COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Dinâmica Constitucional >
  4. Dever de neutralidade na chefia de governo? Parte II

Dever de neutralidade na chefia de governo? Parte II

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Atualizado às 07:14

Na coluna passada analisei uma polêmica decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), que entendeu que a então Chanceler Federal, Angela Merkel, ao proferir críticas em face de um partido alemão de extrema direita, violou o seu dever de agir de forma politicamente neutra no exercício da função de chefe de governo1.

A decisão levou em conta o fato de a manifestação de Merkel ter sido proferida por ocasião de uma visita oficial ao exterior.

Por apertada maioria (5x3) o Tribunal decidiu que:

1. A manifestação da chefe de governo (Primeira-Ministra) violou o direito do partido a uma competição política justa.

2. A Chanceler violou a sua obrigação de agir de forma neutra no exercício da função de chefe de governo.

Muito se pergunta sobre a eficácia da decisão do TCF.

Por se tratar de um procedimento de litígio entre órgãos em âmbito federal, a decisão, na prática, tem mais efeito moral do que prático, já que nem mesmo um ressarcimento de despesas do procedimento foi imposto à Merkel.

Não se fala, portanto, em uma condenação do ponto de vista indenizatório, de restrição de direitos ou algo parecido.

O efeito moral se dá, sobretudo, na demarcação de uma posição do TCF quanto à conduta dos chefes de governo, posição que, por não ser majoritária, poderá ser revista no futuro.

A decisão possui relevância constitucional, pelo fato de questionar até que ponto uma autoridade que exerce a chefia de governo de um país, tem que manter um dever de neutralidade na política?

Na coluna anterior demonstrei que os fundamentos jurídicos da decisão do TCF são questionáveis, pelo fato de, na prática, ignorarem a distinção entre chefia de Estado e de governo.

Não é crível exigir um dever de neutralidade de uma chefe de governo, a qual cabe demarcar posições políticas baseadas em determinadas linhas partidárias e ideológicas.

Pelo menos três, dos oito juízes constitucionais, entenderam que Merkel, na condição de chefe de governo, tem o direito de criticar partidos políticos, ainda que o faça em visita oficial ao exterior.

A complexidade da matéria emerge já a partir da existência de votos divergentes, prática incomum na atuação do TCF.

Visando a contribuir para o debate, sintetizo os principais argumentos dos três votos divergentes.

1. Quando a Chanceler emite uma declaração política, o conteúdo dessa declaração não está sujeito a uma avaliação de neutralidade por parte do Tribunal Constitucional.

2. Os detentores de cargos governamentais são normalmente percebidos no seu duplo papel.

Dada a sobreposição de cargos públicos e filiação partidária, os cidadãos esperam apenas uma limitada neutralidade de um membro do governo.

3. As normas de dever de neutralidade são controversas no que diz respeito às atividades de relações públicas do governo, ou seja, a forma como o governo apresenta o seu trabalho ao público, relacionadas a assuntos pontuais.

Essas últimas são uma forma específica de trabalho administrativo e estão sujeitas a requisitos de exatidão, objetividade e contenção.

4. Já no que diz respeito à forma como o governo se apresenta ao público, não há qualquer indicação de que um dever de neutralidade possa servir para proteger o processo democrático de baixo para cima, por meio do qual a vontade política é formada.

5. Não constitui um problema se os membros do governo se colocarem abertamente ao lado dos partidos políticos que formam este governo.

Os cidadãos só esperam que tais membros sejam neutros, no momento em que exercem funções administrativas.

6. O conceito de separação (Trennungskonzept) entre membros de governo e políticos partidários não deve ser aplicado para distinguir entre o exercício de cargos públicos e atividades partidárias.

Ele deve ser empregado para distinguir entre atos da administração e atos políticos do governo.

7. Pelo contrário, a posição majoritária do Tribunal estabelece requisitos que, em princípio, dizem respeito aos atos administrativos e aplica-os de toda a forma quando os membros do governo exercem as suas funções públicas.

8. Ao fazê-lo, o Tribunal, em sua composição majoritária, não reconhece que no sistema parlamentarista de governo o Parlamento confere à Chanceler a tarefa de governar.

9. O trabalho do governo é de natureza política e, em uma democracia partidária, é moldado por partidos políticos.

A aparência de neutralidade da ação governamental suscita preocupações sobre a potencial inversão do processo democrático ascendente, por meio do qual a vontade política é formada.

10. A definição da agenda, a ponderação de interesses, a seleção de competências, a avaliação de argumentos, ou seja, todas as escolhas necessárias para governar são, pela sua própria natureza, decisões.

11. Essas decisões nunca são neutras. Em vez disso, baseiam-se em experiências, convicções e percepções da realidade que diferem muito dentro da sociedade.

As eleições servem para refletir estas diferenças quando se trata de decisões políticas.

12. Assim, não existem argumentos válidos que apoiem um dever de neutralidade no que diz respeito à forma como o governo se apresenta ao público.

13. Mais ainda, as declarações pessoais sobre questões políticas específicas de membros do governo não estão, desde o início, sujeitas a um dever de neutralidade.

14. Caso seja adotado o ponto de vista de que as atividades de relações públicas do governo estão sujeitas a deveres de neutralidade, teria que ser especificada uma norma geral para todas as declarações políticas dos membros do governo, tanto em termos de formato quanto de contexto.

15. O voto majoritário opta pelo conceito de separação entre membros de governo e políticos partidários.

Esta separação sujeita as declarações críticas feitas pela Chanceler à capacidade oficial do governo de estreitar os requisitos de neutralidade, relegando a política partidária para um domínio fora das suas funções oficiais.

16. No que diz respeito às campanhas eleitorais, faz sentido diferenciar entre as atividades de relações públicas do governo e as campanhas políticas.

17. Os membros do governo não devem ser autorizados a utilizar recursos governamentais para campanhas eleitorais, mas devem dirigir as suas campanhas, tal como outros políticos partidários, utilizando os seus meios e canais pessoais.

18. Além disso, a diferenciação entre declarações de opinião oficiais e pessoais pode ser justificada em muitos outros contextos.

Tal diferenciação permite o exercício das liberdades pessoais, ao mesmo tempo que protege a instituição à qual a pessoa está oficialmente filiada, de ser equiparada às suas opiniões ou comportamentos.

19. Contudo, nenhuma destas duas razões se aplica quando os membros do governo fazem uma declaração em que tomam posição em favor de um partido político.

20. As consequências legítimas dessa diferenciação não devem ser extraídas quando se trata do exercício de cargos públicos pelo governo, mas sim no que diz respeito às atividades partidárias.

21. No que tange às atividades partidárias, os membros do governo não devem ser autorizados a fazer uso das opções e meios específicos do seu cargo ministerial.

Não há necessidade de uma proibição baseada no conteúdo de uma declaração política, mas sim de uma proibição de fazer uso dos recursos governamentais.

22. Esta proibição da utilização de recursos pode impedir o governo de realizar atividades excessivas de relações públicas durante as campanhas eleitorais.

Ao impedir a utilização de recursos governamentais para objetivos político-partidários, tal proibição assegura a igualdade de competição política.

23. No entanto, tal proibição só é plausível se disser respeito à utilização de recursos financeiros.

24. Ao fazer uso de tais meios, os partidos políticos no governo evitam despesas que de outra forma teriam de suportar.

Isto pode, de fato, distorcer a concorrência dos partidos políticos. O mesmo não pode ser dito sobre o conteúdo das atividades de relações públicas.

25. Portanto, mostra-se equivocado equiparar a utilização de recursos à utilização da autoridade do gabinete (Primeira-Ministra).

Como se pode perceber, ao menos do ponto de vista da essência das funções de chefia de Estado e de governo, os votos dissidentes possuem argumentos muito fortes.

Se por um lado a posição majoritária do TCF parte do pressuposto de que:

a) A exigência constitucional de neutralidade não é contrariada pelo fato de os detentores de cargos governamentais serem regularmente vistos no seu duplo papel de membros do governo e de políticos partidários.

b) Do ponto de vista dos cidadãos pode haver apenas expectativas limitadas de neutralidade em relação a um membro do governo, devido ao entrelaçamento (Verschränkung) do cargo estatal e da filiação partidária.

c) Independentemente disto, porém, continua a ser constitucionalmente necessário garantir o processo de formação da vontade política do povo para os órgãos de Estado através da participação igualitária dos partidos na competição política, na maior medida possível.

d) O fato de não ser possível uma separação rigorosa das esferas de ministro federal, político-partidário e de atuação política por parte de pessoa privada, não conduz à inaplicabilidade do mandamento de neutralidade (Neutralitätsgebots) no âmbito oficial de atividade de um membro do governo.

Por outro lado, ela ignora que a função de chefia de Estado é muito distinta da de chefia de governo.

A principal crítica à posição majoritária do TCF está no fato de não distinguir, adequadamente, a natureza das funções de Estado e de governo, algo que na Alemanha, por força da tradição do sistema parlamentarista de governo, era de se esperar.

Este é um debate que, cedo ou tarde, deverá ser aprofundado no Brasil, com a devida seriedade que merece.

Infelizmente, por cultuarmos o presidencialismo - quase que às cegas - acabamos por nos afastar do principal, que é justamente compreender a arquitetura institucional do país.

Tratar Estado como sinônimo de governo é um grande erro, que nos persegue desde a República Velha.

Enquanto isso, os dilemas nacionais nos levam a outras questões, que frequentemente miram as consequências, mas nunca as causas dos problemas nacionais permanentes.

O debate travado no TCF alemão pode, quem sabe, abrir os olhos dos verdadeiros estadistas. É o que se espera.

__________

1 Disponível aqui.