O Direito, para cumprir sua finalidade de organizar a sociedade de forma segura e justa, tenta acompanhar as transformações sociais.
O faz, contudo, sempre com alguns passos atrás. É o que justifica a criação de instrumentos jurídicos voltados a evitar ou a amenizar a possibilidade de ocorrência de danos graves e irreversíveis1.
Aparecem, desta forma, alguns princípios jurídicos, como o da prevenção, aplicado quando o risco de dano é concreto e real, em face de situações marcadas por vulnerabilidades de diferentes tipos, como no caso do Direito do Consumidor2.
A prática disseminada de bets (apostas online), inclusive em jogos eletrônicos de todo o tipo, desafiam o princípio da prevenção e expõem milhões de famílias ao risco de ruína financeira.
Trata-se de problema ligado à chamada ludopatia, a dependência patológica às apostas de azar, atribuída ao vício.
Pesquisas atuais, com dados estatísticos, demonstram o tamanho da ameaça que o país está enfrentando.
A 7ª edição do Raio X do Investidor, pesquisa realizada pela Anbima, no ano de 20233, aponta números alarmantes relativos ao estresse financeiro gerado pelas bets.
14% dos brasileiros com 16 anos ou mais declararam que fizeram pelo menos uma aposta online em 2023, o que representa cerca de 22 milhões de pessoas, índice que, segundo a pesquisa, supera os percentuais de utilização da maioria dos produtos de investimento ofertados por instituições financeiras.
Os 14% de apostadores se dividem em: 3%, que afirmaram utilizar frequentemente os aplicativos de bets (5 milhões de pessoas); 5%, de vez em quando (8 milhões); e 6%, raramente (10 milhões).
A geração que mais fez apostas online em 2023 foi a Z (16 a 27 anos), com 29%, seguida da geração Y (28 a 42 anos), com 18%.
E a que menos usou as bets foi a geração X (43 a 62 anos), com 6%, e os mais idosos (63 anos ou mais), com 4%de representatividade.
O público masculino também se destaca entre os apostadores, com aderência de 19%, uma diferença de nove pontos percentuais em relação às mulheres (10%).
As pessoas que declararam ter apostado em 2023 indicaram as maiores motivações para o uso das bets: a chance de ganhar dinheiro rápido em momento de necessidade (40%); a possibilidade de ter um retorno alto (39%); por diversão (26%); pela emoção de apostar (25%); ou pela oportunidade de apostar valores pequenos (20%).
Duas em cada dez pessoas apostadoras (22%) consideram as bets uma forma de investimento financeiro.
Outro dado interessante revelado pela pesquisa foi que tanto as pessoas que não possuem cuidado em controlar as finanças quanto aquelas que compram coisas sem realmente precisar, têm maior probabilidade de fazer apostas online, em relação àqueles que informam ter muito cuidado em controlar as próprias finanças.
Isto leva a uma reflexão interessante sobre o tema do autocontrole e do estresse financeiro: as bets enquadram-se facilmente em uma tendência de compulsão.
Outra pesquisa relevante, promovida em junho de 2024, pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), informa que4:
Desde 2019, houve um crescimento de 281% no tempo de consumo dos jogos no país.
As apostas têm experimentado um crescimento igualmente rápido: em 2022, o Brasil ficou em 10º lugar globalmente, com US$ 1,5 bilhão em receitas brutas de jogos, o que o torna um dos maiores mercados de apostas online do mundo.
63% de quem aposta online no Brasil afirma que teve parte da sua renda comprometida com as apostas online.
Quanto aos que deixaram de comprar algo para apostar: 23% deixaram de comprar roupas, 19% deixaram de fazer compras em supermercados, 14% produtos de higiene e beleza, 11% cuidados com saúde e medicações.
Mais da metade dos apostadores consultados fazem apostas ao menos uma vez na semana.
49% dos participantes afirmam ter aumentado a quantidade de apostas no ano de 2024 e apenas 35% diz ter diminuído se comparado ao ano anterior.
As transações de depósito nas casas de apostas são realizadas, em grande maioria, por meio do Pix.
Os dados expostos comprovam que a poderosa indústria das bets não deveria seguir atuando no Brasil, independentemente de uma rígida regulamentação e de políticas públicas capazes de suavizar os graves riscos que a prática disseminada de apostas online impõe às pessoas.
A competência legislativa relativa à regulamentação de sistemas de consórcios e sorteios é privativa da União (art. 22, XX CF).
Os passos iniciais da regulamentação das bets foram dados pela lei 14.790/235, sendo que a regulamentação, inclusive o detalhamento dos requisitos6 de funcionamento das empresas de apostas online, está prevista na portaria SPA/MF nº 827, de 21/05/20247, com vigência partir de 01/01/2025.
Por mais que se verifique um esforço no sentido de regulamentar as bets, o acervo normativo vigente está longe de dar conta dos riscos que o mercado de apostas online impõe aos brasileiros.
Vale dizer, as soluções idealizadas pelos poderes públicos, compreendidas como estratégias de regulamentação das bets, são uma espécie de prognose (previsão), pois esperam atingir a finalidade desejada. O problema é que, nitidamente, têm se mostrado, de início, falhas.
A falta de uma regulamentação rígida, que faça frente ao grau de ameaça, aponta para um estado de omissão inconstitucional, pois demonstra que o Estado falha em seu dever de proteger, eficazmente, as pessoas contra o superendividamento, colocando em risco o mínimo existencial das famílias, a dignidade humana, bem como pilares da ordem econômica.
Um quadro típico de inconstitucionalidade por omissão do poder público, por regulamentação insuficiente.
A boa doutrina de Direito Constitucional reconhece a possiblidade de o Poder Judiciário rever prognoses legislativas ou executivas, quando resta evidente que não estão à altura de realizarem os objetivos constitucionais.
Parte-se do pressuposto de que a complexidade das relações sociais faz a atividade legiferante ter cada vez mais sua atuação voltada para o futuro.8
Consequentemente, o poder legislativo tende a trabalhar, cada vez mais, com prognoses, sendo que a correspondente apreciação constitucional passa a depender do quão acertadas são tais suposições, no que diz respeito a seu real desenvolvimento futuro, no âmbito da regulamentação normativa.9
À jurisdição constitucional cabe a tarefa contínua de apontar a inconstitucionalidade de toda e qualquer medida que tenha por finalidade enfraquecer demasiadamente essa proteção, com amparo na proibição de insuficiência, e de salientar, em contrapartida, a constitucionalidade das medidas protetivas.
Isto é o que se espera do STF, caso o Congresso Nacional e o Poder Executivo não tomem medidas efetivas para frear a chamada farra das bets.
A facilidade como as apostas online chegam aos brasileiros é incontestável. Com um celular conectado à internet, qualquer pessoa se torna um apostador.
Não há um controle efetivo em relação a quem aposta, o que gera preocupação adicional frente aos hipervulneráveis, como crianças, idosos e pessoas compulsivas com jogos de azar.
A tentação para apostar cresce nas veredas do mundo digital, já que o cassino virtual está sempre às mãos, com acesso instantâneo, 24h por dia. Pessoas ansiosas, com problemas emocionais, são presas fáceis neste mundo de apostas online.
Causa espanto a forma como esta indústria se legalizou no Brasil. Há décadas, os cassinos tradicionais são proibidos no país, de modo que, no marco da oficialidade, jogos de apostas ficaram restritos às loterias públicas e a algumas exceções que sempre acabavam esbarrando nos limites da legalidade, como bingos e assemelhados.
Eis que, na atualidade, nós brasileiros temos, literalmente na palma da mão, um enorme rol de cassinos online, que vão desde apostas esportivas até jogos eletrônicos com aparência - e só aparência ? de inofensividade.
A ameaça se potencializa por campanhas agressivas de publicidade, que ao se valerem da paixão pelo futebol e de celebridades, geralmente do mundo esportivo, tentam atrair as presas pela ilusão dos ganhos fáceis.
O superendividamento decorrente de apostas é um tema extremamente relevante para o direito do consumidor, que o torna extremamente vulnerável.
É sabido que a vulnerabilidade é um conceito multiforme, um estado de fraqueza sem definição precisa, mas com muitos efeitos na prática10.
Mesmo do ponto de vista do direito internacional privado o tema adquire destaque, considerando que grande parte das empresas que operam as bets têm sede no exterior, o que dificulta, muito, ações reparatórias de danos.
O fato de a regulamentação prever a existência de representantes legais no Brasil pode atenuar o problema, sem a garantia de que seja, de fato, resolvido.
Os riscos da ludopatia há muito são conhecidos e o mundo digital os potencializa: ruína financeira, lavagem de dinheiro, abandono do trabalho ou estudos, violência doméstica, aumento do consumo de álcool ou drogas, suicídio, dentre outros.
Fala-se, inclusive, em uma indústria de manipulação de resultados de competições desportivas.
Isto sem falar nos prejuízos ao varejo, um dos pilares da economia nacional. As pesquisas citadas demonstram que as bets tendem a enfraquecer a economia, retirando da circulação do mercado expressivos ativos, que são drenados pelas apostas online.
Os impactos no varejo geram um problema que impactam até mesmo as instituições financeiras, que geram milhares de empregos no país e recolhem tributos decorrentes de suas operações.
Relevante é também o papel dos algoritmos, instrumentos de inteligência artificial aptos em monitorar o comportamento de pessoas propensas ao jogo, impulsionando conteúdo digital voltado a estimular as apostas, aumentando a compulsão.
É sabido que superendividamento é problema complexo, que arruína as finanças de um considerável número de pessoas, que não conseguem se livrar de dívidas relacionadas às apostas.
Uma efetiva ameaça ao mínimo existencial destes apostadores digitais, que passam a se ver privados do acesso aos itens de primeira necessidade.
Portanto, a compulsão por jogos também tem que ser analisada sob a perspectiva de um problema de saúde pública, já que a ruína financeira facilmente conduz à depressão.
É inegável que o mercado de apostas online atinge números bilionários11, o que demonstra as resistências do setor a regulamentações mais rígidas por meio de um elevado poder de lobby.
Como se não bastasse, em que pese a nocividade da atividade de apostas online, o setor acabou sendo visivelmente privilegiado nas regulamentações da reforma tributária, já que lhe foram impostas alíquotas suaves de tributação (12%)12, ao menos em relação a setores bem menos nocivos13.
É preciso que regulamentação avance, impondo duras restrições à publicidade das bets, semelhante ao que ocorre, por exemplo, com o tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias, nos termos do art. 220, § 4.º da CF.
Da mesma forma, deve-se impor limites razoáveis à quantidade e ao valor das apostas por usuário, medida essencial para combater a dependência.
Proibir que smartfones e assemelhados saiam de fábrica com aplicativos de apostas pré-instalados também se mostra medida razoável, bem como a sua disponibilização, em destaque, nas respectivas lojas virtuais de aplicativos.
São medidas que, isoladamente consideradas podem ser consideradas insuficientes, mas que, em conjunto, podem contribuir para diminuir a compulsão, até mesmo como alternativa, em um primeiro momento, à proibição total da atividade.
Há que se lembrar que a intensidade do risco deve ser proporcional às restrições às liberdades.
Da mesma forma, evocando-se o princípio do "poluidor pagador", as políticas públicas de suavização de danos devem ser custeadas pelos seus causadores, o que, em termos de tributação, recomendaria reforço na tributação.
Há que se lembrar que no mundo digital dos jogos de azar vale a máxima: a banca nunca perde. Se o apostador tivesse a clareza de que, ao final, o cassino sempre vence, não pisaria em um ou, na versão digital, passaria longe dos apps de apostas.
Como esta clareza não se faz presente na maioria dos casos, pelas diferentes vulnerabilidades que possuímos, cabe ao Estado proteger as pessoas por meio de medidas preventivas e repressivas.
As bets, com regulamentação frágil, representam uma verdadeira tempestade ou, quem sabe, uma doença cuja vacina ainda é desconhecida.
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1 LOPEZ, Tereza Ancona Lopez. Direito do Consumidor - 30 anos. Organização: Bruno Miragem, Claudia Lima Marques, Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 153.
2 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 306ss.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Disponível aqui.
8 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 207.
9 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland: Allgemeine Lehren der Grundrechte. München: Beck, 1994, B. III/2, p. 1.711.
10 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 324.
11 Disponível aqui.
12 Disponível aqui.
13 Disponível aqui.