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Que república queremos?

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Atualizado às 09:11

República não combina com desmandos, regalias, golpes e com a apropriação dos espaços públicos para fins particulares.

No mundo em geral o início do século e do milênio revelou um panorama político-constitucional de grandes transformações e instabilidades.1

Essas instabilidades plantam dúvidas até mesmo em relação a sermos, de fato, uma república. O nome apartado da realidade.

A república expressa o ser comum (res publica), no qual todo poder público deve ser derivado da comunidade, sendo obrigado a servir ao bem de todos. Exprime uma ideia de conceber o Estado totalmente oposta à noção de despotismo, na qual nada mais existe que o arbítrio dos detentores do poder.2

A história republicana ainda é pouco contada no Brasil. O que mais se sabe é que o dia 15 de novembro é um feriado nacional, alusivo à data da proclamação, no ano de 1889.

Contudo, pouco se debate sobre o verdadeiro significado da palavra república.

A instabilidade que tem se visto presente nos últimos anos no Brasil, acrescida de uma série de escândalos mal resolvidos de corrupção; da disfuncionalidade institucional - a começar pelo sistema presidencialista de governo; e da perpetuação de regalias injustificadas nos Poderes Públicos, absolutamente incompatíveis com a dura realidade da população, dentre outros problemas, determinam uma reflexão urgente naquilo que realmente pretendemos, como nação e como república.

A clássica obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, publicada postumamente no ano de 1532, inicia o primeiro capítulo com a frase: "Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados".3

A frase tinha caráter inovador: além do termo Estado, empregava o conceito de república na acepção de uma forma de governo, em oposição às monarquias.

As formas de governo revelam a forma de vida do Estado, a partir do caráter coletivo do seu elemento humano.4 Como tal, a república deve descrever uma espécie de Estado vocacionada para a realização do bem comum, avessa a privilégios e disfuncionalidades.

A ideia republicana passa pela expressão democrática de governos, pela limitação do poder e pela atribuição de responsabilidade política, visando a assegurar a liberdade.5

Os clássicos advertiam que o problema fundamental para a investigação política, tanto sob a perspectiva da ciência antiga quanto da nova, em sua essência é o mesmo: buscar as garantias contra o poder absoluto do soberano mediante restrições legais.6

Isso equivale a dizer que a organização das instituições estatais e o modo como se relacionam é o que, na prática, irá caracterizar a forma de governo.7

Como traço geral, a forma de governo designa como se constitui o chefe de Estado em uma nação.

As monarquias são formas de governo nas quais o chefe de Estado é hereditário e vitalício, enquanto nas repúblicas é eletivo e temporário.8

A partir daí, surgem inúmeras distinções. Dentre as características mais importantes de uma república está o fato de o Estado não se fundir à figura do Presidente, exatamente pela eletividade e pela periodicidade dos governos, em seu mais alto escalão.9

A essência de uma república reside na negação da condução do Estado por uma pessoa física, no sentido de rechaço à vontade suprema de um ser individualmente considerado.10

Com o objetivo de racionalizar o processo político, a democracia possibilita a produção de continuidade suprapessoal (überpersonaler Kontinuität). Significa que o poder estatal não pode estar vinculado a uma determinada pessoa, da mesma forma que o processo político não pode estar concebido para uma determinada pessoa. A continuidade da ordem política não é uma questão de indivíduos ou de rostos.11

Em outras palavras, em uma república ninguém poderia se perpetuar em qualquer posto de mando. A ideia básica é abominar o abuso de poder de qualquer espécie.

Isto gera uma reflexão importante quanto à viabilidade de cargos vitalícios em posições-chave, sobretudo quando nomeados por critérios políticos.

Tradicionalmente, o desenvolvimento da ideia republicana se deu por meio das lutas contra a monarquia absolutista e pela afirmação da soberania popular. Foi, basicamente, uma expressão de reivindicações populares, de vários matizes.12

Contudo, definitivamente, não foi o que aconteceu no Brasil.

Graves são os problemas que foram se somando, desde a queda do Império, por meio de conspiração arquitetada por militares e republicanos civis.

A história brasileira comprova que a proclamação da república se deu na forma de um autêntico golpe de Estado. Não havia, por parte da população, uma vontade clara e manifesta de depor o Imperador.

Não há como se negar que Dom Pedro II foi um dos maiores estadistas deste país. Amante das letras, das ciências e de probidade inquestionável, foi um grande Imperador.13

A forma como foi tratado pelos militares e elites econômicas da época cobra até hoje seu preço na história. Uma deportação humilhante, marcada pela vergonha.

Na prática, a mudança da forma de governo - de monarquia para república - veio de cima para baixo, como tantas outras coisas no Brasil. Mais do que uma vontade, uma imposição movida por interesses nada republicanos.

É a expressão da frase perpetuada por Alceu Amoroso Lima, quando afirmou que o Brasil se formou às avessas, começando pelo fim.14 Tivemos república, antes de consolidar um verdadeiro espírito republicano.

O último ministério do Império foi deposto pelas armas dos militares, sob o comando do Marechal Deodoro da Fonseca, sem que a república estivesse, de fato, proclamada, o que criou um vácuo na forma governo. Por alguns momentos, o país não era nem monarquia, nem república.

Destituído de qualquer poder, Dom Pedro II não podia exercer as funções de Chefe de Estado, nada podendo fazer sem consultar o Marechal Deodoro, que por força de grave enfermidade, encontrava-se à beira da morte15.

Com o Congresso em recesso, formou-se um governo provisório que tomou posse na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Uma cena inusitada, como lembra Laurentino Gomes, pois a instância máxima do Poder Executivo nacional - agora na forma republicana - prestou juramento diante de representantes de um poder municipal.

Uma das tantas ironias da história, já que a mesma Câmara Municipal veio a ser dissolvida apenas três semanas mais tarde, por ordem do novo governo republicano, sob alegação de "estado de decadência"16. Mais uma da série, aqui se faz, aqui se paga.

Assim se construiu uma república, que no seu berço nascera de um golpe armado, descolada das ruas, sem qualquer participação popular.

A república nasceu fragilizada e sem legitimidade, o que ajuda a explicar a sucessão de problemas e golpes que se sucederam, desde então.

O grande problema, que reflete o que atualmente somos, é o modo como a nossa história foi forjada. Ela deixa sequelas que por vezes são difíceis de serem removidas, passando a integrar um aspecto importante - e nefasto - da nossa identidade nacional.

Os donos do poder, que dificilmente dele se descolam e seguem decidindo o destino do país. Mudam os nomes, os rostos, mas as práticas patrimonialistas se perpetuam. Uma espécie de coronelismo transgeracional, que resiste aos tempos e se adapta com versatilidade às novas realidades.

Não se advoga que deveríamos permanecer um império, em pleno século XXI. O que se sustenta é que a monarquia foi abolida de forma prematura, por um golpe militar, quando ainda presente no país um grande estadista, apto a chefiar o Estado, em um momento decisivo da nossa história e da consolidação das instituições liberais.

Por certo Dom Pedro II errou por vezes, o que não é extraordinário. Mas foi, como registra a história, diligente no cumprimento do dever e no respeito à lei.17

Isto se alia à tese de que golpes militares no Brasil nunca produziram bons resultados, deles nada podendo se esperar.

Sem embargo, a ampla troca de constituições no país atesta a dificuldade que possuímos em promover acertos institucionais duradouros.

Mesmo a independência, conquista importantíssima, que no ano de 2022 completou 200 anos, não foi capaz, por si só, de trazer a pujança que se espera de uma nação tão rica e bela, como o Brasil.

As repúblicas democráticas dependem da estrutura social do povo que as habitam que, por sua vez, depende da qualidade das instituições públicas.

Este, aliás, é um dos grandes motivos pelos quais a educação nunca foi prioridade na república brasileira. Quanto mais carente de informação, cultura e igualdade de oportunidades, menor se torna o empoderamento coletivo.

Por seu turno, maior é a possiblidade de manipulação e indiferença, sentimentos sociais que servem de adubo à manutenção de castas no poder.

É o caminho perfeito para a manutenção de uma república de papel.

Para formar a vontade jurídica suprema, a república necessita de uma organização exterior e de uma divisão das funções estatais, nos termos previstos na Constituição.18 Se a Constituição contempla soluções equivocadas, dificilmente a ideia republicana pode se tornar realidade.

Por outro lado, a experiência mostra que as tentativas de transformar em realidade a identidade de governantes com governados, sem mediação institucional, não podem dar certo, pois contêm o perigo de se converterem em domínio total (totale Herrschaft).19

A saída está no aprimoramento das instituições. Aprimorar não significa abolir, mas sim racionalizar.

Não devemos ter receito de reformar as instituições, quando fica claro que a configuração vigente não produz bons resultados. Viver sem instituições é algo inviável, da mesma forma que insistir em modelos falidos.

Assim como erramos, gravemente, na forma e no momento de proclamar a nossa república, continuamos errando ao manter um sistema político e de repartição de funções que conduz a resultados insatisfatórios, independentemente da ideologia política de plantão.

Triste é o país que não possui estadistas, em número suficiente, capazes de fazer a diferença, alertando o povo de que somos reféns de um modelo disfuncional de organização do Estado e dos poderes públicos.

Pensar a república conduz, necessariamente, a uma espécie de refundação, mantendo o que é bom e se livrando do que é ruim.

Não por golpes autoritários, mas sim por um sentimento de indignação, apto a demonstrar que o que vêm sendo praticado, há muito tempo, não nos levará a lugar algum, para além do fosso em que estamos presos.

________________

1 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 41.

2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 120.

https://docs.google.com/a/fcarp.edu.br/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZmNhcnAuZWR1LmJyfG51cGVkaXxneDoyZWIyZDBjYjVkNjQyMjY2

4 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 231.

5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 227.

6 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720.

7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 222.

8 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 240.

9 MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 215.

10 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 711

11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 137s.

12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 226.

13 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 525ss.

14 LIMA, Alceu Amoroso Lima. In: CARDOSO, Vicente Licínio [Org.]. À Margem da História da República. Tomo. 2. Brasília: Editora UNB, 1981, p. 51s.

15 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 279.

16 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 285.

17 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 527.

18 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720.

19 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 131.