p. 123. 28 Ibidem, p. 194. 29 Ibidem, p. 123. 30 Ibidem, p. 127. 31 Ibidem, p. 131. 32 Ibidem, p. 131.33 Ibidem, p. 132. 34 Ibidem, p. 141. 35 Ibidem, p. 149. 36 Ibidem, p. 150. 37 Ibidem, p. 151. 38 Ibidem, p. 255. 39 Ibidem, p. 153. 40 Ibidem, p. 74. 41 Ibidem, p. 97 42 Ibidem, p. 99. 43 Ibidem, p. 48.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O "ano miraculoso" da liberdade econômica no STF

Quanto às liberdades, não maldigam a Constituição. Nas disputas políticas mesquinhas, onde o messianismo populista - que apenas troca de cara - se embrenha sempre em busca de poder, a única inocente é ela, a Constituição. Apenas uma leitura apressada de seu texto justifica a conclusão equivocada de que ela é negligente com as liberdades. Pelo contrário. Não parece haver, em nossa história, uma Carta Fundamental que franqueou tantas liberdades como a Constituição Federal de 1988. Basta ver. A livre iniciativa é tanto um dos fundamentos da República quanto um dos princípios da ordem econômica (art. 1º, IX c/c art. 170, caput). É objetivo da República "constituir uma sociedade livre (...)" (art. 3º, I). Essa liberdade é inviolável (art. 5º, caput), para que dela gozemos quanto à manifestação do pensamento (art. 5º, IV), de consciência, crença e exercício dos cultos religiosos (art. 5º, VI), da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX), do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII) e da locomoção no território nacional em tempo de paz (art. 5º, XV). Não é pouca coisa. A associação profissional ou sindical há de ser livre (art. 8º), assim como a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos (art. 17) e o exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação (art. 34, IV). Também há de ser livre o exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação (art. 85, II). Liberdade em abundância. Um dos princípios da ordem econômica é a livre concorrência (art. 170, IV) e o parágrafo único do mesmo art. 170 dispõe: "É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei". E quanto à assistência à saúde? Ela é livre à iniciativa privada (art. 199). E quanto ao ensino? Ele também é livre à iniciativa privada (art. 209). A base normativa está aí. Não faltam comandos constitucionais exortando a um irrenunciável compromisso com as liberdades, desde que atendam, claro, as condições compatíveis com o gozo desse bem essencial. Esse é o risco no chão até onde a Constituição consegue ir. A partir desse ponto, entram os múltiplos elementos que têm o dever de converter essa normatividade em realidade, operando a alquimia do dever-ser para o ser. Nessa pedra de toque reside o segredo de toda e qualquer constitucionalização. Daí a necessidade da política, do empreendedorismo, da liderança, da segurança jurídica, do respeito aos contratos, da proteção ao trabalhador, do Judiciário independente, da democracia, e de toda a ordem de institutos e instituições que a civilização construiu sob sangue suor e lágrimas - na expressão de Winston Churchill - para reduzir ao máximo a dor e sofrimento coletivos, ampliando, assim, a felicidade do maior número de pessoas. No fundo, estamos falando do sentido da existência: ter uma vida boa, produtiva e feliz, guiada pela liberdade. Não tarda para associarmos liberdade com economia. Claro. Acontece que a vitalidade da economia de uma nação reclama um conjunto tão complexo de elementos, que não é justo dizer que a Constituição brasileira é inconstitucional porque a economia não vai bem. Vamos separar as coisas. O constituinte conferiu ao Congresso Nacional o poder de emenda, assegurando à posteridade os caminhos de transformação normativa que de tempos em tempos desafiam o tirocínio da nossa gente e dos nossos líderes. Acordemos cedo dispostos, durmamos tarde cansados e, com criatividade, vamos dar o nosso melhor com o que temos disponível. É desse tipo de aglutinação sincera que nascem as grandes transformações. "A alcatra está cara. Vamos fazer uma nova Constituição!". Não é sábio pensar assim. Diante desse mar normativo-constitucional de liberdade que banha todo o ordenamento jurídico brasileiro, sem privá-lo, claro, de suas responsabilidades com o coletivo, o Supremo Tribunal Federal abraçou o ano de 2019 como sendo uma espécie de "ano miraculoso" para as liberdades voltadas à atividade econômica. E não foi um ano fácil. Uma vez mais a Suprema Corte estampou as manchetes dos jornais, ocupou o horário mais nobre das emissoras de televisão, abarrotou os grupos de WhatsApp e pupulou na Internet com uma onipresença contra a qual nenhum dos demais poderes - Legislativo e Executivo - foi capaz de cogitar competir. O olhar menos atento dirá que a Suprema Corte atravessa uma crise. Questões como o chamado "Inquérito das Fake news" e o resultado acerca do novo julgamento quanto à prisão a partir da condenação em segunda instância dividiram o país e nos encheram de dúvidas. Apesar disso, não é justo nem verdadeiro afirmar que esses episódios definem os trabalhos do Supremo Tribunal Federal em 2019. Para o que muitos enxergam como uma "crise", outros veem uma real oportunidade de realização de comandos constitucionais essenciais ao nosso tempo. Os comandos que vitalizam a liberdade econômica são o mais extraordinário exemplo disso. Comecemos pelo mês de março. O ministro Alexandre de Moraes concedeu liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6071, suspendendo dispositivo da Lei nº 11.140/2018 (Código de Direito e Bem Estar Animal da Paraíba) que autoriza, no âmbito estadual, a punição de empresas agropecuárias que utilizarem técnicas de inseminação artificial. O ministro entendeu que o art. 59, IV, da Lei nº 11.140/2018 é inconstitucional por invadir a competência da União para editar normas gerais sobre produção, consumo e proteção ambiental (art. 24, V, VI e § 1º, da Constituição). Lembrou ainda que os entes da Federação podem editar normas mais protetivas ao meio ambiente. No entanto, não constatou evidência de que norma do Estado da Paraíba tenha incrementado o patamar de proteção firmado pela legislação federal. Também em março, o STF declarou a inconstitucionalidade de normas do Estado de Santa Catarina que estabeleciam obrigações contratuais às seguradoras de veículos. A questão foi analisada na ADI 4704, de relatoria do ministro Luiz Fux, julgada procedente por unanimidade. O entendimento foi de que as normas invadiram a competência privativa da União para legislar sobre direito civil, seguros, trânsito e transporte. Os artigos da lei estadual 15.171/2010, que foram declarados inconstitucionais, impunham uma série de condutas às seguradoras, entre elas a de arcar com reparos de veículos sinistrados não só em oficinas credenciadas ou referenciadas, mas em qualquer outra apontada pelo segurado ou terceiro prejudicado. A lei exigia também que as seguradoras fornecessem ao cliente certificado de garantia dos serviços prestados, além de instituir hipótese de "seguro obrigatório", ao determinar que as seguradoras não podem negar a contratação de seguro para veículos recuperados que tenham sido considerados aptos à circulação por órgão de trânsito responsável. Em abril, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista da ADI 4619, que questiona a lei 12.274/2010, do Estado de São Paulo, que dispõe sobre a rotulagem de produtos transgênicos. A relatora, ministra Rosa Weber, havia votado pela constitucionalidade da norma. Para ela, trata-se de norma incidente sobre produção e consumo com conteúdo relativo à proteção e defesa da saúde, matérias afetas à União, estados e ao Distrito Federal, nos termos do art. 24, V e XII, da Constituição. A vista do ministro Alexandre de Moraes sinaliza uma disposição de quem saber liderar uma divergência desse entendimento. Ainda em maio, foi fixada a tese do Tema nº 967 (RE nº 1.054.110): "I - A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; II - No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI)1". Liberdade econômica. Liberdade de iniciativa. Livre concorrência. Tudo junto. Em agosto, a Suprema Corte invalidou norma do Estado da Bahia que proibia a cobrança de taxa de religação de energia elétrica em caso de corte de fornecimento por falta de pagamento (ADI 5610). O ministro Luiz Fux verificou que a lei estadual 13.578/2016 afrontou regras constitucionais que atribuem à União a competência para explorar, diretamente ou por seus concessionários, os serviços e instalações de energia elétrica (art. 21, XII, "b", da Constituição) e para legislar privativamente sobre energia (art. 22, IV). Segundo explicou o relator, os prazos e os valores para religação do fornecimento de energia encontram-se regulamentados de forma "exauriente" por resolução da Aneel. Em setembro, o STF deu início ao julgamento conjunto de duas ações que discutem a lei 11.442/2007, que regulamenta a contratação de transportadores autônomos por proprietários de carga e por empresas transportadoras, autoriza a terceirização da atividade-fim por essas empresas e afasta a configuração de vínculo de emprego nessa hipótese. Para o relator, ministro Roberto Barroso, uma vez preenchidos os requisitos dispostos na lei 11.442/2007, está configurada relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista. "A proteção constitucional não impõe que toda ou qualquer prestação remunerada de serviços configure relações de emprego", afirmou. O ministro também declarou que não há inconstitucionalidade no prazo prescricional para a propositura de ação de reparação de danos relativos ao contrato de trabalho, estabelecido no art. 18 da lei, pois não se trata de indenização decorrente de relação de trabalho, mas de relação comercial. Em outubro, por maioria, em sessão virtual na qual se julgou a ADI 5792, o STF declarou a inconstitucionalidade da lei 5.853/2017, do Distrito Federal, que assegurava ao consumidor a tolerância de 30 minutos para a saída do estacionamento após o pagamento da tarifa. Prevaleceu o entendimento do ministro Alexandre de Moraes, relator, no sentido de que leis estaduais que tratem da regulamentação de estacionamentos são inconstitucionais, por invasão da competência da União para legislar sobre Direito Civil (art. 22, I, da Constituição). Segundo o relator, a lei distrital interferia direta e indevidamente na dinâmica econômica da atividade empresarial estabelecida pelo proprietário do estacionamento e violava, assim, o princípio da livre iniciativa. Uma vez mais ela, a livre iniciativa, reluziu na ribalta dos acontecimentos jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal, nesse que foi o seu "ano miraculoso". Agora em dezembro, um pedido de vista do ministro Dias Toffoli suspendeu o julgamento da ADI 4914, que questiona lei do Estado do Amazonas que obriga as concessionárias a notificar previamente o consumidor, por meio de carta com aviso de recebimento (AR), da realização vistoria técnica no medidor de sua casa. A exigência faz parte do art. 1º da lei estadual 83/2010. O ministro Marco Aurélio, relator, votou pela improcedência da ação, por entender que se trata de norma de direito do consumidor, que tem o direito de ser avisado previamente da vistoria. Para ele, nesse caso, não há competência legislativa privativa da União, pois os estados têm competência concorrente quando se trata de edição de norma voltada à proteção dos consumidores. Foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski. O ministro Alexandre de Moraes, todavia, abriu divergência pela procedência da ação, entendendo que normas concorrentes que visem à proteção aos consumidores podem ser adotadas desde que não afetem as relações que integram o núcleo central da prestação contratual do serviço sob concessão. Segundo o ministro, ao criar para as empresas obrigações adicionais não previstas no contrato de concessão e impor ônus financeiro e sanções administrativas e pecuniárias em caso de descumprimento, a lei estadual adentrou direta e indevidamente a relação contratual. Acompanharam a divergência os ministros Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Ainda em dezembro, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da lei estadual 2.388/2018, do Amapá, que instituiu taxa sobre atividade de exploração e aproveitamento de recursos hídricos (TFRH). Por maioria, julgou-se procedente a ADI 6211. Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Marco Aurélio, para quem a taxa, ao contrário do imposto, tem caráter contraprestacional, ou seja, deve estar atrelada à execução efetiva ou potencial de um serviço público específico ou, como no caso, ao exercício regular do poder de polícia. No caso do Amapá, em que a taxa é calculada em função do volume dos recursos hídricos empregados pelo contribuinte, os dados evidenciariam a ausência de proporcionalidade entre o custo da atividade estatal que justifica a taxa e o valor a ser despendido pelos particulares em benefício do ente público. O montante arrecadado, afirmou, seria dez vezes superior ao orçamento anual da secretaria de gestão do meio ambiente do estado. "Nada justifica uma taxa cuja arrecadação total ultrapasse o custo da atividade estatal que lhe permite existir", ressaltou o ministro Marco Aurélio. Semana passada, o ministro Celso de Mello suspendeu a eficácia da lei 16.600/2019, do Estado de Pernambuco, que proíbe a oferta e a comercialização de serviços de valor adicionado, digitais e complementares de forma onerosa ao consumidor quando agregados a planos oferecidos por empresas prestadoras de serviços de telecomunicações. O decano deferiu liminar na ADI 6199. Segundo o ministro Celso de Mello, a legislação estadual, ao impor obrigações às operadoras de serviços de telecomunicações com atuação em todo o território nacional, mostra-se em desacordo com a necessidade de promover e de preservar a segurança jurídica e a eficiência indispensáveis ao desenvolvimento das telecomunicações, que demanda "um regime jurídico coerente, uniforme, estruturado e operacional", além de violar a competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações. Como se viu, se há um tema que contou com a atenção do Supremo esse ano foi a liberdade econômica. Isso, a partir de uma Constituição que abraçou, como se abraçasse o seu próprio destino, as liberdades. Nessas decisões, ao reafirmar o valor intrínseco das liberdades, a jurisprudência do STF faz com que as águas das possibilidades de empreendedorismo e inovação subam. Quando essas águas sobem, todas as jangadas se elevam. E, elevadas, as jangadas e seus jangadeiros têm condições de seguir levando seus propósitos de vida boa adiante. Que venha 2020. E que a marcha dessa virtuosa jurisprudência das liberdades siga o seu curso. A Constituição traz os parâmetros de aferição e correção de eventuais externalidades negativas. Não há o que temer. Bastar que a Suprema Corte, como um farol numa viagem escura, permaneça iluminando o caminho. __________ 1 O tema também foi objeto de julgamento na ADPF 449, julgada conjuntamente.
segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Não é apenas energia elétrica. É civilização

"Da luz vem a vida, a liberdade e a busca da felicidade", pensei comigo. Eu precisava deixar uma mensagem para o setor elétrico e a verdade é que eu ainda não sabia ao certo que mensagem seria essa. Coube-me falar sobre a proteção constitucional dos consumidores no "Seminário de Direito do Consumidor do Setor Elétrico", na sexta-feira última, no Guarujá, São Paulo, numa iniciativa do SindiEnergia e da CPFL. Saul Tourinho Leal e Samuel Mezzalira (Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia), na companhia de Graziela Machado, Gustavo Guachineiro e Janaina Gama (CPFL). Percorrendo a estrada entre o aeroporto de Congonhas e o hotel onde eu descansaria, tentei enxergar no tema mais do que os comandos constitucionais imediatamente aplicáveis a ele. O resultado, além de ter sido dividido com todas as pessoas no seminário, será compartilhado aqui. A Constituição é o ponto de partida e de chegada de qualquer discussão jurídica para mim. E, nesse tema, eu já sabia que ela mostra preocupação tanto com o "consumidor" quanto com o "usuário" de serviço público. Segundo o inciso XXXII do art. 5º, "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Já o art. 48 do ADCT dispôs: "o Congresso Nacional, dentro de 120 dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor". Um dos princípios da ordem econômica é a própria "defesa do consumidor" (art. 170, V). Por outro lado, dispondo sobre o "usuário", o art. 175 diz incumbir "ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos", sendo que "a lei disporá sobre os direitos dos usuários". O § 3º do art. 37 já dispunha que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: "I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços". Seja enquanto "consumidores", seja como "usuários", há proteção constitucional. Por isso, a pergunta que deve ser feita talvez seja essa: quem consome energia elétrica no Brasil? A reposta está na primeira palavra da Constituição, "nós". Energia elétrica é a condição elementar para a realização dos direitos sociais. Educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados (art. 6º) reclamam o uso de energia elétrica. É uma necessidade vital básica, tal como vestuário ou higiene (art. 7º, IV). A afirmação acima é tão verdadeira que, quando no século XVII Paris estava mergulhada em violência, caos e desordem, a solução encontrada foi investir na iluminação pública das ruas, para tornar a cidade menos perigosa à noite. Segura e aberta à inovação, Paris se transformou, no século seguinte, no centro catalizador das ideias que marcaram a civilização. A esse tempo demos o nome "Iluminismo". Se a energia elétrica é um bem fundamental à realização de praticamente todos os direitos, parece natural que a dignidade da pessoa humana a ela seja associada. Dignidade da pessoa humana que além de fundamentar a República (art. 1º, III), é um direito enfatizado à criança, ao adolescente, ao jovem (art. 227), e às pessoas idosas (art. 230). A Resolução ANEEL nº 414/2010 assegura ao consumidor o direito de informar à distribuidora sobre a existência, na unidade consumidora, de pessoas usuárias de equipamentos de autonomia limitada que sejam vitais à preservação da vida humana e dependentes de energia elétrica. Isso porque a distribuidora está obrigada a notificar o consumidor previamente, por escrito e com comprovante de entrega, sobre a possibilidade de suspensão do fornecimento por falta de pagamento, bem como acerca da ocorrência de interrupções programadas no fornecimento de energia elétrica. Dignidade humana. E não é só. Também importa reconhecer a ribalta sobre a qual a Constituição colocou os Índios (Capítulo VIII), fazendo algo igualmente respeitoso com as comunidades quilombolas (art. 68 do ADCT) e com a pobreza. Um dos objetivos fundamentais da República é "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3º, III). Qual a reverberação desses comandos na relação do setor elétrico com os seus consumidores? A "Tarifa Social de Energia Elétrica" é a resposta. Ela concede descontos a famílias com renda de até meio salário mínimo por pessoa ou que tenham algum membro beneficiário do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC); ou com renda total de até três salários mínimos por mês que tenham entre seus membros pessoas em tratamento de saúde, que precisam usar continuamente aparelhos com elevado consumo de energia elétrica. Famílias indígenas e quilombolas com renda por pessoa de até meio salário terão direito ao desconto de 100% na conta de energia elétrica, até o limite de consumo de 50 KWh/mês. Está tudo interconectado. Não se trata de investigar apenas o Código de Defesa do Consumidor ou as normas do órgão regulador para saber qual o ethos que conduz as relações entre o setor de energia elétrica e os seus consumidores. Há uma parada anterior a ser feita nessa jornada hermenêutica e ela fica na Constituição. Evidentemente, é preciso reconhecer antes de tudo a competência da União, por meio do seu órgão regulador, para dispor sobre a matéria. Tanto assim o é que o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) n. 2299 para declarar inconstitucional a lei 11.642/2000 do Rio Grande do Sul, que isentava, por até seis meses, os desempregados do estado do pagamento das contas de luz e água emitidas pela Companhia Estadual de Energia Elétrica e pela Companhia Riograndense de Saneamento. A lei contrariou o caput do art. 175 da Constituição, pois alterou as condições da relação contratual entre o poder concedente e os concessionários em relação a tarifa e a obrigação de manutenção dos serviços. Portanto, até mesmo para trazer para o nível minudente da regulação setorial as expressões da Constituição Federal é preciso não perder de vista a liderança da União como ente da federação autorizado a dispor legislativamente sobre energia e, nesse particular, respeitar a capacidade institucional do seu órgão regulador. Há muitas virtudes no setor elétrico brasileiro. Podemos sentar, de cabeça erguida, perante o concerto das nações para liderarmos qualquer corrida desenvolvimentista sustentável. Somos, como diz o preâmbulo da Constituição, "uma sociedade fraterna", e, além disso, "livre, justa e solidária" (art. 3º, I). A nossa República rege-se, nas suas relações internacionais, por princípios, dentre os quais, "IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX). Todo esse robusto conjunto normativo presente na Constituição tem sido vivido na prática, numa extraordinária lição ao mundo, mostrando que o nosso desenvolvimento não se baseia no consumo de carvão nem de diesel, como ocorre em nações que estão à nossa frente nessa corrida global, mas impondo um grave custo ao meio ambiente. No Brasil, o nosso desenvolvimento se baseia em energias limpas, num quadro que adota cada vez mais fontes renováveis. Robson Braga de Andrade, da CNI, e Heloísa Menezes, do SEBRAE, lembram que "embora tenha uma matriz energética limpa, o Brasil assumiu compromissos internacionais de combate ao aquecimento global. No Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e em 43% até 2030, em relação aos níveis de 2005. Para o setor de energia, o Brasil tem planos de aumentar a participação de energias renováveis na sua matriz energética para 45%". Essa é a nossa maneira de, quanto à energia, nos mantermos sendo "uma sociedade fraterna", "livre, justa e solidária", que mantém o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225) e que, no cenário global, coopera com os povos para o progresso da humanidade. Da terra, gás natural. Da água, energia hidráulica. Do "fogo" do sol, a energia solar. Do ar, energia eólica. Os quatro elementos são, para nós, fontes de luz. Essa realidade passa a ser ressignificada pela força do tempo. O século XIX foi o século dos impérios. O XX, o das nações. O século no qual estamos, XXI, é o século das cidades e essa realidade impacta magnificamente o setor de energia elétrica. Jamais, em toda a história da humanidade, tanta gente povoou as cidades. Uma população de 36 milhões de pessoas vive na cidade e no entorno de Tóquio, a região metropolitana mais produtiva do mundo. No centro de Mumbai residem 12 milhões de habitantes e Xangai é quase do mesmo tamanho. Nos países em desenvolvimento, a cada mês mais cinco milhões de pessoas passam a viver nas cidades; em 2011, mais da metade da população do mundo já era urbana. A grande São Paulo e a Cidade do México têm mais de 20 milhões de habitantes. Buenos Aires e a Região Metropolitana do Rio de Janeiro mais de 10 milhões. Na fila vem Lima, Bogotá, Santiago, Salvador, Brasília, Belo Horizonte e Caracas. Essa explosão urbana gera efeitos na gestão de certos serviços prestados pelo setor elétrico. Para se religar o fornecimento de energia elétrica num imóvel urbano, o tempo é de 24 horas. Na zona rural, 48h (Resolução ANEEL n. 414/2010). As cidades têm pressa. A Constituição brasileira é sensível a essa realidade. Pelo seu art. 182, a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Todavia, a realização das funções sociais da cidade é incrivelmente problemática. Por isso, é sábio combinar o art. 182 com o § 2º do art. 218 da Constituição, que diz que "a pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional". Cidades e tecnologia. Essa junção normativa faz nascer o fundamento constitucional das cidades inteligentes. A Quarta Revolução Industrial, mergulhada na era da informação, reclama a ressignificação de muitos dispositivos constitucionais. O inciso II do art. 137, por exemplo, dispõe sobre a resposta à agressão armada estrangeira. Mas quais são as armas do nosso século? Em 2017, um ataque cibernético causou um apagão e cortou parte do abastecimento de energia de Kiev, capital da Ucrânia. Foi o segundo apagão elétrico causado por hackers. "BlackEnergy" é o nome do vírus. E não para por aí. O que virá com o aumento da frota de carros elétricos? E a Internet das Coisas (IoT)? E a implementação dos medidores inteligentes de energia? Esse admirável mundo novo, que em tudo impacta a relação entre as operadoras do setor elétrico e seus consumidores, termina a chegar no Poder Judiciário. Mas antes de tratarmos da prática brasileira, vamos ao simbolismo oriental. No lobby do edifício da Corte Constitucional da Coreia do Sul, vê-se no chão um desenho circular branco sobrepondo-se a um retângulo preto. As formas rendem tributo à expressão: "O céu é um círculo e a Terra é um quadrado". Ele enaltece a harmonia do yin-yang, princípio central da filosofia chinesa onde yin significa escuridão e yang simboliza a luz. No fundo do plenário, há a obra de arte "Dez degraus de luz", de Ha, Dong-Chul (1992, 280x560cm). A luz, fonte de vida, percorre dez telas. Os raios partem do topo em direção à base, construindo uma representação simbólica da paz final na Terra. O número de telas marca as dez hastes celestiais da Coréia do Sul, consideradas pela filosofia chinesa as dez forças intangíveis do céu. Luz. Luz em abundância. No Brasil, para além do simbolismo artístico oriental, temos o art. 93, IX, da Constituição, segundo o qual todos os julgamentos dos órgãos do Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Determinar que um julgamento seja público é asseverar que ele se dará à luz do dia, não nas sombras. Mas o legítimo fundamento de uma decisão reclama, antes, a inteira compreensão, pelo próprio Judiciário, de todas as múltiplas nuances do setor de energia elétrica. É a deferência à capacidade institucional desenvolvida por agências como a ANEEL, que, para se aperfeiçoar, precisam contar com o direito de percorrer o seu próprio caminho. No STF, veio da liderança do ministro Luiz Fux (ADI 5610, DJe 20.11.2019) o entendimento no sentido de que "o Direito do Consumidor, mercê de abarcar a competência concorrente dos Estados-Membros (artigo 24, V e VIII, da Constituição Federal), não pode conduzir à frustração da teleologia das normas que estabelecem as competências legislativa e administrativa privativas da União". Para a Suprema Corte, "os prazos e valores referentes à religação do fornecimento de energia elétrica não apenas já estão normatizados na legislação setorial pertinente, como o quantum pelo serviços cobráveis e visitas técnicas submetem-se à homologação da ANEEL, razão pela qual não remanesce, sob esse prisma, qualquer espaço para a atuação legislativa estadual, mercê de, a pretexto de ofertar maior proteção ao consumidor, o ente federativo tornar sem efeito norma técnica exarada pela agência reguladora competente"1. De fato, os potenciais de energia hidráulica são bens da União (art. 20, VIII), sendo assegurada, nos termos da lei, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a participação no resultado da exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica (§ 1º do art. 20), competindo também à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos (art. 21, XII, "b"). O inciso IV do art. 22 dispõe competir privativamente à União legislar sobre energia. O Judiciário precisa estar bem informado quanto às nuances de um setor que é complexo. Em 2013, o STF dedicou três dias a uma audiência pública que reuniu 21 especialistas para falar sobre os efeitos dos campos eletromagnéticos sobre a saúde pública e o meio ambiente. Foram discutidos os investimentos e tecnologias necessários caso fosse feita a opção por reduzir o campo eletromagnético das linhas de transmissão e as repercussões práticas e econômicas dessa opção. Após a audiência, fixou-se a Tese 479, que diz: "No atual estágio do conhecimento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos nocivos da exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, não existem impedimentos, por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a lei 11.934/2009" (RE 627.189, min. Dias Toffoli, DJe 3.4.2017). Apesar dessas posições, é bem verdade que em muitas oportunidades a Corte sequer enxerga envergadura constitucional em temas que lhe chegam em grau de recurso. O Tribunal entendeu que "o dano indenizável em virtude da suspensão do fornecimento de energia elétrica por empresa prestadora de serviço público tem natureza infraconstitucional" (ARE 900.968, Tema 845, min. Presidente, DJe 23.11.2015). O mesmo quanto à restituição de valores gastos por proprietários rurais com a instalação de rede elétrica pela antecipação do programa de universalização de energia da Eletrobrás e da ANEEL (ARE 683.017, Tema 604, min. Presidente, DJe 2.5.2013). Também quanto à discussão sobre a legitimidade da cobrança das tarifas de demanda e de ultrapassagem (RE 676.924, Tema 618, min. Ricardo Lewandowski, DJe 30.11.2012). Noutras oportunidades, a Suprema Corte traçou diretrizes. Definiu-se que "os Estados-membros - que não podem interferir na esfera das relações jurídico-contratuais estabelecidas entre o poder concedente (quando este for a União ou o Município) e as empresas concessionárias - não dispõem de competência para modificar ou alterar as condições, que, previstas na licitação, acham-se formalmente estipuladas no contrato de concessão celebrado pela União (energia elétrica - CF, art. 21, XII, 'b'), notadamente se essa ingerência normativa, ao determinar a suspensão temporária do pagamento das tarifas devidas pela prestação dos serviços concedidos (serviços de energia elétrica, sob regime de concessão federal), afetar o equilíbrio financeiro resultante dessa relação jurídico-contratual de direito administrativo" (ADI 2337 MC, min. Celso de Mello, DJ 21.6.2002). Recentemente, a Procuradoria-Geral da República deu parecer pela procedência do pedido formulado nos autos da ADI 5927 (min. Edson Fachin), que discute a constitucionalidade da lei n. 17.145/2017, de Santa Catarina, sobre a aplicação mínima de recursos do Programa de Eficiência Energética, entendendo ser inconstitucional a lei que impõe dever a concessionária de serviços de energia elétrica, por usurpação da competência material e legislativa da União. Fez o mesmo nos autos da ADI 5960 (min. Ricardo Lewandowski), ao assentar que "não cabe aos Estados interferir na forma de prestação e suspensão do serviço de energia elétrica já regulamentado pela ANEEL". Não sem razão, a maioria do pleno do STF entendeu que "as competências para legislar sobre energia elétrica e para definir os termos da exploração do serviço de seu fornecimento, inclusive sob regime de concessão, cabem privativamente à União, nos termos dos art. 21, XII, "b"; 22, IV e 175 da Constituição". Definiu ainda que "ao criar, para as empresas que exploram o serviço de fornecimento de energia elétrica no Estado de São Paulo, obrigação significativamente onerosa, a ser prestada em hipóteses de conteúdo vago ('que estejam causando transtornos ou impedimentos') para o proveito de interesses individuais dos proprietários de terrenos, o art. 2º da Lei estadual 12.635/07 imiscuiu-se indevidamente nos termos da relação contratual estabelecida entre o poder federal e as concessionárias" (ADI 4925, min. Teori Zavascki, DJe 10.3.2015). Os precedentes judiciais, firmados após uma boa compreensão de todas as complexidades que envolvem o setor elétrico, por meio de processos que verdadeiramente municiem o Judiciário das informações essenciais ao entendimento técnico da controvérsia, devem, quando fruto de demandas individuais, evitar, na esfera da relação entre o consumidor e as companhias, o "pediu-levou". Ao se conceder todo e qualquer pedido do consumidor, o Judiciário cria um fosso entre a comunidade que consome energia elétrica e o próprio órgão regulador, que existe também para intermediar coletivamente conflitos, aperfeiçoando-se institucionalmente e construindo uma relação que entregaria para o Poder Judiciário apenas o resíduo conflitivo que deixou de ser resolvido. É preciso confiar mais nos nossos órgãos reguladores, que contam com poderosos instrumentos de interação com os consumidores, como, por exemplo, as audiências públicas. Sem descuidar, ainda, do fato de que, ao contrário do "pediu-levou", a ANEEL atua coletivamente, de modo geral e abstrato, por meio dos seus atos normativos, sem que nenhum consumidor consiga dela tratamento privilegiado diante dos seus iguais pelo mero fato de a ela ter formulado algum pedido. Como já anotou o próprio Supremo Tribunal Federal, "não se mostra estranha ao poder geral de polícia da Administração, portanto, a competência das agências reguladoras para editar atos normativos visando à organização e à fiscalização das atividades por elas reguladas" (ADI 4874, min. Rosa Weber, DJe 1º.2.2019). Mais um ponto necessário ao Judiciário ao se deparar com demandas de consumidores é averiguar se há boa-fé. Deve ser coibido todo e qualquer tipo de fraude. A Constituição é intransigente com a má-fé, tanto que o inciso LXXIII do art. 5º, ao dispor sobre a ação popular, dispensa o autor das custas e dos ônus da sucumbência, "salvo comprovada má-fé". Não é diferente na ação de impugnação de mandato, que determina que o autor responderá, na forma da lei, caso a ação seja temerária ou haja "manifesta má-fé" (art. 14, § 11). Ninguém deve judicializar uma disputa sem o fazê-lo de boa-fé. Por fim, o começo. Um questionamento serviu para que eu montasse, mergulhado nas minhas ideias, essa palestra. "O que as pessoas para quem eu irei falar fazem de suas vidas?", eu me perguntava. A resposta "vendem energia", de tão reducionista que é, chega a ser insensível. Ninguém que oferta para a sua comunidade o bem da vida essencial à realização de todos os direitos sociais, meramente vende algo. É muito mais do que isso. Lembrei-me do pioneirismo humanista de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, que fundou a Companhia de Iluminação a Gás. O contrato celebrado para iluminar a cidade do Rio de Janeiro tinha como exigência que o trabalho fosse melhor do que o da cidade de Londres. Isso sim, é uma meta. Em 1857, a cidade do Rio de Janeiro estava iluminada graças a 3.027 lampiões públicos e 3.200 residências. Visionário que era, o Barão de Mauá iluminou três teatros, a partir dos quais as artes floresceriam em nosso país. Os lampiões a gás - uma inovação disruptiva para a época - iluminaram a Praça XV e as Ruas Primeiro de Março, Ouvidor, Rosário, Hospício, Alfândega, General Câmara e São Pedro. Mauá era um antiescravagista intransigente. Não se portava como um lacaio, num tempo de tantos bajuladores do poder. Mais do que isso, entendia que a sua missão de empreendedor era investir na produção, não na especulação. Esse homem, que fez história e colocou o seu empenho em tantas atividades, com coragem e humanismo enxergou na luz uma das suas fontes de sonhos e visão. É um legado como esse que as pessoas para quem falei no Guarujá estão levando adiante. Lembrando da Constituição, conhecendo a relação entre consumidores e o setor elétrico, certo de que o Judiciário precisa estar bem informado das complexidades técnicas dessa área e recordando o ponto de partida virtuoso com o Barão de Mauá, eu pude olhar para cada uma das pessoas que estava no Seminário de Direito do Consumidor do Setor Elétrico, iniciativa do SindiEnergia e da CPFL, e lhes dizer: "Vocês não vendem energia elétrica. O que vocês fazem é assegurar a perpetuidade da civilização". Era para ser uma palestra sobre a proteção constitucional dos consumidores. Terminou sendo um ato de reconhecimento à prosperidade trazida pela luz, na certeza de que dela vem a vida, a liberdade e a busca da felicidade. O advogado Saul Tourinho Leal falando para o público da CPFL e do SindiEnergia. __________ 1 Na Primeira Turma, também sob a liderança do min. Luiz Fux, fixou-se que "a capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos". Para a Turma, "o dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa". Por fim, anotou que a atividade regulatória difere substancialmente da prática jurisdicional, pois "a regulação tende a usar meios de controle ex ante (preventivos), enquanto processos judiciais realizam o controle ex post (dissuasivos); (...) a regulação tende a utilizar especialistas (...) para projetar e implementar regras, enquanto os litígios judiciais são dominados por generalistas" (RE 1.083.955 AgR, DJe 7.6.2019).
Victor Hugo costumava repetir: "Nada é mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou". A modernização do Sistema Tributário Nacional é uma ideia cujo tempo chegou. Para entendermos a oportunidade da afirmação, precisamos recorrer, antes, à história constitucional, feita por aqueles que optaram por viver a verdade e percorrer o caminho, lutando por reformas que libertaram os semelhantes do caos no qual viviam. A trajetória do Direito Tributário liga os extremos de um pêndulo cujas pontas contrapostas trazem os verbos "manter" e 'reformar". Nos Estados Unidos, forças imobilizadoras insistiam em taxar a produção de chá dos colonos ingleses sem que eles tivessem voz no processo. George Washington liderou a Festa do Chá de Boston (1773) para, com um intenso protesto, colocar a pauta tributária na agenda da Coroa. O resultado foi a Independência dos Estados Unidos (1776). A ordem era "reformar". Não foi diferente na França. A Revolução Francesa (1789), dentre tantas causas, acendeu o seu próprio pavio ao patrocinar uma cruel tributação sobre os mais pobres. Enquanto isso, Versalhes dançava e bebia vinho. Deu no que deu. Cabeças rolaram sem dança nem vinho. A Derrama (1751) de Minas Gerais inspirou o nascimento de um mártir como Tiradentes. Tudo pelo Quinto. Como as forças muito bem estabelecidas de então trataram o reformista Tiradentes? Todos sabemos do seu fim cruel e até macabro. Cada geração tem os seus pactos inquebrantáveis. A nossa geração, pelo menos normativamente, imortalizou o respeito pela Constituição de 1988. Esse é o compromisso irrenunciável do nosso tempo. Exatamente por isso, qualquer conversa séria sobre reformas constitucionais deve ter início, claro, na Constituição. Dado o primeiro passo, os seguintes hão de ser animados por um elevado espírito público, por uma sábia visão de Estado e, acima de tudo, por empatia com os que perdem com o modelo atual de tributação no país - e são muitos os que perdem. Antes de tudo, vale reconhecer que a Constituição de 1988 traz uma teleologia abertamente transformadora. É natural que países como o nosso almejem sair do lamaceiro no qual quase sempre se encontraram. A Constituição da África do Sul, por exemplo, é conhecida como "Constituição Transformadora". A única chance é mudar, pois manter significa preservar um tipo de establishment que muitas vezes se alimenta de uma estrutura estatal exaurida que impede as pessoas de realizarem as suas mais justas aspirações. No Direito e na Vida, ressignificar-se às vezes é a única saída. Esse compromisso jurídico com a transformação é ínsito a Constituições como a brasileira, que muito mais do que apenas tirar um retrato do que está posto, como sugeriu Ferdinand Lassale, optou por imprimir o que Konrad Hesse denominou de "força normativa" ou "vontade de Constituição", o elemento que impele mudanças para que o próprio compromisso celebrado pela Assembleia Nacional Constituinte permaneça de pé. Esse ethos por dinamismo está presente no Direito Constitucional-Tributário. O art. 52, XV - fruto da Emenda Constitucional 42/2003 -, confere privativamente ao Senado Federal a competência para "avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos municípios". Não há, no texto constitucional, palavras vazias, desprovidas de sentido, muito menos proclamações retóricas. Não se trata de uma exortação moral, mas da Lei das leis, aquela norma a partir da qual todas as normas são feitas. Como se viu, o Senado tem o grave dever de avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, quanto à sua estrutura e componentes. E que o faça para aferir o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal. Essas administrações tributárias estão regradas pelos incisos XVIII e XXII do art. 37 da Constituição, também com alterações da Emenda Constitucional 42/2003, todas elas vinculadas ao princípio da eficiência, constante do caput do art. 37. Estão, as nossas administrações tributárias, operando com a eficiência que determina a Constituição, na relação que mantêm conosco, os contribuintes? É difícil dizer que sim. Nações ansiosas por realizar a grandeza de suas ambições têm tentado imprimir flexibilidade aos seus modelos tributários de forma a mantê-los mais cosmopolitas e menos provincianos, exatamente para, sentados em pé de igualdade perante o tabuleiro das nações, mostrarem-se internamente empáticas aos desafios domésticos e externamente amigáveis a quem busca locais atrativos para investir. A África do Sul, uma democracia constitucional regida por uma Constituição tão recente quanto a nossa, tem como rotina a revisão das legislações sobre Direito Tributário. Em fevereiro de cada ano, o Ministro das Finanças vai ao Parlamento anunciar o orçamento público anual e as propostas de emendas às leis tributárias. O governo cria comissões temporárias para elaborem relatórios minuciosos sobre os aspectos da estrutura tributária com o fim de identificar as áreas carentes de reformas. Se colocarmos o pensamento colonizado de lado, e não deixarmos o preconceito histórico comandar o nosso raciocínio, não doerá saber que a África do Sul, a despeito de seus graves problemas estruturais, conseguiu criar um sistema tributário no qual, segundo o Banco Mundial, as pessoas gastam 210 horas por ano (2019) para preparar e pagar seus tributos. O sistema é simples, ele não precisa de exércitos bem remunerados para preencher "Darfs". A realidade da simplicidade não liberta o país de suas cicatrizes profundas e ainda abertas, mas, pelo menos, liberta as pessoas de se verem enredadas nas teias de um compliance tributário impossível de compreender, algo que tira delas o foco que precisam para tocar os seus negócios. Se a África do Sul gasta 210 horas por ano preparando e pagando seus tributos, o contribuinte brasileiro leva, de acordo com o mesmo ranking do Banco Mundial, 1,501 horas (2019)1. É uma barbárie. Somos, nesse aspecto, o que de pior o mundo conseguiu produzir. Párias mesmo. Próximo a nós está a Líbia, um país mergulhado numa fratricida guerra civil e sem qualquer unidade política. Apenas para ilustrar, dentre os membros da OCDE, o país em pior posição é a Polônia, com 334 horas por ano (2019). É claro que o STF conhece essa situação vergonhosa e a ela não é indiferente. Nas palavras do ministro Joaquim Barbosa, "a legislação tributária de nosso país é uma das complexas e impenetráveis do mundo, segundo estudos realizados por entidades como o Banco Mundial (mencionado no RE 564.413 - Pleno), pesquisadores do IPEA, entidades representativas dos setores produtivos (e.g., a Fecomércio) e o Núcleo de Estudos Fiscais da FGV/SP" (ADI 2588, p. 230). Não se sai desse atoleiro "mantendo" o que quer que seja. É preciso "reformar", já. Acontece que, além da Constituição, no seu art. 52, XV, ter normatizado o caráter transformador do Sistema Tributário Nacional, a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem vitalizado essa natureza dinâmica necessária à tributação brasileira. Em 2010, a Suprema Corte apreciou a ação direta de inconstitucionalidade 875 (DJe 30/4/2010), tratando do Fundo de Participação dos Estados (FPE), mais especificamente, da presença, ou não, de uma omissão parcial na Lei Complementar 62/1989, que visava a, concretizando o art. 161, II da Constituição, estabelecer os critérios de rateio do aludido FPE, com a finalidade de promover o equilíbrio socioeconômico entre os entes federativos. Repelindo o status quo profundamente disfuncional em nossa federação, o relator, ministro Gilmar Mendes, anotou: "Passados quase vinte anos da edição da lei, ela continua a reger a distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal, ou seja, até hoje são aplicados os índices previstos, inicialmente, apenas para os exercícios de 1990 e 1991" (página 33 do acórdão). Parece claro que a acomodação negativa às pessoas naturais e à federação de designs normativos evidentemente disfuncionais tende a se converter, ela mesma, numa inconstitucionalidade capaz de reclamar, do Supremo Tribunal Federal, correção. Quanto à determinação constitucional de "revisões periódicas dos coeficientes", a Corte Suprema anotou: "Ademais, deve haver a possibilidade de revisões periódicas dos coeficientes, de modo a se avaliar criticamente se os até então adotados ainda estão em consonância com a realidade econômica dos entes federativos e se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado" (página 42 do acórdão). O trecho acima é definitivo. "Se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado". Essa passagem atira ribanceira abaixo a ideia de que, ainda que o sistema atual seja extremamente danoso às pessoas e que contribua para uma engrenagem na qual o país perde muito para alimentar uns poucos, ainda assim nada deve ser feito. Agir assim é ser indiferente. É também trair a Constituição. Em 2017, apreciando a ação direta de inconstitucionalidade por omissão 25 (DJe 18/8/2017), a Suprema Corte discutiu a desoneração das exportações, fruto da Emenda Constitucional 42/2003, e a ausência das necessárias medidas compensatórias a tal desoneração a serem implementadas por lei complementar. O relator, ministro Gilmar Mendes, chegou a discorrer acerca da redução da competência tributária estadual, e sua compatibilidade com a Constituição, concluindo que o que de fato poderia, ou não, ser inconstitucional, seriam as medidas compensatórias a tal redução, mas não havendo, no caso, uma inconstitucionalidade ex ante, por qualquer violação ao pacto federativo. Não se negou, no caso, que o esforço de desoneração das exportações, em termos técnicos, ocorreu mediante redução dos limites da competência tributária estadual. Até mesmo em "prejuízo de uma fonte de receitas públicas estaduais" (p. 28 do acórdão). Mesmo assim, para a maioria do STF, "(...) para compensar a perda de arrecadação que naturalmente haveria de decorrer da desoneração das exportações imposta pela EC 42/2003, esta estabeleceu, no art. 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), uma fórmula de transferência constitucional obrigatória da União em favor dos estados e do Distrito Federal" (página 29 do acórdão). Ou seja, ao contrário de violar a Constituição, a forma encontrada pelo Congresso Nacional para solucionar um problema foi reputada legítima, a depender, claro, de quais sejam as formas de compensação. "Por isso, o mecanismo de transferência de recursos, em tese, poderia representar um importante instrumento de federalismo cooperativo, de sorte a atenuar os impactos financeiros decorrentes da desoneração promovida pela EC 42/2003 nas contas estaduais", anotou o ministro Gilmar Mendes (página 32). Fica claro ser possível haver uma mudança na Constituição que tire competências tributárias entregues aos entes federados mas, ao mesmo tempo, fortaleça o federalismo. Tudo dependerá das medidas compensatórias ofertadas nesse novo design normativo e de sua verdadeira e integral implementação. Por isso, é preciso ter cuidado ao se invocar, retoricamente, o pacto federativo como tabu imobilizante a qualquer debate relativo a uma reforma tributária. Quem faz isso jura o Santo Nome em vão. "Santo Nome" porque, como sabemos, a forma federativa de Estado é uma das nossas cláusulas pétreas, de modo que, para a Constituição, esse é mesmo um "Santo Nome". Vamos viver um pouco a verdade. No STF, dia 21/6/2019, o ministro Luiz Fux conduziu audiência pública para discutir os conflitos federativos relacionados ao bloqueio, pela União, de recursos dos Estados-membros em decorrência da execução de contragarantias em contratos de empréstimos não quitados. O tema é objeto da Ação Cível Originária (ACO) n. 3233, da qual o ministro Fux é relator. A audiência abordou desdobramentos no federalismo fiscal brasileiro. Não bastasse os estertores jurisprudenciais, na política, o Poder Executivo acaba de apresentar a Proposta de Emenda à Constituição 188, de 2019, que, alterando o art. 6° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, introduz o art. 115 dispondo que os municípios de até cinco mil habitantes deverão comprovar, até o dia 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira, sob pena de serem "varridos do mapa". Esse é o quadro atual do federalismo brasileiro. Essa é a verdade vivida, não penas aquela conhecida de ouvir falar. Qualquer invocação retórica a esse respeito consiste apenas em se jurar o "Santo Nome" em vão. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário vêm gritando, há tempos: "O nosso federalismo está morrendo. Indignai-vos!" Os incisos do art. 60, § 4º, da Constituição apontam que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: "I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais". Quanto à forma federativa de Estado, seguir omitindo-se, bloqueando reformas possíveis sob a alegação confortável de ferir o pacto federativo, é ignorar as exortações persistentes dos Poderes para que façamos algo. Logo, há pelo menos duas premissas a serem reconhecidas. A primeira é a de que a Constituição revestiu o guardião político do pacto federativo, o Senado Federal, da irrenunciável missão de avaliar periodicamente a funcionalidade desse Sistema, numa clara exortação à transformação. A segunda é a de que o Supremo Tribunal, pelo seu plenário, tratando das competências tributárias constitucionalmente estabelecidas aos entes federados, excluiu a possibilidade de haver uma inconstitucionalidade manifesta numa reforma constitucional que restrinja tais competências, fixando que o que definirá a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da fórmula aplicada serão as medidas compensatórias apresentadas e a sua efetiva implementação. Olhando para o país cujo sistema tributário exige das pessoas uma conformidade ultrajante, é preciso admitir que a vocação da Constituição de 1988 é a de ser um navio, jamais uma âncora. Passa da hora desse navio seguir a sua jornada, ainda que, para isso, precise quebrar as correntes que, amarradas à âncora, o impedem de partir. O país deve, livremente, discutir, no espaço público que a nossa democracia soube construir, um modelo que vitalize os comandos constitucionais do Sistema Tributário Nacional. A Constituição quer progresso, não manutenção de status quo, especialmente quando ele sacrifica a própria realidade antevista pelo texto constitucional. Tanto que, segundo o inciso IX do art. 4º, a República rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade". A transformação pretendida pela Constituição nos exorta, no tempo presente, a cooperarmos com povos de todo o mundo, nessa grande aldeia global, sem provincianismos nem mesquinharias, tendo um Sistema Tributário Nacional menos bárbaro. Não façamos como Maria Teresa, Imperatriz da A'ustria entre 1740 e 1780, que, diante de sugesto~es sobre como melhorar as instituic¸o~es do seu pai's, recomendava: "Deixe tudo como esta'". É preciso discutir. E discutir sem medo. Nesse convite histórico inadiável, o Congresso Nacional precisa recordar Victor Hugo uma vez mais: "Nada é mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou". A Reforma Tributária apresenta uma ideia cujo tempo chegou. __________ 1 Clique aqui.
Semana passada, o deputado Federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República e líder do Partido Social Liberal - PSL na Câmara dos Deputados, o partido "ainda" do chefe do Poder Executivo e a segunda maior bancada da Casa, anunciou, numa entrevista à jornalista Leda Nagle, o seguinte: "Se a esquerda radicalizar a esse ponto, 'a gente' vai precisar ter uma resposta. E uma resposta ela pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de plebiscito como ocorreu na Itália, alguma resposta vai ter que ser dada". A declaração, proferida fora do recinto do Congresso Nacional, parecia falar mais pelo Poder Executivo do que pelo Legislativo, pois não tratava sobre absolutamente nada que compete à Câmara dos Deputados, à luz do art. 51 da Constituição. Iniciativas de segurança pública para conter eventuais protestos violentos são da inteira competência do Poder Executivo. Ao se valer do "a gente", o parlamentar, líder do PSL na Câmara e filho do presidente da República, dividiu com o grande público ideias de medidas de força a serem adotadas pelo Executivo. Não foi uma opinião, nem uma palavra, muito menos um voto. Foi o anúncio de ações concretas. Tanto que não tardou para que o general do Exército, Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional - GSI, encampasse a determinação do líder: "Se falou [em AI-5], tem que estudar como vai fazer, como vai conduzir"1. Depois, ambas autoridades deram o dito pelo não dito, mas a medida anunciada foi grave demais para ser reputada como sendo apenas uma brincadeira. Líder algum fala só por si. É da natureza do conceito de liderança a legítima expectativa de falar e agir em nome dos liderados. Ao se expressar por suas "opiniões, palavras e votos", o líder de um partido, ou de uma bancada, diversamente dos parlamentares em geral, leva uma mensagem coletiva, seja ela da maioria, da minoria, do governo, da oposição ou, como é o caso, do partido do presidente da República. A Constituição reconheceu a importância dos líderes partidários e conferiu-lhes atribuições não extensíveis a todos os parlamentares. Os incisos IV e V do art. 89 dispõem que participam do Conselho da República: "IV - os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados; V - os líderes da maioria e da minoria no Senado Federal". Não é só. As graves medidas previstas no "sistema constitucional das crises" são o estado de defesa e o estado de sítio. O art. 140 dispõe: "A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos 'os líderes partidários', designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio". Percebam que os líderes partidários participam. A mesma deferência é conferida pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados. O Capítulo IV trata "Dos Líderes". Segundo o art. 9º, "os deputados são agrupados por representações partidárias ou de Blocos Parlamentares, cabendo-lhes escolher o Líder quando a representação atender os requisitos estabelecidos no § 3º do art. 17 da Constituição Federal". Vale ser sensível à associação que o Regimento Interno da Câmara faz entre o líder partidário e o art. 17 da Constituição. Aos líderes, assim como ocorre com o presidente da Câmara, há a elevação de competências casada com o incremento de vedações. Segundo o § 5º do art. 9º do Regimento, "os Líderes e Vice-Líderes não poderão integrar a Mesa". Os seis incisos do art. 10 trazem prerrogativas aplicáveis exclusivamente ao líder partidário. Ei-las: "Art. 10. O Líder, além de outras atribuições regimentais, tem as seguintes prerrogativas: I - fazer uso da palavra, nos termos do art. 66, §§ 1º e 3º, combinado com o art. 89; II - inscrever membros da bancada para o horário destinado às Comunicações Parlamentares; III - participar, pessoalmente ou por intermédio dos seus Vice-Líderes, dos trabalhos de qualquer Comissão de que não seja membro, sem direito a voto, mas podendo encaminhar a votação ou requerer verificação desta; IV - encaminhar a votação de qualquer proposição sujeita à deliberação do Plenário, para orientar sua bancada, por tempo não superior a um minuto; V - registrar os candidatos do Partido ou Bloco Parlamentar para concorrer aos cargos da Mesa, e atender ao que dispõe o inciso III do art. 8º; VI - indicar à Mesa os membros da bancada para compor as Comissões, e, a qualquer tempo, substituí-los." Essa robusta normatização da liderança partidária2 e a sua conformação com a Constituição fizeram com que o pleno do Supremo Tribunal Federal, no mandado de segurança 24.831, de relatoria do ministro Celso de Mello (DJ 4.8.2006), reafirmasse o caráter marcadamente constitucional das maiorias e minorias parlamentares. Nesse importante precedente, constatou-se que "a maioria legislativa, mediante deliberada inércia de seus líderes na indicação de membros para compor determinada Comissão Parlamentar de Inquérito, não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar em torno de fato determinado e por período certo"3. Os líderes partidários encontram direitos e deveres na própria Constituição. Esse é o racional que guiou essa histórica decisão. Ao se tratar do líder do governo ou do líder do partido do presidente da República, mais do que representar o partido, ele representa o próprio Poder Executivo no âmbito do Poder Legislativo. Suas "opiniões, palavras e votos" se confundem com os anúncios de medidas do Executivo. Como sabemos, o Congresso Nacional foi dotado de poderes para conter qualquer forma de abuso governamental. Pelo art. 51, X da Constituição, compete à Câmara dos Deputados "fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta". Mas até onde pode ir a imunidade material de líder de partido - especialmente o do presidente da República - que, em entrevista fora do recinto do Parlamento, anuncia articulações junto ao Poder Executivo para a implementação, se preciso for, de medidas assemelhadas ao Ato Institucional n. 5, de 1968? O art. 53 da Constituição diz o seguinte: "Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos". A interpretação que o STF confere a esse dispositivo é a de que as opiniões, palavras e votos, nas instalações do Congresso Nacional, estão integralmente protegidas. Quando fora do recinto, seria necessário realizar um juízo de valor sobre se as opiniões e palavras estavam relacionadas ao exercício do mandato parlamentar4. Qualquer que seja a teleologia dessa imunidade, ela se submete à preservação da democracia. O art. 1º da Constituição dispõe que "a República Federativa do Brasil (...) constitui-se em 'Estado Democrático de Direito'". O inciso XLIV do art. 5º, por sua vez, diz: "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o 'Estado Democrático'". Já o art. 91 dispõe: "o Conselho de Defesa Nacional é órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do 'Estado democrático'". São três comandos reafirmando o "Estado Democrático". A Constituição também realça o "regime democrático". Quando disciplina o Ministério Público, no art. 127, confere-lhe como uma das suas missões institucionais "a defesa do 'regime democrático'". O mesmo com a Defensoria Pública que, segundo o art. 134, é "expressão e instrumento do 'regime democrático'". O art. 34, VII, "a", dispõe que "a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e 'regime democrático'". Antes, o "Estado democrático". Agora, o "regime democrático". Versa também sobre as "instituições democráticas". No inciso I do art. 23, "é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das 'instituições democráticas' e conservar o patrimônio público". O art. 90, II diz competir "ao Conselho da República pronunciar-se sobre as questões relevantes para a estabilidade das 'instituições democráticas'". A leitura demonstra que para sempre seremos um "Estado Democrático", num "regime democrático", governados por "instituições democráticas". Qualquer opção fora desse esquadro corresponderia ao desmantelamento da nossa ordem constitucional. Mas há muito mais. A Constituição conforma a liberdade partidária ao respeito a determinados bens. Segundo o art. 17, "é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana". Os partidos podem nascer ("criação"), se desenvolver ("fusão" e "incorporação") e morrer ("extinção"). Todavia, a vida partidária há de se pautar pelo resguardo dos bens acima. Poderia um líder, no desempenho da função, por suas opiniões, palavras e votos, agir amalgamado com ideias e ideais que violam a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana? O art. 17 limita o exercício da imunidade parlamentar do líder partidário. E esse é o comando constitucional invocado pelo art. 9º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, ao dispor sobre os líderes. Logo, a compreensão do comando do art. 53 é a de que "os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos", desde que, quando ocupantes da função de líderes partidários, resguardem "a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana". Senão, nada feito. Essa imunidade material também há de ser lida em sintonia com o § 4º do art. 60 da Constituição, que impede a deliberação sobre o que tenda a abolir: "I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais". São as cláusulas pétreas5. Conhecendo e interpretando o art. 53 da Constituição (imunidade parlamentar material) em sintonia com os artigos 17 (líderes partidários) e 60, § 4º (parlamentares em deliberação), fica claro que não há imunidade que assegure ao líder partidário promover ou articular medidas assemelhadas ao Ato Institucional nº 5. O AI-5, se analisado pela lupa da Constituição de 1988, é inconstitucional "de Deus a Virgílio Távora". O art. 2º, por exemplo, dispunha: "O presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República". Decretar o recesso do Congresso Nacional e se revestir do poder de legislar em todas as matérias legislativas (§ 1º do art. 2º) é uma violação à separação dos poderes, ao Estado democrático, ao Regime Democrático e às Instituições Democráticas. O art. 3º dispõe que "o presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição". Ocorre que a "forma federativa de Estado" é uma das cláusulas pétreas cujo esvaziamento não pode ser objeto de deliberação parlamentar. Segundo o art. 4º do AI-5, "no interesse de preservar a Revolução, o presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais". Atualmente, o inciso II do § 4º do art. 60 traz como cláusula pétrea "o voto direto, secreto, universal e periódico", direito fundamental da pessoa humana protegido pelo art. 17. O art. 6º dizia: "Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo". O art. 11: "Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos". Foi o apocalipse do Poder Judiciário independente. Por fim: "Art. 5º. Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular". Uma violação tanto à cláusula pétrea dos direitos e garantias fundamentais como ao resguardo, pelos partidos políticos, dos "direitos fundamentais da pessoa humana". Anunciar, numa entrevista externa, na condição de líder do partido do presidente da República, com o suporte ulterior de um ministro de Estado, que está sendo considerada a adoção de medidas assemelhadas ao AI-5 é um tipo de violência ao Parlamento e à democracia constitucional ensejadora da quebra do compromisso feito no ato de posse como deputado federal, que é o seguinte: "Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil"6. No STF, a ministra Cármen Lúcia, no referendo da cautelar concedida na arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 548, lembrou a fala de Ulisses Guimarães, em 5 de outubro de 1988: "traidor da constituição é traidor da pátria". Para a ministra, "a má interpretação ou a agressão aos direitos fundamentais que formam o núcleo essencial da própria Constituição é uma forma de trair a Constituição e o próprio Brasil7. Sabedor dessas traições, o Poder Legislativo reclama permanentes explicações do Poder Executivo. Segundo o art. 50 da Constituição, a "Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas Comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada"8. Liderança se conquista após a batalha do tempo, fruto de empenho sincero. Líderes devem, pelo exemplo, inspirar e abrir caminhos. Têm o dever de, como dizia Abraham Lincoln, animar em nós os anjos bons da nossa natureza. Liderança verdadeira não se compra, não se ganha de presente nem pode ser uma espécie de prêmio de consolação. Conquista-se em razão da respeitabilidade granjeada junto aos liderados. É coisa séria, muito séria. Por isso, ela precisa, no Parlamento, ser exercida com decoro. Essa é uma determinação do inciso II do art. 55 da Constituição e o seu § 1º. No exercício da liderança, falhando os homens - e eles falham muito -, que as instituições democráticas, à luz da Constituição, cumpram o seu destino, corringindo-os. __________ 1 Em Uol: AI-5: Tem que estudar como fazer, diz general Heleno sobre fala de Eduardo. 2 O Título IV do Regimento Interno do Senado Federal trata "Dos Blocos Parlamentares, da Maioria, da Minoria e das Lideranças". Já o Título II do Regimento Comum cuida "Dos Líderes". 3 Intervieram nesse mandado de segurança a líder do bloco parlamentar de apoio ao governo no Senado Federal, senadora Ideli Salvatti; o líder do Partido Trabalhista Brasileiro - PTB, senador Duciomar Gomes da Costa e o líder do Partido Socialista Brasileiro - PSB, João Capiberibe. 4 Inq n. 3932 (min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 9.9.2016): "(...) 13. In casu, (i) a entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porquanto as manifestações se revelam estranhas ao exercício do mandato legislativo, ao afirmar que 'não estupraria' Deputada Federal porque ela 'não merece'; (ii) o fato de o parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista é fato meramente acidental, já que não foi ali que se tornaram públicas as ofensas, mas sim através da imprensa e da internet; (...) 15. (i) A imunidade parlamentar incide quando as palavras tenham sido proferidas do recinto da Câmara dos Deputados: 'Despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar' (Inq. 3814, 1ª Turma, min. Rosa Weber, DJE 21.10.2014). (ii) Os atos praticados em local distinto escapam à proteção da imunidade, quando as manifestações não guardem pertinência, por um nexo de causalidade, com o desempenho das funções do mandato parlamentar. recebo a denúncia pela prática, em tese, de incitação ao crime; e recebo parcialmente a queixa-crime, apenas quanto ao delito de injúria. Rejeito a Queixa-Crime quanto à imputação do crime de calúnia. (...)". 5 Tanto cabe aos congressistas esse controle da qualidade temática das medidas do Executivo anunciadas pelos líderes partidários do próprio governo que, sob a égide da Constituição de 1988, o min. Celso de Mello, no MS n. 21.642, anotou: "O controle de constitucionalidade tem por objeto lei ou emenda constitucional promulgada. Todavia, cabe ser exercido em caso de projeto de lei ou emenda constitucional quando a Constituição taxativamente veda sua apresentação ou a deliberação. Legitimidade ativa privativa dos membros do Congresso Nacional". 6 Cautelar no MS n. 25.579 (rel. p/acórdão min. Joaquim Barbosa, pleno, DJe 24.8.2007): "(...) 3. O membro do Congresso Nacional que se licencia do mandato para investir-se no cargo de Ministro de Estado não perde os laços que o unem, organicamente, ao Parlamento (CF, art. 56, I). Conseqüentemente, continua a subsistir em seu favor a garantia constitucional da prerrogativa de foro em matéria penal (INQ-QO 777-3, min. Moreira Alves, DJ 1.10.1993), bem como a faculdade de optar pela remuneração do mandato (CF, art. 56, § 3º). Da mesma forma, ainda que licenciado, cumpre-lhe guardar estrita observância às vedações e incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como às exigências ético-jurídicas que a Constituição (CF, art. 55, § 1º) e os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como elementos caracterizadores do decoro parlamentar. (...)". 7 Dia 31/10/2018, o STF referendou liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia para assegurar a livre manifestação do pensamento e das ideias em universidades. A ADPF n. 548 foi ajuizada pela então procuradora-geral da república, Raquel Dodge, contra decisões de juízes eleitorais que determinaram a busca e a apreensão de panfletos e materiais de campanha eleitoral em universidades federais e estaduais. As medidas teriam como fundamento a legislação eleitoral, na parte que veda a veiculação de propaganda de qualquer natureza em prédios e outros bens públicos (art. 37 da lei 9.504/1997). 8 O § 2º do mesmo art. 50 da Constituição diz que "as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal poderão encaminhar pedidos escritos de informações a Ministros de Estado ou a qualquer das pessoas referidas no caput deste artigo, importando em crime de responsabilidade a recusa, ou o não - atendimento, no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informações falsas". O inciso X do art. 51 diz competir à Câmara dos Deputados "fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta". Por fim, o art. 58, § 2º: "Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: III - convocar ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições".
segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O mundo secreto das Supremas Cortes

Todos aqueles que perseveram no erro de vindicar Supremas Cortes debilitadas como debilitados são os "tigres sem dentes", recentemente tiveram de despertar dessa doce fantasia. A realidade chegou-lhes a tapas, das mãos de uma convocação semelhante a que fizera Nelson Rodrigues, quando sugeriu aos jovens: Cresçam!1 É assim na alquimia da Vida e do Direito. Há poucas semanas, o Reino Unido, último bastião material - porque formalmente já não o era desde 2005 - da suposta soberania do Parlamento, derrubou, pela sua Suprema Corte, nada menos do que a ordem da rainha, dada a pedido do primeiro-ministro, Boris Johnson, à Câmara dos Lordes, para suspender os trabalhos do Parlamento. A decisão unânime, lida pela juíza presidente Brenda Hale2 , qualificou a ordem da rainha como uma "folha em branco, porque a decisão era nula na origem". Há um século, uma medida dessa desencandearia uma guerra. Hoje, a judicialização do tema e a ulterior decisão simplesmente mostraram que, quando um inverno sombrio varre do céu direitos conquistados - e o direito de ter um Parlamamento livre e em funcionamento é um direito básico numa democracia -, reside nelas, as Supremas Cortes, o irrecusável dever de preservar as bases formais, materiais e institucionais que vitalizam o pacto democrático fundamental celebrado pela unidade política num dado momento de sua história. Diante do fato chocante de um primeiro-ministro recém-eleito achar por bem fechar, mesmo que temporariamente, o Parlamento, a quem o Reino Unido deveria recorrer? Às armas? Ao povo? Qual teria sido a forma mais civilizada e institucionalmente adequada de discutir essa ordem e seus reflexos na democracia inglesa? Deveria o Parlamento ignorar a ordem da rainha? Declarar uma guerra? Respondendo aos questionamentos acima, veio da voz suave e pausada de uma magistrada equilibrada, Brenda Hale, a correção de rumos digna do Estado Democrático de Direito. Nesse caso, o "ambiente da política" jamais teria reparado violações perpretadas pelo "ambiente da política". Aliás, essa narrativa, às vezes empregada retoricamente para marginalizar as Supremas Cortes, virou um tipo de clichê atrevido que a besteira teima em chamar de seu. No Reino Unido, quando a política falhou, foram os próprios políticos que invocaram a justiça, não a política, ao baterem às portas da Suprema Corte reclamando, antes de tudo, independência judicial. "Tigre sem dentes" algum teria mandando reabrir o Parlamento. Foi preciso uma Suprema Corte altiva para resgatar a quintessência da vibrante democracia inglesa, que é o seu extraordinário Parlamento. É por essas e por outras que todas as democracias constitucionais do mundo têm investido intensa energia em analisar as suas Cortes Supremas e também as de outros países. Uma análise que recai não apenas sobre o resultado de suas deliberações, mas, especialmente, sobre o modo de funcionamento e, principalmente, sobre as muitas cerimônias, ritos e protocolos aos quais seus integrantes são submetidos. O segredo parece estar preservado na parte de dentro do ambiente, não no espetáculo público exibido muitas vezes com uma transparência visceral, como no Brasil. O conjunto simbólico desses espaços é poderoso. Há ritos, solenidades, disposições regimentais, costumes judiciais, protocolos, pronomes de tratamentos..., tudo marcado por uma forma própria de se expressar e de fundamentar decisões, com homens e mulheres sentados juntos, em sessões solenes, cobertos por mantos pretos de cetim, discutindo, por horas a fio, até chegarem a um veredito. É muito simbólico. Esse arquétipo atrai tanto fascínio quanto escárnio. Supremas Cortes não são sociedades secretas, muito menos confrarias ou tipos peculiares de clubes. De modo algum. Se não são conclaves, também não são arenas nem ringues. Uma Corte Suprema, por mais plural que seja, não deve ser divisionista ou mergulhada numa espécie de guerra de todos contra todos. Intrigas, conspirações e quebras internas de confiança podem resultar numa perda monumental de legitimidade. Em alguns momentos históricos, o ideal é ter um Tribunal unido pela Constituição, não dividido, muito menos dividindo. O julgamento sobre as uniões homoafetivas no Brasil, decisão reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Documental da Humanidade3 , veio de uma Suprema Corte unida. Não foi diferente com o caso Brown versus Board of Education (1954), no qual também se verificou unanimidade contra a segregação racial dos Estados Unidos. A decisão da Suprema Corte do Reino Unido, mencionada na abertura da coluna, foi igualmente unânime. Mas vale insistir na pergunta: o que são realmente essas Supremas Cortes? Seriam elas, metaforicamente, uma constelação com inúmeras estrelas? Ou um arquipélago, repleto de ilhas, às vezes bem distantes uma das outras?4 Recentemente, o ministro Francisco Rezek qualificou o Supremo Tribunal Federal da seguinte forma: "O Supremo é, hoje, um arquipélago de onze monocracias".5 Rezek é um homem que viveu a verdade e percorreu o caminho. Para mergulhar nos mares revoltos das Supremas Cortes, o pontapé inicial é saber como alguém se torna um integrante delas. Esse ingresso passa, antes de tudo, por um convite feito pelo presidente da República. Comecemos com um pouco das muitas e sensacionais histórias sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos a partir dele, Earl Warren, o "Super-Chief". Em 30 de setembro de 1953, Earl Warren recebeu um telefonema. Do outro lado da linha havia uma informação relevante da qual era preciso tomar conhecimento. O presidente dos Estados Unidos, Dwight D. Eisenhower, acabava de lhe indicar para presidente da Suprema Corte, o honroso - e problemático - posto de Chief Justice. O convite não poderia ser mais desafiador. Warren não só iria presidir a Suprema Corte, mas iria, também, "ser a cabeça do sistema federal judicial."6 Warren estava habituado com missões espinhosas. Era mais um daqueles personagens da história que se fez vivendo a verdade e percorrendo o caminho. Ele aceitou o convite. Dia 03 de outubro, enviou sua carta de renúncia como governador da Califórnia. Foi um bom governador. Republicano, conservou o que deveria ser conservado e impeliu progresso no que reclamava progresso. Não era um "obsessivo" ideológico. Tratava-se de um homem de missão e de execução, com grande visão sobre a essência que fez e faz os Estados Unidos o que são. Presidir uma Corte Suprema não é brincadeira. São muitas as competências e o plexo de possibilidades de exercício do poder é extraordinariamente grande. Exatamente por isso que, à frente de Cortes Supremas, devemos "ter um líder, jamais um ditador."7 Warren era um líder. Mas e no Brasil? Também temos indicações feitas por meio de ligações telefônicas a partir de palácios? Sim, é claro que temos. Conhecida foi a indicação do ministro Eros Grau ao Supremo Tribunal Federal. O então Ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ligou-lhe e disse que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queria lhe falar. O professor Eros Grau telefonou para o Presidente, no que ouviu: "Eros, você já morou em Brasília?". "Eu não!", respondeu. "Pois então agora vai morar!", finalizou o presidente da República.8 Eros Grau estava indicado à Suprema Corte. As Supremas Cortes vez ou outra têm 'Super Presidentes'. Nos Estados Unidos, a história consagrou Earl Warren, que esteve à frente da Suprema Corte por mais de quinze anos (1953/1969)9. No Brasil, juristas como José Levi Mello do Amaral Júnior10 e Lênio Streck11 deram, ao período em que o STF foi presidido pelo ministro Gilmar Mendes, o nome de "Corte Gilmar Mendes", em razão do ritmo intenso de trabalho e da projeção da personalidade do ministro sobre o próprio Tribunal. Acontece que "Super Presidentes" costumam ser "Super Vaidosos". Earl Warren não me deixa mentir. Após ter feito uma palestra para centenas de alunos no salão da Faculdade de Direito de Notre Dame, Warren presenciou um aluno no fundo do salão lhe indagar: "Algumas pessoas têm sugerido que você ficará na história com John Marshall como um dos dois maiores Presidentes da Suprema Corte dos Estados Unidos12." Warren, gargalhando esplendidamente, interrompeu o estudante: "Você poderia perguntar novamente - um pouco mais alto, por favor? Estou tendo alguns problemas de audição."13 Quanto mais o aluno repetia a pergunta, mais Warren se deliciava com a comparação com o inigualável Marshall. São mesmo vaidosos. Como não ser? Mas um presidente de Suprema Corte não vive só de pequenas vaidades. Ele é cercado por atribuições administrativas de todos os lados que garantem o pleno funcionamento do Tribunal. No Brasil, a presidente Ellen Gracie transferiu o mobiliário do STF para a sua antiga sede, no Rio de Janeiro. Achou-se, ao tempo, que a Presidente estava se atendo a tarefas menores. Na verdade, a medida preservava a memória histórica do Supremo, num ato de extrema grandeza. A ministra, ocupando a presidência da Suprema Corte, em 2006, assinou contrato de comodato com o Tribunal Regional Federal da 2ª Região para a instalação do antigo plenário do STF no Centro Cultural Justiça Federal (CCJF), na cidade do Rio de Janeiro. Dentre as peças que constituíam o mobiliário havia "um quadro com fotos mostrando a composição dos ministros do STF em 1908, várias cadeiras em estilo vitoriano e uma cabine telefônica para interiores (da época em que os telefones operavam em sistema de manivela ou magneto, bateria central e automático de disco)."14 Isso prova que ocupar o posto de presidente de uma Suprema Corte não afasta os ministros de atribuições administrativas as mais variadas. Bernard Schwartz lembra que, nos Estados Unidos, o "Presidente Burger se comprometeu a redecorar a cafeteria da Suprema Corte e ajudou a escolher os vidros e a porcelana. Ele também redesenhou a Bancada da Corte, mudando-a de uma tradicional linha reta para um 'alado, ou uma forma de semi-hexágono."15 Falava de Warren Earl Burger, Chief Justice de 1969 a 1986. Percebam que não são poucas as atribuições do presidente de uma Suprema Corte. No Brasil, o presidente vive uma rotina extenuante. Cabe-lhe zelar pelas prerrogativas do Tribunal, representá-lo perante os demais poderes e autoridades e dirigir-lhe os trabalhos e presidir-lhe as sessões plenárias. É o presidente que executa e faz cumprir os seus despachos, suas decisões monocráticas, suas resoluções, suas ordens e os acórdãos transitados em julgado e por ele relatados, bem como as deliberações tomadas em sessão administrativa e outras de interesse institucional. O presidente do STF decide questões de ordem ou as submete ao Tribunal. Ele decide questões urgentes nos períodos de recesso ou de férias e profere voto de qualidade em certas decisões do plenário. Também dá posse aos ministros e concede-lhes transferência de Turma; concede licença aos ministros, de até três meses, e aos servidores do Tribunal; dá posse ao Diretor-Geral, ao Secretário-Geral da Presidência e aos Diretores de Departamento; superintende a ordem e a disciplina do Tribunal, bem como aplica penalidades aos seus servidores; apresenta ao Tribunal relatório circunstanciado dos trabalhos do ano; relata a arguição de suspeição oposta a um par. Cabe ao presidente, ainda, assinar a correspondência destinada ao presidente da República; ao vice-presidente da República; ao presidente do Senado Federal; aos presidentes dos Tribunais Superiores, entre estes incluído o Tribunal de Contas da União; ao procurador-geral da República; aos governadores dos Estados e do Distrito Federal; aos chefes de governo estrangeiro e seus representantes no Brasil; às autoridades públicas, em resposta a pedidos de informação sobre assunto pertinente ao Poder Judiciário e ao STF. Nos Estados Unidos, em 1946, pouco antes da sua morte, o então presidente da Suprema Corte norte-americana, Harlan F. Stone, assoberbado pelos encargos administrativos, respondeu o seguinte ao presidente Harry Truman, que lhe oferecia uma responsabilidade adicional: "Poucos estão cientes que nem meu antecessor, nem eu... temos sido capazes de enfrentar as demandas diárias sobre nós sem trabalhar noites, feriados e domingos. Os deveres administrativos do Presidente têm aumentado, e muitos outros deveres têm sido impostos a ele por atos do Congresso que meus antecessores não foram chamados a executar."16 Stone sabia que já tinha muita coisa em seu prato. Não precisava de novas atribuições. Noutras oportunidades, o que aparenta ser algo de menor importância mostra-se como o anúncio de um novo tempo sobre o qual irá pairar a personalidade do líder da Suprema Corte. Quando o presidente Earl Warren "chegou à primeira vez, em 1953, a Corte tinha lavabos separados para negros. Uma das primeiras coisas que ele fez foi eliminar a discriminação que estava tomando conta no próprio prédio da Corte."17 Vejam que exemplo. É a aplicação prática da máxima de Mahatma Gandhi: "A minha vida é a minha mensagem". Warren viu diante de si, na Suprema Corte por ele presidida, a confrontação de seus ideais de humanidade e amor ao próximo, confrontação essa que violava também a exegese por ele empregada na interpretação daquela que é a mais festejada Constituição de que se tem notícia, a dos Estados Unidos. Ele então deu o primeiro passo. E não parou mais. Aquela medida administrativa no exercício da função de Chief Justice era o aviso de que a segregação racial estava com os dias contados. Tudo numa Suprema Corte são rosas. Se são rosas, e são muitas, então imagine só a quantidade de espinhos. É preciso ser habilidoso para não se ferir. Ali também é o palco de grandes discussões que muitas vezes se afastam dos debates jurídicos e entram em confrontos pessoais inteiramente despropositados. É quando a altivez e compostura que se esperam das pessoas de elevado espírito público parece escapar às mãos. Nos Estados Unidos, em 1947, os assessores dos ministros da Suprema Corte queriam dar uma festa de Natal convidando os servidores negros. O presidente Frederick Vinson achou por bem levar a questão para uma sessão administrativa. Na sessão, o ministro Stanley Reed disse que não participaria do evento, caso ele fosse aberto aos servidores negros. Qual o termômetro adequado para medir a temperatura da reação a uma postura preconceituosa? Há questões que simplesmente não comportam acomodação. Em reação à despropositada exigência, Reed ouviu que sua postura poderia colocar a Suprema Corte em uma "posição terrível... após todas as nobres expressões da publicidade da Corte contra a discriminação racial18". Reed respondeu: "Esta é puramente uma questão privada e eu posso fazer o que me agradar em questões privadas19." Stanley Reed parecia também não saber o grave dever que lhe fora entregue como juiz da Suprema Corte. Imediatamente após o argumento de Reed, Félix Frankfurter reagiu afirmando o seguinte: "o mero fato de estarmos sentados aqui por aproximadamente uma hora discutindo o direito de assegurar a presença dos participantes torna difícil considerar a questão como sendo puramente privada. A Suprema Corte está emaranhada nisso, pouco importando o modo como você olha para a questão."20 Depois do entrevero, o resultado lamentável foi que a proposta de festa de Natal na Suprema Corte, naqueles moldes, foi silenciosamente arquivada. Uma vergonha. Outro ponto de destaque na vida de uma Suprema Corte é a oportunidade para os advogados sustentarem oralmente suas razões perante o conselho de julgadores. Nos Estados Unidos, Earl Warren sempre realçou a importância do momento. O 'Super Presidente' costumava dizer que "o advogado médio jamais poderia ter oportunidade de arguir um caso perante a Suprema Corte."21 O advogado deveria ter em mente que seria um momento único aquele no qual ele estaria diante dos ministros e ministras, e isso deveria representar para ele "o topo da sua carreira."22 "Cada procurador novato admitido ganhava um sorriso"23 do Presidente Earl Warren. O STF é muito menos ortodoxo no que diz respeito à sustentação oral. E isso não é ruim, mas é bem verdade que há casos curiosos. Certa vez, o ministro Marco Aurélio fazia a leitura de seu voto numa grande discussão tributária, quando um advogado se dirigiu à tribuna e afirmou: "Ministro, ministro, uma questão de fato". O ministro Marco Aurélio reagiu: "Vossa Excelência permite que o relator termine o voto?". Em seguida, o ministro Marco Aurélio, voltando-se para o então presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, disse: "Presidente, creio que precisamos adotar postura mais rigorosa quanto à interferência dos senhores advogados quando estiver votando um integrante do Tribunal. Nem mesmo é possível ao relator terminar um voto que está proferindo? Estou sempre pronto a ouvir os senhores advogados, mas em esclarecimento de fato e após o voto que estiver proferindo. Respeito os senhores advogados, como aguardo - e aqui o respeito é mútuo - que respeitem também os julgadores. Sempre ressalto que os advogados são indispensáveis à administração da Justiça, mas que atue no momento adequado."24 O advogado lamentou o ocorrido e pediu desculpas, conseguindo nova oportunidade para usar da palavra. Quando usou, disse: "A questão de fato era somente para esclarecer que concordo com a interpretação de Vossa Excelência com relação à alíquota zero e não tributada, mas, na isenção, há uma alíquota diferente." O ministro Marco Aurélio não perdoou: "Presidente, o advogado não precisa concordar, considerados os interesses do constituinte, com o voto prolatado por integrante do Tribunal para que esse voto ressoe."25 A Corte tem seus protocolos. Outro ponto que merece atenção é a marca da política partidária prévia inerente à biografia de alguns integrantes. Nos Estados Unidos, o presidente Warren Burger foi um dos presidentes da Suprema Corte que maior habilidade demonstrou em manter boas relações com o Capitólio.26 No Brasil, o ministro Nelson Jobim se destacou na negociação com o Congresso Nacional para aprovação da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que estabeleceu a Reforma do Judiciário. Segundo o professor da Fundação Getúlio Vargas, Joaquim Falcão, "Nelson Jobim deu vida à Emenda n. 45/2004."27 Há também, na rotina de uma Suprema Corte, situações domésticas inusitadas vividas pelos ministros. Por exemplo, a ministra Cármen Lúcia não usa carro oficial. Certa vez, chegou à Suprema Corte dirigindo o próprio carro, "um Golf prateado, ano 2001."28 Foi barrada na entrada da garagem pelo segurança, com o argumento de que, ali, só entraria ministro. A ministra Cármen Lúcia respondeu: "Eu sou ministra!"29, no que escutou em tom desafiador: "Onde está o seu carro?"30 . A ministra, mineiríssima, finalizou a discussão: "Ou bem aqui se entra ministro, ou bem se entra o carro"31. Terminou conseguindo entrar no estacionamento da Suprema Corte. Nos Estados Unidos, situações com carros oficiais também entraram para o folclore jurídico. Antes de Earl Warren se tornar Presidente, ninguém tinha carro oficial. Certa noite, ele viu uma ligação em sua secretária eletrônica dando-lhe ciência de que uma limusine havia sido contratada para o levar a um jantar na Casa Branca. Warren protestou que contratar uma limusine era uma extravagância sem necessidade, mas insistiram que não seria apropriado para o presidente da Suprema Corte atender ao presidente da República chegando num jantar presidencial em um táxi.32 Warren, mesmo insatisfeito, aceitou a limusine. De repente, chega o carro. Era uma verdadeira "carroça", com um largo emblema afixado na sua lateral: "Aeroporto Nacional de Washington". Bernard Schwartz relata que "o motorista disse que tinham pensado que o aluguel era para o aeroporto, e seu carro tinha sido escolhido com a finalidade de carregar a bagagem"33 . Como era muito tarde para mudar os planos, e, além do mais, poderiam ter que pagar por qualquer aluguel adicional, lá se foi o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos para a Casa Branca naquela "carroça". Ver aquela cena, logo com o Chief Justice, "criou uma agitação em Washington". Schwartz revela que "pouco depois, o Presidente do Comitê de Dotações Orçamentárias do Senado inseriu num projeto de dotações orçamentárias uma emenda para providenciar ao Presidente um carro oficial. A nova previsão orçaentária passou sem grandes discussões."34 Não é raro que o presidente da República ofereça jantares aos ministros da Suprema Corte. A presidente Dilma Rousseff ofereceu uma recepção aos ministros do STF. Sua Excelência recebeu, na residência oficial da Presidência da República, os ministros Ayres Britto, Cezar Peluso, Dias Toffoli, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski. Não compareceram os ministros Celso de Mello, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio. As primeiras palavras da Presidente no jantar destacaram "o seu imenso prazer por receber os ministros do Supremo."35 Em 22 de abril de 2008, o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, realizou jantar em homenagem à presidente do STF, ministra Ellen Gracie, no Palácio do Alvorada. Não compareceram ao evento os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello e Joaquim Barbosa. Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama aguardou sua indicada à Suprema Corte, Sonia Sotomayor, tomar posse e, em seguida, ofereceu-lhe uma recepção na Casa Branca, em 12 de agosto de 2009. Dia 06 de agosto de 2010, foi a vez de oferecer outra recepção na Casa Branca, desta vez para brindar a confirmação do Senado da nomeação de Elena Kagan para a Corte.36 Há muito mais informações interessantes sobre essa vida interior das Supremas Cortes. Elas, por exemplo, costumam gerenciar boa parte de suas atividades de rotina por meio de órgãos fracionários, chamados de comissões ou comitês. O STF conta com comissões. A Comissão de Regimento é presidida pelo ministro Luiz Fux, tendo como integrante o ministro Edson Fachin e como suplente a ministra Rosa Weber. A Comissão de Jurisprudência é presidida pelo ministro Gilmar Mendes, contando com a ministra Cármen Lúcia. A Comissão de Documentação é presidida pelo ministro Celso de Mello e conta com os ministros Roberto Barroso e Rosa Weber. Por fim, há a Comissão de Coordenação, presidida pelo ministro Edson Fachin. A Suprema Corte dos Estados Unidos também tem as suas comissões, chamadas de "comitês". Um deles é composto por três ministros e se volta para a "questão do transporte para a Corte". Há até o "Comitê de Descanso". Em 27 de setembro de 1988, o presidente William Rehnquist informou aos demais ministros da Suprema Corte o seguinte: "Sandra e Nino concordaram em continuar a servir no Comitê de Descanso da Corte e Sandra concordou em continuar a servir no Comitê da Cafeteria."37 Essa troca de gentilezas, de atos de boa educação e de cordialidade entre os ministros da Suprema Corte não existem só nos Estados Unidos. No Brasil também há. Consta que, logo que soube da indicação do ministro Luiz Fux para a Suprema Corte, o ministro Marco Aurélio, ainda cedo do dia, teria telefonado-he dando os parabéns.38 A iniciativa marca boa parte de certo protocolo social existente. No caso da ligação feita pelo ministro Marco Aurélio ao indicado, esta se torna ainda mais simbólica quando recordamos que, em 29 de novembro de 2001, Luiz Fux era nomeado ministro do Superior Tribunal de Justiça e, naquele dia, consta que também gozava da companhia do ministro Marco Aurélio, num jantar em Brasília.39 Dia 15 de março de 2011, o ministro Marco Aurélio Mello ofereceu almoço de boas vindas ao ministro Luiz Fux, contando com a presença dos ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, integrantes da 1ª Turma da Corte onde o ministro Fux passaria a atuar.40 E há mais cordialidades e até certa brincadeira. Vale recordar o aparte feito pelo saudoso ministro Menezes Direito à ministra Ellen Gracie, na votação da Súmula Vinculante nº 14, que tratava sobre direitos dos advogados quanto ao acesso a inquéritos.41 A ministra Ellen justificava sua divergência. Num determinado momento, comentou: "No entanto, Senhor Presidente, Senhores Ministros, creio que me deva ser feita justiça no sentido de que sou uma 'velha' defensora da súmula vinculante". Imediatamente, o ministro Menezes Direito pediu um aparte, que lhe foi concedido: "Excelência! Defensora sim, velha, jamais"42. A Suprema Corte gargalhou. A troca de amabilidades faz parte do jogo e da convivência. O presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, William Rehnquist, divulgou um memorando, em 09 de março de 1991, registrando o seguinte: "Nino celebrará seu aniversário em 11 de março; deixe-nos ter nosso vinho usual na Sala de Jantar dos juízes na sexta, 15 de março, após a conferência43." Nino era Antonin Scalia e o vinho era parte de sua forma de celebrar. É importante agradar os colegas em seus pequenos, mas importantes, gostos. Desse tipo de atitude nasce uma liderança amável. Apesar de todas as demonstrações de gentilezas, há tempos em que a Suprema Corte mais se parece com o Coliseu. É preciso habilidade, astúcia, preparo e coragem. Não se trata de um parque de diversões. É um lugar onde reina o lema "amigos, amigos, convicções jurídicas à parte". Como bem advertiu o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, uma Suprema Corte "não é um clube de amigos"44. E é ótimo que não seja. A acomodação de grupos ou qualquer tipo de subalternidade intelectual pode tirar das Supremas Cortes o seu maior ativo: a pluralidade de perspectivas. Ruth Ginsburg, da Suprema Corte dos Estados Unidos, é contundente a esse respeito: "Não há negociação de votos. Não há 'se você me acompanha neste caso, eu ficarei do seu lado em outro caso'. Nunca. Isso jamais acontece".45 De fato, a Suprema Corte não é e não pode ser um "clube de amigos". Não há fim para todos os enigmas da vida interior das Supremas Cortes. Essas boas histórias mostram que é de fundamental importância conhecermos esse ambiente para, com visão crítica, e espírito questionador, requerermos o aperfeiçoamento permanente dessas instituiçõesessenciais às democracias contemporâneas. Se até o último bastião da soberania do Parlamento, o Reino Unido, agora declara a inconstitucionalidade de ordens de Sua Majestade, A Rainha, então há ainda muitas outras histórias a serem contadas sobre esse universo fascinante que é o mundo secreto das Supremas Cortes. Que assim seja. ______________ 1 Em entrevista ao repórter J. J. Ribeiro, do jornal "O Opiniático" (de Minas Gerais), Nelson Rodrigues foi indagado sobre que conselho dar aos jovens. No que respondeu: "Jovens: envelheçam rapidamente!". A entrevista foi concedida em 26 de novembro de 1980. Nelson Rodrigues morreria meses depois. 2 É o caso R (Miller) v The Prime Minister and Cherry v Advocate General for Scotland ([2019] UKSC 41), cuja decisão pode ser assistida nesse vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=BzXzRk08cMg, e o inteiro teor acessado aqui: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2019-0192-judgment.pdf 3 O STF recebeu o certificado MoWBrasil 2018, oferecido pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco. A decisão foi inscrita como patrimônio documental da humanidade no Registro Nacional do Brasil. O ministro Ayres Britto (aposentado), relator das ações do tema (ADI 4277 e ADPF 132), representou o STF. 4 A expressão 'arquipélagos com ilhas que se comunicam pouco' é do ministro do STF (aposentado), Sepúlveda Pertence, referindo-se, na verdade, a todo o Poder Judiciário. 5 Entrevista concedida a Ana Dubeux, em 21.10.2019, no Correio Braziliense, disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/10/21/interna_politica,799407/o-supremo-e-hoje-um-arquipelago-de-onze-monocracias-diz-rezek.shtml 6 SCHWARTZ, Bernard. Decision: How The Supreme Court Decides Cases. Oxford University Press, 1996, p. 65. 7 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 65. 8 Cf. matéria publicada na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, em 27 de agosto de 2007, intitulada: "Julgamento do mensalão: Ministro Eros Grau, do Supremo, diz que não antecipou voto". Disponível em https://www.conjur.com.br/2007-ago-27/juiz_nao_direito_antecipar_voto_eros_grau. 9 Cf. Super Chief: Earl Warren and his Supreme Court: a judicial biography, de Bernard Schwartz. New York: New York University Press, 1983. 10 As palavras de José Levi Mello do Amaral Júnior são as seguintes: "Há ministros que marcam todo um período, independentemente de ocuparem ou não a Presidência. Exemplo recente foi o Ministro Moreira Alves, que durante quase trinta anos foi determinante para os rumos do Supremo Tribunal Federal. Nesta linha de raciocínio, é possível identificar e avaliar uma 'Corte Gilmar Mendes'". Cf. artigo publicado pela Revista Eletrônica Consultor Jurídico, dia 23 de abril de 2010, intitulado: "A corte do ministro: É possível identificar uma Corte Gilmar Mendes". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-abr-23/antes-presidente-gilmar-mendes-influenciava-supremo. 11 Vale conferir a íntegra da entrevista com Lênio Streck feita pela jornalista Aline Pinheiro e divulgada dia 15 de março de 2009 da Revista Eletrônica Consultor Jurídico. O título é: "Justiça Lotérica: Ativismo judicial não é bom para a democracia". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entrevista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul. As palavras são as seguintes: "A corte Mendes - é impossível não falar assim, porque o STF assumiu um novo ritmo sob a presidência de Gilmar Mendes - também sofre esse tipo de críticas". 12 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 88. 13 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 88. 14 Cf. matéria divulgada pelo site do STF dia 09 de agosto de 2006, intitulada: Ellen Gracie assina transferência do mobiliário histórico do STF para o Rio de Janeiro, disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=67550&caixaBusca=N. 15 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 65. 16 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 68. 17 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 66. 18 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 67-68. 19 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 67-68. 20 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 67-68. 21 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 67-68. 22 SCHWARTZ, Bernard. Op.cit. p. 67-68. 23 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 67-68. 24 RE 566.819 (min. Marco Aurélio), julgado em 29.9.2010. 25 RE 566.819 (min. Marco Aurélio), julgado em 29.9.2010. 26 SCHWARTZ, Bernard. Op.cit. p. 67-68. 27 FALCÃO. Joaquim. O Judiciário segundo os brasileiros. Disponível em: academico.direito-rio.fgv.br/.../O_Judiciário_segundo_os_brasileiros.doc. 28 Cf. reprodução, pela Revista Eletrônica Consultor Jurídico, em 4 de março de 2007, da entrevista que a Ministra Cármen Lúcia concedeu à jornalista Bertha Maakaroun, do jornal Estado de Minas. Suprema simplicidade: Supremo está mais próximo da sociedade. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2007-mar-04/supremo_proximo_povo_carmem_lucia. 29 Ibidem. 30 Ibidem. 31 Ibidem. 32 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 69. 33 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 69-70. 34 SCHWARTZ, Bernard. Op. cit. p. 70. 35 Cf. nota publicada na Coluna Radar, da Revista Veja, de autoria do jornalista Lauro Jardim, "Dilma afaga Temer". disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/. 36 Cf. o site da Suprema Corte dos Estados Unidos: https://www.supremecourt.gov/about/oath/presidentialinvolvementwithoath.aspx. 37 SCHWARTZ, Bernard. Op.cit. p. 73. 38 Cf. matéria de Márcio Falcão "Ministros do Supremo aprovam indicação de Fux para 11ª vaga" publicada na Folha On Line dia 02 de fevereiro de 2011. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/869600-ministros-do-supremo-aprovam-indicacao-de-fux-para-11-vaga.shtml.1 39 A informação vem de Gilberto Amaral que, em 29 de novembro de 2001, homenageava, em sua casa, o presidente da Air France na época, Francis Richard. Segundo Gilberto "de repente, o ministro Marco Aurélio adentra a nossa casa acompanhado de dois amigos, os advogados Técio Lins e Silva e Luiz Fux. Fux tinha acabado de ser nomeado ministro do STJ e, nesta noite maravilhosa, as comemorações foram lá em casa". Disponível em: https://www.gilbertoamaral.com.br/novosite/aplicacao/?fuseaction=apl.MostrarDetalheNoticia&IdeNot=1448. 40 A informação é do jornalista Lauro Jardim, na Coluna Radar da Revista Veja, publicada dia 15 de março de 2011, intitulada: "Judiciário - Recepção a Fux". 41 Súmula Vinculante 14: "É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa." 42 Consultando o acórdão da PSV 1 (DJe nº 59/2009), que aprovou a Súmula Vinculante 14, na página 12, há o comentário da ministra Ellen Gracie. O aparte do ministro Menezes Direito pode ser visto assistindo à sessão no youtube. Eu estava presente à sessão no dia da votação da mencionada Súmula Vinculante. 43 SCHWARTZ, Bernard. Decision: How The Supreme Court Decides Cases. Oxford University Press, 1996, p. 73. 44 A frase foi extraída da entrevista que o ministro Dias Toffoli deu ao jornalista Rodrigo Haidar, publicada dia 20 de fevereiro de 2011, na Revista Eletrônica Consultor Jurídico. O ministro afirmou: Não que as pessoas não se deem bem, mas não é um clube de amigos. E é bom que não seja, porque a ideia é que a manifestação do tribunal corresponda ao somatório das visões e pré-compreensões de cada um de seus ministros". Disponível em https://www.conjur.com.br/2011-fev-20/entrevista-dias-toffoli-ministro-supremo-tribunal-federal. 45 Editada por Helena Hunt, "Ruth Bader Ginsburg in her own words". Paperback, 2018.
terça-feira, 1 de outubro de 2019

A salvação da Lava Jato é a Constituição

"Salvação, sim. Salvadores, não"1. Ruy Barbosa sabia o que dizia. Hoje, falaremos de algo que tem tudo a ver com salvação e salvadores: a operação Lava Jato. Antes, um merecido crédito. A Lava Jato e as respostas judiciais às suas provocações são frutos de uma exitosa experiência pretérita conquistada pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento da ação penal 470, a ação do chamado "mensalão". Dificilmente haveria Lava Jato se, antes, não tivesse havido a ação penal 470. Na história do processo constitucional penal brasileiro submetido ao escrutínio da jurisdição do STF, nada se compara ao requinte, à sofisticação e ao respeito a direitos processuais e materiais, da ação penal 470. Uma complexa ação envolvendo dezenas de réus julgados por um colegiado de Suprema Corte inteiramente dedicado ao caso com notável respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. Foi-se o criador da criatura. A partir da ação penal 470, o país passou a ser apresentado a um tipo mais corajoso de combate judicial à corrupção do andar de cima, aquela praticada por personagens que flanavam nos boulevards do poder em Brasília, no Brasil e no mundo. A condução judicial de grandes ações penais com decisões em sintonia com o plexo de direitos fundamentais não é sinal de atraso institucional ou jurídico, muito menos de impunidade, pelo contrário, é sinônimo da mais robusta e respeitável reverência à democracia constitucional que estamos gradualmente consolidando em nosso país. Nesse particular, a preservação da institucionalidade é fundamental. Esta, emana diretamente da Constituição. A pedagogia constitucional na matéria pulula diante de nós. A Constituição fala, por exemplo, mais de oitenta vezes em Ministério Público. Qualifica-o como "essencial à Justiça" (Seção I do Capítulo IV). Essa mesma Constituição, contudo, dedica apenas duas oportunidades ao uso da palavra "promotor". É como quisesse a instituição, não a personalização. Evidentemente, a instituição é feita pelos seus membros (é o termo empregado pela Constituição). Contudo, a exortação constitucional é para a institucionalidade, abertamente. Foi exatamente a inclinação provinciana por salvadores - e não da salvação - que levou a Lava Jato a, em certos momentos, tensionar, em múltiplas vertentes, todos os fundamentos da República. Tensionou a soberania (inciso I); a cidadania (inciso II); a dignidade da pessoa humana (inciso III); os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV); e o pluralismo político (inciso V, todos do art. 1º. da Constituição). Essa escalada passou a alimentar visões dando conta de uma certa subalternidade doméstica diante de autoridades e instituições estrangeiras2. A ideia da "Fundação Lava Jato", por exemplo, foi de uma heterodoxia jurídica desconcertante3. Há ainda as dramáticas consequências nas vidas dos envolvidos que foram tratadas com uma insensibilidade ultrajante4, sem falar do impacto causado sobre as atividades das companhias e seus trabalhadores alcançados pela operação5. Por fim, a estranha brandura com que tratou determinados grupos ou partidos políticos - suspeita agora incendiada pelos diálogos publicados pelo site The Intercept6. Essas são inquietações que colocam os fundamentos da República Federativa do Brasil (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político) à margem da operação, como se houvesse uma outra República. Que República seria essa? De todo modo, é claro que uma operação dessa magnitude não é apenas um amontoado de erros. Pelo contrário. No que se manteve respeitosa à institucionalidade, a Lava Jato foi um sucesso retumbante. O Brasil desenvolveu uma monumental expertise num tipo muito sofisticado de investigação, com ampla cooperação internacional, o emprego do que há de mais avançado em termos de inteligência policial, uma análise fenomenal de dados, capacidade de colocar múltiplos órgãos do país para trabalharem cooperativamente..., enfim, um legado imortal que militará em favor de todos nós. Exatamente por isso, é que é dever do Supremo Tribunal Federal, interpretando a Constituição, fazer todas as correções necessárias para salvar os frutos dessa operação. O Tribunal já começou a agir. Em março de 2016, o plenário do STF referendou a medida cautelar concedida nos autos da reclamação 23.457, de relatoria do ministro Teori Zavascki (DJe 27.9.2017), corrigindo a postura do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba ao ter autorizado a interceptação telefônica com o ulterior levantamento do sigilo da conversa entre a então presidente da República Dilma Rousseff e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. A maioria formada na Suprema Corte entendeu que, "não tendo havido prévia decisão desta Corte sobre a cisão ou não da investigação ou da ação relativamente aos fatos indicados, envolvendo autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, fica delineada, nesse juízo de cognição sumária, quando menos, a concreta probabilidade de violação da competência prevista no art. 102, I, b, da Constituição"7. Definiu ainda que, "embora a interceptação telefônica tenha sido aparentemente voltada a pessoas que não ostentavam prerrogativa de foro por função, o conteúdo das conversas - cujo sigilo, ao que consta, foi levantado incontinenti, sem nenhuma das cautelas exigidas em lei - passou por análise que evidentemente não competia ao juízo reclamado". Por fim, o STF anotou: "A existência concreta de indícios de envolvimento de autoridade detentora de foro por prerrogativa de função nos diálogos interceptados impõe a remessa imediata ao Supremo Tribunal Federal, para que, tendo à sua disposição o inteiro teor das investigações promovidas, possa, no exercício de sua competência constitucional, decidir acerca do cabimento ou não do seu desmembramento, bem como sobre a legitimidade ou não dos atos até agora praticados". A corrigenda partiu da liderança do saudoso ministro Teori Zavascki. É como se rememorasse Ruy. "Salvação, sim. Salvadores, não". Pois não. Dois anos depois, foi a vez de o STF apreciar a arguição de descumprimento de preceito fundamental 444, de relatoria do ministro Gilmar Mendes (DJe 22.5.2019), para definir se as conduções coercitivas eram compatíveis com a Constituição de 19888. Entendendo que a "condução coercitiva representa restrição temporária da liberdade de locomoção mediante condução sob custódia por forças policiais, em vias públicas, não sendo tratamento normalmente aplicado a pessoas inocentes", o que violaria a presunção de não culpabilidade, o precedente deixou anotado o seguinte: "resta evidente que o investigado é conduzido para demonstrar sua submissão à força, o que desrespeita a dignidade da pessoa humana". Anotou ainda que "representa uma supressão absoluta, ainda que temporária, da liberdade de locomoção", havendo "uma clara interferência na liberdade de locomoção, ainda que por período breve", resultando, também, numa "potencial violação ao direito à não autoincriminação, na modalidade direito ao silêncio". O STF enxergou, nas conduções coercitivas, "potencial violação à presunção de não culpabilidade", anotando que um "aspecto relevante ao caso é a vedação de tratar pessoas não condenadas como culpadas - art. 5º, LVII". Então, concluiu: "A legislação prevê o direito de ausência do investigado ou acusado ao interrogatório. O direito de ausência, por sua vez, afasta a possibilidade de condução coercitiva". Daí a maioria ter declarado a incompatibilidade com a Constituição da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, tendo em vista que o imputado não é legalmente obrigado a participar do ato, além de pronunciar a não recepção da expressão 'para o interrogatório', constante do art. 260 do Código de Processo Penal. Essa semana, a sequência de correções ganhará mais um importante capítulo. O STF deve prosseguir com o julgamento do habeas corpus 166.373, de relatoria do ministro Edson Fachin, no qual se discute se, em ação penal com réus colaboradores e não colaboradores, os delatados devem apresentar alegações finais após os réus que firmaram acordo de colaboração. Seis ministros já entenderam que é direito dos delatados se manifestarem depois dos colaboradores. O habeas corpus, com pedido de medida liminar, foi impetrado contra acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do agravo regimental no recurso em habeas corpus 96.059, sob a relatoria do ministro Felix Fischer. As Defesas de Maurício de Oliveira Guedes, Paulo Roberto Gomes Fernandes, Márcio de Almeida Ferreira e de Marivaldo do Rozário Escalfoni alegam vício procedimental porque, segundo eles, o prazo para a apresentação de suas alegações finais só deveria ter sido aberto após a apresentação das alegações finais das Defesas dos acusados colaboradores. No STF, o relator, ministro Edson Fachin, entendeu não ter havido ilegalidade na concessão de prazo simultâneo para todos os acusados apresentarem as alegações finais. Esse entendimento foi seguido pelos ministros Roberto Barroso e Luiz Fux. Coube ao ministro Alexandre de Moraes liderar a divergência, tendo sido acompanhado pelos ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. A ministra Cármen Lúcia o acompanhou na tese de que o delatado tem direito a se manifestar por último. Mas, no caso concreto, votou contra a concessão do habeas corpus, porque entende que o ex-gerente da Petrobras teve essa oportunidade. O ministro Alexandre de Moraes recordou que "a delação premiada é um negócio jurídico personalíssimo, no campo do Direito Público, em que o Ministério Público ou a Polícia celebram o acordo com o delator. Sendo o acordo de 'colaboração premiada' um 'meio de obtenção de prova' (art. 3º da lei 12.850/2013), assim como a busca e apreensão, a interceptação telefônica, o afastamento de sigilo bancário e fiscal, como foi bem salientado no magistral voto do ministro Dias Toffoli (HC 127.483/PR)". Para o ministro, "todo o empenho processual do delator será a favor do Ministério Público, buscando a obtenção de uma sentença condenatória do delatado, condição absolutamente necessária para a plena eficácia do acordo de delação realizado. Condição necessária, porém não suficiente; pois, a sentença condenatória precisará reconhecer a efetividade das informações do delator para a conclusão do processo". E concluiu: "Dessa forma, a relação DELATOR X DELATADO é de antagonismo, é de contradição, é de contraditório". O ministro registrou ainda que "o devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV)". Para Sua Excelência, "o delatado tem o direito de falar por último sobre todas as imputações que possam levar à sua condenação". Eis então a conclusão: "havendo pedido expresso da defesa no momento processual adequado para ter o 'último turno de intervenção argumentativa', que foi negado inconstitucionalmente pelo juízo de origem, há ferimento flagrante ao devido processo penal, à ampla defesa e ao contraditório, motivo pelo que DEFIRO o presente habeas corpus, para anular a decisão do juízo de primeiro grau, determinando-se o retorno dos autos à fase de alegações finais, a qual deverá seguir a ordem constitucional sucessiva, ou seja, primeiro a acusação, depois o delator e por fim o delatado". O julgamento será retomado nessa quarta-feira, no pleno do STF. É natural que uma Suprema Corte, interpretando as cláusulas constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, apare excessos de ações penais. Nos Estados Unidos, logo na democracia constitucional mais reverenciada do planeta, a década de 1960 foi inteiramente dedicada a fixar as bases pelas quais o devido processo legal em matéria penal se constituiria. Esses parâmetros foram estabelecidos pela Suprema Corte a partir da interpretação que deu à 14ª Emenda à Constituição estadunidense, que cuida, precisamente, do devido processo legal. Abrindo a década, julgando o caso Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643 (1961), a Suprema Corte definiu que o mandado de busca e apreensão somente poderia ser expedido por autoridade judicial, afastando a utilização de provas obtidas por meios ilícitos9. Estendeu-se aos estados a "exclusionary rule" (vedação do uso de provas ilícitas) que a Corte já havia imposto às autoridades federais no caso Weeks v. United States, 232 U.S. 383 (1914). Nesse julgamento, o justice Tom Clark refutou o temor de que anulações de condenações criminais em razão de violações cometidas pelos procedimentos policiais mitigaria o poder punitivo estatal, pois, para ele, nada poderia assegurar a existência da democracia constitucional estadunidense senão a observância de suas próprias leis, o que não ocorreria caso se admitisse o uso de provas obtidas por meios contrários ao Direito. Não parou por aí. Em Gideon v. Wainwright, 372 U.S. 335 (1963), a Suprema Corte definiu que os acusados perante tribunais estaduais teriam direito à assistência judiciária patrocinada pelo Estado, caso não tivessem condições de contratar um advogado. Considerou-se nula a condução de processo criminal sem advogado10. Em Fay v. Noia, 372 U.S. 391 (1963), reconheceu-se que a confissão no processo criminal não é prova suficiente para condenação em processo criminal11. Não seria constitucionalmente aceitável uma condenação criminal baseada em provas colhidas por meio de uma confissão possivelmente forçada. Reconheceu-se, da mesma forma, que é direito do acusado ter a sentença condenatória criminal submetida ao duplo grau de jurisdição, sem que este tenha de aderir ao convencimento da instância de primeiro grau. No caso Townsend v. Sain, 372 U.S. 293 (1963)12, proibiu-se a utilização de provas obtidas por meio ilícitos, especificamente a confissão decorrente de ingestão de drogas prescritas, a acusados, por médico integrante do corpo policial. A Suprema Corte reconheceu que a condenação violou direitos constitucionais do indivíduo, pois não foi oportunizada ao réu a produção de outras provas, conforme requerido no processo. Ainda, a dopagem por drogas que, em tese, revelaria a verdade dos fatos, não pode ser legítima, por não refletir a consciência do réu. No caso Malloy v. Hogan, 378 U.S. 1 (1964), declarou-se a inconstitucionalidade da instigação à autoincriminação dos acusados por parte de autoridades públicas13. Ao ser colhida a confissão, seria necessário que seja observado que esta se deu livre e voluntariamente, sem a influência de quaisquer coações. Em Escobedo v. Illinois, 378 U.S. 478 (1964)14, foi declarado inconstitucional o depoimento tomado de acusado sem a presença do advogado. Assegurou-se, ainda, o direito de o réu manter-se em silêncio diante das perguntas realizadas pelas autoridades policiais. Todas as confissões efetuadas em tais circunstâncias revelaram-se nulas. Julgando o caso Griffin v. California, 280 U.S. 609 (1965), a Suprema Corte anulou a condenação do réu, em virtude de o juiz ter ressaltado perante o júri o fato de que o acusado ter se recusado a testemunhar na fase instrutória do processo criminal. Para a Corte, a convicção dos jurados a partir do silêncio do acusado, sem a ingerência do Tribunal, é um fator que não poderia ser o único embasamento para a condenação. Em Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966), a Suprema Corte definiu que declarações incriminatórias obtidas em interrogatório policial só poderiam ser admitidas como prova se o acusado fosse previamente informado de seu direito de permanecer calado, de que qualquer coisa que dissesse poderia ser usada contra ele, de que teria o direito à presença de um advogado e de que, se não pudesse pagar ao advogado, teria direito a um fornecido pelo Estado15. Em In Re Gault, 387 U.S. 1 (1967), impôs-se a aplicação do devido processo legal aos menores submetidos a processo criminal, especificamente a observância de cautelas específicas relacionadas ao comportamento peculiar da criança e do adolescente, bem como o direito ao advogado. Estabeleceu-se a necessidade de prévia comunicação escrita ao jovem, bem como a seus pais ou tutores, contendo a descrição da infração que se apura, bem como a advertência da necessidade de se apresentar acompanhado de um advogado. Igualmente, a confissão efetuada pelo jovem passou a dever ser considerada com mais cautela do que com adultos, pois ele ainda se encontra em processo de formação psicológica. No caso Skaggs v. Larsen, 396 U.S. 1206 (1969), estabeleceu-se a necessidade de observância do princípio do devido processo legal no processo criminal de apuração de infração militar em processo administrativo. Em Johnson v. Avery, 393 U.S. 384 (1969), foi declarado inconstitucional o dispositivo que punia presidiários que ajudassem os demais na elaboração de ações judiciais, especialmente o habeas corpus. Para a Suprema Corte, a interpretação constitucional quanto ao uso do habeas corpus deveria ser a mais ampla possível. Fechando a década, no caso Harrys v. Nelson, 394 U.S. 286 (1969), a Suprema Corte admitiu a impetração de habeas corpus em quaisquer espécies de violação ao direito de liberdade de locomoção. Esses precedentes oriundos da Suprema Corte dos Estados Unidos, reafirmadores, à luz da Constituição e de sua 14ª Emenda, do devido processo legal de índole penal, são todos resultantes da chamada "Corte de Warren", como ficou conhecida a Suprema Corte quando estava sob o comando do chief justice Earl Warren, de 1953 a 196916. Neles, o conteúdo do devido processo legal penal foi densificado à luz dos casos concretos promovendo uma leitura da legislação à luz da Constituição ou, ainda, usando a Suprema Corte e sua hermenêutica para estabelecer regras diante dos vazios normativos na espécie. Os detratores diziam que "Warren era dócil com os delinquentes, libertando todos aqueles que lhe dirigiam habeas corpus à Suprema Corte"17. O chief justice jamais se importou com esse tipo de ataque leviano. Permaneceu focado e seguiu adiante. Se a década de 1960 foi a década virtuosa na história do processo penal constitucional na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, mais razão há para o Brasil contemporâneo refirmar, pelo Supremo Tribunal Federal, o devido processo legal em ações penais em conformidade com a Constituição Federal de 1988, que diz serem invioláveis o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (caput do art. 5º). A Constituição assegura que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (inciso LIV do art. 5º). Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (inciso LV do art. 5º). O inciso LXVIII do art. 5º, por sua vez, dispõe o seguinte: "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". Esse mosaico normativo-constitucional reclama a construção, pelo Supremo Tribunal Federal, de uma hermenêutica que alinhe a Lava Jato, e as decisões judiciais dela emanadas, aos parâmetros previstos em nosso Estado Constitucional, que é jovem, mas não é tolo, nem desprovido de experiências profundamente transformadoras. A Lava Jato precisa, em alguns pontos, de salvação. Essa salvação é a própria Constituição e a exegese a ela conferida pelo seu guardião precípuo, o Supremo Tribunal Federal. Ruy Barbosa conhecia do riscado. "Salvação, sim. Salvadores, não". __________ 1 A citação de Ruy Barbosa é lembrada, com frequência, pelo ministro aposentado do STF, Carlos Ayres Britto. Ilustra, por exemplo, a matéria de Malu Delgado, para o Valor, em 12.1.2018: 2 Ver, por exemplo, a matéria "Em troca de alimentar fundo do MPF, Petrobras repassará informações aos EUA", de 8/3/2019, por Fernando Martines. 3 Em março de 2019, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu os efeitos do Acordo de Assunção de Obrigações firmado entre a Petrobras e os procuradores da República do Ministério Público do Paraná (Força-Tarefa Lava Jato) e também da decisão da 13ª Vara Federal de Curitiba que o homologou. O ministro determinou o imediato bloqueio dos valores depositados pela Petrobras, bem como subsequentes rendimentos, na conta corrente designada pelo juízo da 13ª Vara Federal que, a partir da decisão, somente poderão ser movimentados com autorização expressa do Supremo. O acordo foi questionado pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 568), pelo PT e pelo PDT (ADPF 569) e pela Câmara dos Deputados (reclamação 33667). O documento busca dar destinação a US$ 682,5 milhões repassados pela estatal "a autoridades brasileiras" em razão de acordo anterior celebrado com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. 4 Conferir reportagem "Procuradora da Lava Jato pede desculpas a Lula por ironizar morte de Marisa", de Alex Tajra do UOL, 27/8/2019. "A procuradora Jerusa Viecili, da Força-Tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, publicou um pedido de desculpas ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em suas redes sociais na noite de hoje", consta. 5 Conferir, por exemplo, reportagem do El País: "Odebrecht pede maior recuperação judicial da história citando Lava Jato e crise". Consta: "Grupo chegou a ter mais de 180.000 empregados cinco anos atrás; hoje são 48.000". Por Rodolfo Borges, São Paulo, 17/6/2019. 6 Conferir a reportagem da Exame "Investigar FHC melindra alguém de apoio importante, diz Moro em vazamento". Nela, diz-se: "Novas mensagens reveladas pelo Intercept mostra que força-tarefa da Lava Jato se preocupava em mostrar imagem de 'imparcialidade'". Por Tamires Vitorio, 18/6/2019. 7 O STF, por maioria, referendou a medida cautelar concedida pelo relator, vencidos, em parte, os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux, e, por unanimidade, determinou-se a execução da decisão liminar independentemente da publicação do acórdão. 8 Julgamento em conjunto com a ADPF 395 (Min. Gilmar Mendes). O STF, por maioria e nos termos do voto do relator, não conheceu do agravo interposto pela PGR contra a liminar concedida e julgou procedente a ADPF, para pronunciar a não recepção da expressão "para o interrogatório", constante do art. 260 do CPP, e declarar a incompatibilidade com a Constituição da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. A decisão não desconstitui interrogatórios realizados até a data do julgamento, mesmo que os interrogados tenham sido coercitivamente conduzidos para tal ato. Vencidos, parcialmente, o ministro Alexandre de Moraes, nos termos de seu voto, o ministro Edson Fachin, nos termos de seu voto, no que foi acompanhado pelos ministros Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia (Presidente). 9 Íntegra do julgamento em The Oyez Projetc, Mapp v. Ohio, 367 U.S 643 (1961). 10 Íntegra do julgamento em The Oyez Projetc, Gideon v. Wainwright, 372 U.S 335 (1963). 11 Íntegra do julgamento em The Oyez Project, Fay v. Noia, 372 U.S. 391 (1963). 12 Íntegra do julgamento em The Oyez Project, Townsend v. Sain, 372 U.S. 293 (1963). 13 Íntegra do julgamento em The Oyez Project, Malloy v. Hogan, 378 U.S. 1 (1964). 14 Íntegra do julgamento em The Oyez Project, Escobedo v. Illinois, 378 U.S. 478 (1964). 15 Íntegra do julgamento em The Oyez Projetc, Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966). 16 Recomendo vivamente a leitura da obra de Lêda Boechat Rodrigues, "A corte de Warren (1953-1969): revolução constitucional". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 17 Vale conferir o artigo assinado, no The New York Times, pelo jornalista Alden Whitman, em 10/7/1974, em razão do falecimento de Earl Warren, intitulado "Earl Warren, 83: Morre aquele que liderou o topo da Suprema Corte num período de intensa mudança social".
quarta-feira, 11 de setembro de 2019

A inconstitucionalidade que não estava no gibi

Eis a Santíssima Trindade na qual se baseia qualquer Suprema Corte: (i) controle do poder estatal, (ii) reafirmação das liberdades e (iii) proteção de grupos vulneráveis. No Brasil e no mundo, havendo independência, é assim que funciona. E, no final de semana passado, o Supremo Tribunal Federal fez essa Santíssima Trindade operar seus milagres. Há, no caso retratado nessa coluna, evidentes questões ligadas ao afeto. E por falar em afeto, o Papa Francisco, recentemente, em conversa com o comediante britânico Stephen K. Amos, afirmou que as pessoas que rejeitam os homossexuais "não têm o coração humano". Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz e arcebispo da Igreja Anglicana, já havia dito, a esse respeito, que "não adoraria um Deus que é homofóbico"1. Os dois líderes religiosos de prestígio global falam, em resumo, sobre o amor ao próximo. E no Brasil? Por aqui a história é diferente. Sexta-feira, dia 6/9/2019, o prefeito do Rio de Janeiro, o bispo Marcelo Crivella (PRB), determinou que o gibi "A Cruzada das Crianças" fosse retirado de nada mais nada menos do que a Bienal Internacional do Livro, realizada na cidade do Rio de Janeiro. Para o prefeito, a revista ofereceria "conteúdo sexual para menores", pois retratava, numa cena, o desenho de dois jovens do sexo masculino, de pé e vestidos dos pés à cabeça, dando um beijo na boca2. O prefeito e o Secretário Municipal de Ordem Pública, ciosos de sua cruzada, enviaram notificação extrajudicial à Bienal do Livro. Eis um breve trecho: "(...) notificar a entidade responsável por essa BIENAL DO LIVRO que, na forma da legislação federal e municipal, deverão ser recolhidas as obras que tratem do tema do homotransexualismo de maneira desavisada para o público jovem e infantil, ou seja, QUE NÃO ESTEJAM SENDO COMERCIALIZADAS EM EMBALAGEM LACRADA, COM ADVERTÊNCIA DE SEU CONTEÚDO, sob pena de apreensão dos livros e cassação de licença para a feira e demais que sejam cabíveis". Apreender publicações e cassar licenças de feiras de livros, em razão do conteúdo de obras, constituem o que de mais grave pode haver contra as liberdades fundamentais. Mais do que isso, só queimar livros em praça pública. Seria o fim da linha, mas o Rubicão está logo ali. O país vai mesmo cruzá-lo? No caso do gibi, era como se o beijo tivesse virado sexo explícito. O aparato estatal apareceu na Bienal para prender a revista. Uma liminar foi concedida no Mandado de Segurança nº 0056881-31.2019.8.19.0000, pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, visando a "(...) compelir as autoridades impetradas a se absterem de buscar e apreender obras em função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo"; também, a "se absterem de cassar a licença para a Bienal, em decorrência dos fatos veiculados neste mandamus". Rapidamente, a presidência do TJRJ suspendeu a liminar, com base nos artigos 783 e 794 do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990)3, ao fundamento de que "o legislador não proíbe, de forma absoluta, a circulação de material impróprio ou inadequado para crianças e adolescentes, mas tão somente exige comprometimento com o dever de advertência, para além de dificultar acesso ao seu interior, por meio do lacre da embalagem (art. 78)". Mas qual exatamente é a impropriedade à luz da lei e da Constituição? Só pode ser o sexo dos personagens. Eles têm o mesmo sexo. Seria isso? Não ficou claro. Mesmo assim, Sua Excelência prosseguiu: "(...) ao tratar, especificamente, de publicações voltadas para o público protegido pelo Estatuto, que constitui coletividade vulnerável, repele qualquer conteúdo afrontoso a valores éticos, morais ou agressivos à pessoa ou à família". Não há problema em falar em "valores éticos". O art. 221, V da Constituição, por exemplo, diz que "a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão" ao "respeito aos 'valores éticos' e sociais da pessoa e da família". Acontece que a exegese necessária à identificação desses valores precisa vir em harmonia com a própria Constituição, que, no art. 3º, IV, aponta como um dos objetivos fundamentais da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, 'sexo', cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Também em sintonia com o art. 5º, XLI, segundo o qual "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". E mais. O art. 227 aponta como dever da família, da sociedade e do Estado colocar a criança, o adolescente e o jovem a salvo de toda forma de "discriminação". Alguém tem dúvida quanto à visão da Constituição quanto às discriminações de toda e qualquer natureza? Evidentemente, ela as excomunga. Para o presidente do TJ/RJ, contudo, "o conteúdo objeto da demanda mandamental, não sendo corriqueiro e não se encontrando no campo semântico e temático próprio da publicação (livro de quadrinhos de super-heróis que desperta notório interesse em enorme parcela das crianças e jovens, sem relação direta ou esperada com matérias atinentes à sexualidade), desperta a obrigação qualificada de advertência, nos moldes pretendidos pelo legislador"4. A decisão tende a se tornar uma peça do rebotalho das exegeses que estigmatizam, ao contrário de vitalizar os comandos constitucionais que vedam os preconceitos e as discriminações. Não pode. Censura, mesmo a judicial, simplesmente não pode. A Constituição veda. O Supremo veda. A civilização veda. A democracia veda. O Estado Constitucional veda. À luz da Constituição, nada de "impróprio" há no desenho num gibi de dois jovens, vestidos dos pés a cabeça, dando um beijo. Apreender revistas e cassar a licença de funcionamento de uma feira de livros como a Bienal, por conta disso? Logo numa democracia constitucional como a brasileira, que é tolerante, inclusiva e veementemente contrária aos preconceitos e às discriminações? Não pode acontecer. Não vai acontecer. As obras, no Brasil, existem para serem consumidas, não tolhidas. O que se proíbe, excepcionalmente, é o discurso de ódio. Mas e quanto ao discurso de amor? Esse, independente de partir de dois jovens do mesmo sexo, não está banido pela Constituição. Ela não proíbe, não censura, não excomunga nem desconjura. A sucessão de disparates rumou para o Supremo Tribunal Federal. Acontece que lá, a pegada é outra. Na Suprema Corte, quando alguém vê um livro, o natural é lê-lo, não incinerá-lo. O comportamento pode até soar estranho nesse Brasil contemporâneo, é verdade, mas é assim que é. Trata-se de uma casa letrada que eleva as liberdades, não as combate. E a relação da Corte com publicações é antiga. E sólida. Basta rememorar. Quando a Receita Federal do Brasil quis tributar os livros eletrônicos, ao argumento de que eles não eram livros e, portanto, não gozavam da imunidade tributária, o STF ficou com os livros, reconhecendo a imunidade5. Bem antes, ao julgar o habeas corpus nº 82.424 (rel. p/acórdão min. Maurício Corrêa, DJ 19.3.2004), o STF anotou: "Escrever, editar, divulgar e comerciar livros 'fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias' contra a comunidade judaica (lei 7.716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII)"6. Pela decisão - caso Ellwanger -, quando uma publicação vociferar discurso de ódio contra grupos vulneráveis, o Direito Penal deve alcança o autor. Simples. Em 2016, julgando a ação direta de inconstitucionalidade nº 4815 (DJe 1º.2.2016), sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia, o Tribunal reiterou que "a Constituição do Brasil proíbe qualquer censura", pois "o exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceada pelo Estado ou por particular". Então, concluiu: "Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa". Vale repetir: censurar não pode. Tem mais. Em agosto de 2008, a revista Playboy homenageou a obra imortal de Jorge Amado, retratando a atriz Carol Castro despida, em página inteira, tendo à mão direita um rosário identificado pelas contas e pelo crucifixo. "Carol, Cravo e Canela", era o título, numa alusão à "Gabriela, Cravo e Canela". Houve quem ficasse ruborizado. Quando tentaram arrastar a discussão para o STF, para que ele censurasse previamente a revista, coube ao ministro Dias Toffoli liderar a divergência que resultou na manutenção da decisão da Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, impedindo a censura prévia7. A verdade é que o Supremo é da paz. Ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental no. 187, de relatoria do ministro Celso de Mello (DJe 29/5/2014), ficou assegurado o direito de realização da "Marcha da Maconha". Reconheceu-se, na oportunidade, a "legitimidade, sob perspectiva estritamente constitucional, de assembleias, reuniões, marchas, passeatas ou encontros coletivos realizados em espaços públicos (ou privados) com o objetivo de obter apoio para oferecimento de projetos de lei, de iniciativa popular, de criticar modelos normativos em vigor, de exercer o direito de petição e de promover atos de proselitismo em favor das posições sustentadas pelos manifestantes e participantes da reunião". Isso porque "a liberdade de expressão como um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos em uma república fundada em bases democráticas" enseja uma "discussão que deve ser realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis", pois é o que realiza "o sentido de alteridade do direito à livre expressão e o respeito às ideias que conflitem com o pensamento e os valores dominantes no meio social". "Alteridade" é a forma secular de dizer "ame o próximo como a si mesmo". Anos antes, ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 130, de relatoria do ministro Ayres Britto (DJe 6/11/2009), o Supremo pontuou que "o corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização". A conclusão do ministro Ayres Britto tornou-se uma primavera imortal. Ele escreveu: "quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas". Ainda em 2009, julgando o recurso extraordinário nº. 511.961 (ministro Gilmar Mendes, DJe 13/11/2009), o STF entendeu que "as liberdades de expressão e de informação e, especificamente, a liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas pela lei em hipóteses excepcionais, sempre em razão da proteção de outros valores e interesses constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à personalidade em geral". Não foi diferente na ação direta de inconstitucionalidade nº 4451, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes (Pleno, DJe 6/3/2019), quando se disse: "A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático"8. Recentemente, no referendo à cautelar concedida na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 548 (DJe 31/10/2018), a ministra Cármen Lúcia deixou claro que "atos do Poder Público tendentes a executar ou autorizar buscas e apreensões, assim como proibir o ingresso e interrupção de aulas, palestras, debates ou atos congêneres e promover a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada"9. Sua Excelência disse mais: "Em qualquer espaço no qual se imponham algemas à liberdade de manifestação há nulidade a ser desfeita. Quando esta imposição emana de ato do Estado (no caso do Estado-juiz ou de atividade administrativa policial) mais afrontoso é por ser ele o responsável por assegurar o pleno exercício das liberdades, responsável juridicamente por impedir sejam elas indevidamente tolhidas". A conclusão da ministra Cármen Lúcia foi a seguinte: "Toda forma de autoritarismo é iníqua. Pior quando parte do Estado. Por isso os atos que não se compatibilizem com os princípios democráticos e não garantam, antes restrinjam o direito de livremente expressar pensamentos e divulgar ideias são insubsistentes juridicamente por conterem vício de inconstitucionalidade". É como se a Constituição fosse um rio caudaloso cujas correntezas hermenêuticas impulsionadas pelo STF tivessem o nome liberdade. E essas correntes se encontram com outro rio, o da diversidade, voltado à proteção de grupos vulneráveis. É um encontro essencial a democracias constitucionais como a nossa. Na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132, de relatoria do ministro Ayres Britto (DJe 14/10/2011, julgada conjuntamente com a ação direta de inconstitucionalidade nº 4277), o STF, por unanimidade, decidiu que "o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica", ressaltando ainda a "proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de 'promover o bem de todos'". Trata-se do "reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da 'dignidade da pessoa humana': direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo". É, segundo o ministro Ayres Britto, o "salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual". É perda de tempo estrebuchar. O ideal é se limpar de todos os preconceitos e abraçar o semelhante, com consideração e respeito, como a si mesmo. Posteriormente, no recurso extraordinário nº 846.102 (ministra Cármen Lúcia, monocrático, DJe 18/3/2015), reconheceu-se as respectivas consequências jurídicas da união estável homoafetiva, o que inclui, claro, a adoção. Na sequência, ao apreciar a ação direta de inconstitucionalidade nº 4275 (DJe 7/3/2019), o STF reafirmou que o "direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero", além de assentar que "a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la"10. A marcha seguiu. Julgando a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 291, de relatoria do ministro Roberto Barroso (DJe 11/5/2016), definiu-se que "não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados"11. Como coroamento da jurisprudência da diversidade, veio a ação direta de inconstitucionalidade por omissão nº 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, julgada em conjunto com o mandado de injunção nº 4733, do ministro Edson Fachin, que, reconhecendo a criminalização da homofobia, definiu tese com o seguinte trecho: "1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na lei 7.716, de 8/1/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, 'in fine')12; Voltando para o caso da Bienal do Rio, após a suspensão da liminar pelo presidente do TJ/RJ, e do retorno dos agentes estatais à feira, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, apreciou a Medida Cautelar na Suspensão de Liminar nº 1.248, da Procuradoria-Geral da República. Para o presidente, não há "como extrair do dispositivo legal voltado às publicações do público infanto-juvenil (art. 79 do ECA), correlação entre publicações cujo conteúdo envolva relacionamentos homoafetivos com a necessidade de 'obrigação qualificada de advertência'", pois "no caso, a decisão cuja suspensão se pretende, ao estabelecer que o conteúdo homoafetivo em publicações infanto-juvenis exigiria a prévia indicação de seu teor, findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade, uma vez que somente àquela específica forma de relação impôs a necessidade de advertência, em disposição que - sob pretensa proteção da criança e do adolescente - se pôs na armadilha sutil da distinção entre proteção e preconceito". Noutras palavras, o problema não parecia ser qualquer impropriedade da cena, mas, apenas e tão somente, a sexualidade dos protagonistas. Discriminação, portanto. Já o ministro Gilmar Mendes, julgando a Reclamação nº 36.742, ajuizada pela GL Events Ehxibitions Ltda., organizadora da Bienal, entendeu que "a ordem da Administração Municipal consubstanciou-se em verdadeiro ato de censura prévia, com o nítido objetivo de promover a patrulha do conteúdo de publicação artística". Para o Ministro, veiculou-se "uma interpretação das normas do ECA calcada em uma patente discriminação de gênero". E arrematou: "O entendimento de que a veiculação de imagens homoafetivas é 'não corriqueiro' ou 'avesso ao campo semântico de histórias de ficção' reproduz um viés de anormalidade e discriminação que é atribuído às relações homossexuais. Tal interpretação revela-se totalmente incompatível com o texto constitucional e com a jurisprudência desta Suprema Corte, na medida em que diminui e menospreza a dignidade humana e o direito à autodeterminação individual"13. A Suprema Corte deu um nó exegético difícil de desatar. A verdade é que o preconceito passa longe da Constituição. Basta ler o Capítulo VII, "Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso"14. O art. 226 diz que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Mas há um único tipo de família? Não. Então não pode o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, censurar uma feira de livros pelo fato de ela, mesmo não violando a lei e a Constituição, contar com livros que os filhos dele, se jovens, seriam proibidos de ler. A Constituição foca no essencial. O § 8º do citado art. 226, por exemplo, impõe ao Estado criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. A violência, sim, é "imprópria". No art. 227, por sua vez, diz-se ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os seguintes direitos: vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária. Também o de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão15. O § 4º fecha dizendo que a lei punirá severamente "o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente". Não há espaço normativo para censuras. E o pior da censura é a estupidez do censor. As obsessões mentais desse personagem nefasto - o censor - são conhecidas. Chico Anysio conta que, na Ditadura Militar, escreveu: "Auri-verde, pendão da minha terra que a brisa do Brasil beija e balança". O censor cortou "beija e balança". Chico teve que explicar que a frase era de Castro Alves, não dele. Puro obscurantismo. Chico arremata com mais um episódio lamentável: "eu botei 'Você vai para a Europa, vê se me consegue uns afrescos de Rafael'. Aí cortaram afresco. O cara pôs uma puxadinha e pôs assim: 'diga rapazes de maus hábitos'. Uma coisa absurda!"16. A grande verdade é que o "impróprio" não estava no gibi. Nem de longe. Mas, como disse o ministro Ayres Britto, na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132: "Nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a velha postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração". O fim é o começo: (i) controle do poder estatal, (ii) reafirmação das liberdades e (iii) proteção de grupos vulneráveis. É para isso que as Supremas Cortes existem. E, nesse particular, o Supremo Tribunal Federal estava lá outra vez. Ainda bem. __________ 1 Em BBC News. 2 O gibi é um especial em nove edições publicado pela Marvel, em 2010. No Brasil, a Panini trouxe um especial em 2012, com a sequência publicada pela Salvat, em 2016. Os jovens Billy Kaplan (o Wiccano, um feiticeiro) e Thomas Shepherd (o Célere, um velocista), podem ser os filhos tomados de Wanda Maximoff (da HQ Feiticeira Escarlate). Beijaram-se Wiccano e Hulkling. 3 "Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo. Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca". "Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família". 4 A decisão do presidente do TJ/RJ diz ainda: "(...) em se tratando de obra de super-heróis, atrativa ao público infanto-juvenil, que aborda o tema da homossexualidade, é mister que os pais sejam devidamente alertados, com a finalidade de acessarem previamente informações a respeito do teor das publicações disponíveis no livre comércio, antes de decidirem se aquele texto se adequa ou não à sua visão de como educar seus filhos". 5 No recurso extraordinário n. 330.817, a Suprema Corte fixou da seguinte forma a tese do Tema 593 da repercussão geral: "A imunidade tributária constante do artigo 150, VI, 'd', da Constituição Federal, aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo". Já no recurso extraordinário no. 595.676, a tese do Tema 259 foi assim firmada: "A imunidade tributária da alínea 'd' do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal alcança componentes eletrônicos destinados exclusivamente a integrar unidades didáticas com fascículos". Ampliou-se a teleologia da norma para proteger as publicações, expandindo-se o acesso a elas. 6 No caso Ellwanger, o STF definiu, quanto ao racismo, a "compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo", o que reclamaria uma "interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma". 7 ARE 790.813 (DJe 9.3.2015), Tese 716. 8 ADI 4451 MC-REF, Min. Ayres Britto, DJe 1.7.2011: "2. Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha". 9 Anotou ainda: "decisões proferidas por juízes eleitorais, pelas quais determinam a busca e apreensão do que seriam "panfletos" e materiais de campanha eleitoral em universidades e nas dependências das sedes de associações de docentes, proíbem aulas com temática eleitoral e reuniões e assembleias de natureza política, impondo-se a interrupção de manifestações públicas de apreço ou reprovação a candidatos nas eleições gerais de 2018, em ambiente virtual ou físico de universidades federais e estaduais". As medidas teriam como alegado embasamento jurídico a legislação eleitoral, que veda "a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados" (art. 37 da Lei n. 9.504/1997). 10 No recurso extraordinário nº 670.422, de relatoria do ministro Dias Toffoli (DJe 21/11/2014), o STF fixou a tese do Tema 761 assim: "i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero'; iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos". 11 Na ação direta de inconstitucionalidade nº 5543, são questionadas normas do Ministério da Saúde e da Anvisa que restringem a doação de sangue por homossexuais masculinos. Após os votos dos ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber, que seguiram o relator, ministro Edson Fachin, para julgar inconstitucionais os dispositivos, e do voto do ministro Alexandre de Moraes, que julgou parcialmente procedente a ação, o julgamento foi suspenso. 12 Demais itens da tese: "(...) 2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero; (...) 3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito". 13 O ministro Gilmar Mendes deferiu a liminar determinando a suspensão os efeitos da decisão proferida pela autoridade coatora, impedindo-se a administração municipal de exercer qualquer tipo de fiscalização de conteúdo, ostensivamente ou à paisana, determinando ainda que: (i) abstenha-se de apreender qualquer livro exposto na Feira Bienal do Livro, e em especial a publicação "Vingadores: A Cruzada das Crianças" e (ii) abstenha-se de cassar o alvará de funcionamento da Bienal do Livro. 14 Vale a leitura da ADI nº 2404 (ministro Dias Toffoli, DJe 1.8.2017), que tratou da questão relativa à liberdade de expressão dos meios de comunicação e da proteção da criança e do adolescente. Eis trechos da ementa: "1. A própria Constituição da República delineou as regras de sopesamento entre os valores da liberdade de expressão dos meios de comunicação e da proteção da criança e do adolescente. 2. A classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes. O exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia. A submissão ao Ministério da Justiça ocorre, exclusivamente, para que a União exerça sua competência administrativa prevista no inciso XVI do art. 21 da Constituição, qual seja, classificar, para efeito indicativo, as diversões públicas e os programas de rádio e televisão, o que não se confunde com autorização. Entretanto, essa atividade não pode ser confundida com um ato de licença, nem confere poder à União para determinar que a exibição da programação somente se dê nos horários determinados pelo Ministério da Justiça, de forma a caracterizar uma imposição, e não uma recomendação. É importante que se faça, portanto, um apelo aos órgãos competentes para que reforcem a necessidade de exibição destacada da informação sobre a faixa etária especificada, no início e durante a exibição da programação, e em intervalos de tempo não muito distantes (a cada quinze minutos, por exemplo), inclusive, quanto às chamadas da programação, de forma que as crianças e os adolescentes não sejam estimulados a assistir programas inadequados para sua faixa etária. 4. Sempre será possível a responsabilização judicial das emissoras de radiodifusão por abusos ou eventuais danos à integridade das crianças e dos adolescentes, levando-se em conta, inclusive, a recomendação do Ministério da Justiça quanto aos horários em que a referida programação se mostre inadequada. Afinal, a Constituição Federal também atribuiu à lei federal a competência para "estabelecer meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221" (art. 220, § 3º, II, CF/88)."  Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010.. 15 Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010. 16 Roda Viva.