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Fundão Eleitoral: a desfaçatez como sistema

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Atualizado às 07:25

O Congresso Nacional não se cansa de demonstrar que o seu norte não converge com os interesses da população. Aprovar, por meio de manobras regimentais de caráter duvidoso, sem o mínimo debate, um fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões, em um país com tantas carências como o Brasil, traduz-se em atitude difícil de ser avaliada, ao menos com vocabulário adequado.

Em períodos normais, a medida já poderia ser descrita como algo totalmente inapropriado e contrário aos interesses nacionais. Já em época de dura recessão econômica, no curso de uma crise humanitária sem precedentes por força da pandemia, representa verdadeira desfaçatez.

Em apertada síntese, o fundo eleitoral, cujo nome oficial é Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), é uma verba irrigada em sua integralidade com recursos públicos, voltada a financiar as campanhas eleitorais dos candidatos nos anos de eleições.

Difere do chamado fundo partidário (Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos), que é outra verba pública, que também pode ser voltada ao financiamento das campanhas eleitorais, mas cuja finalidade principal é custear as chamadas despesas rotineiras das legendas, sobretudo as que surgem nos anos em que não ocorrem eleições.1

Neste contexto, apesar de as notícias terem divulgado o valor de R$ 5,7 bilhões a título de fundo eleitoral, a verba a ser bancada pelos contribuintes é, em verdade, maior, haja vista que também há previsão de R$ 1 bilhão destinado ao fundo partidário. Ou seja, pela vontade inicial do Congresso Nacional a população brasileira seria obrigada, no ano de 2022, a entregar aos partidos políticos a cifra de R$ 6,7 bilhões, o que representa, aproximadamente, 0,09% do PIB.2

Para efeitos de comparação, para as eleições gerais de 2018 o montante apenas do fundo eleitoral foi estimado em R$ 1.716.209.431,00.3 Já nas eleições municipais de 2020, em R$ 2.034.954.823,96.4

Comparando o que foi gasto nas últimas eleições presidenciais de 2020, o valor aprovado pelo Congresso Nacional supera em mais de 300% aquele valor. A questão que se coloca é: como a representação política pode se distanciar tanto da realidade nacional?

A resposta passa por considerações de naturezas diversas, inclusive sociológicas. Contudo, uma merece destaque: a debilidade do sistema eleitoral brasileiro. Vários argumentos corroboram essa tese.

O Brasil adota o chamado bicameralismo, por meio do qual as duas Casas Legislativas que compõem o Congresso Nacional detêm basicamente as mesmas prerrogativas no processo legislativo. Como regra geral, a vontade de um órgão depende da concordância do outro.

O Senado Federal é composto por 81 senadores eleitos pelo sistema majoritário, na lógica de três por Estado-membro. O número é, por certo, exagerado. Não há motivos plausíveis para que cada Estado - inclusive do Distrito Federal - elejam 3 senadores. Além de argumentos relativos à desproporção na representação do Estados, uma grande deformação emerge do mandato de 8 anos para cada senador, com esdrúxulas regras de suplência.

Permanecer 8 anos em um cargo eletivo gera um considerável distanciamento com o eleitorado, que tende a se traduzir em sentimento de indiferença e acomodação. O quadro se agrava quando um(a) senador(a) eleito(a) abandona o cargo no curso do mandato pelos mais variados motivos e, pelas regras eleitorais vigentes, assume o(a) suplente, sem que tenha tido um único voto popular. Na dúvida, se pergunte: você conhece os suplentes dos senadores eleitos pelo seu Estado?

Na Câmara dos Deputados os 513 integrantes são eleitos pelo sistema eleitoral proporcional. Significa que os candidatos devem disputar os votos em uma amplíssima base eleitoral, de modo que todos os eleitores do Estado podem votar em qualquer candidato.

Esse modelo contribui, em larga escala, para afastar o representante dos representados. Em outras palavras, não gera um vínculo na representação política, não cria uma espécie de "júri", que possa responsabilizar aqueles que no curso do mandato político não se comportam à altura daquilo que é esperado pela população.

No instante em que centenas de candidatos à Câmara dos Deputados pedem o nosso voto, fica impossível saber o que cada um deles pensa acerca dos temas mais relevantes para as nossas vidas. O resultado é que, na maioria dos casos, elegemos pessoas sem termos a exata noção do que pensam, do que já fizeram ou do que pretendem fazer.

O sistema, portanto, age para nos distanciar de quem nos representa. Esse distanciamento afasta uma atitude de cobrança incisiva dos representantes por parte dos representados, algo que é fundamental em uma democracia que pretenda produzir bons frutos.

Como diz um adágio popular, uma coisa ruim puxa outra. Ao contribuir para o distanciamento na representação política, o sistema eleitoral brasileiro transmite à população a equivocada e prejudicial ideia de que os Deputados Federais e Senadores detêm um papel secundário na condução da política nacional, pois os olhos acabam se voltando, quase que exclusivamente, para os chefes do Poder Executivo.

Ledo engano! As decisões mais relevantes para as nossas vidas, que decorrem da construção e da aprovação das reformas estruturantes no país, não dependem do Presidente da República - em que pese ele possa atrapalhar ou facilitar a sua tramitação. Elas dependem, em última análise, das costuras políticas realizadas no seio do Poder Legislativo.

A Constituição Federal de 1988 entregou enorme prerrogativa de decisão ao Congresso Nacional. Entretanto, formalizou um sistema eleitoral arcaico, que em nada contribui para a seleção de bons candidatos. Priorizou o poder econômico, favorecendo a reeleição das lideranças políticas que dominam as máquinas partidárias, já que inseriu a disputa no curso de campanhas eleitorais caríssimas, marcadas pela eleição proporcional em amplas circunscrições territoriais.

Além disso, o sistema eleitoral impede que a população abrevie o mandato dos parlamentares que se comportam contrariamente aos interesses do eleitor. Não há, no nosso sistema, a figura do recall, típica dos sistemas eleitorais distritais puros.

Todos esses fatores colaboram para que comportamentos absolutamente inapropriados sejam tomados de forma impune. A desfaçatez da aprovação do fundão eleitoral e R$ 5,7 bilhões é apenas uma dessas facetas.

Todas essas considerações devem servir de alerta para que o eleitorado, independentemente de suas predileções ideológicas, se engaje para a adoção de um sistema eleitoral que seja mais efetivo para responsabilizar os representantes que viram as costas para as necessidades básicas da população.

Não podemos mais aceitar calados a surrada desculpa de que a democracia não tem preço, de modo que o financiamento dos partidos deve ser proporcional às dimensões continentais do país. Esse discurso não quer, em verdade, proteger a democracia. Ele quer, de fato, eternizar castas no poder além de tornar a criação de partidos um negócio de baixíssimo risco e lucros fabulosos.

Todos sabemos, e bem, que esses montantes indecentes não visam a proteger a democracia. Visam, de fato, a manter a influência das lideranças já consolidadas no jogo político, abrindo as portas para sua eterna reeleição.

Um dos grandes equívocos das propostas de reforma política que volta e meia são cogitadas é que elas não são pensadas em conjunto com as regras de financiamento dos partidos. De forma inversa, costuma-se primeiro discutir o financiamento e, em um segundo momento, o sistema eleitoral.

A lógica deveria ser inversa: qual é o sistema eleitoral mais eficiente e como ele pode e deve ser financiado?

De certa forma, a decisão do STF que no ano de 2015 proibiu o financiamento empresarial das campanhas eleitorais corrigiu algumas deformidades relevantes, mas, ao mesmo tempo, criou outros problemas. Isso porque, ao cortar a principal fonte de financiamento dos partidos, mantendo as bases de campanhas caríssimas, abriu caminho para que o bolso do contribuinte tivesse que, sozinho, pagar a bolada.

Isso porque nada foi feito para tornar as campanhas menos dispendiosas. O mais correto teria sido evitar a proibição das doações empresariais em todas as hipóteses e, no seu lugar, fixar critérios objetivos e rigorosos para a sua realização.

Afinal de contas, o que a Constituição efetivamente almeja - e com razão - é a proteção da legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico. Se as doações empresariais forem mantidas dentro de limites razoáveis, o ideal constitucional seria respeitado.

Assim, a melhor decisão teria sido aquela que, além de fixar limites, também impusesse duras penas para a prática do chamado caixa dois, além da proibição de empresas doarem para mais do que um candidato, o que obrigaria os doadores a deixarem claro os projetos políticos que apoiam, agregando transparência ao processo. Esse deveria ter sido o apelo ao Legislador ou, quem sabe, as bases para uma declaração parcial de inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade, ou até mesmo uma afirmação de inconstitucionalidade circunstancial.

Deixando o tecnicismo de lado, o que se viu foi que, a despeito da boa intenção de se proteger a legitimidade do pleito contra o abuso de poder econômico de grandes corporações empresariais, ficamos reféns de igual abuso, só que agora por outro lado: das próprias lideranças partidárias que ditam as regras do jogo político.

Urge, portando, que a população tome lado a favor de uma reforma política que esteja ao alcance de diminuir essas mazelas, a começar, por exemplo, pela adoção de um sistema eleitoral distrital puro, com possibilidade de recall, ao mesmo tempo que se reveja a sistemática de eleição e mandato dos Senadores.

O dilema é que, a partir do momento em que aqueles que têm o poder de decidir as regras do jogo também podem escolher quanto querem pagar por elas, o cenário tende a ser caótico.

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1 Detalhes aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.