COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Dinâmica Constitucional >
  4. O presidencialismo indutor de crises

O presidencialismo indutor de crises

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Atualizado em 29 de junho de 2021 09:27

Crises políticas não são novidades no Brasil. Elas revelam apenas uma dentre tantas perspectivas que fomentam uma crise de natureza maior, que em conjunto fazem com que a democracia brasileira tenha inúmeras dificuldades para solucionar os problemas nacionais.

De forma resumida, entendo que a crise política é consequência de outra, de natureza institucional. Isso significa que a má configuração das nossas instituições políticas é o que alimenta um conjunto de situações que fazem com que a democracia brasileira não consiga deslanchar, para usar um termo bem popular.

Bons analistas têm percebido que o Brasil enfrenta uma autêntica crise de governança, que aponta para o insucesso de políticas públicas em diferentes áreas, gerando um sentimento de desesperança por parte dos governados.1

Essa crise de governança não é exclusiva de governos isoladamente considerados, de suas ideologias ou práticas. Decorre, antes de tudo, da armadilha gerada por um sistema de governo de baixíssima arquitetura institucional, que é o presidencialismo.

Não considero exagero afirmar que o presidencialismo praticado no Brasil tem sido a causa de grandes males, inclusive após a redemocratização do país e o advento da Constituição Federal de 1988. Quem discorda, procure analisar quantos governos, de diferentes matizes ideológicas, passaram por Brasília desde então, acumulando problemas, ainda que se possa definir tempos mais ou menos produtivos.

Se formas diferentes de governar, ideologias e propósitos distintos sempre estiveram longe de resolver grandes problemas, é porque as causas repousam menos nas pessoas e mais no sistema praticado. Significa dizer que a solução tem que ser buscada antes de tudo no aperfeiçoamento institucional e não em meras preferências pessoais.

A ordem política é uma unidade de convívio e como tal deve ser pensada. Nesse sentido, um dos objetivos mais importantes de um país deve ser garantir esse convívio, sem o qual a paz e a sonhada busca pela justiça e igualdade sociais jamais serão obtidas. Já na largada, o sistema presidencialista se torna inapto.

Explico meu ponto de vista. Ao cumular em uma só autoridade, denominada de presidente da República, as funções de chefia de Estado e de Governo, esse sistema impõe que uma mesma pessoa se comporte, ao longo de seu mandato, simultaneamente: 1) de forma suprapartidária e supraideológica, o que se exige para a realização dos objetivos de Estado, que devem unir a toda a sociedade e; 2) partidária e ideológica, característica de Chefes de Governo, que expressam a liderança de um partido que venceu as eleições e devem realizar a sua plataforma em conformidade com o seu programa partidário.

Essa simultaneidade de comportamentos tão distintos não se mostra possível de ser facilmente obtida. Isso faz com que, do ponto de visa da liderança nacional, seja muito difícil unir a sociedade acima de partidos, ideologias, religiões ou outros traços que dividem o corpo social. Na prática, por força de um sistema presidencialista que obriga o Chefe de Estado a se identificar com uma ideologia que é típica de Chefe de Governo, a pessoa que ocupa a Presidência tem muitas dificuldades em unir o país.

Isso porque, quanto mais encarnar a luta por objetivos de governo, marcados por claras opções ideológicas, mais se distancia da unidade. Ao ser obrigada a se filiar a um partido político, mais se afasta, igualmente, da neutralidade que a função de Chefia de Estado exige. Surge, portanto, uma tragédia em termos de governança: a pessoa que ocupa a presidência não consegue unir o país, pois pelo arranjo institucional inerente ao sistema presidencialista ela é obrigada a representar um partido e a sua respectiva ideologia.

Esse é o motivo pelo qual, normalmente, metade do país odeia o seu presidente. Lembre dos últimos, dos que estão por vir, das crises de governo e do comportamento das respectivas oposições. Você já parou para pensar que nessa eterna polarização, caso o Brasil ingressasse em uma guerra, seria de se cogitar que metade das pessoas passasse a torcer pelo inimigo? Um país assim não tem um objetivo maior, pois não consegue eleger uma liderança que unifique o país.

O motivo, repita-se, é que o chefe de Estado no Brasil tem que se ligar, necessariamente, a uma ideologia e a um partido político, de modo que a oposição acaba, na prática, por se tornar adversaria do chefe de Estado. Entretanto, quando essa separação é institucionalmente assegurada, um partido pode naturalmente fazer oposição, vale dizer, ser contra o governo e simultaneamente a favor do Estado. A questão é que no sistema presidencialista de governo, tal como praticado no Brasil, essa distinção se mostra praticamente inviável.

Além disso, como abordei recentemente neste espaço,2 a falta de uma clareza quanto à necessidade de se distinguir o que é um órgão de Estado e de governo ameaça a própria democracia. Isso porque, se as instituições de Estado forem aparelhadas a partir de uma determinada ideologia, corre-se o risco de que venham a trabalhar apenas em proveito daqueles que ocupam o poder, sufocando a busca pela realização dos objetivos fundamentais da República, bem formulados no art. 3º da nossa atual Constituição Federal.

Em suma, o sistema presidencialista falha, na sua própria concepção interna, por não resolver esse dilema, que é o problema de unir, em uma única pessoa, as funções de Chefia de Estado e de Governo. O quadro se agrava quando percebemos que o sistema de governo previsto na Constituição avança em um segundo e grave equívoco: entrega ao Presidente da República, além da Chefia de Estado, a Chefia da Administração Federal.

Isso faz que as portas da Administração fiquem abertas ao constante aparelhamento político-partidário. São milhares de cargos e funções públicas que diuturnamente são livremente distribuídos, em um autêntico balcão de negócios, como moeda de troca na busca da governabilidade. A partir daí, para além da ameaça à democracia, surge outra inerente à própria racionalidade e eficiência que se esperam dos serviços públicos.

O ponto que quero destacar é que para obter uma base de apoio majoritário no Congresso Nacional os governos eleitos são compelidos a distribuir cargos na Administração como condição para a obtenção de um frágil e momentâneo apoio político, que se esvai com a mesma rapidez com que os ventos costumam mudar de direção.

As consequências para a população são manifestas. Incha-se a máquina pública, tornando-a onerosa, ao mesmo passo em que se diminui a qualidade dos serviços, pelo fato de que os técnicos são constantemente preteridos por apadrinhados. Troca-se a continuidade do planejamento por interesses de ocasião.

Na mesma direção, priorizam-se aspectos nada republicanos como emendas parlamentares, banalizando os princípios mais elementares de orçamento público, por força de uma pessoalização política que abafa o bom planejamento e eterniza a permanência de políticos no poder.

Perde-se tempo e a verba que poderia ser bem aplicada em investimentos desejados pela população acaba escoando na manutenção de uma máquina improdutiva, considerando a sua dimensão. É o retrato do puro desperdício e ineficiência, que se fazem sentir na ausência do Estado em locais estratégicos que demandariam pronta atenção por parte do Poder Público, como educação, saúde, segurança etc.

O pior é que os efeitos danosos não param por aí, já que se inverte toda uma lógica, típica da Administração. Administração, como ensinava Ruy Cirne Lima, significa a "atividade do que não é senhor absoluto", cujo traço característico é estar vinculada não a uma vontade livremente determinada, mas sim a um fim alheio à pessoa e aos interesses particulares de quem a exercita3.

O puro aparelhamento político-partidário da Administração Pública sepulta, em uma só penada, os princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade e eficiência. A capacidade técnica, que deveria ser o requisito essencial para o ingresso no serviço público, é colocada de lado em favor de conveniências políticas de ocasião.

O resultado é bem conhecido de todos nós. A população paga caro e não obtém serviços de qualidade, já que eficiência não se obtém sem conhecimento técnico. Esse é o custo de se abandonar a eficiência pela governabilidade a qualquer custo, que demonstra a falência do chamado presidencialismo de coalizão, que há muito tempo se tornou um presidencialismo de cooptação.

Toda essa descrição aponta que a crise de governança surge a partir de uma crise institucional, caracterizada pela cumulação das Chefias de Estado, de Governo e da Administração em uma única autoridade, traço típico do presidencialismo. Se Governo é Estado e Administração ao mesmo tempo, se favorecem a corrupção e os desmandos.

É verdade que não existem sistemas de governo perfeitos, até mesmo porque aqueles que deles fazem parte também não são perfeitos. Todavia, o chamado sistema parlamentarista de governo, ao partir da distinção de funções, como característica intrínseca, afirma-se como alternativa para o país. Vale dizer: se a separação institucional entre Estado, Governo e Administração for assegurada, tudo fica mais fácil.

É por essa razão que, na minha percepção, o arranjo institucional ultrapassado e ineficaz do presidencialismo foi o maior dos equívocos praticados na Constituinte de 1988. E, o mais grave, é que nas grandes discussões nacionais o tema costuma passar batido, ofuscado por problemas de menor envergadura. Isso costuma ocorrer em parte por alienação, na busca de prioridades, em parte por conveniência.

Ao fim e ao cabo, o dilema é o seguinte: muitos dos que se aproveitam do atual sistema são os que justamente teriam a responsabilidade institucional de aprimorá-lo.

__________

1 Vide, por todos, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Olhando para o futuro: os sistemas de governo e as crises de governança.  Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 RUY CIRNE LIMA. Princípios de Direito Administrativo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 21.