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República ou regalias

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Atualizado às 07:43

Atualmente, no âmbito da atuação dos poderes públicos fala-se muito em moralidade ou na sua falta.

A Constituição Federal, em um dos seus mais importantes títulos, traz a moralidade como princípio vetor de toda atuação administrativa. Portanto, toda e qualquer conduta que destoe da moralidade estará afastada da proteção constitucional.

Neste tema as dificuldades são extremas. A começar pela tarefa de definir o que configura uma conduta imoral de um agente público.

Emerge, neste ponto, a observação imortalizada por Santo Agostinho, no Livro XI, Capítulo XIV, das Confissões, quando indagado sobre o que significa o tempo.1

"Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei".

Se apoiando na obra do gigante, faço o mesmo raciocínio: o que é, pois, a moralidade administrativa?

Assim como ponderou Santo Agostinho em relação ao tempo, tenho dificuldades para definir o que é. Contudo, em face de situações concretas, que vivenciamos a cada semana no Brasil, é muito mais simples entender o que não é.

Quando parlamentares viajam ao Catar para assistir jogos da seleção brasileira na Copa do Mundo do ano de 2022, financiados direta ou indiretamente com recursos públicos, sob a pretensa missão de representar o país, tal conduta pode ser tudo, menos moral.

Quando os mais altos níveis remuneratórios do serviço público se autoconcedem regalias, independentemente de autorização legislativa específica, também.

Quando a lei privilegia classes de agentes públicos com remunerações totalmente incompatíveis com a realidade das contas públicas, concedendo auxílios financeiros expressivos a quem menos precisa, a título de parcelas indenizatórias, livres de tributação, de forma retroativa, sem prescrição, não apenas a irresponsabilidade no manejo das contas públicas se faz presente, mas, igualmente, a total ausência da noção republicana de igualdade.

Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados para descrever este estado de coisas inconstitucional que o Brasil enfrenta, há um bom tempo.

Seria o sinal de que o pacto constitucional de 1988, ao menos no que tange aos princípios da administração pública, ruiu?

Alguns sinais apontam que sim.

O mais evidente deles diz respeito à interpretação que se consolidou no país sobre o que significa direito adquirido.

A garantia tem sido empregada, com a máxima energia, por todos aqueles que defendem distorções injustificáveis no serviço público. Uma minoria, mas muito barulhenta.

Há muito se confundem direitos com regalias no Brasil. Se poderia, mais uma vez, invocar a lição de Santo Agostinho.

Em abstrato é difícil definir o que é uma regalia. Ao se analisar fatos, torna-se fácil perceber.

Existe um pequeno grupo de agentes públicos que ganha muito, incluindo benefícios de toda sorte, sem qualquer relação com o resultado da sua atuação. Verifica-se que, em muitos casos, há um acúmulo de servidores no topo salarial da carreira, ainda que se situem em níveis diferentes de progressão.

Por outro lado, existe um enorme grupo de servidores com salários muito defasados, que, diga-se de passagem, são os que costumam ter uma atuação mais próxima dos cidadãos.

No Brasil, não raro, o teto salarial se torna piso, graças a um conjunto inexplicável de penduricalhos, que transporta, com inegável eficiência, a base salarial para o topo.

A busca do melhor interesse público vai em direção contrária à das regalias.

Em um país ideal, sem prejuízo do salário ser definido em função das responsabilidades e dos riscos inerentes a cada mister, ciente de que situações especiais justificam diferenciação, o setor público deveria ser submetido às mesmas regras impostas à imensa maioria dos trabalhadores, que com seus tributos sustentam o todo.

É, ao menos, o que se deflui de uma das conquistas mais elementares de um Estado de direito republicano: a igualdade.

É importante reconhecer que a maioria dos servidores públicos brasileiros é vocacionada para suas tarefas, cumprindo-as com distinção.

O problema surge quando determinados grupos não conseguem diferenciar o que significa um direito adquirido de uma regalia.

Por certo, é difícil criticar o que outra pessoa recebe por seus méritos individuais. Não se nega que grande parte da elite do serviço público ascendeu à carreira por inegável esforço pessoal, a começar pela aprovação em concursos públicos com altíssimo nível de exigência. Se reconhece a renúncia pessoal em muitos anos de preparação.

Todavia, a compensação por este esforço não pode se dar de forma desproporcional, ao ponto de ferir inúmeros pilares do espírito republicano. Um meio termo há de ser encontrado: vencimentos dignos e compatíveis com os cargos, porém sem destoar da razoabilidade.

O mais grave é quando algumas regalias adquirem roupagem legal, não por uma correta apreciação da igualdade em sentido material. Nas palavras de Rui Barbosa:2

"Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real".

Preocupante é quando as regalias se consolidam pela eficiente organização e poder de barganha, típica de corporações muito bem articuladas.

Neste caso, costuma-se invocar o direito adquirido que, muitas vezes, está mais para privilégio adquirido.

Quando uma lei concede regalias ao ponto de ignorar os princípios republicano, da igualdade, da moralidade, dentre outros, ela não pode se eternizar no tempo.

O princípio da segurança jurídica, do qual deflui o da proteção da confiança, não podem implodir os alicerces da ideia republicana.

Entendimento contrário faz com que os vivos - que suportam os prejuízos - sejam eternamente governados pelos mortos - que, no passado, por diferentes conjecturas, concederam privilégios a quem quer que seja.

Não há dúvida de que a imoralidade administrativa se associa à noção de desvio de poder e dos princípios de justiça e equidade.3 Integra, necessariamente, um juízo voltado à manutenção de condutas eticamente corretas.4

Encontro a sabedoria de Santo Agostinho em todos estes tópicos.

"Se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir".5

A razão de existir uma República é a antítese de privilégios e regalias. Contra esta noção, não há direito adquirido que se faça forte.

Ruy Cirne Lima6 lembrava que os estudos de direito administrativo não deveriam ficar reservados aos juristas e aos eruditos. Pelo contrário, afirmava o mestre que se deveria, quanto possível, procurar difundir extensamente pela massa dos cidadãos o conhecimento dos pilares do direito administrativo.

O mesmo se diga em relação ao direito constitucional, a partir da imortal expressão cunhada por Fritz Werner:7 "O direito administrativo é o direito constitucional concretizado".

É fundamental que a população seja ouvida no que diz respeito à concessão de regalias, que nem de perto chegam à massa que toca o país. É, justamente neste ponto, que o sistema representativo tem falhado.

Se o pacto constitucional não é capaz de perceber isto, é porque ruiu ou está no caminho de ruir.

__________

1 Disponível aquip. 120.

2 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5 ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 26.

3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 112.

4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 22.

5 Disponível aqui, p. 120. 

6 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 48.

7 WERNER, Fritz. "Verwaltungsrecht als konkretisiertes Verfassungsrecht". DVBl. Köln: Heymanns, 1959, p. 527ss.