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Dinâmica Constitucional

Temas de Direito Constitucional.

Marcelo Schenk Duque
sexta-feira, 26 de abril de 2024

Configuração institucional e cidadania

Em um cenário de polarização política que beira a irracionalidade, é oportuno questionar: o quão distraídos estamos para as grandes questões? Olhar para o acessório, no lugar do essencial, tem sido uma tendência nos últimos anos. Isto ajuda a explicar grande parte dos nossos infortúnios. Quais são os fatores determinantes para que uma Constituição "pegue", ou seja, para que se imponha como norma suprema do ordenamento jurídico e faça a diferença na profícua condução do país? Uma ideia há muito trabalhada na doutrina, como, por exemplo, a partir dos escritos de Ferdinand Lassalle, sobre a concepção sociológica da Constituição. Defendia Lassalle que de nada servirá o que se escrever em uma folha de papel, se não se justificar pelos fatores reais e efetivos do poder1. A ideia era dizer que os problemas constitucionais são problemas ligados ao poder e não ao Direito. Konrad Hesse, em debate memorável, opondo-se à concepção de Lassalle, afirmou que a Constituição pode desenvolver força normativa, impondo-se aos fatores reais de poder na sociedade, caso se verifique no tecido social um claro sentimento de vontade em favor da Constituição (Wille zur Verfassung)2. Anos mais tarde, Robert Dahl demonstrou que condições políticas e socioeconômicas influenciam, demasiadamente, a efetividade de uma Constituição3. Estas três visões convergem para tese de que o êxito de um Estado não depende, ou ao menos não em primeira linha, da qualidade jurídica das normas constitucionais, mas sim da disposição da população em fazer valer a Constituição. Significa que o fato de a população se identificar com a Constituição, ao ponto de não tolerar violações constitucionais, faz toda a diferença. É o que se denomina de enraizamento da Constituição na sociedade, incluindo as elites políticas e jurídicas do país4. Eu aceito a tese de que o modo como a população de um país reage a desmandos é decisivo. Afinal de contas, trata-se de mensurar o grau de cidadania de um povo, na condição de fundamento de exercício da democracia. Entretanto, não se pode desconsiderar que a qualidade das normas constitucionais, ou seja, o grau de acerto das suas decisões, faz toda a diferença. Vale dizer, a aptidão da arquitetura institucional de um país depende do êxito da configuração constitucional vigente. A tese reflete a figura de um círculo, que pode ser virtuoso ou vicioso. Uma boa configuração institucional encoraja a boa cidadania, ao passo que uma má configuração desperta o contrário. Boas instituições projetam o que há de melhor nas pessoas, enquanto as más despertam e potencializam o que há de pior. Decisões constitucionais equivocadas provocam disfuncionalidades que atingem toda a sociedade. É por esta razão que repensar decisões constitucionais não configura, necessariamente, um atentado à democracia. Pelo contrário, se a reflexão conduz a aperfeiçoamentos, pode levar à salvação da democracia. O grande desafio é que o Direito Constitucional não consegue se desatar da atuação humana, o que coloca a questão até que ponto suas normas motivam e determinam comportamentos. Significa indagar se valem apenas hipoteticamente ou realmente5. Há muito o Brasil enfrenta sérios problemas com a representação política. As eleições livres, embora indispensáveis, não são capazes, por si só, de elegerem os melhores. A boa democracia não vive apenas de eleições. É preciso investir em aprimoramentos profundos nos sistemas de governo, eleitoral e partidário. O problema é que a Constituição Federal de 1988 não apostou nas melhores soluções em nenhum destes três elementos. O presidencialismo de coalizão se tornou uma usina permanente de crises. O sistema eleitoral proporcional não permite ao eleitor ter o controle de quem elege com seu voto, torna as campanhas extremamente caras e gera uma enorme distância entre o eleitor e o representante, o que dificulta o controle. O não emprego de um sistema eleitoral distrital para os órgãos políticos de representação coletiva mostrou-se um enorme equívoco. Mandatos de oito anos para Senador não encontram justificativa em uma democracia moderna e funcional. A possibilidade de ilimitadas reeleições aos cargos do Legislativo potencializa a perpetuação de dinastias políticas, contribuindo para que a atividade se torne um meio de sustento, antes de se afirmar como vocação para a promoção do bem comum. A inexistência de obrigação de desincompatibilização eleitoral para os cargos legislativos incentiva os candidatos a abandonarem os seus mandatos precocemente, para disputarem cargos mais elevados. Consequentemente, os votos recebidos migram para outros políticos, sem qualquer necessidade de consentimento por parte do eleitor, gerando deformidades na representação política. Os partidos, irrigados com verbas públicas cada vez mais vultuosas, refratários à fiscalização efetiva e à democracia intrapartidária, comandados por caciques quase vitalícios, tornaram-se disfuncionais. Os tópicos são exemplificativos e poderiam ser alargados. Certo é que, passados mais de trinta e cinco anos de vigência da Constituição Federal, transcorreu tempo, mais que suficiente, para se certificar de que muitas decisões tomadas não foram capazes de produzir os resultados que delas se esperavam. A cidadania efetiva depende da qualidade da configuração institucional vigente. Aprimorar o sistema, na busca de melhores soluções para o fortalecimento da democracia e para a obtenção dos objetivos fundamentais da República, é uma tarefa permanente. E dela que os verdadeiros estadistas deveriam se ocupar, incessantemente. O quão cidadã é uma Constituição é algo que não pode ser medido apenas por rótulos, nem mesmo pelo grau de cultura política e de cidadania de um povo. A qualidade das normas previstas na Constituição desempenha um papel fundamental na construção de uma nação. É algo que a polarização exacerbada, no mundo das bolhas políticas e dos algoritmos que moldam o pensamento de muitos, é incapaz de perceber. Furar as bolhas e se libertar dos extremismos de qualquer natureza é a única saída. É olhar por trás da coisa, é estar disposto a enxergar o que as aparências escondem. __________ 1 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 37. 2 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. Freiburger Antrittsvorlesung. In: Recht und Staat, Heft 222. Tübingen: Mohr, 1959, p. 12. 3 DAHL, Robert. Poliarchy. New Haven: Yale University Press, 1973, cap. 4ss. 4 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 108. 5 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 41s.
A teoria de que as Forças Armadas recebem da Constituição a função de poder moderador nunca resistiu à melhor análise. Trata-se de construção que não encontra base no Direito Constitucional pátrio. Desconsidera elementos básicos ligados não apenas à ideia de poder moderador, como também ao papel da chefia de Estado e das organizações militares. Em tempos de acirradas polêmicas, dizer o óbvio, por vezes, se faz necessário: a missão institucional das Forças Armadas não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não há nenhuma passagem da Constituição que permita o emprego das Forças Armadas para indevidas intromissões no funcionamento dos outros Poderes Esta foi a exata conclusão extraída pelo STF1, por unanimidade, no julgamento da ADI 6.4572, que não merece reparos. É evidente que não compete às Forças Armadas o papel de poder moderador. À uma, porque são poder armado. Quando empregado fora de suas estritas missões institucionais, a porta para arbitrariedade permanece aberta. Nas democracias as soluções para impasses institucionais têm que necessariamente brotar da política, do debate e dos diálogos institucionais entre todos os poderes envolvidos. Vale dizer, soluções racionais renunciam às armas. À duas, porque o exercício do poder moderador pressupõe a existência de uma autoridade suprapartidária e supraideológica, apta a se colocar em posição de neutralidade frente aos atores envolvidos nos conflitos, sem recorrer ao plano hierárquico. A partir do instante em que a Constituição reconhece que as Forças Armadas estão organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República (art. 142 CF), some, por completo, qualquer plausibilidade de exercício de função moderadora. A questão é até mesmo elementar. Havendo hierarquia, como um subordinado pode moderar seu chefe? Entre nós, a figura do poder moderador existiu somente sob a vigência da Constituição Imperial de 1824, que, neste ano, completou 200 anos. Estava previsto ao longo de quatro artigos (98 a 101): "O poder moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos." A sua chave era a busca do equilíbrio e harmonia entre os poderes, em um cenário de independência. Naquela época, na arquitetura da forma de governo monárquica e de um sistema de governo parlamentarista, a figura do poder moderador estava amarrada à Constituição, com as devidas cautelas. Dentre elas, o fato de estar esvaziado de funções governamentais propriamente ditas e de estar identificado, no maior grau possível, com a figura do Imperador, chefe de Estado3. Embora a República fosse a solução natural com o passar dos tempos, a técnica das constituições brasileiras posteriores, ignorando e expulsando o poder moderador da Constituição, não foi a melhor para garantir o Estado de direito e a democracia. O argumento é de que nos momentos dramáticos das crises que iniciaram com a República Velha, o poder estatal acabou sendo tomado em diferentes ocasiões pelas Forças Armadas, ao sabor de atos revolucionários e das paixões da hora, sem qualquer limitação constitucional4. Sempre que as Forças Armadas exerceram a golpe de força o poder político, o resultado não se mostrou satisfatório e as cicatrizes daí remanescentes permaneceram abertas. Isto só prova que a vocação institucional das Forças Armadas é totalmente estranha à figura do poder moderador. Benjamin Constant, célebre autor da teoria do poder moderador, já pregava: o vício de quase todas as constituições tem sido o de não ter um poder neutro e de ter colocado a autoridade suprema em um dos poderes ativos5. O pensamento de Constant repousa na ideia de que quando uma autoridade suprema é combinada com um dos poderes públicos, há uma tendência à arbitrariedade e à tirania, com os excessos daí decorrentes. É exatamente o que tende a ocorrer quando se entrega a um poder armado qualquer ligação com os poderes estatais. Se poderia perguntar por que muitas pessoas acabam embarcando na tese de que caberia às Forças Armadas uma moderação dos poderes, sobretudo quando o sistema de freios e contrapesos, típico da tripartição, não se mostra eficaz? Várias razões podem aqui ser elencadas, quase todas eles conectadas à falta de noção sobre o que representa a teoria do poder moderador. Uma delas, contudo, se destaca. Nem sempre fica claro para os brasileiros a distinção entre Estado e governo, já que entre nós ambas as funções têm a chefia exercida pelo Presidente da República. O Brasil vem optando, há muito, pelo sistema presidencialista, cuja principal característica é a cumulação, em uma única autoridade, das funções de chefia de Estado e de governo. Já nesse aspecto se revela um equívoco fundamental: como uma única autoridade poderá, simultaneamente, exercer a contento funções tão distintas? O perfil de chefia de Estado exige, necessariamente, postura suprapartidária e supraideológica, pois o Estado é algo que nos une, acima de diferenças de ordem política ou ideológica. Quando se atua contra o Estado, opera-se uma disrupção no desejável consenso em relação aos objetivos permanentes da República, com o efeito de desagregar a sociedade, impedindo, assim, o normal curso da democracia. Na função de chefia de Estado destaca-se um elemento de preservação da unidade estatal. Se é certo que na democracia uma única pessoa não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional,6 possibilidade que, por força dos arranjos institucionais existentes, não possuímos. Os objetivos de governo, ao contrário dos de Estado, costumam dividir a sociedade, razão pela qual ir contra o governo significa oposição, que quando exercida nos limites da lealdade à Constituição mostra-se saudável e necessária ao bom andamento da democracia.7 Esta é a razão pela qual a função de chefia de Estado deveria ser separada, a partir da Constituição Federal, das demais forças politicamente atuantes, como a de chefia de governo. Na prática, estamos falando de uma configuração institucional que retira, no sentido de preservar, o Chefe de Estado do processo de condução geral e de configuração política de uma nação.8 A infelicidade é que no sistema de governo vigente, quando se escolhe um Chefe de Estado, ele está automaticamente vinculado a um partido político, representante de uma ideologia, que irá atrair oposição, já que simultaneamente chefia um governo, de aceitação parcial. Neste cenário, dificulta-se o desempenho da neutralidade ínsita à representação de Estado, que deve traduzir unidade. O papel da chefia de Estado adquire relevo a partir do momento em que contribui, com seu distanciamento ideológico e partidário, para a base de um consenso, sem o qual, dentro de uma multiplicidade de opiniões e interesses, a unidade não pode ser alcançada, nem a paz social preservada. Trata-se do posicionamento da própria Constituição no ambiente político.9 O pensamento clássico advertia: daí a falta que faz a figura do poder moderador para agir em tempos de crise, como verdadeira instância magistral, fator de equilíbrio do sistema político, apta a arbitrar conflitos, retificar direções, neutralizar abusos e solucionar impasses complexos entre os poderes10. No atual sistema constitucional brasileiro esta figura não existe. Não está inserida nos poderes constituídos, nem no Judiciário, muito menos nas Forças Armadas. Para nós, a busca do equilíbrio e harmonia entre os poderes deve ser obtida à luz de diálogos institucionais, com as dificuldades de não haver uma moderação capaz de guiar a atuação de todos os envolvidos pela racionalidade. No instante em que optamos por unir as chefias de Estado e de governo em uma mesma autoridade, temos que estar dispostos a pagar o - caro - preço pelas disfuncionalidades daí decorrentes. Apostar no aprimoramento das instituições republicanas é a melhor saída para a crise. É trocar a ameaça de caos pela confiança e estabilidade. E não tentar empurrar às Forças Armadas algo que não lhe cabe. De volta ao início: dizer o óbvio, por vezes, se faz necessário. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 65. 4 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 67s. 5 CONSTANT, Benjamin. Curso de Política Constitucional. Tomo I. Madrid: Imprenta de la Compañía, 1820, p. 34s. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535. 7 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 83ss. 8 SCHEUNER, Ulrich. Bereich der Regierung. In:  LISTL, Joseph; RÜFNER, Wolfgang (Hrsg.). Staatstheorie und Staatsrecht: Gesammelte Schriften von Ulrich Scheuner. Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p. 481. 9 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 41s. 10 PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C, 1857, p. 204s.
As novas tecnologias impactam nossas vidas de diversas maneiras. Na maioria dos casos, os aspectos positivos, que facilitam o dia a dia, se sobressaem. Contudo, não se percebe, com a mesma clareza, as ameaças que costumam vir a reboque. O chamado trabalho por aplicativos, como, por exemplo, Uber, ifood e 99 são exemplos claros desta realidade. Não há dúvida de que os serviços prestados geram inúmeros benefícios à sociedade. A facilitação do transporte, fornecimento de refeições, dentre outros que são proporcionados pela tecnologia, tornam a vida mais fácil. A geração de novas frentes de trabalho e renda também não pode ser desconsiderada, já que contribui para o necessário giro da economia. Por outro lado, não há como se desconsiderar que por trás destes benefícios há uma força humana que se sujeita à uma precarização de condições de trabalho. São justamente os prestadores de serviços, motoristas, motoboys, ciclistas etc., tratados pelas plataformas como "parceiros" no negócio, que mais sofrem com a ausência de uma justa regulamentação do trabalho por meio de aplicativos. Uma realidade que vem chamando a atenção da Justiça do Trabalho e de estudiosos do tema. Uma das repercussões jurídicas de âmbito nacional foi a decisão proferida pelo TST, que reconheceu a existência de vínculo empregatício entre um motorista e a empresa Uber1. Dois argumentos destacaram-se nesta decisão. O primeiro é que a Uber deve ser considerada uma empresa de transporte e não uma plataforma digital. O segundo - mais impactante - é que haveria inegável subordinação entre a empresa e os motoristas. Analisando tecnicamente a questão, a existência de uma subordinação, ainda que em diferentes graus, fica difícil de ser refutada. Os motoristas não possuem nenhum tipo de controle em relação ao preço das corridas, dinâmica das tabelas de remuneração, muito menos sobre o percentual a ser descontado sobre o valor. Até a classificação do veículo utilizado é definida unilateralmente pela empresa, que pode baixar, remunerar, aumentar, parcelar ou não repassar o valor dos deslocamentos. A decisão da mais alta corte trabalhista visualizou que a autonomia dos motoristas, na prática, fica restrita apenas à escolha de horários e das corridas que pretendem realizar. Além disso, o TST ponderou que a empresa estabelece parâmetros para aceitar determinados motoristas e que o seu desligamento, na hipótese de descumprimento de normas internas, é feio de modo unilateral. É na referência ao conceito de "subordinação algorítmica" que a decisão do TST provoca maior reflexão. Um elemento inovador, que cada vez mais impacta nossas vidas, não apenas no contexto dos trabalhos intermediados por aplicativos, mas em diversas situações que passaram a integrar o cotidiano, como o emprego de redes sociais, por exemplo. A decisão levou em conta que a correta interpretação das leis trabalhistas, acompanhando a evolução tecnológica, expande o conceito de subordinação clássica nas relações de trabalho. Toda expansão de conceitos tem repercussões jurídicas inevitáveis. As empresas que desenvolvem plataformas por aplicativos, a fim de alcançar os meios informatizados de comando, controle e supervisão, codificam o comportamento dos motoristas ou colaboradores. Esta codificação se dá por meio da programação dos seus algoritmos, nos quais inserem suas estratégias de gestão, por meio de uma programação cujas diretrizes ficam armazenadas em seu código-fonte, de caráter sigiloso e, portanto, não compartilhado. Sem adentrar se tais características apontam para a existência de vínculo de emprego ou não, o fato é que se fazem presentes na vida diária dos motoristas de aplicativos. Não há como refutá-las. A matéria é tudo, menos simples. Dentro do próprio TST há entendimentos divergentes sobre o tema, ora reconhecendo vínculo de emprego, ora rejeitando2. A questão do reconhecimento de vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas que operam aplicativos tem sido tema de duro embate entre o STF e a Justiça do Trabalho. O STF vem reconhecendo a constitucionalidade de outras formas de trabalho diferentes da CLT, opondo-se à jurisprudência de determinadas turmas do TST3. Fica visível o descompasso. A Justiça do Trabalho tende a ser mais conservadora, ao reconhecer a precariedade da situação dos trabalhadores por meio de aplicativos, atraindo o reconhecimento do vínculo de emprego. O STF, por sua vez, tende a ser mais aberto a novos formatos de parcerias de negócios, derrubando sucessivas decisões de vínculos de emprego, em particular em atividades mediadas por tecnologias. Em julgamento que se avizinha, caberá ao STF propor uma solução pacificadora. Destaca-se a análise do Tema 1.291, objeto do RE 1.446.336, que servirá de importante paradigma para a questão4. O principal argumento da Uber, para afastar o estabelecimento de vínculo de emprego entre a empresa e os motoristas, é que a decisão do TST tolhe o direito à livre iniciativa de exercício de atividade econômica, além de colocar em risco o seu modelo de negócios, considerado por ela como um marco revolucionário para a mobilidade urbana5. Por sua vez, a Justiça do Trabalho visualiza que há precarização das relações trabalhistas, em ambiente de inegável subordinação e, consequentemente, o afastamento de inúmeros direitos constitucionalmente assegurados. Deixando de lado, por ora, as divergências entre o STF e o TST, pontua-se que este salutar debate não pode ofuscar um aspecto essencial à controvérsia. O trabalho por meio de aplicativos requer, urgentemente, regulamentação específica, que não deveria ficar a cargo dos tribunais, mas sim do Congresso Nacional, considerando a competência privativa da União para legislar sobre a organização do sistema nacional de emprego e as condições para o exercício das profissões (art. 22, XVI CF). O Governo Federal propôs uma abordagem relacionada à regulamentação, encontrando forte resistência por parte das empresas6. Muito preocupante é a questão previdenciária que envolve os trabalhadores de aplicativos. O fato de muitos motoristas trabalharem, simultaneamente, para diversas empresas, com cargas horárias variáveis e com ganhos cada vez menores, vem inviabilizando sua inclusão no sistema previdenciário. Por ser uma questão ligada às relações trabalhistas, a Justiça do Trabalho deveria, em um modelo ideal, ter a competência para dar a última palavra, cabendo ao STF apenas uma intervenção residual, na hipótese de a justiça especializada violar, flagrantemente, dispositivos constitucionais ou de proceder a uma interpretação da Constituição manifestamente equivocada. É certo que a Constituição Federal não se ocupa - e nem poderia - dos detalhes de relações de trabalho como o transporte ou entregas por meio de aplicativos. Deste modo, há um amplo espaço de conformação legislativa na matéria, que deve ser reconhecido em favor do legislador. É ao Legislativo, pelo princípio da separação dos poderes, que deve ser reconhecido um espaço de avaliação e de prognoses neste tema, cabendo ao Judiciário respeitá-las, salvo nos casos de flagrante violação das disposições constitucionais. A intervenção exagerada do STF em diversas matérias tente a conferir às demais instâncias do Poder Judiciário a pecha de meros pontos de passagem, negando a natureza da justiça especializada, situação que compromete a própria funcionalidade do sistema judicial. É bem verdade que a inação do Congresso Nacional em regulamentar temas importantes contribui para a judicialização excessiva e para o cenário de insegurança jurídica daí decorrente. Diga-se o mesmo frente à dificuldade de o TST pacificar matérias de sua competência. São disfuncionalidades que acabam por atrair a intervenção do STF em diversos assuntos, congestionando a sua pauta, que somadas à tendência de o tribunal avocar para o seu poder de decisão múltiplos temas, levam à atrofia do sistema. Não se pode negar que a inovação proporciona o surgimento de novas categorias, que podem não encontrar compatibilidade com os modelos tradicionais de regulamentação. Aqui a obsolescência ou a inadequação não podem ser desconsiderados. Entretanto, estas novas categorias podem gerar ameaças, cujos princípios constitucionais vigentes, sobretudo os direitos fundamentais, devem combater. É justamente o caso do trabalho por aplicativos, cuja subordinação algorítmica parece irrefutável. Cabe, pois, ao Congresso Nacional assumir as rédeas da regulamentação do trabalho por aplicativos, ouvindo todos os setores envolvidos, com foco nas peculiaridades destes sistemas de trabalho, ciente de que se equivocará, caso se prenda a um dos extremos. O mesmo raciocínio vale para todas as instâncias do Poder Judiciário, sobretudo enquanto pender a regulamentação legislativa. ------------------------------- 1 Disponível em: https://tst.jus.br/web/guest/-/8%C2%AA-turma-mant%C3%A9m-reconhecimento-de-v%C3%ADnculo-de-motorista-de-uber?p_l_back_url=%2Fweb%2Fguest%2Fresultado-de-busca%3Fq%3Duber%26tag%3Duber%26category%3D55841 2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/388255/tst-manda-para-o-stf-disputa-de-vinculo-entre-motorista-e-uber 3 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/395544/vinculo-de-emprego-jt-reiteradamente-descumpre-jurisprudencia-do-stf 4 Disponível em: Tema 1.291 de repercussão geral - Reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora de plataforma digital. https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6679823&numeroProcesso=1446336&classeProcesso=RE&numeroTema=1291 5 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=528592&ori=1 6 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/402727/stf-decide-julgar-vinculo-com-aplicativo-e-lula-assina-pl-sobre-o-tema
Uma das funções mais importantes de uma Constituição é a de proteção. Direitos fundamentais asseguram a defesa das pessoas contra agressões que violam bens jurídicos relevantes, como a dignidade humana, vida, liberdade, igualdade, segurança e a propriedade. A busca de mecanismos jurídicos aptos a garantir a árdua tarefa de proteção é uma meta do constitucionalismo, em suas sucessivas fases e ideais. Além dos consagrados constitucionalismos liberal, social e fraternal, atualmente fala-se de um constitucionalismo digital. A ideia básica é garantir uma jurisdição constitucional apta a proteger direitos fundamentais no curso do mundo digital1. Ela traz implicações significativas no controle de constitucionalidade dos atos do poder público e da iniciativa privada, a partir de uma maximização da eficácia horizontal dos direitos fundamentais2. Embora seja uma denominação que guarda críticas na doutrina3, não se pode desconsiderar que o termo alerta para um dado que não pode ser desconsiderado: a agenda digital tem que ser incorporada pelo constitucionalismo, no sentido de que os direitos fundamentais não podem ser ameaçados pelo uso indevido das novas tecnologias. O avanço digital é imprevisível. Não há como se atrever a fixar limites quanto ao que será possível atingir em termos de recursos em longo prazo, quiçá em médio. Algo já é facilmente perceptível: o atual estágio tecnológico ao mesmo tempo que facilita nossas vidas, gera riscos cada vez mais acentuados. Um dos mais preocupantes deriva da propalada inteligência artificial (IA). Estudos mostram que cerca de um quarto do trabalho realizado nos Estados Unidos e na zona do Euro poderão ser automatizados por meio de sistemas de IA. Significa que muitas frentes de trabalho tendem, em tempo não muito distante, a se tornarem dispensáveis, o que representa inegável abalo na economia global4. Não se sabe até que ponto a mesma tecnologia que elimina postos de trabalho irá fomentar a criação de outros. Também se ignora de que forma é possível compatibilizar objetivos constitucionais permanentes, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego contra algo que não pode ser freado: o desenvolvimento tecnológico que proporciona benefícios individuais e coletivos. A mesma tecnologia que impulsiona vários setores econômicos pode acabar com tantos outros. Qual deverá ser a conta de chegada? A tábua de risco cresce à medida que se fala da IA generativa. É a que cria conteúdos que não podem ser distinguidos da produção humana. Tarefa típica de sistemas como ChatGPT (OpenAI), Gemini (Google), dentre outros. Os sistemas de IA generativa representam ameaças em outra face sensível para a sobrevivência das nações: seu sistema democrático. As campanhas deliberadas de desinformação (fakenews) são incrivelmente potencializadas por recursos de IA. Atualmente, qualquer pessoa, mesmo sem grandes conhecimentos técnicos, pode se valer de programas de fácil acesso, aptos a manipular, com grande eficiência e poder de convencimento, sons e imagens. Refiro-me, em particular, às deepfakes5. Uma tecnologia que permite que nossas vozes e imagens sejam empregadas, sem autorização, para transmitir mensagens que jamais seriam por nós cogitadas. E tudo de forma muito convincente. A detecção da manipulação torna-se cada vez mais difícil. As deepfakes não funcionam como um filtro aplicado em uma fotografia, que torna uma imagem de baixa qualidade em algo deslumbrante, mas com fácil percepção do truque. Elas usam mecanismos mais evoluídos, pensados para agir da forma mais imperceptível possível. Não é preciso ir longe para captar o risco que tais tecnologias impõem à democracia, por meio da manipulação do processo eleitoral. Cada vez mais, no submundo do crime, as chamadas "milícias digitais" venderão seus serviços para destruírem reputações e minarem candidaturas de adversários políticos. A guerra política avança para trincheiras não devidamente exploradas, em um cenário que pode ser disruptivo. Há relatos do uso de deepfakes para manipular as eleições em vários países. Cita-se o ocorrido nos EUA, em 2024. Ligações telefônicas realizadas por robôs em call centers transmitiam a mensagem falsa, de que o Presidente norte-americano Joe Biden estaria solicitando aos seus eleitores que não participassem das eleições primárias do partido6. O uso criminoso deste tipo de tecnologia favorece a desinformação e o rompimento da ordem democrática. Esta realidade ameaçadora aponta que é preciso reagir, tanto de forma preventiva quanto repressiva. A prevenção é o caminho que costuma surtir melhores resultados. Autoridades na área acertam quando afirmam que urge no Brasil a construção de uma estrutura regulatória moderna e eficaz, apta a fixar o compartilhamento de responsabilidades dos atores do mundo digital, visando a minimizar os riscos7. Na vertente repressiva é fundamental que o TSE assuma a responsabilidade em punir, exemplarmente - e de forma não seletiva -, toda e qualquer agremiação política que empregue mecanismos de IA para prejudicar adversários políticos, sem prejuízo de outras sanções penais cabíveis. Esta é uma das mais importantes missões deste novo constitucionalismo. O mundo digital possui relação indissociável com os direitos fundamentais de livre desenvolvimento da personalidade, por meio dos quais a dignidade humana deve se mostrar intangível. Se por um lado as novas tecnologias facilitam o alcance dos objetivos do constitucionalismo liberal, como o controle e a regulação do poder político, elas também passam a exigir novas conformações protetivas de direitos fundamentais, que estão sob ameaça no ambiente digital8. No Direito Constitucional a questão se projeta a partir do mandamento de proibição de insuficiência, que impõe ao legislador um dever de aperfeiçoamento constante, que o impede de ficar inerte ou de propor soluções que não se mostrem à altura dos problemas que visam a evitar9. A prevenção dos riscos impostos pela IA configura um novo padrão para o controle de constitucionalidade dos atos do poder público e de condutas privadas, nos planos da ação e da omissão. A inteligência também pode ser ameaça. A proteção eficaz do gênero humano e da democracia não pode esperar. __________ 1 MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Disponível aqui.   2 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019. 3 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; KELLER, Clara Iglesias. Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso. Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Vide a posição de Bruno Bioni, Virgilio Almeida e Laura Schertel Mendes. Disponível aqui. 8 MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Disponível aqui.   9 CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechte und Privatrecht. Eine Zwischenbilanz. Berlin: De Gruyter, 1999, p. 20.
Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem1. A frase está imortalizada no notável romance de José Saramago. Uma metáfora atemporal, aplicável a vários contextos. Um deles, é a nossa organização político-institucional. A cada ano, o início do mês de fevereiro marca a abertura do ano legislativo. Como de praxe, é realizada uma sessão solene no Congresso, na qual mensagens dos chefes dos três poderes são lidas. Boa parte dos discursos contém aquilo que se gosta de ouvir2. O Executivo salientou que o diálogo é condição necessária para a democracia, devendo superar filiações partidárias, preferências políticas ou disputas eleitorais, uma obrigação republicana a ser cumprida por todos. O Judiciário ponderou que os magistrados não podem carregar suas paixões ao decidir, devendo agir pelas virtudes da equidistância e da imparcialidade, o que torna sua atuação, em boa medida, diferente da política. Bradou, ainda, o princípio da separação dos poderes: ao Judiciário, o que é do direito, ao Legislativo o que é do Parlamento, ao poder Executivo, o que toca a administração pública. E o Legislativo, em tom mais provocativo, sobretudo pelas palavras do Presidente da Câmara dos Deputados, ressaltou a defesa das prerrogativas do Congresso Nacional, acentuando a competência para aprovação da peça orçamentária. Do todo, o que é realidade, o que é ficção? Ano após ano, discursos polidos são proferidos, porém nem sempre conectados com as ações concretas. De um lado as palavras, do outro a vida como ela é. A parte mais sensível nas mensagens de abertura do ano legislativo situa-se no recado do Presidente da Câmara dos Deputados, relativo à peça orçamentária. O Orçamento da União para 2024 foi aprovado pelo Congresso com significativo aumento nos valores das emendas parlamentares. Eis os dados3: De R$ 37 bilhões em 2023 para R$ 53 bilhões em 2024. São verbas cujo destino fica a cargo dos congressistas, sem interferência dos demais poderes. O presidente da República vetou R$ 5,6 bilhões das chamadas emendas de comissão, gerando tensão política com o Legislativo. Na versão aprovada pelos parlamentares, estas emendas somariam R$ 16,6 bilhões. Com o veto, a previsão caiu para R$ 11 bilhões, valor superior ao do ano de 2023 (R$ 7,5 bilhões). Os outros tipos de emendas parlamentares, que são as emendas individuais obrigatórias (R$ 25 bilhões) e as emendas de bancada (R$ 11,3 bilhões), não sofreram modificação de valores. Há uma crítica generalizada por parte da sociedade quanto à inviabilidade de se tratar parcelas significativas do orçamento público sob a lógica das emendas parlamentares. As críticas não sensibilizam o Presidente da Câmara. No discurso deixou claro a sua visão de que o orçamento não pode ser de autoria exclusiva do Executivo, tampouco de uma burocracia técnica, que não foi eleita para definir as prioridades da nação4. Do ponto de vista constitucional, há um equívoco na forma como o tema foi abordado. A aprovação do orçamento, indiscutível competência do Congresso Nacional, não se confunde com a sua elaboração e execução. Cabe ao Poder Executivo encaminhar ao Legislativo a proposta de lei orçamentária e a este cabem os ajustes que entender pertinentes. Ocorre que nos últimos anos a atuação do Congresso em relação ao orçamento tem extrapolado, e muito, sua competência para ajustar e fiscalizar os gastos públicos. O Legislativo marcha para uma espécie de cooptação do orçamento público, pelo emprego de diferentes tipos de emendas parlamentares. A estratégia é concentrar, cada vez mais nos parlamentares, a decisão quanto ao modo e montante de aplicação das verbas em redutos eleitorais, por meio de um calendário de pagamento de emendas. Parte-se da visão - não necessariamente correta - de que os parlamentares, por estarem mais próximos da população, têm melhores condições de definir prioridades no momento de aplicação dos recursos. Nas palavras do Presidente da Câmara, são os parlamentares - e não os técnicos do Ministério da Fazenda - que "gastam a sola do sapato" percorrendo os pequenos municípios brasileiros. Este modo de ver as coisas desconsidera um dos mais elementares princípios orçamentários, que é o da programação, que tem a ver com planejamento. O fim do orçamento público é a entrega de bens e serviços para satisfazer as necessidades da população, cujos meios sãos os recursos, as dotações autorizadas pelo Legislativo, que permitem a realização das ações5. A lógica das emendas parlamentares desconsidera, em grande parte, tal princípio. Quando fatias generosas do orçamento passam a ser aplicadas de acordo com a discricionariedade de políticos, independentemente de estudos mais aprofundados sobre as prioridades, o resultado não pode ser satisfatório. Orçamento segue a lógica da escassez, o que em linguagem popular se chama de "cobertor curto". Empenho técnico, precisão e certa dose de criatividade são ferramentas essenciais na administração dos recursos públicos. Em suma: planejamento de gastos. É fazer o máximo possível, mediante critérios de racionalização dos recursos disponíveis. No rumo das chamadas despesas discricionárias, marcadas por elevada ingerência política no destino, tais vetores costumam ser desconsiderados. O rito é a relação entre padrinhos e apadrinhados. Quanto maior for a proximidade com um congressista, maior será a chance de ter um pedido atendido. Esta relação de dependência compromete até mesmo o bom desempenho parlamentar. Os representantes acabam tendo sua atuação - que deve ser macro - desfocada frente a interesses paroquiais. As emendas guiam-se por interesses eleitoreiros. Servem para fortalecer a base política dos que as subscrevem. Sua finalidade é a perpetuação no poder, por meio de sucessivas reeleições. O modus operandi é avesso até mesmo ao ideal democrático, à medida que favorece a reeleição dos que têm o poder de alocar verbas públicas em seus redutos eleitorais. O livre jogo da disputa política sofre considerável perturbação. Por vezes, para atender eleitores, recursos são alocados independentemente de requerimentos de prefeitos. Nesta lógica não costuma haver planejamento ou qualquer estudo detalhado acerca das prioridades da população. A prática é refratária ao equilíbrio fiscal, à fixação de prioridades e, sobretudo, à correta fiscalização do destino das receitas tributárias. A aprovação do orçamento não pode se confundir com a sua execução. A proposta e execução são competências típicas do Poder Executivo, a quem cabe, por meio de um corpo técnico especializado (ministérios), definir os critérios de emprego das verbas, visando a realizar os objetivos fundamentais da República, como a redução das desigualdades regionais. Na atual sistemática, as desigualdades só tendem a aumentar. Se um município não possui bons padrinhos, está fadado a viver apartado de parcela do orçamento público. Nesta ótica as emendas parlamentares desconsideram até mesmo o traço marcante da forma federativa de Estado, que é a autonomia financeira dos respectivos entes da federação. O fato é que a cada ano vem crescendo o apetite do Congresso sobre o montante destinado às emendas parlamentares. Vale dizer, um considerável avanço do Legislativo sobre as prerrogativas do Executivo. Dados revelam que dos R$ 222 bilhões de livre destinação no ano de 2024, R$ 44,6 bilhões se referem a emendas parlamentares (20,05% do total)6. Se for considerada a realidade que era praticada antes da criação das emendas impositivas (2014), ao Legislativo cabia indicar apenas 4,65% do valor dos gastos discricionários7. Tudo isso dentro de um sistema de governo presidencialista, no qual o Executivo resta cada vez mais enfraquecido. Tivéssemos um sistema de governo parlamentarista, com as vantagens que lhe são peculiares, como a responsabilidade política do chefe de governo, separação entre chefia de Estado e de governo e funcionamento voltado à governabilidade, o protagonismo do Legislativo na execução orçamentária poderia ser pensado de forma diferente. Não é o caso do atual sistema presidencialista de governo. Enquanto isso, inicia o novo ano legislativo, com lindos discursos. De volta ao início: Por que foi que cegamos? __________ 1 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 310. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui.
Eleger as verdadeiras prioridades é uma das características que colocam líderes na condição de estadistas. Algo raro no Brasil, o que ajuda a explicar os motivos pelos quais as crises insistem em nos abraçar. A reforma do pacto federativo é uma destas prioridades. Na agenda política, segue em um plano distante. Em verdade, desde os primórdios da República o Brasil não respirou o verdadeiro espírito federativo. Quando a Constituição Republicana de 1891 foi promulgada se importaram - ainda que aos pedaços - diversos institutos do sistema norte-americano, como a forma e o sistema de governo. Foi, de fato, na forma de Estado - Federação - que mais nos afastamos da então referência estadunidense. Tivemos como referência o país que mais pratica o ideal de descentralização territorial do poder político e administrativo, mas ao colocarmos em prática, fizemos tudo ao contrário. Os pais fundadores dos EUA (Founding Fathers), se vivos estivessem, ficariam estarrecidos com a nossa capacidade de distorcer institutos e sistemas. Colamos ao nome do país o selo de federação, sem praticá-la à contento. A forma federativa de Estado é uma ideia voltada à eficiência. Parte do pressuposto de que a centralização de poderes e competências dentro de um país é algo contraprodutivo. O ideal de descentralização territorial do poder afirma-se como o núcleo do pensamento federativo, focado no princípio da subsidiariedade. Mais do que uma nomenclatura, representa a ideia de que o gestor que está mais próximo da realidade tem, em princípio, melhores condições de identificar os problemas e propor as devidas soluções. Uma ideia que advém da própria racionalidade, praticada, inclusive, como sinônimo de boa governança em instituições públicas e privadas. O pacto federativo, em especial o grau de descentralização territorial do poder, deve-se pautar por critérios mínimos de funcionalidade. Os árduos debates sobre a reforma tributária de 2023, que certamente se prolongarão nos próximos anos, são a prova de que o pacto federativo é matéria cuja importância, entre nós, adquiriu aspecto acessório. Quando se tem em mente que o cerne de um sistema tributário diz respeito à forma de financiamento dos poderes públicos, surge a questão: como é possível alterar o sistema tributário sem que se discuta, paralelamente, o pacto federativo? Uma federação na qual um ente passa a depender de outro(s) está fadada ao fracasso. O mesmo ocorre quando se constrói uma federação às avessas, em que a centralização de poderes do ente central é o traço marcante. A doutrina especializada há muito alerta: nas últimas décadas forjou-se um sentimento de preocupação quanto à sorte da federação no Brasil, devorada por um centralismo cada vez mais absorvente1. O próprio STF desenvolveu nas últimas décadas uma jurisprudência que converge para a centralização de poder da União. Decisões como a que estabelece que leis municipais proibindo a cobrança de estacionamento em shopping centers seriam inconstitucionais, por tratarem de questão típica de direito civil - matéria de competência legislativa privativa da União2, são apenas um exemplo. Por justiça, deve-se reconhecer que o STF, durante o período da pandemia, proferiu um conjunto de decisões acertadas que fortaleceram o pacto federativo, sobretudo as que retiraram das mãos do governo federal a exclusividade das decisões em matéria de promoção da saúde, típica questão de competência legislativa concorrente3. Se esta será uma tendência, ou o retorno à jurisprudência do "shopping center", só o tempo irá dizer. Por seu turno, a Constituição Federal de 1988, apesar de ter conduzido os Municípios à condição de entes da federação, dotados de autonomia política e administrativa, relegou ao menor dos entes a uma posição frágil na distribuição das fatias que compõem o bolo tributário. Quando os Municípios ficam com uma diminuta parcela das receitas tributárias globais, o cenário de estabilidade econômica mostra-se adverso. A Constituição também não se preocupou em condicionar a existência dos Municípios, ou mesmo a criação de novos, ao cumprimento de metas mínimas de viabilidade econômica. Em suma: o sistema constitucional vigente não colocou os devidos freios à criação de Municípios, tampouco à sua manutenção. É bem verdade que o Congresso Nacional não cumpriu devidamente o seu papel, já que insiste em não regulamentar o art. 18, § 4.º da Constituição Federal, que trata de pressupostos para a criação de novos Municípios no país. O próprio STF reconheceu o estado de mora legislativa na matéria, contribuindo para frear aquilo que se poderia denominar de "inflação municipalista". Dados atuais mostram a gravidade do problema. Segundo o IBGE, o Brasil possui, atualmente, 5.570 Municípios4. Uma pesquisa feita pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), publicada em agosto de 2023, revelou um dado alarmante: 51% das cidades estão atualmente com as contas no vermelho. O fato deve-se ao pequeno crescimento da arrecadação e à expansão generalizada do gasto público, em especial das despesas de custeio, que tocam à manutenção da máquina pública5. A raiz do problema parece residir em dois fatores. O primeiro é que desde o advento da República Federativa não se desenvolveu no país a cultura da federação. Não é por menos. Como várias outras criações, ela nos foi imposta de cima para baixo, por um canetaço do governo central de então. O segundo, mais atual, é que a inflação municipalista tem origem em questões típicas da política nacional, de caráter clientelista. Em bom português: interesses políticos. Antes de se destinar à melhora das condições de vida das pessoas, objetivo constitucional permanente, a criação de novos municípios acaba servindo como trampolim para a consolidação de lideranças políticas locais, com forte influência na máquina pública, que dela se utilizam para fins eleitoreiros. Recentemente, o protagonismo das emendas parlamentares6, que afasta a racionalidade na administração do orçamento público, torna a expansão municipalista ainda mais atrativa. A receita é clara. Pouco importa que muitos Municípios se mostrem inviáveis do ponto de vista financeiro. Deste que sejam atraentes do ponto de vista político, a conta acaba fechando na lógica da consolidação de currais eleitorais que perpetuam o poder de políticos e dos seus familiares. Urge o aperfeiçoamento do pacto federativo. A começar pela distribuição mais equilibrada das fatias tributárias entre os entes da federação, passando pela maior descentralização político-administrativa, inclusive em face de competências legislativas e, em particular, pela adoção de critérios mais rígidos para a manutenção de municípios. A fusão e a incorporação de municípios deficitários deve ser uma prioridade, sob pena de o federalismo brasileiro adquirir elevada disfuncionalidade, já a partir da base. Se não for assim, corromperemos a própria ideia matriz do federalismo, consolidando o princípio da subsidiariedade às avessas. __________ 1 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 188. 2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.
sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Melhor reforma é a mudança de mentalidade

Quando uma sociedade entra em crise consigo mesma porque não consegue mais se reconhecer no seu modo concreto de viver com os outros e no modo de se organizar institucionalmente, surge, como necessidade interna, a exigência de refletir criticamente e de se explicar teoricamente quanto aos valores e representações que configuram essa sociedade.1 Para começar o ano, esta é uma reflexão de peso. Aceitamos as mazelas da nossa organização política, como se estivéssemos condenados a jamais delas nos libertar. Em perspectiva filosófica fica claro o interesse da razão nas seguintes questões: O que sabemos? O que nos é permitido esperar? O que devemos fazer? As respostas, nada simples, passam por projeções. Seu acerto depende do senso de realidade de quem analisa os fatos, aliado à sorte de quem arrisca prever algo, em um cenário político-institucional tão complexo. Se por um lado a geopolítica acaba por influenciar a realidade nacional de forma imprevisível, por outro, a não realização do dever de casa insere-se no rol das situações que, embora previsíveis, não costumam ser contornadas. Um exemplo é aceitar que a agenda das reformas estruturantes, mesmo longe da ideal, está na velocidade do Brasil. Um raciocínio pragmático, espécie de rendição às circunstâncias da política. A aprovação da reforma tributária pelo Congresso Nacional no ano de 2023 foi um feito político memorável. Pode-se debater se foi a reforma correta ou não. Todavia, o fato de ter sido aprovada após anos de estagnação da matéria nos escaninhos do Congresso mostra que, quando há vontade política, consensos sobre o principal podem vencer os dissensos sobre o acessório. A questão é que em outros temas cruciais, tão ou mais importantes que a reforma tributária, consensos acabam não sendo produzidos, gerando uma estagnação constante. Grande parte das reflexões dos modernos pensadores centra-se na questão do conhecimento. Quem se ocupa do estudo das instituições políticas sabe - e bem - que praticamos uma arquitetura de baixa qualidade. É por isso que a principal reforma é a de mentalidade. Evoluir para priorizar os grandes temas da agenda política, que devem convergir para o aprimoramento das instituições permanentes, deixando de lado questões menores, cuja eficácia costuma ser cosmética. É neste ponto que empacamos e, por mais que os analistas se esforcem em prever soluções, não estamos conseguindo enfrentar os grandes problemas. A consolidação das contas públicas, em um cenário de racionalização das prioridades de investimentos do erário, é uma espécie de nó górdio que ainda não foi objeto de corte. Neste ponto, a reconfiguração das instituições políticas brasileiras, a começar pela reforma dos sistemas eleitoral, partidário e de governo, é o maior desafio. José Murilo de Carvalho fez uma genial alusão para descrever as relações políticas no Brasil: política e teatro têm algo em comum. A representação política tem elementos comparáveis à teatral pelo fato de serem exercidas em palcos montados, por meio de atores que têm papéis conhecidos. Há enredo e, principalmente, ficção.2 A maior ficção está em acreditar que o sistema presidencialista de governo, uma usina permanente de crises, será capaz de tirar o país do atoleiro fiscal. Esta ficção se projeta em diferentes níveis. O primeiro é eleger um Presidente da República que cumula funções de natureza diversa - chefia de Estado, de governo e da Administração federal - que requerem habilidades distintas, inviabilizando o seu exercício a contento por uma única autoridade. O segundo é normalizar a eleição de um chefe de governo que não tem a sua disposição maioria parlamentar para aprovar os projetos que compõem sua plataforma de governo. O terceiro é insistir em uma arquitetura institucional que não combina com o modelo de Estado social preconizado pela Constituição de 1988. No atual modelo, a governabilidade passa a depender do loteamento de cargos públicos e da distribuição de generosas emendas parlamentares, fomentando a irracionalidade no emprego de verbas públicas. Uma verdadeira disrupção na ideia de representação política. O presidencialismo de coalizão foi dragado pelo de cooptação. A ficção, na linguagem teatral de Murilo de Carvalho. É como se o país conduzisse, na prática, a preponderância do Legislativo, típica de sistemas de governo parlamentaristas, mas com as amarras típicas do presidencialismo, com chefe de governo sem responsabilidade política perante o parlamento. A lógica de uma representação política que empareda o Executivo, por força da cooptação do orçamento público, cujo emprego volta-se a fortalecer a presença dos seus atores nos respectivos redutos eleitorais, é o quadro de uma disfuncionalidade permanente,3 com reflexos negativos na economia nacional. No apagar das luzes de 2023, o Congresso Nacional aprovou a Lei Orçamentária Anual (LOA) prevendo despesas de R$ 5,5 trilhões, cujo maior montante se refere ao refinanciamento da dívida pública.4 Se não se estrangulam as causas que comprometem a saúde financeira do país, não se pode evoluir. Um exemplo prático: no bolo da LOA está prevista a cifra de R$ 4,9 bilhões para compor o Fundo Eleitoral, ou seja, parte da verba que irá financiar as campanhas para as eleições municipais no corrente ano. A justificativa é o surrado bordão de que a democracia não tem preço. Tudo isso quando se fala que a meta fiscal do orçamento de 2024 é a de zerar o déficit público. Não há como reorganizar as contas públicas neste quadro de perversão institucional. Invariavelmente, a conta acaba caindo nos colos da sociedade, na experiência coletiva de aceitar o que não se consegue mudar. Implica compreender que sem instituições políticas racionais não se chega a resultados positivos. Se pode dizer que o Brasil está percorrendo um lento caminho das reformas, mas não que temos uma construção institucional capaz de grandes e duradouros avanços nas prioridades. Portanto: O que sabemos? Que a arquitetura político institucional vigente não se mostra apta a resolver os complexos problemas do país, esvaziando os objetivos estatais permanentes, cristalizados como objetivos fundamentais da República (art. 3.º CF). O que nos é permitido esperar? Se mantivermos a atual arquitetura institucional, os problemas que há muito vivemos não serão resolvidos. Pode-se avançar aqui ou acolá, ou até mesmo retroceder, mas a estagnação que nos acompanha desde a República velha permanecerá, apenas sob nova roupagem. O que devemos fazer? Coragem para avançar nas reformas. Acima de tudo, compreender que a principal reforma é a de mudança de mentalidade. Investir em uma má configuração institucional é uma passagem só de ida para o caos. Construir consensos mínimos, que priorizem o país, no lugar de tentações eleitoreiras rasas. Fortalecer a democracia pelas instituições. O Direito Constitucional vivo exige que se pense o país sob a perspectiva da viabilidade das suas instituições, sob pena de sempre permanecermos reféns dos nossos condicionantes. Um pensamento muito pobre, para uma nação tão exuberante. A evolução começa pela mudança de mentalidade, a principal reforma. __________ 1 HERRERO, Xavier. A razão kantiana entre o Logos socrático e a pragmática transcendental. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 18, n. 52, jan./mar. 1991, p. 37. 2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 420. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 
Uma das partes mais importantes - e mais desrespeitadas - da Constituição Federal diz respeito ao dever de proteção do meio ambiente. Prevê o art. 225 que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Dificilmente se poderia pensar em redação melhor. Aqui temos um típico direito de terceira geração, com fundamento no constitucionalismo solidário. De caráter transindividual, a norma impõe ao poder público e aos particulares um verdadeiro dever de hierarquia constitucional. Mais do que isto, um dever de natureza intergeracional. A obrigação não se limita a garantir o bem-estar das pessoas que já habitam o planeta, mas, igualmente, das futuras gerações. A afirmação corrente de que o Brasil é um país respeitador do meio ambiente não passa de uma falácia. Um exemplo que aponta para esta realidade é a inadequação dos planos diretores da imensa maioria dos municípios brasileiros, além das falhas estruturais que minam a atuação efetiva dos órgãos competentes. As enchentes que devastaram regiões do sul do Brasil, em setembro de 2023, são apenas um dos indícios dos efeitos causados pelas mudanças climáticas, aliadas a uma cultura de omissões e desmandos de todos os tipos. Os terríveis impactos gerados por eventos catastróficos da natureza deveriam levar as autoridades e a sociedade a refletir sobre os rumos de uma vida com segurança. Não é o que costuma ocorrer. As tragédias se repetem, mudam apenas os lugares e as vítimas. Fruto de uma cultura de indiferença, de omissão das autoridades e de uma ilusão quanto a uma falsa zona de conforto. Os desastres naturais conectam-se a um duplo quadro de vulnerabilidades. O primeiro, físico, decorre de fenômenos climáticos; o segundo, de ordem social, da falência de políticas públicas1. Resta evidente que as vulnerabilidades físicas são potencializadas pelas vulnerabilidades sociais. Uma retroalimenta a outra. Quanto mais intensa for a desigualdade social, maior será a tendência a ocupações irregulares e à urbanização desordenada, que geram um processo crescente - por vezes irreversível - de degradação ambiental, catalisador de desastres naturais de diferentes proporções. Aqui se insere a chamada era do "direito dos desastres".2 Uma disciplina que busca verificar em que medida o sistema jurídico possui mecanismos para lidar com os desafios e consequências geradas pelos desastres ambientais gerados pela ação e omissão humanas. Atribui-se ao direito a função de fornecer um hígido ambiente regulatório de natureza preventiva e repressiva. Uma perspectiva de aproximação do aspecto jurídico com a dinâmica da política, a partir da formulação de standards mínimos de regulação. As decisões que se baseiam em medidas preventivas acabam por se revestir de inegável natureza política, considerando realidades orçamentárias e de percepção de prioridades locais e regionais distintas, dentro da ótica transfederativa. Focado no princípio da subsidiariedade, núcleo da federação, a solução dos problemas começa pelas ações locais. As catástrofes naturais que decorrem da falta de cuidado com o meio ambiente proporcionam a violação de direitos fundamentais básicos de um elevado grupo de pessoas. Decorrem da omissão prolongada das autoridades, da falência e da inadequação das políticas públicas vigentes. Não é exagerado falar que vivemos em uma espécie de estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental. Maurice Blanchot, quando escreveu a obra "A escrita do desastre" (The Writing of the Disaster), no ano de 1986, já profetizava que pensar nos desastres ambientais, com a dúvida se irão ou não ocorrer, equivaleria a não ter mais nenhum futuro para se pensar nisto.3 Há que ser dar um basta nas omissões, sobretudo em face da atuação preventiva e repressiva por parte dos poderes públicos. A realidade de grande parte dos municípios brasileiros aponta para um conjunto capilarizado de más decisões sobre a ocupação do solo. Regulações ineficazes. Políticos desconectados do interesse público. A isto se soma a inaceitável omissão das autoridades judiciais para combater a elaboração de planos diretores absolutamente desconectados de questões urbanísticas e ambientais elementares. Um cenário favorável às vulnerabilidades que culminam em desastres ambientais. Os esforços fiscalizatórios são inegáveis instrumentos preventivos, pois agem em momento anterior à ocorrência de catástrofes. Infelizmente, uma realidade distante da maioria dos municípios brasileiros. Lamentável é a constatação de que este déficit não decorre apenas de carências estruturais. A fiscalização e o planejamento adequados também costumam esbarrar no poder econômico, que influenciando os núcleos de poder, blinda construções irregulares ou faz adaptar as normas às demandas corporativas. Basta observar o modo como tem ocorrido o parcelamento do solo nas cidades litorâneas brasileiras, um dos tantos exemplos de má gestão. Fica cada vez mais evidente, dentro da lógica exposta por Rousseau na célebre carta a Voltaire, em 1756, ocasião em que debatiam as causas do terremoto e da enchente que destruíram Lisboa, em 1755, que as catástrofes não decorrem exclusivamente das forças da natureza, mas sim da própria sociedade. A lógica de Rousseau se aplica como uma luva aos dias atuais: não se deve tornar a natureza ou Deus responsáveis pelos males sofridos pelos homens. Eles os infligem a si próprios.4 Tudo na lógica da privatização dos lucros e da socialização dos prejuízos. Vale dizer: em matéria de danos ao meio ambiente os homens criam seus próprios infortúnios e a eles cabe evitá-los. __________ 1 FARBER, Daniel A.; CARVALHO, Délton Winter de. (Orgs.) Estudos aprofundados em direito dos desastres: interfaces comparadas. 2 ed. Curitiba: Appris, 2018, p. 73. 2 CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 3 BLANCHOT, Maurice. The Writing of the Disaster. Lincoln: University of Nebraska: Press, 1986, p. 2. 4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Lettre à M. de Voltaire. 
Retomo o tema da democracia defensiva, a partir da palestra ministrada no TSE, no dia 16/08/2023, pelo juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), Dr. Josef Christ.1 Conforme analisado na coluna anterior,2 as democracias enfrentam o dilema em torno da questão: o Estado deve garantir liberdade aos próprios inimigos da liberdade? À Constituição cabe a tarefa de configurar instituições e instrumentos destinados a evitar que a liberdade constitucionalmente garantida seja deturpada pelos seus inimigos, voltados a instituir um sistema ditatorial. Esta seria a gênese da democracia defensiva, um regime capaz de se defender dos inimigos que, abusando das liberdades, conspiram para eliminá-las. Embora seja um tema atual, não é novo. A doutrina há muito alerta que o recurso aos fins supremos do ordenamento jurídico - como as liberdades - não pode servir de meio para ludibriar a Constituição.3 Se por um lado o uso abusivo das liberdades tem que ser combatido, por outro, nem sempre fica claro o momento a partir do qual o uso se torna, de fato, abusivo. Em nome da democracia defensiva abusos também podem ser praticados, em particular quando a liberdade de expressão é restringida de forma desproporcional. Christ observa que o risco, que não pode ser desconsiderado, é a exclusão de determinados pontos de vista que são apresentados no marco de possíveis soluções para os problemas institucionais. Advogar por uma democracia defensiva não implica desconsiderar que ela, como qualquer construção jurídica, não está livre de deturpações. No livre mercado de ideias elas ocorrem, por exemplo, quando se recorre aos instrumentos da democracia defensiva para combater adversários políticos ou críticas indesejadas. Toda liberdade, quando restringida de forma excessiva, aponta para a violação de pilares elementares do constitucionalismo, passando a conflitar com a própria evolução civilizatória. Em cada época mudam os desafios em face de novos riscos. Aos operadores jurídicos cabe a complexa tarefa de mensurar as ameaças, na busca de parâmetros equilibrados e seguros, aptos a definir os contornos aceitáveis do exercício das liberdades individuais e coletivas. A defesa da democracia defensiva não pode se tornar cega ao ponto de subverter a sua própria razão de ser. Ela só deve ser empregada para conter aqueles que, de forma clara, agem como inimigos de uma ordem fundamental livre e democrática. São estes que devem ter as suas opiniões excluídas do confronto público. A aplicação demasiada da democracia defensiva tende a gerar os mesmos males que ela própria se volta a combater. Christ aponta alguns parâmetros que contribuem para o controle de excessos. 1. A democracia defensiva só pode ser empregada para proteger princípios básicos centrais indispensáveis ao Estado constitucional liberal. 2. É necessário que exista um limiar mais elevado de risco a partir do qual os instrumentos são aplicados. 3. A maioria dos instrumentos fica sob o manejo exclusivo do Tribunal Constitucional. 4. Os instrumentos da democracia defensiva devem estar claramente definidos no que tange os seus efeitos jurídicos, de modo a combater o arbítrio. A compreensão destes parâmetros é fundamental para que não se caia no que se costuma denominar de declive escorregadio. Boas intenções podem ser perigosas quando manejadas sem cuidados mínimos. Bons remédios, quando ministrados fora da dosagem recomendada, equiparam-se ao veneno que querem neutralizar. Os instrumentos da democracia defensiva voltam-se a combater o uso abusivo das liberdades, visando a resguardar bens caros à ordem constitucional. Uma resposta à noção deturpada de democracia, que de forma manifesta relativiza os valores da Constituição, ao ponto de esvaziar seu conteúdo. As medidas devem estar limitadas à proteção de princípios fundamentais elementares, indispensáveis à manutenção de uma ordem fundamental livre e democrática. Christ lembra que o TCF, desde o início de sua atuação, buscou determinar quais seriam os conteúdos mais sensíveis desta ordem. Destacam-se duas decisões históricas do tribunal, relacionadas ao tema da proibição do funcionamento de partidos políticos, aspecto que é previsto na Lei Fundamental alemã (art. 21, II, 2), mas raramente utilizado. Até hoje, somente dois requerimentos desta natureza na Alemanha obtiveram êxito junto ao TCF, ambos na década de 1950. O primeiro partido que teve o seu funcionamento proibido pelo TCF foi o Partido Socialista do Reich - SRP (Sozialistische Reichspartei), por força de decisão tomada no ano de 1952.4 O segundo foi Partido Comunista da Alemanha - KPD (Kommunistische Partei Deutschlands), no ano de 1956.5 Em ambos os casos, com o contexto histórico então vigente, o TCF visualizou a excepcional possibilidade de proibir a atuação destes partidos a partir da noção de ordem fundamental. A ordem que, excluindo qualquer forma de dominação arbitrária e violenta, representa um Estado de Direito baseado na autodeterminação do povo, conforme a vontade da respectiva maioria, na liberdade e na igualdade. Desde então, ligou-se a noção de ordem fundamental livre e democrática à manutenção da dignidade humana como valor supremo, à qual se somam os direitos fundamentais, principalmente o direito à vida e ao livre desenvolvimento da personalidade. Integram, também, a base da ordem fundamental a soberania popular, a separação dos poderes, a responsabilidade do governo, a legalidade da Administração Pública, a independência dos tribunais, o pluripartidarismo e a igualdade de chances para todos os partidos políticos, com o direito à formação nos moldes constitucionais e ao exercício de uma oposição. Da mesma forma, o princípio democrático é parte integrante da ordem fundamental livre e democrática e, assim, um bem tutelado pela democracia defensiva. É ele que garante ao cidadão o direito de escolher seus representantes, de forma pessoal e objetiva, por meio de eleições livres e igualitárias. Imprescindíveis a um sistema democrático são a participação igualitária de todos os cidadãos no processo de formação da vontade política e a responsabilidade do poder público perante o povo. Por fim, a vinculação dos poderes estatais à lei e ao direito, o controle dessa vinculação por tribunais independentes e o monopólio estatal do poder também integram a ordem fundamental livre e democrática. Todos estes princípios e garantias são bens tutelados pela doutrina da democracia defensiva. A sua incondicional proteção justifica a prática de restrições à liberdade. A ideia se volta ao combate de uma animosidade constitucional organizada (organisierte Verfassungsfeindschaft), servindo de proteção constitucional preventiva.6 Portanto, é a noção de ordem fundamental que parece pautar os limites do emprego da teoria da democracia defensiva, a partir da eleição de um rol de bens constitucionais, dignos de proteção. Até aí, nada está dito quanto à configuração de ações concretas capazes de ameaçar, efetivamente, esta ordem. Vale dizer, qual é o grau de risco concreto que justifica a restrição de liberdades constitucionalmente asseguradas? Não se pode dissociar o emprego dos instrumentos da democracia defensiva à noção de risco efetivo, sob pena de um instrumento idealizado para salvaguardar a liberdade se tornar seu algoz. Estes instrumentos podem se constituir em uma das armas mais afiadas - e de dois gumes - do Estado democrático de direito contra os seus inimigos organizados. Destinam-se a combater os riscos que emanam da existência de grupos com tendências anticonstitucionais e as suas típicas possibilidades de ação associativa.7 Um ponto que leva à reflexão, de que a mera lógica de combater abusos não pode justificar a prática de outros tipos de excessos. Encontrar o ponto de equilíbrio no emprego das liberdades, a partir de diferentes visões de mundo e ideológicas, se constitui um dos temas mais difíceis para a democracia contemporânea. Um dilema que só será resolvido quando as instituições democráticas, cientes de seus deveres republicanos, se pautarem pelos limites conferidos pela própria ordem que devem defender. Do contrário, teremos omissão ou a lógica do arbítrio. __________ 1 Ciclo de palestras organizado pela Embaixada da Alemanha e pelo Fórum Juridico Brasil-Alemanha, coordenado por Karina Nunes Fritz.  2 Disponível aqui. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33. 4 BVerfGE 2, 1 5 BVerfGE 5, 85. 6 Schlaich, Klaus; Korioth, Stefan. Das Bundesverfassungsgericht. Stellung, Verfahren, Entscheidungen. Ein Studienbuch. 8 Auf. München: Beck, 2010, Rdn. 340. 7 BVerfGE 144, 20 (.º1 item da ementa).
No dia 16/8/2023, o juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), Dr. Josef Christ, proferiu uma palestra no TSE sobre o tema da democracia defensiva,1 organizada pelo Fórum Jurídico Brasil-Alemanha.2 O assunto é atual e desperta diferentes perspectivas, em cenários nos quais condutas extremistas de todos os tipos crescem. A pergunta central proferida pelo magistrado alemão na conferência foi: pode o Estado garantir liberdade aos inimigos da liberdade? Ela foi descrita como um verdadeiro dilema que as democracias livres enfrentam ao redor do mundo. Christ iniciou o seu pronunciamento com uma manifestação que para muitos é surpreendente. Segundo a jurisprudência do TCF, a liberdade de expressão também pode ser invocada por aqueles que rejeitam valores fundamentais da Constituição. Uma das linhas construídas pela jurisprudência protege opiniões que visam à extinção da democracia liberal, desde que manifestadas pacificamente. Uma construção que se ampara na crença do livre embate de ideias como a arma mais eficaz contra a disseminação de ideologias totalitárias. Ou seja, desde que afastados meios agressivos combativos, a liberdade de se expressar proporciona uma ampla esfera de proteção. Todavia, Christ pondera que esta visão somente faz sentido quando a Constituição se mostra capaz de desenvolver instrumentos aptos a proteger a liberdade contra os inimigos da liberdade. Uma ideia nitidamente baseada na noção de riscos, pois se por um lado a liberdade pode servir para aniquilar a própria liberdade, por outro a sua contenção demasiada pode chegar ao mesmo resultado. Ciente desta realidade, Christ define a teoria da democracia defensiva a partir das seguintes observações. A ordem estatal prevista na Constituição parte do pressuposto de que a democracia, a liberdade e o estado de direito devem estar permanentemente garantidos e protegidos. Este pressuposto justifica o fato de que a Constituição não pode conceder liberdades para extinguir a ordem constitucional. Destaca-se o argumento de que o exercício da liberdade não pode se tornar um risco para a própria liberdade. A ideia inerente ao conceito de democracia defensiva é que não se pode tolerar condutas que visam a ameaçar, prejudicar, destruir a ordem constitucional ou a existência do próprio Estado. Trata-se da consolidação de um princípio que, segundo o TCF, deriva da expressão da vontade político constitucional consciente de solucionar um problema típico das democracias: como tolerar diferentes concepções políticas e o compromisso com valores fundamentais tidos como invioláveis em um Estado de direito? Nesta perspectiva, a necessidade de proteção deve agir frente aos ataques advindos do próprio Estado, como também por parte da sociedade. Algo semelhante a uma proteção multidirecional, típica das concepções de eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais.3 Foi destacado que a Alemanha, em particular, tem razões histórias claras para o desenvolvimento de uma teoria da democracia defensiva. Assume destaque a dolorosa experiência em torno da violação dos princípios mais elementares da existência humana durante o período de terror imposto pelo regime nacional-socialista. Foi esta terrível experiência que levou à construção de uma institucionalidade voltada à limitação do poder, com parâmetro na garantia de inúmeros direitos fundamentais. Um dos pontos altos da palestra foi a observação de que é difícil entender os limites da democracia defensiva sem que se olhe para o passado. Christ apontou que a República de Weimar serviu de contraste para a promulgação da Lei Fundamental de 1949. Aquele modelo fora construído a partir de uma noção positivista, que se vinculava muito mais ao método jurídico, do que para seus objetivos centrais. E foi exatamente a aplicação deturpada de um método que, ao se impor, levou à quebra dos pilares elementares à civilização. O resultado foi a construção de uma democracia frágil, que relativizada valores. Os intérpretes da Constituição de Weimar partiam do pressuposto de que uma democracia, para permanecer fiel a si mesma, também deveria tolerar movimentos voltados à destruição da própria democracia. "Era preciso permanecer fiel à sua bandeira, ainda que o navio afundasse". Uma estratégia perigosa, que não foi capaz de resistir aos anseios totalitários. Uma concepção de Estado presa a um relativismo axiológico, aliada à ausência de proteção perante maiorias parlamentares antidemocráticas, no bojo de uma Constituição flexível, levou, naquele momento histórico, a uma erosão do tecido constitucional. Na época, vigorava a noção, baseada na doutrina de Gerhard Anschütz, de que a Constituição não estaria acima do Poder Legislativo, mas à sua disposição. Algo que, segundo Christ, estaria sofrendo uma espécie de reedição em vários países, por força de movimentos políticos que visam a afrouxar a densidade do controle exercido pelos tribunais constitucionais no interesse de uma suposta vontade popular. Percebe-se que a partir da história vivida, projeta-se um arcabouço de concepções voltadas ao presente. Um aspecto sensível, quando se leva em conta que, por vezes, os próprios tribunais constitucionais também contribuem para desestabilizar os sistemas democráticos, quando se deixam pautar por condutas ativistas em grau incompatível com a separação dos poderes. Um tema, aliás, muito debatido entre nós. Feita esta observação, retomo o ponto central levantado por Christ: como é possível se proteger contra abusos praticados em nome de uma democracia defensiva? Dependendo da forma como se emprega a noção de democracia defensiva, pode surgir uma restrição desproporcional à liberdade de expressão e a outros relevantes direitos fundamentais ligados à própria noção de liberdade. O risco é a exclusão de determinados pontos de vista que são apresentados no marco de possíveis soluções para os problemas institucionais. Portanto, a própria noção de democracia defensiva não está livre de abusos e deturpações. Eles ocorrem, particularmente, quando a teoria é empregada para combater adversários políticos ou críticas indesejadas. Um fenômeno comum em um universo de narrativas votadas à disseminação de visões parciais de fatos, muitos deles com propósitos tão ou mais obscuros do que aqueles que aparentemente visam a combater. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019.
Oliver Wendell Holmes, um dos juízes mais célebres que passou pela Suprema Corte Norte-americana, afirmou: "quando os ignorantes são ensinados a duvidar, eles não sabem no que podem acreditar com segurança. E me parece que neste momento precisamos mais de educação no claro do que de investigação do obscuro".1 Enquanto a qualificação da representação política não for o foco do sistema eleitoral, não se avança. A democracia é um regime de governo que parece estar sempre posta à prova. A dura tarefa de zelar pela manutenção das instituições democráticas fica dificultada quando as próprias instituições deixam de cumprir satisfatoriamente o seu papel. Na calada da noite do dia 14/06/2023, em votação relâmpago, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 2.720/2023, que criminaliza a recusa, por parte de instituições financeiras, de abertura ou manutenção de contas e concessão de crédito em favor de pessoas politicamente expostas, denominadas de PEPs.2 O PL será remetido ao Senado, para deliberação. Um olhar atento sobre o projeto ajuda a compreender o senso de distanciamento da realidade por parte da classe política. A versão aprovada pela Câmara prevê que detentores de altos cargos nos três poderes, parentes e até mesmo pessoas ligadas a estas autoridades, não podem ser discriminados por instituições financeiras pelo fato de responderem a processos ou investigações diversas. A pena prevista será de reclusão de 2 a 4 anos e multa para quem negar, imotivadamente, a abertura de conta, sua manutenção ou a concessão de crédito. O raio de proteção não poderia ter sido maior. A partir das PEPs são alcançadas as pessoas jurídicas das quais elas participam, os familiares até o segundo grau e os seus estreitos colaboradores. Isto mesmo, colaborar estreitamente com uma pessoa politicamente exposta garante proteção extra contra discriminação. Como a definição de PEPs é muito ampla, já que parte do Chefe de Estado e de Governo, passando por oficiais generais, políticos diversos, membros do Judiciário, Tribunal de Contas e do Ministério Público, diretores de entidades da administração indireta, até chegar nos vereadores, torna-se difícil fazer uma estimativa, mesmo que aproximada, do total de beneficiados. Para a identificação das PEPs deverá ser consultado o Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP), disponível no Portal da Transparência3. Ao ponto. Toda discriminação tem que ser combatida. O fato de ser político ou detentor de alto cargo na República não significa que possa ser discriminado. A questão é a contradição, que vem escancarada na exposição de motivos do PL aprovado pela Câmara. Lá consta que a discriminação se apresenta como uma nefasta realidade que tem permeado as diversas esferas da sociedade, gerando prejuízos e inegáveis violações aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Menciona, ainda, que o preconceito, que se origina de conclusões negativas e intolerâncias injustificáveis quanto a certo conjunto de indivíduos, tem potencial lesivo, pois viola direitos humanos.4 Abstratamente, difícil discordar. A pergunta que fica é: por que a mesma Câmara dos Deputados, ora tão preocupada com o preconceito das PEPs, reluta em defender parcelas muito mais vulneráveis da sociedade? Por que até hoje não tratou de aprovar um PL que criminaliza a homofobia e a homotransfobia? Quantas medidas legislativas poderiam ser tomadas para combater, por exemplo, o racismo estrutural na sociedade, a discriminação contra mulheres, idosos, pessoas com deficiência ou os povos originários? Ou quem sabe, por que não se aprova o fim de inúmeras regalias e supersalários, que por serem custeados pelos cofres públicos em benefício de quem já é mais favorecido, acabam por prejudicar - discriminar - quem é menos? Sem prejuízo de tantos outros exemplos que poderiam ser trazidos, a verdade vem à tona. O PL das PEPs nada mais é do que a expressão da velha tática de autoproteção. Uma blindagem, que escancara a fragilidade da República. Ao se colocar políticos e detentores de altos cargos públicos, juntamente com as pessoas próximas que lhes cercam, em patamar de vulnerabilidade semelhante ao de parcelas sofridas da população, escancara-se não apenas a falta de razoabilidade, como também a de empatia social. Mais um entre tantos privilégios que nos afastam da noção republicana, ofuscando o senso elementar de que o arbítrio desconhece e desafia o direito5. O quadro se agrava quando se leva em conta a prática de reiteradas omissões legislativas de natureza afirmativa em favor de quem, de fato, é vulnerável. Rui Barbosa, na célebre Oração aos Moços, pontuou: "vulgar é o ler, raro o refletir"6. Não se torna, a golpes de legislação, vulnerável quem não é, exceto quando o tema é a autoproteção. Quando se cria uma pseudofragilidade das PEPs abrem-se espaços para se relativizar quaisquer situações. O recurso excessivo para o que venha a ser preconceito encurta o caminho para a banalização e, consequentemente, para um déficit de proteção. Dito de outro modo: ao se focar no que não é, não se enxerga o que é. Enquanto o Brasil não adotar um sistema eleitoral distrital, que aproxime, efetivamente, o eleitor do eleito, com a possibilidade de recall, nas hipóteses de distanciamento de compromissos éticos mínimos, dificilmente nos livraremos destas e de outras tantas blindagens. Até lá, bem que se poderia criar a figura do eleitor politicamente exposto - EPEs. Seria, ao menos, um consolo. __________ 1 HOMES, Oliver Wendell Jr. The Essential Holmes. Selections from the Letters, Speeches, Judicial Opinions, and Other Writings of Oliver Wendell Holmes, Jr. Chicago and London: University of Chicago Press, 1996, p. 146. "When the ignorant are taught to doubt they do not know what they safely may believe. And it seems to me that at this time we need education in the obvious more than investigation of the obscure". 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 CIRNE Lima, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111. 6  Disponível aqui.
sexta-feira, 2 de junho de 2023

Presidencialismo de joelhos

A crise na aprovação da medida provisória (MP 1.154/2023) que definiu a organização dos Ministérios do Governo Lula1 é o retrato da falência do sistema presidencialista de governo. A MP previa 31 ministérios, além de seis órgãos com status de ministério, totalizando 37 ministros. A Câmara dos Deputados introduziu modificações no organograma ministerial definido pelo Poder Executivo, em particular na pasta responsável pelo meio ambiente, que teve suas competências esvaziadas. Parte das competências originalmente previstas pelo governo foram realocadas para outras pastas. O COAF, unidade de inteligência para prevenção e combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, originalmente incorporado ao Ministério da Fazenda, que a partir de agora deverá retornar à alçada do Banco Central. A vigência da MP encerraria no final do dia 01/06/2023. A Câmara dos Deputados aprovou o texto no dia 31/05/2023, obrigando o Senado, horas depois, a converter a MP em lei, de forma relâmpago, no último dia do prazo, sob pena de comprometer a estrutura ministerial. Ao ponto, pois. Como um sistema de governo pode funcionar a contento, quando o Presidente da República eleito não dispõe, sequer, do poder de decidir com quantos ministérios quer governar? Dito de outro modo: o sistema político vigente permite a eleição de um chefe de governo que não tem poder para estabelecer, por conta própria, a estrutura do seu ministério, já que tal decisão toca, em última análise, ao Congresso Nacional. Trata-se de debilidade - ou incoerência - considerando que a Constituição Federal prevê que o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado (art. 76 CF) e que, dentre as tarefas dos Ministros, está a de praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente (art. 87, § único, IV CF). Os ministérios são órgãos de assessoramento direto da Presidência da República. Isso faz com que uma relação de confiança com o chefe do Executivo seja fundamental na boa condução dos trabalhos. A extensão da relação de confiança resta subtraída pelo Congresso Nacional, que pode decidir, soberanamente, o número de pastas e o tipo de atribuições que cada uma deve possuir. Apesar de o Presidente da República ser o chefe da Administração federal, quem determina a sua extensão, e até mesmo pormenores de competências, é o Poder Legislativo. Pode-se até não concordar com decisões do governo do dia, isto faz parte da democracia. Contudo, impedir que um governo democraticamente eleito decida com quantas pastas quer governar, bem como as atribuições de cada uma, parece incompatível, em demasia, com a chefia da Administração. Temos, de verdade, um sistema presidencialista de governo? Ao menos um que funcione? Há muito se percebe que o presidencialismo brasileiro está coberto de disfuncionalidades. A começar pelo fato de que a pessoa que é eleita Presidente da República não conta com maioria política para governar. Elege-se o(a) Presidente da República, cujo partido não possui maioria nas Casas Legislativas para levar à frente o seu programa de governo. Surge um nó muito difícil de desatar. O sistema político ancorado na Constituição não garante ao eleito boas chances de governabilidade dentro de uma conjuntura de estabilidade política. A Constituição atribui ao Presidente da República a Chefia de Governo (juntamente com as Chefias de Estado e da Administração) ao mesmo tempo em que confere ao Congresso Nacional o poder para aprovar, reprovar ou até mesmo bloquear grande parte dos projetos de governo, bem como os assuntos mais relevantes para o país. Na prática, o Poder Legislativo tem enorme primazia de decisão em relação ao Executivo. Os cidadãos são levados a acreditar que o poder de decisão e influência do Presidente da República nas grandes questões nacionais é muito maior do que, de fato, é. O motivo que leva a esta má percepção é que, inegavelmente, por força da configuração político-institucional vigente, cabem aos Deputados e Senadores as decisões sobre a maior parte dos assuntos relevantes para o país. A questão que se coloca é: como se governa sem apoio político majoritário no Congresso Nacional? A resposta, do ponto de vista pragmático, é a seguinte: neste disfuncional sistema, ou se compra apoio político majoritário ou não se governa. O que varia é a moeda de troca. As mais comuns, para ficar dentro do quadro da aparente institucionalidade, são o loteamento dos milhares de cargos na Administração e a irracional concessão de ementas parlamentares em troca de um apoio político volátil e transitório. Não é por menos que os órgãos e imprensa, na questão da crise da referida MP, noticiaram: em apenas um dia, o governo liberou R$ 1,7 bilhão de reais em emendas parlamentares, cujos valores foram empenhados quando havia a expectativa de votar a MP que reorganiza os Ministérios. Detalhe: grande parte dessa verba foi para os partidos do chamado Centrão.2 Daí o título desta coluna: presidencialismo de joelhos. Ou cede, ou não governa. Para alguns, isto faz parte da democracia. Para outros, dentre os quais eu me incluo, representa grande disfunção, já que a governabilidade fica à mercê de práticas contrárias ao interesse público, normalizando a irracionalidade do emprego de verbas escassas e extremamente relevantes para o desenvolvimento nacional. Em um Estado democrático de direito o exercício do poder só se legitima quando dirigido à obtenção dos fins, que justificam as atribuições de competência no marco da Constituição.3 Daí se compreende que um sistema de governo não é um fim em si mesmo, já que a sua manutenção deve estar orientada ao bem comum e à realização dos objetivos constitucionais permanentes. Vale dizer, o arbítrio desconhece e desafia o direito.4 O presidencialismo de coalizão, na clássica expressão cunhada por Sérgio Abranches5, está falido. Grande parte das pessoas que apoia o sistema repousa na figura mística do ser presidencial. A autoridade que veste a faixa, que toma posse em carro aberto, que discursa à nação. A defesa de um sistema, quando fica preponderantemente orientada aos atributos pessoais de quem o exerce, passa a se tornar irracional. Nunca é demais lembrar que uma Constituição não é apenas uma compilação de regras, por meio das quais os órgãos estatais se relacionam. Ela é, em primeiro lugar, o autoentendimento de um povo acerca de sua existência política e a afirmação dos traços essenciais da ordem social.6 Está na hora de compreender que a governabilidade passa, inegavelmente, pelo Legislativo, de modo que as instituições democráticas que levam à construção do Congresso Nacional devem ser objeto de grande esforço de aprimoramento. Várias são as instituições que podem potencializar ou desfigurar os sistemas de governo. Não há como negar que os mecanismos de solução de crises no presidencialismo são muito complexos, já que as crises se retroalimentam pela lógica do próprio sistema. Um quadro de dilemas permanentes, que ameaçam o próprio Estado. Urge a implantação de um novo sistema de governo, apto a funcionar com base na realidade parlamentar brasileira. Voltado à funcionalidade, com características que permitam governar, com mais eficiência, livre do clientelismo político. Neste quadro, blindar a Administração contra o loteamento de cargos públicos é medida irrenunciável, bem como a racionalização do emprego do orçamento público, oposta à sistemática atual de distribuição de emendas parlamentares no varejo. Somente instituições políticas bem configuradas são capazes de sufocar as más práticas, ao passo que o inverso as potencializa. Vamos debater o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, cientes de que o atual modelo não mais se mostra suportável. É isso, ou seguir levando todos os Presidentes a se ajoelharem perante o Congresso, até mesmo para escolher com quantos ministérios querem governar. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 151. 4 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111. 5 ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988, p. 5ss. 6 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 51.
Caio Tácito, em escrito de 1959, advertia: o equilíbrio e a estabilidade socais dependem, cada vez mais, da eficiência e moralidade da administração pública, cujas repercussões atingem, constantemente, os interesses de toda a sociedade1. A frase não merece retoques. A União Europeia deu um importante passo para regulamentar e conter o poder das plataformas digitais. O Regulamento de Serviços Digitais (RSD), publicado no dia 25/04/2023, passa a listar um conjunto de plataformas digitais2 e de serviços de busca na internet3 que passam a se submeter a uma rígida regulamentação. A ideia é reduzir o risco sistêmico de utilização destes serviços, inclusive por meio da moderação de conteúdos. Inicialmente, o alvo da medida são os serviços que contam, anualmente, com mais de 45 milhões de usuários dentro da totalidade dos 27 países que compõem a União Europeia4. A regulamentação está inserida no marco de um amplo pacote legislativo que visa criar um espaço digital seguro, com foco no respeito aos direitos fundamentais dos usuários e na criação de condições de operação equitativas para que as empresas possam promover a inovação, o crescimento e a competitividade, não apenas na Europa, como também em nível mundial5. A matéria é tratada sob a perspectiva de serviços e mercados digitais, em que dois diplomas legais se destacam. O primeiro é o ato legislativo sobre os serviços digitais (DSA)6 e o segundo é ato legislativo para o mercado digital (DMA)7. Na sequência da sua designação, as empresas terão um prazo de quatro meses (portanto, até 25/08/2023) para cumprir, na íntegra, o pacote das novas obrigações definidas pelo RSD. E não são poucas. Ganha destaque uma série de obrigações, como a de expor algoritmos aos órgãos reguladores - a "caixa preta" das empresas de tecnologia -, auditorias anuais e o dever de tomar providências voltadas a incrementar a transparência na política de publicidade dirigida aos usuários. Dentre as medidas, destacam-se8: 1. Maior capacitação dos usuários: Os usuários obterão informações claras sobre as razões subjacentes à recomendação de determinados conteúdos e terão o direito de se autoexcluírem dos sistemas de recomendação, com base na definição de perfis. Os usuários devem poder denunciar facilmente conteúdos ilegais e as plataformas têm que tratar essas denúncias de forma diligente. Os anúncios publicitários exibidos não podem basear-se em dados sensíveis do usuário. Segundo o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) vigente na União Europeia, dados sensíveis abarcam informações pessoais que revelem a origem racial ou étnica, opiniões políticas e convicções religiosas ou filosóficas, filiação sindical; dados genéticos, dados biométricos tratados simplesmente para identificar um ser humano; dados de saúde, de vida sexual ou, ainda, da orientação sexual da pessoa9. Identificar todos os anúncios e informar os usuários sobre quem os promovem. Fornecer um resumo dos seus termos e condições, facilmente compreensíveis e em linguagem simples, nas línguas dos países em que operam. 2. Forte proteção dos menores de idade: As plataformas terão de rever a concepção dos seus sistemas para garantir um nível elevado de privacidade, segurança e proteção dos menores. A publicidade direcionada com base na definição de perfis deixa de ser permitida no caso das crianças. Fornecer às autoridades estimativas de riscos especiais, inclusive no que diz respeito aos efeitos negativos na saúde mental deste grupo de usuários. Rever a concepção dos seus serviços, incluindo em suas interfaces recomendações, termos e condições, a fim de atenuar estes riscos. 3. Moderação de conteúdo mais diligente, com menos desinformação: As plataformas e os motores de pesquisa devem tomar medidas para fazer frente aos riscos associados à transmissão de conteúdos ilegais e aos efeitos negativos na liberdade de expressão e de acesso à informação. Dispor de termos e condições claros e aplicá-los de forma diligente e não arbitrária. Adotar um mecanismo que permita aos usuários sinalizar conteúdos ilegais e, ao receber as notificações, devem agir de forma ágil. Analisar os seus riscos específicos e adotar medidas de atenuação. No combate à desinformação, devem dispor de mecanismos que evitem o emprego inautêntico dos seus serviços, como, por exemplo, por meio de robôs. 4. Maior transparência e responsabilização: As plataformas devem assegurar que suas estimativas de riscos e sua conformidade com todas as obrigações do RSD sejam objeto de auditorias externas e independentes. Facultar aos investigadores acesso aos dados publicamente disponíveis. Publicar repositórios de todos os anúncios exibidos em sua interface. Publicar relatório de transparência sobre as decisões de moderação de conteúdo e de gerenciamento dos riscos. Uma das medidas que gera grande expectativa dos usuários e órgãos reguladores diz respeito ao que se costuma denominar de governança algorítmica. Algoritmos são o "cérebro" das plataformas digitais. São eles que tomam as decisões de qual informação chega até nós, quem se conecta com quem e, dependendo da forma como são programados, podem direcionar conteúdos e gerar informações de forma preconceituosa, apta a violar inúmeros direitos fundamentais. Para fazer cumprir o pacote legislativo, foi criado o Centro Europeu de Transparência Algorítmica (ECAT)10, que será composto por uma equipe interdisciplinar de cientistas de dados, especialistas em inteligência artificial, cientistas sociais e juristas. A função deste centro é fornecer à Comissão Europeia conhecimentos técnicos e científicos para garantir que os sistemas algorítmicos utilizados pelas empresas digitais com grande número de usuários cumpram os requisitos de gestão, mitigação e transparência de riscos previstos na legislação europeia. A sua atuação será decisiva para diminuir a discricionariedade das plataformas digitais, que é considerado o calcanhar de Aquiles da regulação. Dentre as competências, situa-se a realização de análises técnicas dos algoritmos, visando a avaliar o seu funcionamento, de modo a formar conhecimento que embase melhores práticas para mitigar riscos. Fala-se na criação de um ecossistema de aplicação digital, reunindo experiências de vários setores relevantes. É inegável que a Europa avança com velocidade por meio de regulamentos que tocam em pontos sensíveis do modelo de negócios das big techs. É muito cedo para saber se as gigantes do mundo digital irão, de fato, se curvar aos regulamentos, pressionar por suavizações, ou até mesmo abandonar o mercado europeu. É fácil perceber que a União Europeia está muito à frente do Brasil em matéria de regulação e prevenção de riscos no ambiente digital. Muitas das prognoses feitas pelos europeus não são sequer objeto de consideração pelas autoridades brasileiras. Isso não significa que os esforços legislativos europeus conduzirão, necessariamente, a um mercado seguro, isento de preocupações. Contudo, o simples fato de compreender que as plataformas digitais não mais podem atuar em um espaço sem regulamentação e que devem assumir responsabilidades na exata proporção dos riscos que geram, representa um grande avanço. O tempo e a experiência hão de revelar as correções necessárias, sobretudo em face da interpretação de conceitos vagos. Eis o grande desafio: como interpretar expressões como riscos especiais, efeitos negativos, forma diligente e não arbitrária e a própria noção de desinformação? Um dos maiores problemas de se trabalhar com conceitos abstratos, passíveis de preenchimento valorativo, é que eles passam a fomentar o que se costuma denominar de voluntarismo dos órgãos de controle. A tarefa regulatória consiste em promover um ambiente de regulação que não seja um fim em si mesmo, mas sim um instrumento para se transitar com segurança no mundo digital, em que a transparência se afirme como o grande vetor de atuação dos atores envolvidos. Ao Brasil cabe se livrar da imaturidade política e estudar, tecnicamente, a iniciativa europeia. Não para copiá-la cegamente, mas para verificar em que medida pode inspirar o nosso modelo regulatório, na busca de algo que deveria unir a todos os povos: a defesa dos direitos fundamentais das partes envolvidas. __________ 1 TÁCITO, Caio. O abuso de poder administrativo no Brasil. (Conceito e Remédios). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, 1959, p. 11. 2 Alibaba AliExpress, Loja Amazon, AppStore da Apple, Booking.com, Facebook, Google Play, Google Maps, Google Shopping, Instagram, LinkedIn, Pinterest, Snapchat, TikTok, Twitter, Wikipédia, YouTube e Zalando. 3 Bing e Google. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.  9 Disponível aqui.   10 Disponível aqui.  
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, uma série de direitos de grande envergadura, que incluem a proteção da vida e contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A previsão consta, expressamente, no art. 227 da Constituição Federal. Fosse este direito respeitado, seria difícil encontrar outro lugar melhor para viver, considerando a beleza da sua construção. Infelizmente, como costuma ocorrer com outras normas constitucionais relevantes, a proteção das crianças e adolescentes trava na falência de políticas públicas, na eleição de outras prioridades e na omissão reiterada das autoridades. A onda de violência praticada em creches e escolas pelo país deveria servir de alerta para repensarmos muitas coisas. A começar pelo respeito à Constituição. Em nenhuma outra passagem o texto constitucional emprega a expressão "absoluta prioridade". Somente o faz, quando se ocupa da proteção deste grupo vulnerável: crianças, adolescentes e jovens. Isto tem enorme significado para a definição e correção das políticas públicas, bem como para a responsabilização dos que negligenciam tal dever. Ela não pode ser interpretada como mero conselho ou intenção. Trata-se de comando imperativo, apto a gerar consequências. Significa que, ao menos sob o prisma constitucional, o agir dos poderes públicos deve convergir, em primeiro lugar, para a proteção deste grupo. Os crimes que vêm ocorrendo nas escolas brasileiras atestam, infelizmente, que a absoluta prioridade não passa de uma folha de papel, no sentido de uma autêntica concepção sociológica de Constituição, que cede aos fatores reais de poder na sociedade1. Há que se mudar, imediatamente, o quadro. Não há como manter o marco civilizatório às margens da Constituição. Ignorar o pacto constitucional implica se afastar do porto seguro, onde a instituição e o exercício do poder são regulamentados e contidos2. Estamos diante de um, dentre vários exemplos, de negligência de um dever de proteção estatal de máxima hierarquia. Um dos recortes que o tema permite diz respeito à necessidade de regulamentar as redes sociais, de forma a prevenir violência nas escolas. Poucos temas são tão complexos, do ponto de vista dos limites à liberdade de ação geral, como os que dizem respeito à liberdade de expressão e às condições de seu exercício. Não é por menos que situações que envolvem desinformação, controle de redes sociais etc., são objeto de grandes polêmicas, em vários países. A preciosidade dos bens envolvidos - crianças, adolescentes e jovens - obriga a construção de um sério debate acerca dos limites que devem ser impostos aos territórios virtuais. Um debate que não pode ser consumido em si mesmo, que deve resultar em ações concretas, de natureza preventiva e repressiva. Não se ignora que o calor da emoção, após vivenciarmos tragédias como a de Blumenau/SC, costuma ser contraprodutivo na busca de boas soluções. Todavia, ignorar as dificuldades não significa que não existam. O constitucionalismo liberal ensina que a regra é a liberdade, fruto de grandes lutas ao longo da história recente da humanidade. Esta mesma história ensina que o agir livre, desprovido de controle, transforma-se em risco coletivo, apto a ameaçar a própria liberdade. Na prática, quanto maior for a relevância dos bens em jogo, tão mais fortes são os argumentos que justificam restrições pontuais às liberdades constitucionalmente asseguradas, como a de expressão e de acesso à informação. Esta realidade legitima a imposição de uma moderação aos operadores de redes sociais e assemelhados, no sentido de programar seus algoritmos a não transmitirem informações cujo conteúdo possa ser classificado, de forma incontroversa, como criminoso. Ela passa, igualmente, por um modelo que combine a reserva de jurisdição (quando a remoção de conteúdos ilícitos depende de ordem judicial) com a autorregulação regulada (quando a remoção pode ser solicitada pelos usuários ou realizada de ofício pelos provedores de aplicações em rede)3. O dever de proteção das crianças, com absoluta prioridade, justifica a adoção de um modelo regulatório no qual manifestações de incitação à violência nas redes sociais, por seu potencial danoso, devem ser removidas, inclusive de ofício, pelas próprias redes sociais4. A combinação de modelos encontra respaldo no fato de que a proteção das crianças não é apenas um dever do Estado, mas, igualmente, da família e de toda a sociedade. Em abril de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou uma portaria para evitar que crimes como o de Blumenau sejam incentivados por postagens em redes sociais5. Dentre as obrigações está a previsão de instauração de processos administrativos voltados à apuração de responsabilidades por parte dos operadores das redes, no caso de violação do dever de segurança e de cuidado em face de postagens com conteúdos violentos contra comunidades escolares. Há previsão do dever de divulgação de relatórios de avaliação de riscos sistêmicos sobre propagação de conteúdos ilícitos, além da obrigação de compartilhamento, entre as plataformas e as autoridades policiais, de dados que permitam a identificação do usuário e dos terminais de conexão empregados para a disseminação dos conteúdos ilícitos. Imposição às plataformas do dever de impedirem a criação de novos perfis a partir de endereços de IP, em que já foram detectadas atividades ilegais, danosas e perigosas. Instituição de um banco de dados de conteúdos ilegais voltados à prevenção. Previsão de multas às plataformas em caso de descumprimento das obrigações, que além de conterem somas elevadas, podem implicar suspensão administrativa dos serviços das redes sociais no país. Várias dificuldades se avizinham. A primeira, de ordem formal, é em que medida um ato administrativo como uma portaria pode prever uma série de obrigações que representam intervenções duras no campo de atuação das redes sociais? Intervenções significativas na liberdade requerem reservas legais qualificadas. Deste modo, o ideal seria que tais obrigações estivessem previstas na lei, em sentido formal, tema que atrai as dificuldades inerentes à representação política. Outra é o emprego recorrente, no texto da portaria, de expressões de conteúdo vago e abstrato que, na prática, podem provocar inúmeras dúvidas interpretativas no momento de aplicação do ato normativo, como, por exemplo, "riscos sistêmicos", "extremismo", "efeitos negativos", "apologia", "circunstâncias extraordinárias" etc.6 O tema é polêmico e, certamente, não encontra consensos fáceis. Em assuntos complexos a crítica é sempre a saída mais fácil. Entretanto, o simples fato de as autoridades não silenciarem a respeito, ainda que se divirja da forma como a solução foi por ora proposta, constitui aspecto digno de elogio. Pelos riscos que impõem à coletividade, deixar as mídias sociais fora de qualquer regulamentação não mais se mostra como aceitável. Deve-se debater o tipo de regulação, mas a inexistência não é plausível. Estamos diante de uma nova perspectiva de direito administrativo sancionador, apto a enquadrar os operadores de redes que se abstêm de cumprir o dever constitucional. Um autêntico diálogo das fontes7, que deve unir diferentes âmbitos jurídicos na realização dos valores máximos da ordem constitucional. Como envolve crianças, cujo afeto e sentimento de proteção deve guiar toda a sociedade, acima das clivagens que separam, há que se fazer um esforço para superar divergências, na busca do bem maior. Isto é honrar a expressão constitucional de absoluta prioridade. É fazer a diferença. ____________ 1 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17ss. 2 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 49. 3 CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Alternativas para a remoção de fake News das redes sociais. In: ABBOUD, Georges; NERY JR., Nelson; CAMPOS, Ricardo. Fake News e regulação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 169ss. 4 HARFF, Graziela; DUQUE, Marcelo Schenk; Discurso de ódio: perspectivas do direito comparado. Revista de Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 48, nº 2, jul.-dez. 2020, p. 264ss. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.  7 Termo inspirado na doutrina de Erik Jayme e Claudia Lima Marques. Vide, MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 690ss.
sexta-feira, 24 de março de 2023

A Lei das Estatais sob ataque no STF - Parte I

O sistema presidencialista de governo, imerso em um cenário hiperpartidário, é avesso à governabilidade. Não há outra forma de governar o Brasil, sem se obter apoio político junto ao Legislativo. Em um cenário de dezenas de agremiações representadas no Congresso Nacional é impossível que um Presidente eleito possua, junto ao seu partido, uma maioria de parlamentares apta a lhe garantir a aprovação dos projetos de interesse do governo. Um velho e insuperável dilema do presidencialismo de coalizão. Ou se formam coalizões políticas, ou o Presidente não governa. O problema sempre foi o preço destas coalizões políticas. Quem acompanha a política sabe que o apoio ao governo do dia não costuma ser dado por simpatia aos projetos, respeito à figura presidencial, ou até mesmo por apego ao interesse público. O apoio costuma ser dado em troca de benesses que a política proporciona. Dentre as mais comuns, emendas parlamentares e a distribuição de cargos na administração pública, tribunais de contas etc. Trata-se de uma cultura corruptora. Empregam-se órgãos públicos como moeda de troca para a governabilidade, em total desrespeito ao interesse público. Esvai-se, assim, a independência da administração1. A máquina administrativa tende a ser inflada, para acobertar os aliados de plantão. O custo desta prática é elevadíssimo. Gasta-se muito para manter uma estrutura desnecessária, em detrimento de setores carentes de investimentos. Ao mesmo tempo, pela falta de capacidade técnica de muitos indicados, a qualidade dos serviços é atingida em cheio. Muitos se aproveitam da permanência temporária em funções de direção, chefia ou assessoramento, para se locupletarem, favorecendo as práticas de improbidade administrativa. O escancaramento do uso da máquina pública por parte de indicações políticas foi tão intenso nos últimos anos, que o próprio Congresso Nacional foi instado a reagir. No ano de 2016, foi aprovada a lei 13.3032, conhecida como Lei das Estatais, que traz uma importantíssima conquista para a sociedade brasileira: o estabelecimento de critérios mais rígidos para as indicações políticas nas empresas que contam com capital público. A lei visou a quebrar o costume de alocação de pessoas sem os mínimos critérios de competência ou idoneidade para atuarem nas estatais, no curso de cargos comissionados. Quando o endurecimento das regras passou a dificultar a obtenção de apoio político, surgiu um conjunto de iniciativas parlamentares voltadas a retomar o status quo ante. Projetos de lei voltados à flexibilização das novas regras3, passando pela tentativa de declarar a inconstitucionalidade das restrições perante o STF. Um destes movimentos foi o ajuizamento da ADI 7.331, proposta pelo PCdoB. Referida ação visa a impugnar o enrijecimento das indicações de natureza política nas estatais. O relator da ação, Min. Ricardo Lewandowski, por meio de decisão monocrática, deferiu medida cautelar voltada a suspender a parte da norma que impede indicações de conselheiros e diretores que sejam titulares de determinados cargos públicos, ou que tenham atuado, nos três anos anteriores, na estrutura decisória de partido político ou na organização e na realização de campanha eleitoral4. Trata-se de grave equívoco, que desconsidera a realidade da política brasileira. O Jornal Estado de São Paulo, em editorial datado de 18/03/2023, intitulado "O STF precisa respeitar a Lei das Estatais", fez uma análise cirúrgica do fato: "Tem horas que o STF se esforça por ser parte do problema, e não da solução". Não há nada na Lei das Estatais que contrarie a Constituição. Pelo contrário, ela realiza os princípios constitucionais da moralidade e da eficiência, em defesa do interesse público. Nos termos da ordem constitucional vigente, o Congresso tem competência para definir critérios e restrições para os cargos nas estatais. É matéria que cabe ao Legislativo decidir. Na ausência de restrições desproporcionais por parte do Legislativo, a interferência do Poder Judiciário configura ativismo judicial, medida equivocada, apta a perturbar a separação dos poderes. No entendimento do Relator, a Lei das Estatais criou discriminações desproporcionais contra pessoas que atuam na esfera governamental ou partidária, sem levar em conta nenhum parâmetro de natureza técnica ou profissional que garanta a boa gestão. O argumento não resiste à melhor análise constitucional. Os parâmetros levados em conta pelo Poder Legislativo derivam de prognoses de natureza política, que impõem ao Poder Judiciário considerável autocontenção no momento de confrontá-las com a Constituição, cujos princípios que tratam da matéria são marcados por vagueza e abstração5. Princípios constitucionais apontam para fins que devem ser alcançados, ou seja, uma direção, de modo a prover um estado ideal de coisas6. Admitem realização em diferentes graus, o que aponta para uma inegável margem de discricionariedade, vale dizer, um juízo de conveniência e oportunidade por parte da esfera política. Assim, a apreciação constitucional do caminho eleito pelo legislador passa a depender do quão acertadas são tais suposições, no que diz respeito a seu real desenvolvimento futuro, no âmbito da regulamentação normativa.7 Como observado no referido editorial, no caso da lei 13.303/2016, foi a própria política quem definiu os limites para a política. Outro argumento empregado para fulminar a lei foi no sentido de que restrições de direitos dessa ordem somente poderiam ser estabelecidas pela própria Constituição. É justamente a Constituição, quando consagra os princípios que devem reger a administração pública, que legitima a intervenção do legislador para proteger a probidade e a eficiência do agir administrativo. É por esta razão que, além da Lei das Estatais, existem outras previsões no ordenamento jurídico que, visando a proteger o patrimônio público, a eficiência e a moralidade administrativa, justificam a prática de restrições à liberdade de profissão. Cite-se, por exemplo, a lei 9.986/2000, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras, que também impõe critérios temporais rígidos, de modo a impedir o aparelhamento político nas respectivas autarquias8. O próprio direito fundamental de liberdade de profissão (art. 5.º XIII CF) é uma típica norma de eficácia contida, no dizer de José Afonso da Silva9, já que condiciona o exercício das profissões às qualificações que a lei estabelecer. Um típico caso de reserva legal qualificada, que autoriza o legislador a impor restrições ao exercício das profissões, sempre que presente risco social. Não há risco social mais evidente, que o nefasto aparelhamento político das estatais, em detrimento do interesse público. Longe de ser uma prognose falsa por parte do legislador, deriva da comprovada experiência dos riscos que as indicações políticas têm causado à máquina administrativa. Voltaremos a este assunto na próxima dinâmica constitucional. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.   3 Disponível aqui.   4 Disponível aqui. 5 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019, p. 238ss. 6 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 78. 7 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 207. 8 Lei 9.986/2000, art. 8-A: Art. 8º-A. É vedada a indicação para o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada: I - de Ministro de Estado, Secretário de Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados dos cargos; (Incluído pela lei 13.848, de 2019). II - de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral; (Incluído pela lei 13.848, de 2019). 9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, p. 260s.
sexta-feira, 10 de março de 2023

Apoio a ditaduras: omitir-se é tomar parte

Em recente reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil se recusou a acompanhar a moção ratificada por mais de 50 nações, em repúdio pela reiterada prática de crimes contra a humanidade, cometidos na Nicarágua pelo regime do ditador Daniel Ortega. Trata-se de grave equívoco cometido pela diplomacia brasileira, certamente orientada, neste sentido, pelo governo. A falta de manifestações contundentes contra o regime nicaraguense por parte do Brasil configura apoio tácito à nefasta ditadura. Ao assim agir, o governo brasileiro silencia frente à prática de crimes humanitários, devidamente relatados e comprovados pela comunidade internacional. É inegável que apoiar ditaturas macula a imagem de qualquer país que pretenda ter protagonismo no cenário externo. Quando um Estado respalda, ainda que de forma velada, regimes ditatoriais, passa a se afastar de um patamar mínimo de civilização, que deve guiar a ação internacional. As feições totalitárias do regime imposto por Daniel Ortega são inquestionáveis e não passam despercebidas pela comunidade internacional, que luta pela preservação dos direitos humanos. A conclusão da ONU é que, para calar opositores, o regime comete crimes contra a humanidade. Vale lembrar que a Nicarágua está nas mãos de um ditador que governa com mão de ferro há pelo menos 16 anos. O quadro é de grave crise institucional e humanitária. É notória a prática de gravíssimas perseguições contra aqueles que discordam do regime. Execuções, prisões arbitrárias, torturas, estupros e até mesmo retirada compulsória de nacionalidade fazem parte do cardápio de graves violações contra os direitos humanos. O mundo assiste a um conjunto de medidas de viés totalitário, patrocinadas pelo Estado, voltadas à perpetuação no poder de um determinado grupo político. Para agravar a situação, o governo Ortega se vale de grupos milicianos armados, de caráter paramilitar, que atuam violentamente contra toda a sorte de opositores. Líderes religiosos, organizações de direitos humanos, observadores internacionais e jornalistas independentes vêm sendo expulsos do país, como forma de calar as suas vozes. Há relatos, inclusive, de confisco de bens de organizações internacionais e de órgãos de imprensa por parte do Estado. Em um país majoritariamente católico, nem mesmo líderes religiosos foram poupados. Vista como inimiga do regime, pelo fato de ter se disposto a mediar o conflito e assumir o papel de proteger as vítimas, a Igreja passou a sofrer forte repressão. Religiosos foram presos e expulsos do país. A celebração de cultos por parte de críticos do regime foi proibida e até mesmo universidades ligadas à Igreja foram fechadas. O poder executivo passou a controlar todos os poderes de Estado. Não mais se cogita de um Judiciário independente. Fica claro que o pequeno país da América Central é vítima de terrorismo de Estado, com a finalidade de minar qualquer oposição política. Suprimir qualquer voz dissidente é a estratégia do regime. A gravidade das ações do governo de Daniel Ortega contra os seus opositores exige uma forte reação por parte de todos aqueles que se dizem protetores dos direitos humanos. Não há espaço para contemporizar, já que não se pode ser flexível ou transigente com tamanhas atrocidades. Infelizmente, muitos daqueles que se dizem defensores dos direitos humanos calam-se em oportunidades cruciais, sobretudo quando determinados ditadores têm laços históricos com ideologias ou líderes que admiram. Uma atitude seletiva, que em nada contribui para a meta de proteção integral da dignidade humana. Falta, aos defensores seletivos dos direitos humanos, a noção elementar de que a única ideologia que move a causa deveria ser aquela que coloca o ser humano no centro das considerações de qualquer pensamento ou ação política. Preferências ou inclinações partidárias devem ser protegidas em qualquer estado de direito, mas não ao ponto de chancelar violações ao bem mais caro à civilização: a dignidade humana. As ideologias políticas de direita e de esquerda podem - e devem - ser compatíveis com o dever de proteção dos direitos humanos. Quando um expoente dessas ideologias se afasta da razoabilidade, deve ser plenamente rechaçado pela comunidade internacional. O fato de Ortega ter uma ligação com líderes mundiais de esquerda não pode servir de justificativa para lhe passar panos quentes. Não é por menos que governos esquerdistas, como os da Colômbia e do Chile, firmaram, ao contrário do Brasil, o documento crítico ao regime. Eis a seletividade que envergonha. Muitos que - com razão - teciam fortes críticas ao governo Bolsonaro, nada falam da omissão do atual governo em relação à tragédia que o povo nicaraguense sofre. Estaríamos diante de categorização seletiva da prática de genocídio, uma nova categoria do direito internacional? Não é possível apenas criticar o totalitarismo praticado por determinado campo e ignorar práticas igualmente nefastas provenientes de outro espectro ideológico. Incoerência, neste caso, é eufemismo. Um agir com servilismo político, no lugar de postura crítica e reflexiva, voltada à perpetuação da cultura humanista e democrática. A omissão de governos em combater ditaduras de estimação costuma ser justificada por meio de argumentos de baixa envergadura técnica. Um deles é o recurso à soberania da nação estrangeira, que atrairia o princípio da não-intervenção. Um Estado não pode invocar soberania para violar direitos humanos. Entendimento contrário coloca qualquer país fora de consensos mínimos que devem guiar o bloco internacional de constitucionalidade. Outro seria a necessidade de se preservar a autodeterminação dos povos. Mais uma vez, um argumento fácil de ser afastado. Quando uma população se vê subjugada pelo poder, torna-se incapaz de resistir à força e à opressão. O corpo social perde as condições mínimas para determinar o seu próprio destino. A proteção da dignidade humana traduz um fim supremo de todo o direito,1 de modo que a sua afirmação como fundamento do Estado2 lhe conduz ao cume do ordenamento jurídico, como conceito-chave na relação entre a pessoa e o Estado.3 É por esta razão que a defesa dos direitos humanos perpassa a delimitação das fronteiras nacionais, traduzindo-se em verdadeiro imperativo para a comunidade internacional. Do ponto de vista das relações internacionais exsurge a figura de um dever de proteção fundamental, que obrigue os Estados que fazem parte de tratados internacionais a não compactuarem com as violações sistemáticas aos direitos humanos. A ordem internacional de inviolabilidade da dignidade humana tem a importante função de rechaçar todo e qualquer comportamento estatal que expresse uma falsa valoração do ser humano, por meio de ações que imponham fins aparentemente mais elevados à custa da própria pessoa.4 A proteção da dignidade humana é o valor jurídico mais elevado da comunidade internacional. Com base neste fundamento, há que se aplicar o conceito de jurisdição universal, que legitima um Estado a investigar e julgar crimes cometidos fora de seu território, ainda que por meio da ação de estrangeiros. A ideia é potencializar as chances de responsabilizar individualmente as autoridades que insistem em violar direitos humanos, ao agir escudadas por instituições corrompidas e dominadas pelo regime. Não é demais lembrar que pelo menos uma das vítimas do regime era brasileira. Trata-se de perspectiva adicional dos deveres de proteção internacionais dos direitos humanos, que obrigam os Estados a garantir justiça para as vítimas. Na prática, a postura de abstenção do governo brasileiro na ONU vai em direção contrária. Falta, à chefia de Estado, clareza no sentido de que contemporizar com ditaturas, ainda que sob o argumento de manter canais abertos de diálogo, implica grave insulto às vítimas de tão cruel regime. Não há como deixar de tecer críticas à postura do Brasil neste caso. Não se pode nem dizer que a prudência - sempre recomendável nas relações internacionais sensíveis - justificaria a omissão do Estado brasileiro. Afinal, não há nada que poderia prejudicar os interesses internacionais do Brasil, pelo fato de se posicionar, veementemente, ao lado de dezenas de nações amigas, contrárias à tirania. Por fim, não basta o Brasil expressar preocupação com os relatos de graves violações de direitos humanos na Nicarágua e se oferecer para receber os cidadãos degredados, ao mesmo tempo que se omite de chancelar documentos internacionais voltados à condenar a ditadura. É necessário que o Brasil se junte, sem rodeios, ao conjunto das ações que são tomadas pelos órgãos internacionais competentes. A omissão, neste caso, configura nítida forma de conivência, deplorável em todos os sentidos. __________ 1 BENDA, Ernst. Menschenwürde und Persönlichkeitsrecht. In: Benda, Ernst; Maihofer, Werner; Vogel, Hans-Jochen. et al. (Hrsg.). HVerfR. 2., neub. und erw. Aufl. Berlin, New York: Gruyter, 1994, Rdn. 4. 2 SILVA, José Afonso da. A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n. 212, abr.-jun. 1998, p. 92. 3 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland: Allgemeine Lehren der Grundrechte. München: Beck, 1988, B. III/1, p. 15. 4 STEIN, Ekkehart; FRANK, Götz. Staatsrecht. 20., neu. Auf. Tübingen: Mohr, 2007, § 29, p. 235s.
A invasão e destruição dos prédios que abrigam os Poderes públicos, no dia 8 de janeiro de 2023, na capital federal, merecem total repúdio. Barbárie, depredação e vandalismo não permitem relativização. Pouco importa se não se concorda com o governo eleito. Vandalismo, depredação e selvageria nunca são soluções. Aqueles que se julgam no "direito" de vandalizar instalações públicas consideram-se, na prática, mais brasileiros do que outros. Ou quem sabe, mais patriotas... O patrimônio destruído não é do Presidente da República, dos políticos ou dos ministros do Supremo Tribunal Federal. É do Estado brasileiro. Falta àqueles que depredaram o patrimônio público a noção elementar de estado de direito e, sobretudo, da distinção entre oposição e subversão. Faz parte do direito de oposição democrática ir contra o governo do dia, por meio de protestos pacíficos, sem armas, em locais abertos ao público, mediante prévio aviso às autoridades competentes, para que possam organizar a segurança de todos. Da mesma forma, integra o núcleo da democracia a possibilidade de livre pronunciamento e votações nos órgãos políticos de deliberação coletiva. Contudo, quando se age contra o Estado, não se trata de oposição, mas sim de subversão! A invasão violenta e a depredação, sem precedentes no Brasil, dos prédios dos poderes públicos representa verdadeiro ato subversivo, que deve atrair dura punição no marco da legislação vigente. Os atos violentos não visam apenas à destruição física das instalações, mas, igualmente, ao enfraquecimento das instituições que representam. Isto é inadmissível em uma democracia. A violência não tem proteção constitucional. Eventuais descontentamentos devem ser manifestados de modo pacífico. Qualquer entendimento contrário representa uma via - de mão única - para o caos. Em uma democracia funcional a alternância de poder tem que ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição. O que se tem visto no Brasil, em particular a partir dos episódios violentos do início do ano de 2023, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas. O momento é complexo, sensível e requer a atuação de lideranças com espírito estadista, no lugar daqueles que só se interessam por dividendos eleitorais ou pela manutenção no poder a qualquer custo. Os acontecimentos foram graves e exigem investigação séria e profissional. As pessoas que danificaram o patrimônio púbico e que atuam para derrubar as instituições democráticas não podem fugir à responsabilidade. Elas estão em dívida com o povo brasileiro. As dificuldades são consideráveis. Certamente, muitas pessoas que se faziam presentes nos protestos não tinham a intenção de agir como bárbaros. Alguns foram arrastados pelo chamado "efeito manada". Entretanto, ao tomarem parte em atos deploráveis de vandalismo, devem ser chamados à justiça, na forma da lei. Aos órgãos competentes cabe a árdua tarefa de averiguar a participação de cada um, para efeitos de responsabilização. Sem embargo, a tarefa principal dos órgãos judiciais é encontrar os financiadores desses atos, bem como as autoridades que, voluntariamente, se omitiram de cumprir seu dever legal. Aqueles que podiam agir para evitar os danos e nada fizeram. Os primeiros são aqueles que agem nas sombras. Provavelmente, assistiram à barbárie no conforto das suas casas. Usam pessoas que são manipuladas para o atingir fins obscuros, que parte dos manifestantes sequer imagina, em nome de uma pretensa causa maior. Os segundos são os que mais preocupam. Quando atos criminosos têm a participação de agentes estatais, na forma de omissão deliberada, fica claro que a criminalidade possui tentáculos no aparelho estatal. Aqui está-se diante do quadro mais grave, que justifica a mais rigorosa punição. Não resta dúvida que a democracia foi atacada e que necessita empregar os meios constitucionalmente assegurados para se defender. O desafio, que se mostra presente, é compreender em que ponto erramos e quais aprimoramentos institucionais se fazem urgentemente necessários. O momento é de serenidade. Há que se construir uma cultura estatal voltada à pacificação social. É importante ter em mente que nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1 No centro do debate está a sobrevivência do sistema democrático. É fundamental que os atores políticos, assim como as autoridades constituídas, compreendam o seu papel no curso da delicada conjuntura que o país enfrenta. A escassez de estadistas cobra seu preço. Deixar a justiça fazer o seu trabalho com eficiência, sem holofotes e discursos virulentos, é o caminho de ouro. Toda narrativa incendiária deve ser evitada. Não se pode esquecer que um país dividido é um país estagnado. Marcada a defesa contundente da democracia e do estado de direito, há que se trabalhar com menos exposição e mais profissionalismo na busca da integridade nacional. Ao Supremo Tribunal Federal, particularmente, coloca-se o desafio de atuar nos estritos limites constitucionais. Uma tarefa árdua, considerando que ao chamar para si o encargo de responsabilizar criminosos, coloca-se, ao mesmo tempo, na condição de vítima e julgador. É necessário perceber que por mais graves que tenham sido os atos criminosos, não se pode dar uma espécie de carta branca para qualquer instituição, em nome da repressão e da justiça, agir fora do devido processo legal. Convém lembrar que quando um órgão estatal se acostuma a abusar do poder, ainda que em nome de uma "causa nobre", abre-se um perigoso precedente, que pode se converter em regra geral de conduta, difícil de ser superada com o passar dos tempos. Lawfare, para usar um termo da moda - manipulação de procedimentos judiciais visando à perseguição de desafetos, mediante violação de direitos - não pode ser tolerado. Não se combate um mal, recorrendo a instrumentos igualmente maléficos. Vale dizer: o recurso aos fins supremos do ordenamento jurídico não pode servir de meio para ludibriar a Constituição, no instante em que a eleição destes fins pode representar interesses, cuja hierarquia é controvertida2. Isso significa que no curso da responsabilização daqueles que atuaram e atuam contra as instituições democráticas, a Constituição não pode ser abandonada por conta da insegurança gerada por uma luta permanente de poderes e de opiniões que, em sua argumentação, não logram êxito em referir-se a uma base comum3. O direito constitucional, mesmo em momentos de crise, não admite aplicação seletiva. As respostas têm que ser buscadas na Constituição, não fora. É ela que possui os remédios adequados para cada tempo, mesmo os mais duros, em tempos difíceis. Não se pode defender uma espécie de direito constitucional do inimigo, que defende garantias para apenas um dos lados. As punições devem incidir sobre os culpados, na medida das suas respectivas responsabilidades, mas sempre no marco do devido processo legal. Se o caminho for outro, estaremos nos afastando da racionalidade e da funcionalidade do ordenamento jurídico. É fato que o Brasil foi colocado em posição de vergonha mundial, pela ação de grupos bem articulados, verdadeiros artífices da desordem, que atuam para acabar com a democracia, em proveito próprio. A democracia defensiva tem que agir para se proteger, sobretudo, daqueles que, em nome da própria democracia, atuam para eliminá-la. Sempre dentro das regras, nunca fora. Os bons exemplos são esperados de cima. Somente assim os espíritos serão apaziguados. A partir daí, todos devemos nos voltar aos aprimoramentos institucionais necessários. Só as boas instituições nos colocam a salvo dos piores males. __________ 1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189. 2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

A proteção das estatais à beira do retrocesso

A Câmara dos Deputados, em votação na calada da noite, às vésperas do início do recesso de 20221, aprovou um projeto de lei que flexibiliza a Lei das Estatais (lei 13.303/2016)2. Se convertido em lei, o PL 2.896/20223 facilitará não apenas o aparelhamento político da administração indireta, como, também, a corrupção, contrariando o interesse público. O estatuto jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista foi uma conquista da sociedade brasileira. Aprovado no governo Temer, representou uma espécie de reação aos desdobramentos dos grandes escândalos de corrupção que envolveram, sobretudo, a Petrobrás. O objetivo da norma foi agregar às estatais regras de governança corporativa, transparência, gestão de riscos e controle interno, visando a proteger o patrimônio público e o dos seus acionistas. Criou-se, dentre outras medidas, um conjunto rígido de regras voltado a impedir interferências políticas na administração desse tipo de empresas, bem como a redução dos gastos com publicidade. Com ampla maioria, a Câmara dos Deputados decidiu facilitar a alocação de políticos nas estatais, bem como ampliar seus gastos com publicidade. Um enorme retrocesso, típico daquilo que a política vem proporcionando aos brasileiros nos últimos tempos. Atualmente, o tema pende de aprovação pelo Senado. A redação original da Lei das Estatais proíbe a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria das empresas, de pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral. A intenção da lei é clara: evitar o aparelhamento político das estatais. A mudança aprovada pela Câmara dos Deputados fixou o prazo mínimo de desligamento para 30 dias. Ou seja, o prazo que separa a atividade política e a investidura em um alto cargo em estatais foi reduzido de três anos para apenas um mês. As regras, caso aprovadas pelo Senado, passarão a ser aplicadas, inclusive, para as agências reguladoras. Na mesma toada, a Câmara dos Deputados aprovou a ampliação dos gastos das estatais com publicidade e a mudança de limites de gastos em ano eleitoral4. Pelas regras atuais, as despesas das estatais com publicidade não podem ultrapassar, em cada exercício, o limite de 0,5% da receita operacional bruta do exercício anterior. Este limite, contudo, pode ser ampliado até 2% da receita bruta, por proposta das respectivas diretorias, quando devidamente justificada com base em parâmetros de mercado, sujeita à aprovação dos conselhos de administração. Com a inovação, o patamar máximo de 2% com despesas com publicidade torna-se padrão, facilitando a sua aprovação. Tomando-se por base o faturamento das estatais no ano de 2021, R$ 998,8 bilhões, os valores relativos à publicidade que ficariam à disposição dos governos tangenciariam a cifra de R$ 20 bilhões. Considerando a experiência negativa que os gastos com publicidade oficial proporcionaram na história recente do país, a medida mostra-se, nitidamente, temerária. Caso a modificação da lei das estatais venha a ser aprovada pelo Senado, estaremos diante de um retrocesso histórico. Um dos aspectos decisivos para a engenharia constitucional de uma nação passa pela construção de um modelo que prime pela autonomia e imparcialidade da administração pública.5 Mecanismos rígidos de controle e de governança corporativa visam a prevenir a ocorrência de corrupção. O projeto da Câmara dos Deputados vai em direção contrária. A corrupção é um problema endêmico no Brasil. A forma como as nossas instituições políticas e de governo estão configuradas, favorece a prática de atos contrários aos princípios constitucionais da administração pública. Falta à classe política nacional, ao menos em sua maioria, a noção de que quanto mais recorrermos a estruturas arcaicas de organização dos poderes públicos, mais nos aproximaremos do colapso. O problema está nitidamente associado ao sistema presidencialista de governo, aliado ao sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados. No Brasil, elege-se um Presidente da República que cumula as funções de chefia de Estado, de governo e da própria administração pública federal. Além da exercer funções que, em seu conjunto, podem se mostrar incompatíveis, o Presidente eleito pelas urnas não possui maioria política no Congresso Nacional, capaz de garantir a governabilidade. Não há outra saída, se não aderir a um amplo espectro de coalizões, muitas delas de natureza espúria, sob pena de inviabilizar o próprio governo. O problema é que o apoio político tem um preço alto, que costuma ser pago, dentre outras moedas - a da moda é o orçamento secreto - pelo loteamento de cargos na administração. É neste ponto que o comando das estatais entra como uma luva na mira dos partidos que pretendem ingressar na base de governo. Como se não bastasse, pela lógica do sistema de eleição proporcional, os deputados federais ficam praticamente desvinculados de um eleitorado que os possa responsabilizar pelas más escolhas. Não possuímos um sistema distrital de votação, com possibilidade de recall. O sistema é corruptor. Uma boa arquitetura institucional livra o país de desmandos. A autonomia e independência das estatais são instrumentos de grande valor para um Estado democrático de direito. São elas que contribuem para a indispensável separação entre Estado, governo e administração, sem a qual uma democracia fica impossibilitada de adquirir funcionalidade. As nocivas interferências da política e das ideologias de plantão, no lugar da boa técnica e da governança, têm minado a administração pública como um todo. Elas vêm emperrando o desenvolvimento racional e sustentável do país, catalisando a corrupção institucional, que há muito nos asfixia. Se por um lado governo e administração são dependentes um do outro no aspecto funcional, por outro, o respeito à Constituição exige que a administração atue com autonomia, independência e responsabilidade própria diante das forças políticas.6 A flexibilização da lei das estatais, mais do que um retrocesso histórico, é a prova da falta de conexão de parte expressiva dos nossos representantes políticos com os interesses nacionais. O caminho é a institucionalidade e não o oportunismo político. É pensar no futuro e não apenas nas conveniências do presente. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 212ss. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 536s.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

República ou regalias

Atualmente, no âmbito da atuação dos poderes públicos fala-se muito em moralidade ou na sua falta. A Constituição Federal, em um dos seus mais importantes títulos, traz a moralidade como princípio vetor de toda atuação administrativa. Portanto, toda e qualquer conduta que destoe da moralidade estará afastada da proteção constitucional. Neste tema as dificuldades são extremas. A começar pela tarefa de definir o que configura uma conduta imoral de um agente público. Emerge, neste ponto, a observação imortalizada por Santo Agostinho, no Livro XI, Capítulo XIV, das Confissões, quando indagado sobre o que significa o tempo.1 "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei". Se apoiando na obra do gigante, faço o mesmo raciocínio: o que é, pois, a moralidade administrativa? Assim como ponderou Santo Agostinho em relação ao tempo, tenho dificuldades para definir o que é. Contudo, em face de situações concretas, que vivenciamos a cada semana no Brasil, é muito mais simples entender o que não é. Quando parlamentares viajam ao Catar para assistir jogos da seleção brasileira na Copa do Mundo do ano de 2022, financiados direta ou indiretamente com recursos públicos, sob a pretensa missão de representar o país, tal conduta pode ser tudo, menos moral. Quando os mais altos níveis remuneratórios do serviço público se autoconcedem regalias, independentemente de autorização legislativa específica, também. Quando a lei privilegia classes de agentes públicos com remunerações totalmente incompatíveis com a realidade das contas públicas, concedendo auxílios financeiros expressivos a quem menos precisa, a título de parcelas indenizatórias, livres de tributação, de forma retroativa, sem prescrição, não apenas a irresponsabilidade no manejo das contas públicas se faz presente, mas, igualmente, a total ausência da noção republicana de igualdade. Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados para descrever este estado de coisas inconstitucional que o Brasil enfrenta, há um bom tempo. Seria o sinal de que o pacto constitucional de 1988, ao menos no que tange aos princípios da administração pública, ruiu? Alguns sinais apontam que sim. O mais evidente deles diz respeito à interpretação que se consolidou no país sobre o que significa direito adquirido. A garantia tem sido empregada, com a máxima energia, por todos aqueles que defendem distorções injustificáveis no serviço público. Uma minoria, mas muito barulhenta. Há muito se confundem direitos com regalias no Brasil. Se poderia, mais uma vez, invocar a lição de Santo Agostinho. Em abstrato é difícil definir o que é uma regalia. Ao se analisar fatos, torna-se fácil perceber. Existe um pequeno grupo de agentes públicos que ganha muito, incluindo benefícios de toda sorte, sem qualquer relação com o resultado da sua atuação. Verifica-se que, em muitos casos, há um acúmulo de servidores no topo salarial da carreira, ainda que se situem em níveis diferentes de progressão. Por outro lado, existe um enorme grupo de servidores com salários muito defasados, que, diga-se de passagem, são os que costumam ter uma atuação mais próxima dos cidadãos. No Brasil, não raro, o teto salarial se torna piso, graças a um conjunto inexplicável de penduricalhos, que transporta, com inegável eficiência, a base salarial para o topo. A busca do melhor interesse público vai em direção contrária à das regalias. Em um país ideal, sem prejuízo do salário ser definido em função das responsabilidades e dos riscos inerentes a cada mister, ciente de que situações especiais justificam diferenciação, o setor público deveria ser submetido às mesmas regras impostas à imensa maioria dos trabalhadores, que com seus tributos sustentam o todo. É, ao menos, o que se deflui de uma das conquistas mais elementares de um Estado de direito republicano: a igualdade. É importante reconhecer que a maioria dos servidores públicos brasileiros é vocacionada para suas tarefas, cumprindo-as com distinção. O problema surge quando determinados grupos não conseguem diferenciar o que significa um direito adquirido de uma regalia. Por certo, é difícil criticar o que outra pessoa recebe por seus méritos individuais. Não se nega que grande parte da elite do serviço público ascendeu à carreira por inegável esforço pessoal, a começar pela aprovação em concursos públicos com altíssimo nível de exigência. Se reconhece a renúncia pessoal em muitos anos de preparação. Todavia, a compensação por este esforço não pode se dar de forma desproporcional, ao ponto de ferir inúmeros pilares do espírito republicano. Um meio termo há de ser encontrado: vencimentos dignos e compatíveis com os cargos, porém sem destoar da razoabilidade. O mais grave é quando algumas regalias adquirem roupagem legal, não por uma correta apreciação da igualdade em sentido material. Nas palavras de Rui Barbosa:2 "Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". Preocupante é quando as regalias se consolidam pela eficiente organização e poder de barganha, típica de corporações muito bem articuladas. Neste caso, costuma-se invocar o direito adquirido que, muitas vezes, está mais para privilégio adquirido. Quando uma lei concede regalias ao ponto de ignorar os princípios republicano, da igualdade, da moralidade, dentre outros, ela não pode se eternizar no tempo. O princípio da segurança jurídica, do qual deflui o da proteção da confiança, não podem implodir os alicerces da ideia republicana. Entendimento contrário faz com que os vivos - que suportam os prejuízos - sejam eternamente governados pelos mortos - que, no passado, por diferentes conjecturas, concederam privilégios a quem quer que seja. Não há dúvida de que a imoralidade administrativa se associa à noção de desvio de poder e dos princípios de justiça e equidade.3 Integra, necessariamente, um juízo voltado à manutenção de condutas eticamente corretas.4 Encontro a sabedoria de Santo Agostinho em todos estes tópicos. "Se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir".5 A razão de existir uma República é a antítese de privilégios e regalias. Contra esta noção, não há direito adquirido que se faça forte. Ruy Cirne Lima6 lembrava que os estudos de direito administrativo não deveriam ficar reservados aos juristas e aos eruditos. Pelo contrário, afirmava o mestre que se deveria, quanto possível, procurar difundir extensamente pela massa dos cidadãos o conhecimento dos pilares do direito administrativo. O mesmo se diga em relação ao direito constitucional, a partir da imortal expressão cunhada por Fritz Werner:7 "O direito administrativo é o direito constitucional concretizado". É fundamental que a população seja ouvida no que diz respeito à concessão de regalias, que nem de perto chegam à massa que toca o país. É, justamente neste ponto, que o sistema representativo tem falhado. Se o pacto constitucional não é capaz de perceber isto, é porque ruiu ou está no caminho de ruir. __________ 1 Disponível aqui, p. 120. 2 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5 ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 26. 3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 112. 4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 22. 5 Disponível aqui, p. 120.  6 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 48. 7 WERNER, Fritz. "Verwaltungsrecht als konkretisiertes Verfassungsrecht". DVBl. Köln: Heymanns, 1959, p. 527ss.
sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Que república queremos?

República não combina com desmandos, regalias, golpes e com a apropriação dos espaços públicos para fins particulares. No mundo em geral o início do século e do milênio revelou um panorama político-constitucional de grandes transformações e instabilidades.1 Essas instabilidades plantam dúvidas até mesmo em relação a sermos, de fato, uma república. O nome apartado da realidade. A república expressa o ser comum (res publica), no qual todo poder público deve ser derivado da comunidade, sendo obrigado a servir ao bem de todos. Exprime uma ideia de conceber o Estado totalmente oposta à noção de despotismo, na qual nada mais existe que o arbítrio dos detentores do poder.2 A história republicana ainda é pouco contada no Brasil. O que mais se sabe é que o dia 15 de novembro é um feriado nacional, alusivo à data da proclamação, no ano de 1889. Contudo, pouco se debate sobre o verdadeiro significado da palavra república. A instabilidade que tem se visto presente nos últimos anos no Brasil, acrescida de uma série de escândalos mal resolvidos de corrupção; da disfuncionalidade institucional - a começar pelo sistema presidencialista de governo; e da perpetuação de regalias injustificadas nos Poderes Públicos, absolutamente incompatíveis com a dura realidade da população, dentre outros problemas, determinam uma reflexão urgente naquilo que realmente pretendemos, como nação e como república. A clássica obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, publicada postumamente no ano de 1532, inicia o primeiro capítulo com a frase: "Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados".3 A frase tinha caráter inovador: além do termo Estado, empregava o conceito de república na acepção de uma forma de governo, em oposição às monarquias. As formas de governo revelam a forma de vida do Estado, a partir do caráter coletivo do seu elemento humano.4 Como tal, a república deve descrever uma espécie de Estado vocacionada para a realização do bem comum, avessa a privilégios e disfuncionalidades. A ideia republicana passa pela expressão democrática de governos, pela limitação do poder e pela atribuição de responsabilidade política, visando a assegurar a liberdade.5 Os clássicos advertiam que o problema fundamental para a investigação política, tanto sob a perspectiva da ciência antiga quanto da nova, em sua essência é o mesmo: buscar as garantias contra o poder absoluto do soberano mediante restrições legais.6 Isso equivale a dizer que a organização das instituições estatais e o modo como se relacionam é o que, na prática, irá caracterizar a forma de governo.7 Como traço geral, a forma de governo designa como se constitui o chefe de Estado em uma nação. As monarquias são formas de governo nas quais o chefe de Estado é hereditário e vitalício, enquanto nas repúblicas é eletivo e temporário.8 A partir daí, surgem inúmeras distinções. Dentre as características mais importantes de uma república está o fato de o Estado não se fundir à figura do Presidente, exatamente pela eletividade e pela periodicidade dos governos, em seu mais alto escalão.9 A essência de uma república reside na negação da condução do Estado por uma pessoa física, no sentido de rechaço à vontade suprema de um ser individualmente considerado.10 Com o objetivo de racionalizar o processo político, a democracia possibilita a produção de continuidade suprapessoal (überpersonaler Kontinuität). Significa que o poder estatal não pode estar vinculado a uma determinada pessoa, da mesma forma que o processo político não pode estar concebido para uma determinada pessoa. A continuidade da ordem política não é uma questão de indivíduos ou de rostos.11 Em outras palavras, em uma república ninguém poderia se perpetuar em qualquer posto de mando. A ideia básica é abominar o abuso de poder de qualquer espécie. Isto gera uma reflexão importante quanto à viabilidade de cargos vitalícios em posições-chave, sobretudo quando nomeados por critérios políticos. Tradicionalmente, o desenvolvimento da ideia republicana se deu por meio das lutas contra a monarquia absolutista e pela afirmação da soberania popular. Foi, basicamente, uma expressão de reivindicações populares, de vários matizes.12 Contudo, definitivamente, não foi o que aconteceu no Brasil. Graves são os problemas que foram se somando, desde a queda do Império, por meio de conspiração arquitetada por militares e republicanos civis. A história brasileira comprova que a proclamação da república se deu na forma de um autêntico golpe de Estado. Não havia, por parte da população, uma vontade clara e manifesta de depor o Imperador. Não há como se negar que Dom Pedro II foi um dos maiores estadistas deste país. Amante das letras, das ciências e de probidade inquestionável, foi um grande Imperador.13 A forma como foi tratado pelos militares e elites econômicas da época cobra até hoje seu preço na história. Uma deportação humilhante, marcada pela vergonha. Na prática, a mudança da forma de governo - de monarquia para república - veio de cima para baixo, como tantas outras coisas no Brasil. Mais do que uma vontade, uma imposição movida por interesses nada republicanos. É a expressão da frase perpetuada por Alceu Amoroso Lima, quando afirmou que o Brasil se formou às avessas, começando pelo fim.14 Tivemos república, antes de consolidar um verdadeiro espírito republicano. O último ministério do Império foi deposto pelas armas dos militares, sob o comando do Marechal Deodoro da Fonseca, sem que a república estivesse, de fato, proclamada, o que criou um vácuo na forma governo. Por alguns momentos, o país não era nem monarquia, nem república. Destituído de qualquer poder, Dom Pedro II não podia exercer as funções de Chefe de Estado, nada podendo fazer sem consultar o Marechal Deodoro, que por força de grave enfermidade, encontrava-se à beira da morte15. Com o Congresso em recesso, formou-se um governo provisório que tomou posse na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Uma cena inusitada, como lembra Laurentino Gomes, pois a instância máxima do Poder Executivo nacional - agora na forma republicana - prestou juramento diante de representantes de um poder municipal. Uma das tantas ironias da história, já que a mesma Câmara Municipal veio a ser dissolvida apenas três semanas mais tarde, por ordem do novo governo republicano, sob alegação de "estado de decadência"16. Mais uma da série, aqui se faz, aqui se paga. Assim se construiu uma república, que no seu berço nascera de um golpe armado, descolada das ruas, sem qualquer participação popular. A república nasceu fragilizada e sem legitimidade, o que ajuda a explicar a sucessão de problemas e golpes que se sucederam, desde então. O grande problema, que reflete o que atualmente somos, é o modo como a nossa história foi forjada. Ela deixa sequelas que por vezes são difíceis de serem removidas, passando a integrar um aspecto importante - e nefasto - da nossa identidade nacional. Os donos do poder, que dificilmente dele se descolam e seguem decidindo o destino do país. Mudam os nomes, os rostos, mas as práticas patrimonialistas se perpetuam. Uma espécie de coronelismo transgeracional, que resiste aos tempos e se adapta com versatilidade às novas realidades. Não se advoga que deveríamos permanecer um império, em pleno século XXI. O que se sustenta é que a monarquia foi abolida de forma prematura, por um golpe militar, quando ainda presente no país um grande estadista, apto a chefiar o Estado, em um momento decisivo da nossa história e da consolidação das instituições liberais. Por certo Dom Pedro II errou por vezes, o que não é extraordinário. Mas foi, como registra a história, diligente no cumprimento do dever e no respeito à lei.17 Isto se alia à tese de que golpes militares no Brasil nunca produziram bons resultados, deles nada podendo se esperar. Sem embargo, a ampla troca de constituições no país atesta a dificuldade que possuímos em promover acertos institucionais duradouros. Mesmo a independência, conquista importantíssima, que no ano de 2022 completou 200 anos, não foi capaz, por si só, de trazer a pujança que se espera de uma nação tão rica e bela, como o Brasil. As repúblicas democráticas dependem da estrutura social do povo que as habitam que, por sua vez, depende da qualidade das instituições públicas. Este, aliás, é um dos grandes motivos pelos quais a educação nunca foi prioridade na república brasileira. Quanto mais carente de informação, cultura e igualdade de oportunidades, menor se torna o empoderamento coletivo. Por seu turno, maior é a possiblidade de manipulação e indiferença, sentimentos sociais que servem de adubo à manutenção de castas no poder. É o caminho perfeito para a manutenção de uma república de papel. Para formar a vontade jurídica suprema, a república necessita de uma organização exterior e de uma divisão das funções estatais, nos termos previstos na Constituição.18 Se a Constituição contempla soluções equivocadas, dificilmente a ideia republicana pode se tornar realidade. Por outro lado, a experiência mostra que as tentativas de transformar em realidade a identidade de governantes com governados, sem mediação institucional, não podem dar certo, pois contêm o perigo de se converterem em domínio total (totale Herrschaft).19 A saída está no aprimoramento das instituições. Aprimorar não significa abolir, mas sim racionalizar. Não devemos ter receito de reformar as instituições, quando fica claro que a configuração vigente não produz bons resultados. Viver sem instituições é algo inviável, da mesma forma que insistir em modelos falidos. Assim como erramos, gravemente, na forma e no momento de proclamar a nossa república, continuamos errando ao manter um sistema político e de repartição de funções que conduz a resultados insatisfatórios, independentemente da ideologia política de plantão. Triste é o país que não possui estadistas, em número suficiente, capazes de fazer a diferença, alertando o povo de que somos reféns de um modelo disfuncional de organização do Estado e dos poderes públicos. Pensar a república conduz, necessariamente, a uma espécie de refundação, mantendo o que é bom e se livrando do que é ruim. Não por golpes autoritários, mas sim por um sentimento de indignação, apto a demonstrar que o que vêm sendo praticado, há muito tempo, não nos levará a lugar algum, para além do fosso em que estamos presos. ________________ 1 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 41. 2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 120. 3 https://docs.google.com/a/fcarp.edu.br/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZmNhcnAuZWR1LmJyfG51cGVkaXxneDoyZWIyZDBjYjVkNjQyMjY2 4 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 231. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 227. 6 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 222. 8 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 240. 9 MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 215. 10 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 711 11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 137s. 12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 226. 13 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 525ss. 14 LIMA, Alceu Amoroso Lima. In: CARDOSO, Vicente Licínio [Org.]. À Margem da História da República. Tomo. 2. Brasília: Editora UNB, 1981, p. 51s. 15 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 279. 16 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 285. 17 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 527. 18 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720. 19 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 131.
Em uma democracia funcional a alternância de poder deve ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição. Nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1 O que se tem visto no Brasil, após a proclamação do resultado das eleições presidenciais de 2022, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas. Pessoas comparecendo à frente de quartéis solicitando intervenção das Forças Armadas, caminhoneiros bloqueando estradas, atos de violência envolvendo manifestantes, discussões sem fim em grupos, são apenas parte dos sintomas de uma sociedade que se deixou contaminar pelo extremismo. Quando estes tempos de incerteza passarem, deveremos reunir nossos esforços para achar uma resposta, minimamente confiável, à pergunta "onde foi que erramos". Penso que erramos quando não fomos capazes de configurar um sistema político institucional que oferecesse maior resistência ao populismo. Erramos, quando as nossas instituições se omitiram no momento em que deveriam ter tomado providências em face de atos deploráveis na história recente da República - cada um poderá eleger os seus - ou quando não souberam manter a necessária autocontenção, desestabilizando o necessário equilíbrio entre os Poderes. Erramos ao não combater narrativas seletivas, que particularizam negacionismos explícitos. Algo do tipo: tudo o que o meu adversário - que, em verdade, é tratado como inimigo - faz, é errado. Já o que os meus aliados fazem, é pura expressão do exercício legítimo de poder, ancorado pela democracia. Seguimos errando quando não fomos capazes de entender que o exercício da liberdade requer responsabilidade, e que direitos não são absolutos, em particular a liberdade de expressão, tão potencializada pela revolução do mundo digital. O modo como as diferentes plataformas e redes de comunicação atuam, em contraposição à responsabilidade jurídica e social que delas se espera, ainda é tema muito incipiente entre nós. Viver em bolhas de pensamento único nunca foi tão perigoso. O bom debate se esvaiu, o ambiente se tornou tóxico. A intimidação digital, na forma de desinformação deliberada e discursos de ódio, remove os perfis moderados do bom debate. É muito fácil ser hostilizado à cada manifestação no fórum público virtual. Os algoritmos empregados pelas plataformas digitais, cujo funcionamento é guardado a sete chaves, tornam o acesso à informação cada vez mais tendencioso e problemático. Atualmente, no mundo digital não mais importa tanto onde buscamos a informação, mas sim quem decide que tipo de informação receberemos. Este estado de coisas contribuiu para que o Brasil mergulhasse em um clima social insalubre, em que amizades e relações familiares se esvaem, numa fração de segundos. Está mais do que na hora de percebermos que grande parte do comportamento irracional deriva de tentativas de manipulação por parte de pessoas que têm como objetivo primordial chegar ou se manter indefinidamente no poder. Mais do que nunca, verdadeiros estadistas se fazem necessários. É o momento em que todos os poderes públicos devem refletir sobre seus erros, deixando vaidades de lado, adotando a humildade como régua, na busca de pacificação. Não há mais espaço para incendiar o debate. A hora é de trabalhar institucionalmente. Isto começa pelo reconhecimento do resultado das eleições e pela noção de que, na ausência de provas minimamente idôneas, inclusive quanto à sua origem e autoria, não há que se falar em fraude. Nunca ficou tão claro que deslegitimar o jogo eleitoral faz parte de uma estratégia para enfraquecer as instituições e o próprio regime democrático. Ao Poder Judiciário não cabe morder a isca, caindo na armadilha de responder desproporcionalmente, ao ponto de dar munição àqueles que usam dos instrumentos da democracia para, no fundo, eliminá-la. Chegou a hora de praticarmos uma democracia defensiva, uma evolução do conceito de democracia militante,2 para protegermos nossas instituições em um ambiente de paz social. Há que se entender que o recurso aos fins supremos do ordenamento, formulados de modo abstrato e, portanto, passíveis das mais variadas interpretações, não pode, em nenhum momento, servir de meio para ludibriar a Constituição.3 Requerer intervenção militar, seja qual nome se dê a tão desvairada hipótese, representa não apenas o desconhecimento mais elementar da ordem constitucional democrática, como também a tentativa de subverter as bases do ordenamento jurídico.4 Toda a correção de rumos, por mais complexa que seja, deve seguir os caminhos regulares, que não passam por qualquer tipo de intervenção armada. Já passou o momento de percebermos que à chefia de Estado cabe a função de preservação da unidade estatal. Atualmente, parece que lutamos contra tudo e contra todos. Dentre toda gama de problemas que isso traz, está o fato de não percebermos que no sistema presidencialista de governo a chefia de Estado é exercida em conjunto com a de governo e da administração, atrelada a partidos e ideologias específicos.5 Quando uma única pessoa, em uma democracia, não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional.6 É aqui que entra a importância de um poder moderador, que no sistema presidencialista de governo não se faz presente. E é aqui, também, que muitas vozes se equivocam ao sustentarem que o art. 142 da Constituição Federal,7 que trata das Forças Armadas, seria a solução para impasses como o que estamos vivendo, por meio de intervenção de natureza militar. Não cabe às Forças Armadas exercerem função moderadora. À uma, porque força armada não modera, impõe. À duas, pelo fato de estarem submetidas à autoridade do Presidente da República, em relação de hierarquia. Passou da hora de os estadistas trabalharem para uma reforma institucional que torne a democracia brasileira mais resistente às tentativas de golpe de toda espécie. Enquanto teorias da conspiração permanecerem no centro do debate, o que interessa, de fato, não é posto em pauta. Este é um dos motivos, diga-se de passagem, para se adubar a todo o tempo estes discursos conspiratórios. Fica a reflexão trazida por Barack Obama, em um dos seus grandes discursos, quando pontuou aspectos importantes para a estabilidade democrática.8 A democracia é dura, duvidosa, barulhenta e, por certo, nem sempre inspiradora. Às vezes se perde um argumento e até mesmo a eleição. Quem perde a eleição deve fazer reflexões e aprender com seus erros e, quem sabe, voltar mais forte nas próximas eleições. O que não se pode é colocar em dúvida o processo eleitoral sem argumentos e provas plausíveis. É por isso que Barack Obama conclui: a presunção de boa-fé do povo, nas suas escolhas, é essencial para uma democracia vibrante e funcional. Amar a democracia é saber a hora de passar o bastão. __________ 1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189. 2 LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights I, The American Political Science Review, v. 23, n. 3, p. 423ss. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 33. 4 Disponível aqui.  5 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 93ss. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535. 7 Art. 142 CF. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. 8 Disponível aqui.
Na coluna anterior, com base nos resultados das eleições de 2022, demonstrei que o sistema eleitoral proporcional para eleição de deputados federais gera resultados de difícil compreensão. Um deles é que dos 513 deputados federais eleitos, somente 25 conseguiram se eleger com votos próprios, sem depender dos votos totais obtidos pelo partido ou federação, o que equivale a apenas 4,87% do total.1 Fica claro que, neste sistema, o eleitor não tem o menor controle de quem será eleito com o seu voto, já que, ao votar em um, pode eleger outro por tabela, que desconhece ou não gosta. Nesta oportunidade, analiso outro aspecto que é muito ruim no sistema de eleição proporcional: o distanciamento entre candidatos e eleitores e, consequentemente, a dificuldade de se conhecer as propostas de cada um. Um bom sistema eleitoral passa pela facilidade de formação de um juízo seguro quanto às escolhas políticas. O modelo de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas dificulta, bastante, as escolhas dos eleitores. Os candidatos disputam votos de todos os eleitores, nos respectivos estados. É como se cada estado fosse uma única e gigantesca circunscrição, na qual cada eleitor vota em um único candidato a deputado federal e estadual. Números ajudam a compreender a dimensão do problema. Recortando a análise na eleição para a Câmara dos Deputados em 2022, a tabela mostra o número de candidatos a deputado federal que disputaram os votos dos eleitores, em cada estado.2   Estado N.º vagas Deputado Federal N.º de Candidatos Deputado Federal Acre 8 140 Alagoas 9 184 Amazonas 8 173 Amapá 8 154 Bahia 39 776 Ceará 22 414 Distrito Federal 8 216 Espírito Santo 10 201 Goiás 17 391 Maranhão 18 367 Minas Gerais 53 1.103 Mato Grosso do Sul 8 161 Mato Grosso 8 163 Pará 17 323 Paraíba 12 251 Pernambuco 25 474 Piauí 10 177 Paraná 30 632 Rio de Janeiro 46 1.083 Rio Grande do Sul 31 546 Rio Grande do Norte 8 187 Rondônia 8 165 Roraima 8 165 Santa Catarina 16 314 Sergipe 8 169 São Paulo 70 1.540 Tocantins 8 161   Tome-se São Paulo como exemplo: 1.540 candidatos a deputado federal solicitaram votos aos eleitores paulistas. A pergunta é: como conhecer as propostas de cada um, para formar um juízo seguro no momento de votar? A resposta é evidente! Não é possível comparar propostas em um sistema de eleição proporcional, em que uma multidão de candidatos apresenta-se como opção. Mesmo em estados com menor número de eleitores, a dificuldade permanece. No Acre, por exemplo, 140 candidatos à Câmara dos Deputados disputaram votos. Conhecer 140 propostas também é inviável. Na prática, o sistema não permite que o voto seja direcionado à pessoa que tem as ideias mais alinhadas à visão dos eleitores sobre os temas de relevância nacional. É impossível conhecer, ainda que minimamente, as propostas de um número expressivo de candidatos. Se buscarmos saber o que os candidatos pensam sobre as reformas política, administrativa, tributária, trabalhista e previdenciária, além de orçamento público, teremos inúmeras dificuldades de colher tais informações. Muita quantidade de opções, muita dispersão e pouca aproximação. Este é um dos motivos pelos quais a eleição aos cargos de deputados costuma ser deixada de lado pelos eleitores. Muitos acabam escolhendo na última hora, recorrendo a dicas de conhecidos - que na maioria das vezes têm as mesmas dificuldades de escolha - ou votando nos rostos de sempre, apenas porque são conhecidos. Isto ajuda a explicar a baixa renovação na política, quando se leva em conta o elevado índice da insatisfação da população com seus representantes. Apesar de descontentamentos generalizados, nas eleições de 2022 o índice de renovação na Câmara dos Deputados foi de 39%, o que significa que apenas 202 dos 513 deputados são considerados novatos. Já o número de deputados reeleitos é de 294 (57%).3 É inegável a importância de se eleger bons parlamentares para a Câmara dos Deputados, onde os temas relevantes são decididos. Não é exagero falar que a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso de um país passa pelos ombros do Poder Legislativo.4 No entanto, praticamos um sistema eleitoral que dificulta, sobremaneira, a escolha de bons representantes. Salta aos olhos que a saída passa por uma reforma política, que introduza no país um sistema eleitoral distrital para a escolha dos deputados, abandonando a opção pelo atual sistema proporcional. Em um sistema distrital, cada estado é repartido em um número de distritos eleitorais equivalente ao número de cadeiras em disputa. Cada partido indica um único candidato a deputado no respectivo distrito. E cada eleitor poderá votar apenas nos candidatos que concorrem no distrito. Simples assim. O modelo proporciona inúmeras vantagens. Elas começam pela real possibilidade de conhecer as propostas de cada candidato. No lugar de centenas, ou milhares, apenas alguns disputarão os votos no distrito. Os partidos terão que se esforçar para colocar bons nomes na eleição por distrito, sob pena de comprometer a sua representação. Neste modelo, a eleição para a Câmara dos Deputados (e Assembleias Legislativas) torna-se majoritária. É possível que dentro de um distrito se organizem debates entre os candidatos a deputado, de modo semelhante ao que costuma ser feito para os cargos de prefeito, governador ou presidente da república. Os debates podem ser feitos em associações, clubes, universidades, órgãos de mídia ou até mesmo em espaços abertos. As opções tornam-se mais conhecidas e a eleição ao legislativo passa a interessar, pois polariza as candidaturas. Ao aproximar os candidatos dos eleitores, o distrito converte-se em uma espécie de júri que passa a responsabilizar, de forma mais efetiva, o representante eleito, que tem a quem prestar contas pelos seus votos, ao invés de se esconder em um estado inteiro. Além disso, reduz-se, drasticamente, o custo das campanhas, já que a eleição passa a ser feita apenas no distrito e não em todo o estado. Diminui-se, ainda, a influência de fatores intermediários na eleição, como exposição na mídia, financiamentos etc., o que contribui para que novos rostos ingressem na política, a partir da sua vocação. Atualmente, o elevado custo das campanhas dificulta a participação igualitária dos iniciantes na política, porque não são conhecidos pelos eleitores e não obtêm as mesmas facilidades de financiamento público, que os atuais candidatos à reeleição possuem. A lógica perversa do modelo proporcional é que quanto mais cara for a manutenção de uma campanha, mais beneficiados serão os candidatos à reeleição ou aqueles que detêm elevada capacidade econômica. Por fim, um sistema distrital contribui para diminuir a eleição de candidatos com perfil radical, em qualquer um dos espectros ideológicos. Normalmente, no distrito eleitoral não residem eleitores, em número suficiente, dispostos a eleger radicais. Nele convivem pessoas dos mais variados perfis, visões de mundo e preferências. No modelo atual, se inúmeros eleitores dispersos no estado direcionam suas escolhas a um candidato com um perfil radical, na pulverização e soma de votos, ele acaba sendo eleito. Esta é a razão pela qual no sistema proporcional os candidatos tendem a se agarrar em determinadas causas ou corporações, nitidamente defendidas, visando a atrair, em todas as regiões do estado, eleitores que com elas simpatizam. O resultado é a facilidade de eleição de candidatos com perfil extremista, subcelebridades, pessoas conhecidas por trabalharem na mídia, astros do esporte, líderes religiosos e, muito comum na atualidade, os chamados influenciadores digitais. Nas eleições proporcionais a lógica do pertencimento ganha evidência. Se somar a um grupo expressivo atrai votos, independentemente de uma análise minimamente aprofundada da causa. Investir em algo que, decididamente, não vem produzindo bons resultados, não parece acertado. O sucesso da democracia passa por uma efetiva reforma política. No centro do radar está a adoção de um sistema eleitoral distrital. Pode-se debater, se no modelo puro ou misto, mas, inevitavelmente, um sistema que supere as deficiências do atual modelo proporcional. ____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/374903/eleicoes-proporcionais-se-eleger-pelos-proprios-votos-e-excecao 2 https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/ 3 https://www.camara.leg.br/noticias/911393-com-mais-deputados-reeleitos-e-menos-novatos-renovacao-da-camara-sera-de-39/ 4 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/374019/o-descaso-dos-eleitores-com-o-legislativo
Concluído o primeiro turno das eleições gerais de 2022 é possível fazer uma análise dos resultados, do ponto de vista da viabilidade do sistema. Na esteira do que escrevi na coluna passada1, sobre a importância da eleição dos membros do Legislativo, centro a análise na composição da Câmara dos Deputados, à luz do sistema de eleição proporcional. Para se analisar os problemas do sistema proporcional é necessário entendê-lo. A sua lógica não é complicada. Complicados são os efeitos que ela gera. Vamos à lógica. O modelo de eleição proporcional centra-se na força de cada partido, dentro da distribuição dos votos válidos, excluindo-se os brancos e nulos. Em um primeiro momento, os votos válidos são computados para cada partido ou federações partidárias, lembrando que as regras vigentes não permitem coligações nas eleições proporcionais. Posteriormente, verifica-se o número de votos que cada candidato recebeu, dentro do partido, no que se costuma denominar de lista aberta. Pelo critério da proporcionalidade os partidos ou federações partidárias que receberam mais votos elegerão mais candidatos e os com pior desempenho, menos. Este é o motivo pelo qual candidatos mais votados por uma agremiação acabam, por vezes, sendo derrotados por outros, que embora com votação nominal inferior, foram eleitos por um partido que, no cômputo total de votos, teve melhor desempenho. Ou seja, no sistema de eleição proporcional é possível que um candidato à deputado menos votado seja eleito, no lugar de outro que teve votação superior. É por isso que no sistema de eleição proporcional o mandato é atribuído ao partido e não ao político. Os resultados são determinados por um conjunto de fórmulas matemáticas, essas sim complexas, a partir do cálculo de dois quocientes. O quociente eleitoral é definido pela divisão dos votos válidos (votos diretos em candidatos + votos apenas na legenda, excluindo brancos e nulos) pelo número de cadeiras em disputa. É ele que determina o número de votos que o partido precisa para eleger um candidato. O quociente partidário é definido pela divisão do número de votos válidos que cada partido ou federação obteve, pelo quociente eleitoral anteriormente calculado. É ele que determina o número total de candidatos eleitos por cada partido ou federação. Portanto, cada eleição possui um quociente eleitoral fixo no respectivo estado, para cada cargo em disputa (deputado federal ou estadual). A partir daí, cada partido na disputa obtém o seu respectivo quociente partidário. O sistema funciona com listas abertas de candidatos, de modo que ao votar em uma pessoa, o voto é atribuído à respectiva legenda pela qual concorre. E assim os partidos vão somando votos. De acordo com as vagas conquistadas pelo quociente partidário, a ordem de eleição é definida pelos candidatos mais votados, dentro do partido. Se o eleitor vota apenas na legenda, está sinalizando que não tem preferência de candidato, mas sim de partido, o que na prática transfere aos demais eleitores a decisão sobre quais candidatos do partido serão, efetivamente, eleitos. Evidentemente que os resultados são números fracionários, que geram sobras de vagas, distribuídas por cálculos complexos, ligados à média de desempenho de cada partido. Os números ajudam a ilustrar a sistemática de uma eleição proporcional. Considerando os resultados divulgados pelo TSE2, tomando-se por base a eleição para a Câmara dos Deputados no ano de 2022, apresentam-se os números aproximados nos seguintes estados. Pelo valor dos respectivos quocientes eleitorais percebe-se o número de votos que o candidato deve somar, para eleger-se pelas próprias forças, sem depender de votos de outros colegas de partido. Por sua vez, o tamanho das bancadas partidárias dependerá do número de votos que o partido ou federação recebeu, o que será determinado pelo quociente partidário, um cálculo a ser feito para cada legenda. A lógica é: quanto mais votos, maior será a bancada de cada partido na Câmara dos Deputados. Eis que vem o dado aterrorizante. Nas eleições de 2022, somente um em cada 20 deputados federais eleitos superou o quociente eleitoral. Significa, na prática, que dos 513 deputados, somente 25 conseguiram se eleger com votos próprios, ou seja, sem depender dos votos totais obtidos pelo partido ou federação que concorreram3. O número equivale a 4,87% do total de deputados federais. À guisa de comparação, nas eleições de 2018, 27 deputados federais (5,26%) foram eleitos com votos próprios, o que revela uma tendência no modelo de eleição proporcional. Qual é a consequência disso? A principal é que o eleitor não tem o menor controle de quem será eleito com o seu voto. Ao votar em um, pode eleger outro por tabela, que desconhece ou até mesmo não gosta. Pelo complexo critério das sobras de votos, pode contribuir para eleger até mesmo um candidato de outro partido. A pergunta que se coloca é: como uma democracia pode funcionar bem, se o sistema não permite ao eleitor controlar quem está elegendo com seu voto? Se poderia argumentar que os partidos existem para apresentar ao eleitor quadros minimamente homogêneos de candidatos, dentro de um espectro ideológico-programático minimamente uniforme, o que relativizaria este inconveniente do modelo proporcional. Entretanto, a realidade da política partidária brasileira aponta para outra direção. Esta é a razão pela qual, em que pese o descontentamento com os representantes políticos ser expressivo, a renovação sempre se mostra abaixo do esperado ou, ao menos, incompatível com a rejeição que os políticos que já cumprem mandatos possuem. Nas eleições de 2022 a renovação da Câmara dos Deputados ficou em apenas 39%4. Mais da metade, portanto, renovou o seu mandato. Comparativamente, nas eleições de 2018 a renovação atingiu um patamar de 47%5. É claro que a renovação, por si só, não significa aumento ou decréscimo de qualidade da representação política, mas é um indício que o sistema não traduz os anseios da população em geral. Voltarei a explorar estes dados nas próximas colunas. Por ora, fica a reflexão: você concorda com um sistema eleitoral em que o eleitor - peça chave - não tem o controle de quem elege com o seu voto? Democracia sem controle é uma democracia disfuncional. Enquanto não entendermos, às claras, os motivos pelos quais o sistema político brasileiro definha, dificilmente compreenderemos as possíveis soluções. As deficiências do sistema eleitoral praticado no Brasil ocupam um lugar de destaque da prateleira dos motivos que levam ao fracasso da política. A adoção de um sistema eleitoral distrital, que não se confunde com o que se costuma chamar de "distritão"6, está na ordem do dia. Ciente de que sem a boa política não avançaremos na solução dos problemas estruturais brasileiros, só nos resta avançar no estudo de aperfeiçoamentos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui. 
sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O descaso dos eleitores com o Legislativo

A democracia é um regime complexo. O que funciona bem em um lugar, pode não ter o mesmo sucesso em outro. O êxito de um regime democrático depende de uma série de fatores. Três se destacam. 1. Instituições eficazes e fortalecidas, com uma configuração apta a lidar com as exigências de cada época. 2. Patamares socioeconômicos e culturais adequados, que permitam à população compreender o seu papel na manutenção da democracia. 3. Valores éticos mínimos, que orientem a escolha de bons representantes e mantenham um controle efetivo. Portanto, a manutenção de uma democracia funcional requer constantes investimentos. Quando um dos pilares é fortalecido, os demais são impulsionados, em benefício do todo. Quando um vai mal, os outros tendem a ruir. Por depender simultaneamente de vários elementos, que não são fáceis de serem obtidos, a manutenção da ordem democrática representa um autêntico desafio. O quadro revela que uma democracia não vive apenas de eleições, ainda que o sufrágio universal, livre e justo seja um dos seus traços mais marcantes. Pesquisas revelam que a maioria da população mundial está convencida das vantagens da democracia, ao mesmo tempo em que muitos, em diversos países, estão decepcionados não apenas com os representantes eleitos, mas também com o funcionamento do próprio sistema. Os motivos são claros: problemas na economia, desemprego, ineficácia dos direitos sociais, insegurança, receio do futuro e, logicamente, má administração e corrupção por parte de governos e partidos1. No Brasil, uma característica que ajuda a desprestigiar a democracia é a atitude, dominante na população, de indiferença frente às escolhas para o Poder Legislativo. Às vésperas das eleições gerais, fica mais fácil perceber. A atenção preponderante do eleitor se dirige, quando muito, à figura dos candidatos à presidência da República. São poucas as pessoas que prestam, igual atenção, aos cargos destinados ao Legislativo. Quando somos questionados em quem votamos nas eleições passadas para os cargos de deputado e senador, tendemos a não recordar. Já quando indagados sobre o voto para presidente, a memória costuma estar mais fresca. O fato de o processo eleitoral direcionar os holofotes para a chefia do Poder Executivo, em particular para figura presidencial, coloca os candidatos ao Congresso Nacional em posição secundária. A imensa maioria do eleitorado não pesquisa as opções que se apresentam ao Legislativo, deixando para decidir em cima da hora, muitas vezes recorrendo a dicas de que tem o mesmo déficit. O assunto preponderante nas eleições diz respeito aos candidatos à presidência. Nós vivemos em uma sociedade que não percebe a importância que os congressistas detêm para o desenvolvimento nacional. Esta indiferença tem cobrado um preço elevado. Falta ao povo a noção de que grande parte das reformas que necessitamos, com urgência, são medidas que dependem da vontade dos deputados e senadores. É o Congresso Nacional que detêm a última palavra em assuntos relevantes para a população, como as reformas política, trabalhista, previdenciária, tributária, administrativa, dentre outras. A palavra final em matéria orçamentária, decisiva para o êxito dos direitos sociais e das políticas públicas, também cabe ao Legislativo. A atualização das leis, o enfrentamento de temas sensíveis à nação e o próprio combate à corrupção, que tantos prejuízos gera ao Brasil, passam, igualmente, pelo Congresso. O próprio sistema de freios e contrapesos, responsável pela atuação segura e equilibrada de todos os poderes públicos, encontra nos representantes eleitos papel primordial. Apesar disto, costumamos tratar a escolha dos deputados federais e senadores com desprezo. Igual atitude se reproduz nas eleições no âmbito dos estados. Este cenário se deve a uma série de fatores. Inicia na escolha por um sistema presidencialista de governo, cuja cultura, difícil de remover, tende a colocar e a centralizar na pessoa do Presidente um poder que, em verdade, não possui. Não é exagerado dizer que os presidentes eleitos representam, no imaginário da população, uma figura paternal ou maternal, com poder quase mágico. Passa pelo modelo de eleição proporcional dos deputados, que dificulta as boas escolhas, gerando inegável e ao mesmo tempo perigoso desinteresse por parte da população, sobretudo pelas questões que seguem: a) Um candidato a deputado pode receber votos de qualquer eleitor do seu estado, afastando-o dos seus eleitores; b) Favorece a eleição de candidatos ligados a corporações, instituições ou de celebridades dos mais variados seguimentos, já que o elevado número de votos que se faz necessário para eleger um deputado beneficia tais perfis, em um ambiente de extrema pulverização de candidaturas; b) Torna a campanha excessivamente cara, beneficiando aqueles que detêm poder econômico e os rostos mais visíveis, candidatos à reeleição, diminuindo, assim, a igualdade de chances; c) Pelo fenômeno dos puxadores de votos, ao se votar em um, se elege outro por "tabela", configurando um modelo em que o eleitor, principal ator do processo, não tem controle de quem está elegendo com seu voto; d) Apresenta ao eleitor centenas de opções para o mesmo cargo, tornando impossível conhecer os perfis e as propostas de cada candidato. Isto faz com que o eleitor se sinta confuso e perdido, no momento de escolher. E culmina no fato de que a capacidade funcional dos governos eleitos depende das possibilidades de aprovarem seus projetos perante o Poder Legislativo - a chamada governabilidade, que é costurada por meio de coalizões e ajustes políticos diversos. Apesar disto, a lógica das eleições não é conduzida pela obtenção da governabilidade, mas por um cenário hiperpartidário, que beira o caos e provoca o desinteresse da população pelos candidatos ao Congresso Nacional. Se poderia ainda acrescentar a incompreensível figura do suplente de Senador, eleita na prática sem votos, já que não se revela de forma transparente nas campanhas e, ao substituir o titular, passa a desempenhar a representação em sua plenitude. O que dizer frente à intolerável duração de oito anos para o mandato dos senadores? Ainda que a população eleja um senador visando a facilitar a governabilidade do presidente eleito, pode ocorrer a troca de governo com a inevitável manutenção de quem foi eleito (ou suplente) no pleito anterior. Apesar de todos estes fatores, o povo, em geral, tende a acreditar que os presidentes são responsáveis por todos os acertos ou erros que o país apresenta. Desconhece-se, assim, que o sistema político brasileiro deposita no Congresso Nacional enorme responsabilidade pelas ações e omissões de natureza política. Isso não significa que a escolha de um bom candidato à Presidência seja algo irrelevante. Pelo contrário. Bons presidentes colaboram, em elevada medida, para a obtenção de bons resultados, assim como os maus atrapalham. O poder de agenda dos governos eleitos influencia a pauta dos debates legislativos, auxiliando na aprovação das medidas necessárias à boa condução do país. Mas, repita-se: quem decide, ao fim e ao cabo, são os membros do Congresso Nacional, aqueles que geralmente desconhecemos, cuja trajetória nos é estranha e a atuação é ignorada. Enquanto insistirmos em tratar a eleição dos membros ao Legislativo como uma obrigação de caráter secundário, meramente formal e desinteressante, dificilmente colheremos bons frutos na democracia. Somente por meio de reformas de natureza institucional e política, o quadro vigente poderá ser modificado. Um sistema eleitoral distrital para a eleição dos deputados federais e estaduais seria um ótimo começo. A redução do mandato dos senadores para quatro anos, também é uma medida necessária. A opção por um sistema de governo parlamentarista, que separe as chefias de Estado, de governo e da administração, com foco na governabilidade e na responsabilidade política do chefe de governo, não pode sair do radar das reformas prioritárias. Enquanto as reformas não vêm, todos nós devemos atuar como agentes de transformação cívica. Esta transformação começa pela formação de um juízo seguro, quanto às nossas escolhas eleitorais, em particular no ângulo que mais descuidamos: o Congresso Nacional. __________ 1 HOFMEISTER, Wilhelm. Os Partidos Políticos e a Democracia. Seu papel, desempenho e organização em uma perspectiva global. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2022, p. 25. Disponível aqui.
As comemorações alusivas aos 200 anos da independência do Brasil servem de reflexão para muitas questões. É inegável que, desde então, o país avançou. Entre avanços e retrocessos, o saldo é positivo. O primeiro fato a ser lembrado é que a independência do Brasil foi marcada por uma questão, no mínimo, surpreendente. Enquanto os outros países sul-americanos foram quebrando os vínculos morais que os ligavam aos colonizadores, entre Brasil e Portugal, ao contrário, a independência apagou ressentimentos que provinham da colonização. Ela trouxe, como consequência, maior aproximação espiritual e entendimento, razão pela qual no terreno cultural e artístico os dois países só se uniram depois da separação. A questão da independência ficou no plano meramente político1. A separação entre Brasil e Portugal veio por uma evolução, sem choques. Nas palavras de João Camillo de Oliveira Torres: "como dois ramos de uma árvore que se separam, conservando o tronco comum"2. Contudo, além dos aspectos positivos, a independência não foi capaz de colocar o Brasil no topo dos países com organização institucional privilegiada. Dela não brotaram soluções longas e duradouras para a manutenção de um Estado próspero e com democracia estável. Prova disso são os sucessivos ciclos constitucionais, golpes e crises que, desde então, se anunciaram. Ainda não fomos capazes de consagrar um sistema de governo minimamente apto a colocar o país nos trilhos da racionalidade. É inconcebível que um país com as riquezas naturais e culturais que possuímos ainda sofra com tantos problemas. É igualmente inconcebível que os objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3.º da Constituição, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos, não se tornem realidade na vida das pessoas. Grande parte desta inaptidão deve-se à escolha de um sistema político inadequado. Saliente-se: o sistema pesa muito mais que as pessoas que, eventual e transitoriamente o tripulam. Este sistema é composto por decisões equivocadas que vêm se repetindo, em maior ou menor grau, desde o advento da República e que nem a Constituição Federal de 1988, exaltada por muitos como a "Constituição cidadã", foi capaz de consertar. Não é possível que sejamos independentes como nação e, ao mesmo tempo, tenhamos que conviver com situações desprovidas de racionalidade, que não se mostram aptas a colaborar para o bem comum. Várias podem ser elencadas. A opção por um sistema presidencialista de governo, no qual uma única autoridade exerce, simultaneamente, as chefias de Estado, de governo e da administração. Tal situação leva à confusão institucional de confundir órgãos de Estado e de governo, fazendo com que as reclamações contra governos - que são normais e necessárias em uma democracia - acabem se misturando com insatisfações contra o próprio Estado. Esta confusão nos priva, igualmente, da existência de um legítimo poder moderador, que em momentos de graves crises poderia agir de forma legítima na busca de consensos mínimos. Da mesma forma, o sistema presidencialista de governo faz com que um político seja eleito presidente da República, sem que tenha maioria para governar junto ao Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que lhe confere a chefia da administração pública federal. A governabilidade do Brasil, quando existe, e de forma precária, se dá às custas do loteamento de cargos na administração, da distribuição de orçamentos secretos, mensalões etc. A busca da governabilidade em um cenário político hostil induz a corrupção. O presidencialismo de coalizão está falido. Ele se transformou em um gerador permanente de crises. Além disto, o orçamento para manutenção dos poderes públicos não condiz com as carências do país e com um estado permanente de pobreza. O orçamento destinado ao funcionamento do Congresso Nacional é elevadíssimo. Mantemos um Senado Federal com três senadores eleitos pelos estados e pelo Distrito Federal, com mandatos de oito anos. Muitos deles são substituídos ao longo desses longos oito anos por suplentes absolutamente desconhecidos da população que, a rigor, se escondem na chapa majoritária. Não há exagero em falar que possuímos senadores sem votos. Mantemos uma Câmara dos Deputados composta por 513 parlamentares, cuja distribuição dos assentos não corresponde, proporcionalmente, à quantidade de eleitores por Estado. O sistema legislativo bicameral se tornou disfuncional no Brasil, seja pela falta de legitimidade democrática dos suplentes de senadores, seja pelo fato de que o igual número de senadores por estado conduz a uma desproporcionalidade na representação política, considerando que ambas as casas detêm o mesmo peso no processo legislativo federal. O sistema eleitoral proporcional, empregado para eleger os deputados federais, faz com que o eleitor não tenha o menor controle de quem elegerá com o seu voto, já que pelas regras dos quocientes eleitoral e partidário pode votar em um e eleger outro por "tabela", que não gosta ou desconhece. Este mesmo sistema faz com que a cada eleição milhares de candidatos se apresentem aos eleitores, sem que seja possível saber quais são as suas propostas, histórico ou outras informações relevantes, aptas a formar um juízo de convencimento mínimo para embasar um bom voto. O custo das campanhas em um sistema proporcional é tremendo, atraindo a necessidade de financiamentos públicos (os famosos "fundões"), que destinam aos partidos políticos verbas significativas, que deveriam ser empregadas em outros setores, de maior interesse para a coletividade, como educação, saúde, segurança etc. A possiblidade de reeleição nos Poderes Executivo e Legislativo traz muito mais desvantagens, do que vantagens. No Executivo, faz com que, desde o primeiro momento, o Presidente eleito assuma o cargo tentado à reeleição, o que favorece comportamentos que se destinam a colocar a máquina pública a serviço de projetos pessoais. No legislativo não é diferente. Além de impedir uma competição justa, pelo fato de que os atuais detentores de mandato eletivo contam com inúmeras vantagens para manter sua exposição pessoal, a possiblidade de reeleição faz com que muitos parlamentares deixem de atuar nas reformas necessárias, temendo as repercussões eleitorais. Além disso, a ausência de rígidos mecanismos de desincompatibilização incentiva que políticos eleitos, tanto para cargos executivos quanto legislativos, não completem os seus respectivos mandatos, para se lançarem em constantes aventuras políticas, o que desqualifica a natureza sagrada do mandato eletivo. Não há como uma democracia funcional sobreviver a tantos obstáculos. Por sua vez, a forma federativa de Estado concentra competências legislativas e orçamentárias de modo desproporcional nas mãos do ente central (União), anulando a essência da federação, que é o princípio da subsidiariedade. Na prática, a federação brasileira descentraliza encargos e centraliza recursos. No tema da racionalização de gastos a arquitetura constitucional vigente consagra a manutenção de inúmeros privilégios e regalias no âmbito dos três poderes, favorecendo o corporativismo que resiste, duramente, às tentativas de racionalização das verbas públicas. No plano judicial a insegurança jurídica reina como marca do sistema, em que a celeridade e a razoável duração dos processos estão longe de ser a regra. No órgão de cúpula do Poder Judiciário o número de decisões monocráticas prepondera sobre as colegiadas, o que afasta a própria natureza de um tribunal, na condição de órgão colegiado. Como se não bastasse, possuímos um modelo híbrido de controle de constitucionalidade das normas, que mistura o tradicional sistema concentrado, por meio do qual a competência para declarar a inconstitucionalidade de uma norma fica restrita a um único tribunal, com o sistema difuso, que permite a qualquer juiz ou tribunal deixar de aplicar uma norma no caso concreto, por considerá-la incompatível com a Constituição. Com isso, cada magistrado no país atua como uma espécie de tribunal constitucional, motivo pelo qual se poderia dizer que não possuímos um sistema de controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, mas sim confuso! Enfim, os pontos sumariamente expostos demonstram que o Brasil, apesar de ter conquistado a sua independência, insiste em manter uma arquitetura institucional de baixa qualidade, em diferentes setores cruciais, cujos efeitos vêm sendo impostos à população ao longo destes 200 anos. A pergunta que fica é: quando seremos capazes de perceber que a falta de reformas institucionais profundas torna o país refém de hábitos e comportamentos incompatíveis com os legítimos objetivos da nação? Ser independente é, acima de tudo, ter consciência do que está errado e de como se pode agir para consertar. Do contrário, o que se tem é dependência. __________ 1 TORRES, João Camillo de Oliveira. A democracia coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 557s. 2 TORRES, João Camillo de Oliveira. A democracia coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 558.
O sucesso de um país pode ser medido pela capacidade de os avanços superarem os retrocessos. Quando se trata de configuração institucional o Brasil, dificilmente, apresenta boas respostas. Não raro, esforços para melhorar as instituições são anulados por medidas desfavoráveis. As regras que regem o processo político e as campanhas eleitorais têm seguido esta lógica. O avanço foi a disponibilização, pelo TSE, de uma ferramenta por meio da qual os eleitores podem visualizar o patrimônio pessoal dos candidatos, denominada DivulgaCandContas1. Ela se insere em uma das medidas que integram o importante regime de transparência nas eleições. Um recurso fundamental para que os eleitores possam visualizar o perfil dos que disputam cargos públicos eletivos. A ideia é permitir a divulgação de informações cruciais sobre as candidaturas, como, por exemplo, declaração e bens dos candidatos, doadores, financiadores etc. O retrocesso é a decisão do TSE que, antes do início das campanhas em 2022, passou a restringir, na referida ferramenta, a divulgação de informações relativas ao patrimônio pessoal dos candidatos. No pleito anterior, em 2020, o site do TSE divulgava três informações sobre o acervo patrimonial dos candidatos: tipo, descrição e valor dos bens declarados. No início da campanha de 2022, por força das resoluções vigentes do Tribunal, a descrição pormenorizada dos bens não estava disponível. O argumento empregado pelo TSE para restringir as informações foi a necessidade de observar as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD2. A Resolução TSE 23.609/20193 estabeleceu, em seu art. 27, I4, que os candidatos podem apresentar suas declarações de bens de forma simplificada, contendo apenas a indicação dos bens e os respectivos valores declarados à Receita Federal, dispensando-se a inclusão de informações pormenorizadas. Esta previsão de declaração de bens de forma simplificada sempre rendeu polêmicas. Nos dias 2 e 3 de junho de 2022, o TSE promoveu audiência pública para debater a aplicação da LGPD nas eleições. Sem surpresa, os partidos, de modo geral, defenderam restringir os dados divulgados pelo Tribunal. Já as associações que militam pela transparência nas eleições se manifestaram pela divulgação efetiva e transparente. Na prática, o TSE acolheu a visão dos partidos políticos, ao não exigir dos candidatos o dever de divulgar uma descrição detalhada dos seus bens. Impede-se, assim, o acesso a informações amplas e transparentes sobre o patrimônio das pessoas, que se apresentam para governar e legislar em um cenário de democracia representativa. De acordo com as referidas resoluções, exige-se dos candidatos apenas o dever de prestar informações genéricas sobre o seu patrimônio, vale dizer, informar que possuem imóveis, veículos ou empresas, sem, contudo, revelar o tipo e local dos imóveis, ano e modelos dos veículos ou o endereço, espécie e ramo de atividade das empresas. Ou seja, por força de um posicionamento do TSE, este controle restou quase esvaziado. O motivo pelo qual a ampla divulgação do patrimônio dos candidatos se mostra como um imperativo dos valores republicanos é evidente. É o único meio que permite aos eleitores acompanhar e, na medida do possível, constatar crescimento patrimonial incompatível com funções previamente exercidas, servindo como efetivo alerta para situações de corrupção ou fraude. É importante perceber que não se trata apenas de um controle sobre incompatibilidade da evolução patrimonial dos candidatos, mas, igualmente, em face de eventuais suspeitas de conflitos de interesse. No instante em que um candidato não precisa detalhar as empresas que possui, como o eleitor poderá aferir se aquele que pede o seu voto poderá legislar em causa própria? Ao omitir informações essenciais, facilita-se o caminho para que um político venha a aprovar leis que beneficiam o setor em que atua, em detrimento de outros. Facilita-se, igualmente, o caminho para políticos priorizarem dotações orçamentárias em áreas onde as suas famílias possuem inúmeros bens, dentre tantas outras possibilidades de caráter não republicano. Não restam dúvidas de que as resoluções do TSE configuram inadmissível retrocesso no dever de transparência das eleições. O quadro se agrava quando se leva em conta o elevado índice de corrupção na política como um todo. A própria defasagem dos valores que costumam ser atribuídos aos bens declarados pelos candidatos, aspecto que na prática não é objeto de fiscalização eficaz, enfraquece, ainda mais, o controle social em face dos que se apresentam a ocupar cargos eletivos. O tema foi objeto de processo administrativo perante o TSE5, que, por maioria, em sessão plenária realizada no dia 18/08/2022, reverteu a decisão em rumo à transparência6, assentando que os dados sobre os candidatos devem ser públicos. Um avanço, em meio a retrocessos. Antes da sessão plenária, o relator do processo, Ministro Edson Fachin, votou pela transparência como regra7. Todavia, propôs a supressão de informações que, na sua ótica, dizem respeito à intimidade e à vida privada dos candidatos, à base de um juízo de ponderação que, inegavelmente, restringe a transparência no processo eleitoral. A ponderação que conduziu ao teor das resoluções do TSE que restringiam o controle dos eleitores partiu de pressuposto questionável. A não divulgação da descrição dos bens dos candidatos fundamenta-se no maior peso que se deve atribuir ao direito fundamental de proteção de dados pessoais, focado na inviolabilidade da privacidade, em relação ao que se atribui ao princípio democrático em sentido amplo. Na prática, pelo entendimento que vigorava no TSE, a proteção da privacidade prevaleceu sobre o direito dos eleitores à formação de um amplo convencimento sobre os candidatos, sobre o controle da legitimidade do pleito e sobre a própria noção de empoderamento pelo controle social. A ponderação de bens constitucionais situa-se no núcleo do processo constitucional. Quando se avaliam princípios colidentes de modo desproporcional, com o resultado de um sufocar outro, o achado jurídico será marcado não apenas por imprecisão, mas, igualmente, pela incapacidade de gerar bons frutos para a coletividade. Como bem observado pelo Ministro Fachin, as diretrizes emanadas da LGPD, que, em verdade, são fruto do próprio reconhecimento da proteção de dados como direito fundamental8, devem ser compreendidas à luz da realidade particularizada da dinâmica eleitoral. É justamente a dinâmica eleitoral brasileira, bem conhecida da população, que recomenda um olhar cauteloso. Isso porque deve levar em elevada consideração os riscos gerados ao processo eleitoral pela falta de uma fiscalização efetiva dos candidatos, que se apresentam à população para conduzir os destinos do país. E esta ponderação, ao concluir pela possibilidade de ocultação de informações essenciais à formação do convencimento do eleitorado e ao controle da lisura das eleições, incorre em equívoco de avaliação dos bens constitucionais em jogo. Ponderações equivocadas trazem consigo amplas consequências para o ordenamento jurídico. Isto ocorre pela ampliação dos espaços de discricionariedade decisória, que derivam do sopesamento de interesses opostos frente a normas de conteúdo vago que, não raro, exprimem interesses conflitantes entre posições jurídicas diversas9. A ponderação de bens de hierarquia constitucional somente será compatível com a segurança jurídica, quando o seu resultado for marcado por uma mínima previsibilidade, ainda que o seu grau seja passível de discussão. No caso em exame, a interpretação do TSE apartou-se desta previsibilidade e da própria segurança jurídica. Em diversas oportunidades, o STF ponderou o direito fundamental à privacidade frente aos princípios constitucionais da Administração pública e ao direito fundamental de acesso à informação. Conhecidos são os casos que envolviam a constitucionalidade da divulgação dos vencimentos de servidores públicos nos chamados portais de transparência10, casos que têm muito em comum com a temática ora analisada. Nestes julgados o STF concluiu que: A remuneração bruta dos servidores públicos enquadra-se no conceito de informação de interesse coletivo ou geral, expondo-se, portanto, à divulgação oficial. A divulgação da remuneração dos servidores públicos não expõe a sua intimidade a um patamar que justificasse as exceções de não divulgação, tais como a segurança do Estado ou do conjunto da sociedade. Não cabe falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação de vencimentos dizem respeito a agentes estatais agindo "nessa qualidade" (art. 37, § 6º CF). Quanto à segurança física dos servidores, seja pessoal, seja familiar, claro que ela resultará um tanto fragilizada com a divulgação nominal dos dados. Contudo, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. A prevalência do princípio da publicidade administrativa é um dos mais altaneiros modos de concretizar a República, enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado.  O "como" se administra deve preponderar sobre "quem" administra a coisa pública. Esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da República. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. Ou seja, quando estava presente a ponderação entre o direito à privacidade e à própria segurança pessoal dos servidores públicos, o STF entendeu, de forma clara e objetiva, que o interesse social deveria prevalecer sobre o privado. Na temática eleitoral o TSE estava atuando em direção contrária. Ao restringir o acesso dos eleitores a informações sobre o patrimônio dos candidatos, as resoluções do Tribunal não lograram êxito em construir uma interpretação da Constituição Federal, tampouco da LGPD, adequada às nuances e dificuldades que o processo eleitoral brasileiro impõe aos eleitores em termos de controle de quem será eleito. A postura do TSE enfraquecia, assim, dois dos mais basilares fundamentos da República: a soberania popular, como fundamento de origem da democracia e a cidadania, como seu fundamento de exercício (art. 1.º, I e II CF). Há que se perceber que a necessidade de controle social sobre as candidaturas deve servir de vetor interpretativo ao alcance das garantias constitucionais e legais relativas à disciplina de proteção de dados pessoais. Com isso, não se advoga que todo e qualquer dado pessoal dos candidatos deva ser revelado, como números de telefone, seus contatos, ou registros médicos, por exemplo, mas que as informações relativas à descrição pormenorizada do seu patrimônio são indispensáveis para um controle social efetivo. Reconhecer ao eleitorado a prerrogativa de conhecer o mais detalhadamente possível o perfil dos que lhe pedem votos, passa pela análise de quais informações possuem significado para esta escolha. Trata-se de informações que podem ter impactos na privacidade destes candidatos, mas que, por seu turno, têm inegável influência na escolha do eleitorado e na transparência do processo eleitoral. Dentre elas, indiscutivelmente, está a relação, mais detalhada possível, do patrimônio pessoal e empresarial de cada um. Como observado pelo STF, é até possível concluir que parte destas informações possa acarretar cuidados adicionais na manutenção da segurança pessoal dos candidatos. Todavia, este é o preço que se paga pela natureza e relevância da função de representação política, que devem motivar a participação na disputa eleitoral. É certo que a honra e responsabilidade de exercer cargos públicos eletivos sempre impõem certos sacrifícios, que devem ser proporcionais. A mera divulgação do acervo patrimonial dos políticos está longe de qualquer desproporcionalidade. Pelo contrário, desproporcional é a sua ocultação. No caso, as resoluções sobre o tema então vigentes no TSE invertiam esta lógica. Ao proporem um modelo que sonegava informações essenciais à formação do convencimento do eleitorado, acabavam por privatizar os benefícios (privacidade) e socializar os prejuízos (déficit fiscalizatório), em detrimento da coletividade. A presente reflexão propõe, assim, um sério e inevitável debate acerca da própria identidade republicana. Essa questão só será vencida, caso se considerar que o poder de um tribunal - e, por assim dizer, o seu próprio prestígio - depende da força de convencimento (Überzeugungskraft) dos argumentos empregados nas suas decisões11. No centro da lógica do discurso jurídico está o argumento que sustenta as escolhas valorativas que se apresentam no caso concreto12. A ponderação é considerada a "escola superior" da jurisprudência, mas somente quando ela é executada de modo materialmente justo e racional. É verdade que a cultura de proteção de dados está em construção no Brasil e que, por certo, ainda estamos atrasados no tema. Também é verdade que não é simples obter respostas prontas e acabadas, para conflitos que envolvem bens constitucionais relevantes, como a inviolabilidade da privacidade e o direito de fiscalização das opções políticas em um processo eleitoral. Entretanto, não há como desconsiderar que a interpretação das garantias constitucionais não pode se dar de forma dissociada do terreno em que são projetadas. As necessidades de depuração, de preservação dos valores republicanos e de construção de instituições minimamente aptas aos desafios presentes e futuros têm que servir de norte nesta difícil equalização. O atual entendimento do TSE, a partir da sessão plenária de 18/08/2022, é um alento na busca da transparência das eleições. O Tribunal deixou claro que a partir da Constituição emerge um dever do Estado de garantir a livre informação da coletividade, imprescindível para o interesse público e em limitação ao particular, que se deixa fundamentar no princípio da transparência. Se poderia argumentar que o TSE poderia ter avançado ainda mais na transparência, pelo fato de que, sob o argumento de garantir a segurança pessoal dos candidatos, manteve o sigilo sobre dados relativos aos endereços completos, telefones e e-mails pessoais. A crítica poderia repousar na manutenção da ausência de obrigação de os candidatos indicarem seus endereços de modo completo. Esta restrição, bem ou mal, dificulta o acesso a informações sobre o patrimônio pessoal dos candidatos. E, de certa forma, ingressa em contradição com observações constantes na tese vencedora, em particular no seguinte sentido: 1. No caso da divulgação de bens dos candidatos, há necessidade da total publicidade. 2. O princípio da transparência afirma-se como um dos vetores imprescindíveis à administração pública, conferindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e garantindo pleno acesso às informações a toda a sociedade. Por outro lado, de forma positiva, o TSE entendeu que não deve existir limite de tempo para que os dados divulgados estejam acessíveis à sociedade. Trata-se de questão fundamental, para evitar que se criem janelas temporais que impeçam a correta apreciação da evolução patrimonial dos postulantes a cargos políticos eletivos. Assim, no cômputo geral, a evolução jurisprudencial é positiva. A partir de agora, impõe-se ao TSE a tomada de imediatas providências de índole técnica e administrativa, para que tais informações, até então sonegadas, sejam imediatamente disponibilizadas ao eleitor na ferramenta de controle. Para efeitos de conclusão, não se deve interpretar o direito fundamental a proteção de dados pessoais como um fim em si mesmo, mas como uma garantia ligada ao livre desenvolvimento da personalidade, que se projeta no contexto de outros direitos e garantias, de mesma hierarquia. É importante que a interpretação deste direito fundamental e da própria LGPD avance para compreender que, em uma República democrática, dados gerais não podem, em todas as situações, ter idêntico tratamento que dados eleitorais. Para tanto, basta perceber que é a qualidade do corpo legislativo, fruto do resultado das eleições, que impacta na própria compreensão e realização dos direitos fundamentais. A LGPD cumpre a nobre finalidade de garantir o direito à autodeterminação informativa, protegendo a liberdade, a privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural na condição de sujeito vulnerável frente ao tratamento de dados pessoais. Esta meta, contudo, não pode ser obtida por meio da manutenção de privilégios, que aumentem a vulnerabilidade da própria sociedade. Recorrer à LGPD para esvaziar as possiblidades de o cidadão formar o seu autêntico convencimento no processo eleitoral, mediante pleno direito ao controle das opções eleitorais asseguradas pelo fundamento republicano da soberania, implica subverter os próprios pilares da legislação de proteção de dados, baseados nas noções de liberdade e vulnerabilidade. Trata-se de medida contraproducente, conflitante com parte significativa dos princípios constitucionais que dizem respeito à manutenção da ordem democrática. Em matéria de eleições a transparência, de forma geral, deve se sobrepor à privacidade. Entendimento contrário revelaria a própria inaptidão para ocupar cargos públicos eletivos, cuja relevância e responsabilidade são indiscutíveis. Trata-se de compreender que a mera pretensão de ingresso na função eletiva e temporária - já antes do seu exercício efetivo - traz consigo a sujeição a um regime jurídico próprio, no qual se insere o encargo de relativizar a proteção de certos dados pessoais, que são considerados relevantes para que o eleitorado possa realizar um juízo minimamente seguro quanto às suas escolhas. Em debates como o ora proposto, argumentos convincentes podem até gerar descontentamento pela parte vencida em uma controvérsia, situação normal e imaginável em um cenário de dúvidas, mas, por regra, não um sentimento de desconfiança no sistema. A forma como os candidatos vêm ocultando informações relativas ao seu acervo patrimonial, pelo contrário, gera um inegável sentimento de desconfiança na lisura do pleito. Urge que o TSE siga avançando em favor da manutenção da soberania e da cidadania, de modo a fortalecer o empoderamento e o controle social dos eleitores. Trata-se de medida voltada a garantir a efetividade e a mudança de um modelo de democracia, em direção republicana e não personalista, dentro da lógica de se afastar da nefasta cultura de apego ao poder e de manutenção de privilégios. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Com redação dada pela Resolução TSE 23.675/2021. Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 A EC 115/2022 acrescentou ao art. 5º da CF o inciso LXXIX, que assegura, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, como um direito fundamental.  9 HEUN, Werner. Funktionell-rechtliche Schranken der Verfassungsgerichtsbarkeit. Reichweite und Grenzen einer dogmatischen Argumentationsfigur. Baden-Baden: Nomos, 1992, p. 10. 10 STF, AR-SS 3.902/SP, Rel. Min. Ayres Britto, DJ 03/10/2011; SL 689/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 14/04/2013; ARE 652.777/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 01/07/2015. 11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 567. 12 ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. 2. Auflage. Frankfurt: Suhrkamp, 1990, p. 147.
O superendividamento é problema complexo, que arruína as finanças de um considerável número de pessoas, que não conseguem se livrar de dívidas relacionadas ao consumo. Ao projetar as dívidas acima da capacidade de pagamento, o superendividamento representa uma efetiva ameaça ao mínimo existencial destes consumidores, que passam a se ver privados do acesso aos itens de primeira necessidade. Um dos traços marcantes do superendividamento é criar um grupo de devedores cativos, que passam a depender de sucessivos empréstimos, dentro da lógica de se prender, indefinidamente, a um grupo de instituições financeiras. Eterniza-se um problema, ao tornar o inadimplemento constante na vida de muitas famílias. Estudos dão conta de que milhões de pessoas no Brasil não conseguem efetivar o pagamento das suas dívidas. Fala-se que sete em cada dez brasileiros têm renda inferior aos gastos mensais, em um cenário em que cerca de 75% da população apresenta algum tipo de dívida1. É fato que as famílias brasileiras permanecem altamente endividadas e o quadro de inadimplência não para de crescer2. É fácil perceber que o superendividamento, além de colocar em risco o mínimo existencial das pessoas, ameaça a própria economia do país. Isso torna o problema um assunto de direito constitucional, considerando que um dos princípios da ordem econômica (art. 170 CF) é o asseguramento da existência digna, conforme os ditames da justiça social. Com base neste complexo quadro, foi publicada, em 1º de julho de 2021, a lei 14.181, conhecida como lei do superendividamento3. A norma atualiza do Código de Defesa do Consumidor, visando a aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor, dispondo sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. O escopo foi o estabelecimento de um novo regime de prevenção e tratamento do superendividamento no Brasil, baseado em práticas internacionais. A norma possui a natureza de política pública de fomento à concessão responsável de crédito, educação financeira e de promoção de conciliação por meio de planos de pagamento que permitam o pagamento das dívidas4, de forma racional. Trata-se de um consenso legislativo em torno da necessidade de se preservar uma reserva de renda voltada ao sustento do consumidor superendividado, assegurando a manutenção da sua dignidade. De forma equilibrada, a lei protege apenas o consumidor pessoa natural que age de boa-fé, que se vê impossibilitado de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, sem comprometer seu mínimo existencial (art. 54-A, § 1.º CDC). A questão é que a Lei do Superendividamento deixou a cargo do Poder Executivo a regulamentação do que seria uma quantia mínima, que na negociação das dívidas dos consumidores deveria ser preservada, de modo a não comprometer o sustento e a dignidade dos endividados. Eis que, no dia 26 de julho de 2022, é publicado o decreto nº 11.150, que, dentre outros pontos problemáticos, fixa um valor irrisório e defasado, como caracterizador do mínimo existencial. Estabeleceu-se, em seu artigo 3º, que no âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a 25% do salário-mínimo vigente na data de publicação do Decreto5. Surge, portanto, uma evidente inconstitucionalidade. Ao fixar um valor irrisório como definidor do que seria a manutenção da garantia do mínimo existencial das pessoas endividadas de boa-fé, o ato regulamentar aparta-se da natureza de norma secundária, subordinada à lei. Ele esvazia, completamente, o núcleo essencial do dever de proteção estatal em favor dos consumidores superendividados. São três situações que evidenciam, claramente, a incompatibilidade do decreto 11.150/2022 com a lei do superendividamento, que acabam por gerar uma crise de legalidade e ferir, frontalmente, inúmeros preceitos fundamentais da Constituição Federal. 1. A fixação do mínimo existencial em patamar equivalente a 25% do salário-mínimo, para fim de tratamento do superendividamento, afasta-se da realidade de qualquer família brasileira, mostrando-se, desde a sua edição, completamente defasado, apto a perpetuar inaceitável situação de miserabilidade. Tomando-se por base o valor do salário-mínimo no ano de 2022 (R$ 1.212,00), o ato regulamentar considera como mínimo existencial, a ser protegido da cobrança de dívidas, a renda mensal do consumidor equivalente a R$ 303,00. O que uma família pode fazer, no mês, com tão insignificante quantia? Em que medida pode ter assegurada a sua existência digna, considerando o custo de vida mais singelo? Evidentemente que nada! 2. O Decreto restringe a abrangência da Lei 14.181/2021 e, consequentemente, do próprio Código de Defesa do Consumidor. Isso ocorre pelo fato de o Decreto estabelecer uma série de situações de inadimplemento, que não deverão ser computadas na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial (art. 4º, § único), sendo que, em nenhum momento, há autorização, pela lei, para que tais exclusões sejam levadas a efeito nas negociações decorrentes da repactuação das dívidas. 3. O decreto, em seu art. 4º, I, "f", afasta o direito do consumidor à nova renegociação por superendividamento, em que pese existir na lei expressa autorização neste sentido, após o decurso do prazo de dois anos da repactuação originária (art. 104-A, § 5º do CDC, com redação dada pela lei 14.181/2021). Estas três situações, dentre outras, comprovam que o Decreto 11.150/2022 aparta-se da natureza de uma autêntica norma regulamentar, adquirindo as feições de um verdadeiro ato normativo autônomo, situação que justifica o exame de sua constitucionalidade em abstrato, à luz de preceitos fundamentais da Constituição. Ao limitar a abrangência da norma primária, restringindo desproporcionalmente seu conteúdo, criando situações não previstas pelo legislador, ferindo o conteúdo essencial de inúmeros preceitos fundamentais da Constituição e mitigando deveres estatais de proteção de hierarquia constitucional, estabelece-se uma situação normativa que extrapola a mera questão de legalidade, disposta na relação lei e decreto, para se adentrar na inegável violação da Constituição Federal. A incontestável incompatibilidade do Decreto 11.150/2022 com a ordem constitucional emerge a partir da violação dos seguintes preceitos fundamentais da Constituição. Art. 1º, III, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República; Art. 2º, pelo fato de a regulamentação executiva extrapolar os limites definidos pelo legislador; Art. 3º, I e III, por se apartar dos objetivos fundamentais da República voltados à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, à erradicação da pobreza, da marginalização e à redução das desigualdades sociais e regionais;  Art. 5º, XXXII, por esvaziar o dever do Estado de proteger o consumidor;  Art. 6º, por privar as famílias de seus direitos sociais básicos, consolidando situações de miserabilidade; Art. 7º, IV, por promover um recorte defasado e desproporcional no valor do salário-mínimo para efeito de proteção do mínimo existencial, considerado minimamente necessário para suportar as necessidades básicas dos consumidores; Art. 84, IV, por caracterizar a extrapolação do poder regulamentar de competência do Chefe do Poder Executivo Federal, ao esvaziar o conteúdo da lei 14.181/2021; Art. 170, caput e incisos V e VII, por ignorar que a ordem econômica tem como fundamento assegurar a existência digna, com base na justiça social, fundamentada nos princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades regionais e sociais. Ao colocar a garantia do mínimo existencial em patamar totalmente desconectado da realidade, o Decreto 11.150/2022 incorre em flagrante contradição com as disposições constitucionais e legais vigentes, que devem condicionar os limites do poder regulamentar. A partir do instante em que um decreto desconfigura o espírito de uma lei, opera-se uma cisão normativa incompatível com a ordem constitucional. Não é dado a Presidente da República, no exercício do poder regulamentar, desconfigurar, pela via de um ato administrativo, uma construção legislativa vigente, sobretudo quando a lei em questão decorre do dever fundamental do Estado de proteger os consumidores. O fato de uma lei deixar a cargo do Chefe do Poder Executivo um espaço de configuração regulamentar, voltado a proporcionar as melhores condições para a sua execução, não pode significar uma espécie de "carta branca", apta a descontruir a própria gênese da inovação legislativa. Ao restringir, desproporcionalmente, o que se considera mínimo existencial, para efeitos de prevenção e de tratamento do superendividamento, o Presidente da República incorre em abuso do exercício do seu poder regulamentar. Não se ignora o livre exercício de competência constitucional, fundamentada na discricionariedade política do Chefe de Governo. O que se aponta é o total descompasso entre o espírito da lei - que atrai a regulamentação - e a função regulamentar. A tese da extrapolação do poder regulamentar resta igualmente comprovada à luz da hierarquia jurídico-fundamental dos bens envolvidos. Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 consagrou um dever de proteção do consumidor (art. 5º, XXXII). Um legítimo direito fundamental, construído na forma de um dever de proteção estatal. Não se trata de recado ao legislador ou de mera recomendação, mas sim de uma norma dotada de máxima cogência no ordenamento jurídico, considerando que se afirma como pressuposto da garantia de intangibilidade da dignidade humana. O Decreto 11.150/2022, ao restringir, de forma desproporcional, o patrimônio das famílias brasileiras que deve ser protegido contra o superendividamento, a partir de uma noção absolutamente defasada de mínimo existencial, desconsidera a função de proteção dos direitos fundamentais. Aceitar um enquadramento do mínimo existencial no patamar de apenas 25% do valor do salário-mínimo, para efeito de proteção contra o superendividamento, significa, na prática, esvaziar todo o esforço constitucional de impor ao Estado o dever de proteger aquele que é o sujeito decisivo para qualquer economia, detentor de sucessivas e marcantes vulnerabilidades: o consumidor. Importa deixar claro que não se advoga a tese de ausência de discricionariedade política por parte do Chefe do Poder Executivo Federal, no momento de regulamentar as leis. O que se defende é que esta discricionariedade política não pode ser ilimitada, ao ponto de desconfigurar, totalmente, a essência da lei. Entendimento contrário ignoraria, até mesmo, o princípio da separação dos poderes, pilar indissociável da democracia e da estabilidade das instituições políticas. O Decreto 11.150/2022, sob a justificativa de proporcionar a regulamentação exigida pela Lei 14.181/2021, esvazia, demasiadamente, a vontade manifesta pelo legislador, em atenção às exigências constitucionais vigentes. Fere, assim, o conteúdo essencial do direito fundamental de proteção do consumidor em matéria de tratamento e combate ao superendividamento. O resultado é o comprometimento do mais importante fundamento da República: a intangibilidade da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial. A lei do superendividamento insere-se totalmente nesta lógica de proteção, que veio a ser deturpada pela regulamentação executiva. Um longo esforço de natureza política, associativa e jurídica, que lutou contra as mais intensas e diferentes pressões, mas que, ao final, conseguiu ser aprovada por reunir um legítimo consenso parlamentar. Ao reduzir o tratamento do superendividamento a um patamar meramente formal, defasado e distante da realidade, o decreto presidencial ignora a própria função dos poderes públicos ditada pela Constituição. No lugar de proteger o consumidor do superendividamento, protege o superendividamento contra o consumidor, em uma lógica, de todo, insustentável. O que se quer combater, com o rechaço à regulamentação desproporcional, é que um dever de proteção estatal tão relevante, como a proteção do consumidor, deixe de possuir significado prático para a coletividade. Portanto, a essência da lei 14.181/2021, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor, inserindo diretrizes voltadas à prevenção e ao tratamento do superendividamento, não pode ser anulada pela via da regulamentação executiva, que contribui para a manutenção de um estado permanente de miserabilidade. Do exposto, evidencia-se que a total falta de conexão entre a norma primária e o poder regulamentar extrapola a questão relacionada à chamada crise de legalidade, que advém da falta de sintonia entre a lei e o decreto, passando, também, a gravitar na inegável crise de inconstitucionalidade. Conclui-se que o decreto 11.150/2022 deve ser retirado do mundo jurídico, dando-se lugar à nova regulamentação, que, desta feita, observe, de fato, o significado do mínimo existencial, sob pena da manutenção de um flagrante estado de inconstitucionalidade. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
Ao atingir a marca de 125 emendas constitucionais, é possível afirmar que ainda possuímos uma Constituição rígida? A doutrina costuma enquadrar a CF/88 como rígida, por exigir um procedimento dificultoso de alteração, em relação ao que se mostra necessário para alteração das leis infraconstitucionais. Em pensamento clássico, Pinto Ferreira afirmava que a supremacia da constituição decorre do seu caráter rígido, considerada como "pedra angular em que assenta o edifício do moderno direito político"1. O ponto diz respeito às limitações procedimentais ao poder de reforma da Constituição. Pelas regras vigentes, a Constituição somente poderá ser emendada por meio de quatro votações, duas na Câmara dos Deputados, duas no Senado, exigindo-se em todas aprovação por pelo menos três quintos dos respectivos membros (art. 60, § 2º CF/88). Aparentemente, trata-se de exigência que confirma o caráter rígido da lei Maior. Contudo, a prática não confirma esta realidade. O primeiro semestre da sessão legislativa de 2022 bateu o recorde de alterações na Constituição, em um único ano. Até o início do recesso parlamentar de inverno (julho de 2022) foram aprovadas onze emendas constitucionais. O cardápio das EC aprovadas no primeiro semestre de 2022 é amplo2 e evidencia que o processo de alteração da Constituição está banalizado. O Congresso Nacional chegou à proeza de promulgar três emendas constitucionais em um único dia (EC 123, 124 e 125). Algumas são votadas e aprovadas de forma relâmpago e, por vezes, na calada da noite. Esta forma de alterar a Constituição, de afogadilho, independentemente de maior debate ou reflexão, é preocupante e revela como o princípio da rigidez constitucional encontra-se ameaçado no Brasil. O Estado democrático de direito encontra seu fundamento na legitimidade de uma Constituição rígida, dotada de supremacia3. A ideia de um procedimento diferenciado para aprovação das emendas deriva da necessidade de cautela no momento de promover alterações na Constituição. Visa a garantir a permanência da identidade da lei maior, que define a conformação essencial do Estado. Quando se percebe a facilidade com que são aprovadas emendas constitucionais no Congresso Nacional, fica claro que essa cautela não mais se verifica. As sucessivas alterações da Constituição seguem a lógica da conveniência e oportunidade políticas. Os debates costumam ser esvaziados e pouco transparentes. Os ritos são constantemente atropelados por meio de manobras regimentais. A regra das duas votações em cada casa legislativa não adota um lapso temporal mínimo para o amadurecimento das ideias. A estratégia é a pressa. Ao exigir duas votações em cada casa legislativa para aprovação de uma emenda, a Constituição parte de uma constatação evidente: a necessidade de um consenso amadurecido sobre os respectivos temas. A aprovação relâmpago de emendas constitucionais vai em direção oposta, ignorando que a limitação do poder decorre de sua sujeição irrestrita à Constituição4. Quando a Constituição passa a ser sistematicamente alterada, de forma descompromissada, sem o devido debate, abre-se caminho para um processo de erosão da identidade constitucional de uma nação. Além disto, a prática reforça o caráter analítico do texto constitucional. Esta é outra questão, típica da realidade constitucional brasileira, cuja análise não pode ser deixada de lado. O elevado número de emendas está diretamente relacionado à natureza prolixa da Constituição. O problema é que a opção por uma Constituição analítica está longe de ser a mais acertada. Ela favorece um sentimento de banalização constitucional, à medida que matérias importantes passam a dividir espaço na Constituição com outras, que não detêm natureza constitucional propriamente dita. Na prática, quanto mais analítico for o texto da Constituição, maior será o número de emendas que enfrentará. Uma Constituição analítica não se limita a se ocupar dos direitos fundamentais, da organização estatal e do estabelecimento das linhas basilares para a atuação dos poderes públicos. Pelo contrário, ingressa em detalhes, que poderiam estar devidamente albergados pela legislação infraconstitucional. Como os detalhes são mais suscetíveis a alterações no decorrer do tempo, nenhuma Constituição analítica costuma sobreviver sem um número considerável de emendas. Na realidade brasileira, a questão atingiu contornos desproporcionais, originando a máxima de que a nossa lei maior é uma "colcha de retalhos". Um equívoco que normalmente se comete é confundir a relevância de um tema com a necessidade de sua constitucionalização. Deve ficar claro que nem todo tema juridicamente relevante merece o status de norma constitucional. A hierarquia constitucional não decorre apenas e tão somente da relevância da matéria jurídica. Se o critério fosse apenas o de relevância, boa parte das regulamentações do CC/02, por exemplo, deveria ser transportada para o plano constitucional, o que não é de se cogitar. A questão está na vocação normativa. Existem matérias que estão vocacionadas, por sua natureza, ao ideal de garantia de direitos fundamentais e aos elementos básicos da configuração estatal. Outras não. As constituições prolixas, como a brasileira, chamam ao debate a questão de que nem tudo que está no texto constitucional mereceria, em rigor, a dignidade formal da Constituição5. O problema é que toda matéria, quando formalmente inserida na Constituição, passa a gozar do status de norma constitucional, passando a se sujeitar às limitações impostas à manifestação do poder constituinte derivado. Ou seja, para serem alteradas, dependem da aprovação de emendas constitucionais. Além disso, o excesso de constitucionalização deturpa, de certo modo, a própria democracia, pelo fato de retirar da deliberação ordinária do poder legislativo uma série de assuntos, que lá poderiam estar bem acomodados. A análise de quais matérias deveriam estar presentes na Constituição esbarra na dificuldade de que não existem critérios seguros capazes de permitir, em todos os casos, a distinção entre o que é verdadeiramente constitucional e o que não é6. É inegável a existência de um elemento de tensão entre a rigidez e a elasticidade da ordem constitucional7. Está em jogo a preservação da substância, expressa pela manutenção da identidade da Constituição8. Todavia, uma certa flexibilidade é a chave para uma interpretação do sistema que assegure o equilíbrio9. Isso porque se por um lado não se deve exagerar nas alterações, sobretudo as que são aprovadas de forma irrefletida, por outro, há a necessidade de se manter a Constituição aberta ao tempo. A elasticidade é que possibilita a superação de uma grande diversidade de situações problemáticas, que se transformam ao longo da história, adaptando a ordem constitucional às mudanças advindas da evolução e do desenvolvimento10. Esta realidade não nega que uma das distinções do campo de atuação dos poderes constituintes originário e derivado reside na constatação de que o último - que promove as emendas - atua como um poder apoiado pela Constituição (verfassungsgestützter Gewalt)11. Porém, quando se passa a modificar o texto constitucional com uma facilidade cada vez maior, suprimindo o debate democrático, passa-se a adentrar em um terreno perigoso, que considera a Constituição uma mera formalidade. Nesta hipótese, o poder constituinte derivado deixa de se manifestar apoiado pela Constituição, passando a atuar como um poder desvinculado. De fato, a seguir assim, deixaremos de ter uma constituição rígida, se é que ainda possuímos uma. O tema abre o debate para a necessidade de um enxugamento das matérias constitucionais, que aposte na qualidade e não na quantidade. _____ 1 PINTO FERREIRA, Luiz. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 90. 2 Direito fundamental à proteção de dados pessoais, imunidade de IPTU em favor de templos religiosos, regras para promoção da participação política das mulheres, autorização de emprego de radioisótopos para pesquisa e uso médicos, mitigação dos critérios de responsabilidade fiscal dos entes federativos, política remuneratória em favor dos agentes comunitários de saúde, regime especial das zonas francas, elevação da idade máxima para a nomeação de magistrados em tribunais, reconhecimento do estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, instituição do piso salarial das carreiras de enfermagem e, finalmente, demonstração da relevância das questões de direito federal como critério de admissão de recursos especiais junto ao STJ. 3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 124. 4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 116. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.125s. 6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.126. 7 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 62. 8 KIRCHHOF, Paul. Die Identität der Verfassung. In: Isensee, Josef; Kirchhof, Paul. (Hrsg.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland (HStR). 3, völlig neub. und erw. Auf. Heidelberg: Müller, Band II, 2004, § 21, Rdn. 1ss. 9 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 62. 10 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdnr. 23 e 36ss. 11 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 74.
Na coluna passada analisei uma polêmica decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), que entendeu que a então Chanceler Federal, Angela Merkel, ao proferir críticas em face de um partido alemão de extrema direita, violou o seu dever de agir de forma politicamente neutra no exercício da função de chefe de governo1. A decisão levou em conta o fato de a manifestação de Merkel ter sido proferida por ocasião de uma visita oficial ao exterior. Por apertada maioria (5x3) o Tribunal decidiu que: 1. A manifestação da chefe de governo (Primeira-Ministra) violou o direito do partido a uma competição política justa. 2. A Chanceler violou a sua obrigação de agir de forma neutra no exercício da função de chefe de governo. Muito se pergunta sobre a eficácia da decisão do TCF. Por se tratar de um procedimento de litígio entre órgãos em âmbito federal, a decisão, na prática, tem mais efeito moral do que prático, já que nem mesmo um ressarcimento de despesas do procedimento foi imposto à Merkel. Não se fala, portanto, em uma condenação do ponto de vista indenizatório, de restrição de direitos ou algo parecido. O efeito moral se dá, sobretudo, na demarcação de uma posição do TCF quanto à conduta dos chefes de governo, posição que, por não ser majoritária, poderá ser revista no futuro. A decisão possui relevância constitucional, pelo fato de questionar até que ponto uma autoridade que exerce a chefia de governo de um país, tem que manter um dever de neutralidade na política? Na coluna anterior demonstrei que os fundamentos jurídicos da decisão do TCF são questionáveis, pelo fato de, na prática, ignorarem a distinção entre chefia de Estado e de governo. Não é crível exigir um dever de neutralidade de uma chefe de governo, a qual cabe demarcar posições políticas baseadas em determinadas linhas partidárias e ideológicas. Pelo menos três, dos oito juízes constitucionais, entenderam que Merkel, na condição de chefe de governo, tem o direito de criticar partidos políticos, ainda que o faça em visita oficial ao exterior. A complexidade da matéria emerge já a partir da existência de votos divergentes, prática incomum na atuação do TCF. Visando a contribuir para o debate, sintetizo os principais argumentos dos três votos divergentes. 1. Quando a Chanceler emite uma declaração política, o conteúdo dessa declaração não está sujeito a uma avaliação de neutralidade por parte do Tribunal Constitucional. 2. Os detentores de cargos governamentais são normalmente percebidos no seu duplo papel. Dada a sobreposição de cargos públicos e filiação partidária, os cidadãos esperam apenas uma limitada neutralidade de um membro do governo. 3. As normas de dever de neutralidade são controversas no que diz respeito às atividades de relações públicas do governo, ou seja, a forma como o governo apresenta o seu trabalho ao público, relacionadas a assuntos pontuais. Essas últimas são uma forma específica de trabalho administrativo e estão sujeitas a requisitos de exatidão, objetividade e contenção. 4. Já no que diz respeito à forma como o governo se apresenta ao público, não há qualquer indicação de que um dever de neutralidade possa servir para proteger o processo democrático de baixo para cima, por meio do qual a vontade política é formada. 5. Não constitui um problema se os membros do governo se colocarem abertamente ao lado dos partidos políticos que formam este governo. Os cidadãos só esperam que tais membros sejam neutros, no momento em que exercem funções administrativas. 6. O conceito de separação (Trennungskonzept) entre membros de governo e políticos partidários não deve ser aplicado para distinguir entre o exercício de cargos públicos e atividades partidárias. Ele deve ser empregado para distinguir entre atos da administração e atos políticos do governo. 7. Pelo contrário, a posição majoritária do Tribunal estabelece requisitos que, em princípio, dizem respeito aos atos administrativos e aplica-os de toda a forma quando os membros do governo exercem as suas funções públicas. 8. Ao fazê-lo, o Tribunal, em sua composição majoritária, não reconhece que no sistema parlamentarista de governo o Parlamento confere à Chanceler a tarefa de governar. 9. O trabalho do governo é de natureza política e, em uma democracia partidária, é moldado por partidos políticos. A aparência de neutralidade da ação governamental suscita preocupações sobre a potencial inversão do processo democrático ascendente, por meio do qual a vontade política é formada. 10. A definição da agenda, a ponderação de interesses, a seleção de competências, a avaliação de argumentos, ou seja, todas as escolhas necessárias para governar são, pela sua própria natureza, decisões. 11. Essas decisões nunca são neutras. Em vez disso, baseiam-se em experiências, convicções e percepções da realidade que diferem muito dentro da sociedade. As eleições servem para refletir estas diferenças quando se trata de decisões políticas. 12. Assim, não existem argumentos válidos que apoiem um dever de neutralidade no que diz respeito à forma como o governo se apresenta ao público. 13. Mais ainda, as declarações pessoais sobre questões políticas específicas de membros do governo não estão, desde o início, sujeitas a um dever de neutralidade. 14. Caso seja adotado o ponto de vista de que as atividades de relações públicas do governo estão sujeitas a deveres de neutralidade, teria que ser especificada uma norma geral para todas as declarações políticas dos membros do governo, tanto em termos de formato quanto de contexto. 15. O voto majoritário opta pelo conceito de separação entre membros de governo e políticos partidários. Esta separação sujeita as declarações críticas feitas pela Chanceler à capacidade oficial do governo de estreitar os requisitos de neutralidade, relegando a política partidária para um domínio fora das suas funções oficiais. 16. No que diz respeito às campanhas eleitorais, faz sentido diferenciar entre as atividades de relações públicas do governo e as campanhas políticas. 17. Os membros do governo não devem ser autorizados a utilizar recursos governamentais para campanhas eleitorais, mas devem dirigir as suas campanhas, tal como outros políticos partidários, utilizando os seus meios e canais pessoais. 18. Além disso, a diferenciação entre declarações de opinião oficiais e pessoais pode ser justificada em muitos outros contextos. Tal diferenciação permite o exercício das liberdades pessoais, ao mesmo tempo que protege a instituição à qual a pessoa está oficialmente filiada, de ser equiparada às suas opiniões ou comportamentos. 19. Contudo, nenhuma destas duas razões se aplica quando os membros do governo fazem uma declaração em que tomam posição em favor de um partido político. 20. As consequências legítimas dessa diferenciação não devem ser extraídas quando se trata do exercício de cargos públicos pelo governo, mas sim no que diz respeito às atividades partidárias. 21. No que tange às atividades partidárias, os membros do governo não devem ser autorizados a fazer uso das opções e meios específicos do seu cargo ministerial. Não há necessidade de uma proibição baseada no conteúdo de uma declaração política, mas sim de uma proibição de fazer uso dos recursos governamentais. 22. Esta proibição da utilização de recursos pode impedir o governo de realizar atividades excessivas de relações públicas durante as campanhas eleitorais. Ao impedir a utilização de recursos governamentais para objetivos político-partidários, tal proibição assegura a igualdade de competição política. 23. No entanto, tal proibição só é plausível se disser respeito à utilização de recursos financeiros. 24. Ao fazer uso de tais meios, os partidos políticos no governo evitam despesas que de outra forma teriam de suportar. Isto pode, de fato, distorcer a concorrência dos partidos políticos. O mesmo não pode ser dito sobre o conteúdo das atividades de relações públicas. 25. Portanto, mostra-se equivocado equiparar a utilização de recursos à utilização da autoridade do gabinete (Primeira-Ministra). Como se pode perceber, ao menos do ponto de vista da essência das funções de chefia de Estado e de governo, os votos dissidentes possuem argumentos muito fortes. Se por um lado a posição majoritária do TCF parte do pressuposto de que: a) A exigência constitucional de neutralidade não é contrariada pelo fato de os detentores de cargos governamentais serem regularmente vistos no seu duplo papel de membros do governo e de políticos partidários. b) Do ponto de vista dos cidadãos pode haver apenas expectativas limitadas de neutralidade em relação a um membro do governo, devido ao entrelaçamento (Verschränkung) do cargo estatal e da filiação partidária. c) Independentemente disto, porém, continua a ser constitucionalmente necessário garantir o processo de formação da vontade política do povo para os órgãos de Estado através da participação igualitária dos partidos na competição política, na maior medida possível. d) O fato de não ser possível uma separação rigorosa das esferas de ministro federal, político-partidário e de atuação política por parte de pessoa privada, não conduz à inaplicabilidade do mandamento de neutralidade (Neutralitätsgebots) no âmbito oficial de atividade de um membro do governo. Por outro lado, ela ignora que a função de chefia de Estado é muito distinta da de chefia de governo. A principal crítica à posição majoritária do TCF está no fato de não distinguir, adequadamente, a natureza das funções de Estado e de governo, algo que na Alemanha, por força da tradição do sistema parlamentarista de governo, era de se esperar. Este é um debate que, cedo ou tarde, deverá ser aprofundado no Brasil, com a devida seriedade que merece. Infelizmente, por cultuarmos o presidencialismo - quase que às cegas - acabamos por nos afastar do principal, que é justamente compreender a arquitetura institucional do país. Tratar Estado como sinônimo de governo é um grande erro, que nos persegue desde a República Velha. Enquanto isso, os dilemas nacionais nos levam a outras questões, que frequentemente miram as consequências, mas nunca as causas dos problemas nacionais permanentes. O debate travado no TCF alemão pode, quem sabe, abrir os olhos dos verdadeiros estadistas. É o que se espera. __________ 1 Disponível aqui.
Até que ponto uma autoridade que exerce a chefia de governo de um país deve manter um dever de neutralidade na política? Esta é uma questão complexa, que envolve não apenas uma compreensão do funcionamento dos sistemas de governo, como também da própria natureza da função de chefia de governo. No dia 15 de junho de 2022, o Tribunal Constitucional Federal alemão proferiu uma decisão que reacende o interessante debate ligado aos limites da função executiva1. De forma um tanto quanto inesperada, o tribunal julgou procedente um litígio constitucional entre órgãos federais ajuizado pelo partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha), contra o governo federal, relativo a um fato ocorrido em fevereiro de 2020. Por maioria de 5x3 votos, o tribunal entendeu que a então Chanceler Federal, Angela Merkel, ao proferir comentários contra o partido AfD, violou o seu dever de agir de forma politicamente neutra no exercício da função de chefe de governo2. Um rápido resumo do episódio3. A Alemanha possui um sistema de governo parlamentarista, tanto em nível federal quanto estadual. Significa que os chefes dos executivos são eleitos pela maioria dos membros dos respectivos parlamentos, sendo relevante, para tanto, a realização de coalizões entre os partidos. Por ocasião das eleições no estado da Turíngia, o então governador, que representava um partido de esquerda, buscava a reeleição, sem obter sucesso nos dois primeiros turnos de votação. Por força de arranjos políticos locais, estabeleceu-se uma coalizão entre diferentes partidos, que levou à vitória de um candidato do partido liberal (FDP) para o cargo de governador. A vitória só foi possível pelo fato de diferentes partidos terem apoiado o candidato liberal, dentre eles, o próprio partido de Angela Merkel (CDU) e o polêmico AfD. O episódio chamou atenção pelo fato de ter sido a primeira vez, desde a sua criação, que o partido AfD ingressou em uma coalizão com os partidos tradicionais, para ajudar a eleger o governador de um estado alemão. Isso porque, até então, os principais partidos alemães vinham se recusando a ingressar em coalizões com o AfD, pelo fato de a legenda defender posturas consideradas xenófobas e extremistas, mesmo em estados como a Turíngia (leste da Alemanha), em que a agremiação costuma ter maior força. A questão gerou grande repercussão na Alemanha, provocando uma onda de manifestações contrárias à coalizão. Eis que surgiu o fato controverso. À época, em missão oficial na África do Sul, Angela Merkel afirmou que considerava "imperdoável" (unverzeihlich) o fato de um político do partido liberal ter aceitado votos de membros do partido Fada, para se eleger governador do estado da Turíngia. A então Chanceler ainda afirmou que aquele era um "dia ruim para a democracia", marcado pelo rompimento dos valores e convicções do seu partido, solicitando, assim, que o resultado da eleição, em que pese ser um caso único, fosse revertido4. A pressão política foi tamanha, que o governador eleito com o apoio do AfD acabou renunciando três dias após a sua eleição, devolvendo o governo estadual ao representante da esquerda. Este conjunto de fatos levou o partido AfD a ajuizar uma medida contra o governo federal junto ao Tribunal Constitucional, por considerar que as palavras da Chanceler representavam um "ataque direto" à legenda. A tese era que duras manifestações contrárias a um partido político, por ocasião de uma visita oficial da chefe de governo alemã a um estado estrangeiro, seriam inconstitucionais. Ao acatar a tese do partido AfD, o Tribunal Constitucional entendeu que a manifestação de Angela Merkel, na condição de chefe de governo (Primeira Ministra), acabou por violar o direito da legenda a uma competição política justa. Constatou, na prática, que ao proferir manifestações contrárias a um partido, Merkel violou o direito à igualdade de chances do processo eleitoral, bem como sua obrigação de agir de forma neutra enquanto no exercício da função de chefe de governo. Portanto, o aspecto que orientou a decisão não foi o mero teor da manifestação contrária ao AfD, mas o contexto em que foi proferida. A decisão ressaltou, contudo, que a situação teria sido diferente, caso as declarações fossem proferidas por ocasião de um evento eleitoral, hipótese em que a governante atuaria como política, e não como chefe de governo. A tese vencedora entendeu que comentários de teor partidário são incompatíveis com o dever de neutralidade a ser observado pela chefia de governo, sobretudo por ocasião de missões oficiais no exterior. A decisão do tribunal constitucional alemão baseou-se nos seguintes aspectos: 1. Por ocasião de uma campanha política aplicam-se para o cargo de Chanceler Federal as mesmas disposições que delimitam a atuação na função oficial e a participação não oficial, que são exigidas dos demais membros do Governo Federal. 2. Da ordem de competências do Governo Federal decorre que, em comparação com os outros membros do gabinete, a Chanceler Federal tem um direito de expressão mais amplo, mas isto não afasta a observância dos princípios de neutralidade e objetividade. 3. Os fundamentos que justificam um tratamento desigual, apto a conferir ao governo federal o poder de interferir na igualdade de oportunidades, devem: a) ser legitimados pela Constituição; b) ter um peso que possa equilibrar o princípio da igualdade de oportunidades das partes. 4. A proteção da estabilidade e da capacidade de ação do governo federal, bem como a reputação e a confiabilidade da Alemanha na comunidade internacional, são bens constitucionais que equivalem à igualdade de oportunidades para as partes. 5. A Chanceler Federal possui um amplo espaço de apreciação para decidir que medidas são necessárias para manter a estabilidade e a capacidade de trabalho do governo federal, inclusive no âmbito da política externa. Entretanto, frente a intervenções no princípio da igualdade de oportunidades, tem que ser possível demonstrar que existem interesses constitucionais que justificam tal ação. Nesta situação, torna-se necessário interferir no direito à igualdade de oportunidades dos partidos políticos. Na prática, o Tribunal Constitucional entendeu que as manifestações proferidas pela Chanceler contra o AfD violaram a igualdade de chances da legenda, sem que existissem, no caso concreto, questões ligadas aos interesses legítimos do governo federal. A preocupação dos juízes foi, portanto, garantir a igualdade de chances na disputa política, por mais que uma das partes seja um partido de atuação muito controversa. A decisão foi considerada surpreendente nos meios jurídico e político. Além disso, foi proferida por apertada maioria, algo não usual na tradição do Tribunal Constitucional alemão. Por ora, interessa a seguinte questão: o dever de agir de forma politicamente neutra é inerente ao exercício das funções de chefia de Estado e de governo, ou somente da primeira? Penso que pertence sobretudo à primeira, não devendo ser exigido demasiadamente da segunda. No marco da ordem constitucional dos sistemas parlamentaristas, como é o caso da Alemanha, o Chanceler Federal ocupa uma posição especial dominante no sistema estatal, que se caracteriza em termos de ciência política pelo termo "democracia chanceler" (Kanzlerdemokratie), que descreve com precisão a função de liderança do cargo "princípio chanceler" (Kanzlerprinzip). Neste quadro, o Chanceler Federal, e não o Governo Federal como órgão colegiado, é o chefe do Poder Executivo, dotado dos poderes essenciais de direção estatal, de acordo com as disposições constitucionais vigentes. A doutrina lembra que o chefe de governo, e somente ele, é o "senhor" (Herr) da formação, composição e da continuidade do governo federal. Isto baseia-se no fato de que apenas o Chanceler Federal é democraticamente legitimado diretamente pelo parlamento. Só ele é politicamente responsável por todas as atividades governamentais perante o parlamento. Simetricamente, somente o parlamento pode removê-lo do cargo por moção de desconfiança5. Essas considerações servem para lembrar que, na ótica de um sistema parlamentarista, em que pese competir ao chefe de governo determinar as diretrizes da política, não se pode desconsiderar que, muitas vezes, o Chanceler Federal só pode agir em relação à Realpolitik de um governo, dentro dos limites que as respectivas restrições da coalizão lhe impõem6. Ou seja, se o Chanceler não seguir a linha ideológica que permeia a coligação que o sustenta, não governará. Por sua vez, no que diz respeito à função de chefia de Estado, o dever de neutralidade torna-se não apenas mais evidente, quanto também mais amplo em relação ao que é exigido do chefe de governo. É característica dos sistemas parlamentaristas republicanos a falta de um detalhamento constitucional relativo às competências dos seus presidentes. Isso significa que a questão relativa ao grau de sua influência nos acontecimentos políticos de um país depende, em grande medida, da pessoa que exerce o cargo em questão. Isto é expresso na frase incisiva: "a pessoa dá forma ao cargo" (Die Person prägt das Amt)7. Na prática, os Presidentes nos sistemas parlamentaristas não se limitam a exercer os poderes que timidamente lhe são conferidos pela Constituição, na acepção, popularmente difundida - e de certa forma equivocada - como uma "Rainha da Inglaterra". Isso porque, a partir da sua nomeação, tentam, em conformidade com seus respectivos estilos, influenciar a política e as questões sociais nos discursos. Esta é uma prática estatal que molda mais o cargo na percepção pública, do que os seus poderes8. Para um brasileiro, acostumado com as disfuncionalidades do sistema presidencialista de governo, estas questões podem parecer secundárias, considerando que no presidencialismo uma única autoridade exerce, simultaneamente, as chefias de Estado e de governo. O ponto de análise se mostra essencial, pelo fato de que a natureza de ambas as funções é distinta. Este, aliás, é um dos grandes motivos que levam à inadequação do presidencialismo: chefiar o Estado difere muito de chefiar um governo. A boa doutrina lembra que, ao exercer a chefia de Estado, deve o Presidente da República estar acima dos partidos e das suas competições; já como chefe de governo, deve expressar os interesses do partido ou da aliança de partidos que o elegeu9. A função de chefia de Estado é suprapartidária e supraideológica, enquanto a de chefia de governo, contrariamente, identifica-se com partidos e ideologias. A raiz do problema está em que ninguém pode ser, ao mesmo tempo, em diversos temas, partidário e suprapartidário, parcial e imparcial, representante do todo e expressão da parte10. O Presidente ou atua como chefe de Estado em posição arbitral, ou atua como chefe de governo, claramente identificado, integrado e apoiado por um partido político. O que não conseguirá é levar a bom termo, conjuntamente, as duas funções11. Assim, o sistema presidencialista, sobretudo em um país como Brasil, exige, para o exercício das funções tão diversificadas, virtudes contraditórias, mutuamente anulantes12. E se, para fugir ao dilema, tentar exercer apenas parcialmente cada uma das funções, tende a fracassar nas duas posições13. Nas palavras sempre atuais de Raul Pilla, as funções de chefia de Estado e de governo são muito difíceis de conciliar em uma só autoridade. "É como se, numa partida de futebol, a mesma pessoa fosse o árbitro e o capitão de um dos bandos"14. Não é à toa que já fomos advertidos que um dos mais flagrantes contrastes da época em que vivemos está no descompasso entre a velocidade com que avança a tecnologia e os desafios e a lentidão com que caminha a evolução das instituições políticas15. Feitas essas considerações, fica a pergunta: é crível exigir de um chefe de governo, ao qual cabe demarcar posições políticas baseadas em determinadas linhas ideológicas, um dever de neutralidade? O Tribunal Constitucional alemão entendeu que sim. Surgem, todavia, muitas dúvidas quanto ao acerto deste achado jurídico. Na próxima coluna analisarei os votos dissidentes, com a finalidade de incrementar o debate. Um tema complexo para reflexão. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Essas características do Chanceler Federal alemão estão disponíveis em EPPING, VOLKER. Grundgesetz Kommentar (Art. 62 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 18. 6 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 9. 7 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 11. 8 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 12. 9 PILLA, Raul, Catecismo Parlamentarista. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, reimpressão, 1992, p. 21. 10 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 95. 11 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 96. 12 LIMA, Antonio Amilcar de Oliveria. O Poder Executivo nos Estados Contemporâneos. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 38s. 13 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 96. 14 PILLA, Raul, Catecismo Parlamentarista. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, reimpressão, 1992, p. 21s. 15 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A missão do poder executivo no estado contemporâneo. Revista de Direito Administrativo 117. Rio de Janeiro, jul.-set. 1974, p. 29.