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Voto auditável: a impropriedade de uma narrativa

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Atualizado às 08:47

"A democracia é o exercício da liberdade com responsabilidade". Essa foi uma das frases proferidas pelo presidente do STF, Min. Luiz Fux, por ocasião do discurso de abertura do segundo semestre judiciário.1

Ela revela que estamos enfrentando tempos difíceis. É como se a democracia brasileira fosse constantemente testada em seu limite, sem qualquer garantia de que irá resistir a tamanhas provações.

Ultimamente, o debate em torno da introdução do sistema de votação auditável, como costuma ser denominado, tem atraído especial preocupação na comunidade jurídica. Desde cedo, despertou forte rejeição por parte de integrantes e ex-integrantes do TSE,2 ao mesmo tempo em que encontra simpatia por parte de seguidores do presidente da República. A discussão soa como interminável e, até o momento, está longe de gerar consensos mínimos.

Todos os temas ligados à manutenção da ordem democrática e à normalidade e legitimidade das eleições são considerados sensíveis, já que fora da democracia vigem o arbítrio, a intolerância e a barbárie. Zelar pela manutenção da democracia é, portanto, um objetivo nacional permanente. Não diz respeito apenas aos governos do dia, pois se afirma como verdadeiro objetivo de Estado, que emana dos valores supremos da Constituição, devendo unir toda sociedade.

Neste sentido, debater a melhora do sistema de votação não deve ser visto como algo ruim, pelo contrário. A existência de um processo eleitoral impermeável à fraude e à corrupção é, afinal de contas, uma das condições necessárias à manutenção de uma democracia funcional.3

A própria ordem constitucional exige dos poderes constituídos um dever de aperfeiçoamento constante, o que revela que a Constituição deve ficar aberta ao tempo, à medida que deve se mostrar apta a vencer os desafios do presente, ao mesmo tempo em que deve se mostrar apta a possibilitar o vencimento de uma grande diversidade de situações problemáticas que se transformam ao longo da história, adaptando-se, assim, às mudanças advindas da evolução e do desenvolvimento.4

O grande desafio é que as respectivas opções constitucionais oferecem, muitas vezes, caminhos distintos.5 É justamente nesta pluralidade de alternativas, mais ou menos viáveis, que a polarização na sociedade costuma acentuar-se. Algumas vezes, inclusive, beirando as raias do insuportável, sobretudo quando o debate se afasta da racionalidade. É exatamente esse o estágio atual das coisas que, atualmente, envolvem a discussão em torno do chamado voto auditável. É como se ignorássemos que é possível discordar com tolerância.

Vou direto ao ponto. Não há problema em se debater modificações no sistema de apuração no sufrágio universal, desde que respeitados os parâmetros constitucionais vigentes. Contudo, há um imenso problema quando se passa a condicionar a realização das próximas eleições à aprovação das modificações desejadas em torno do voto auditável.

As ameaças voltadas à não realização das eleições gerais no ano de 2022, que vêm sendo transmitidas por diferentes autoridades, por vezes de forma expressa, por outras de forma mais sutil, não apenas constrangem a democracia como também provocam um estado de incerteza em torno do futuro do país. São discursos que em nada contribuem para o bem-estar da nação, já que vocacionados a tumultuar o processo democrático e a conspurcar a legitimidade das eleições.

É importante que se perceba que até o presente momento não surgiu nenhuma prova sequer, por mínima que fosse, apta a demonstrar a existência de fraudes no processo eleitoral. O que existem são ilações escolhidas de modo à la carte, sem qualquer credibilidade, pois sempre de origem duvidosa, típicas de uma conjuntura de desinformação deliberada.

É até mesmo difícil imaginar como tais fraudes teriam ocorrido, considerando que aqueles que as apontam também foram eleitos pelo sistema vigente. Neste ponto, os imaginários autores das fraudes não deixariam de ter uma vertente democrática, se me permitem a ironia, já que diversas correntes dos espectros políticos acabaram sendo por elas beneficiados.

Quem duvida, bastar olhar para a pluralidade da representação política nos órgãos de representação coletiva e para os mais diferentes perfis de presidentes eleitos desde o advento do sistema eletrônico de votação. Deixando a ironia de lado, há que se rechaçar, com veemência, os comportamentos voltados a desacreditar a credibilidade das eleições, na ausência de provas minimamente confiáveis.

Neste cenário, afirma-se como gravíssima a afirmação por parte dos que apontam a existência de fraudes no processo eleitoral por meio de promessas de apresentação de provas, que se diluem nas palavras, já que nunca são reveladas de modo contundente.

Esse tipo de comportamento esconde uma narrativa que parece manifesta: servir de vacina, como se costuma dizer, para justificar eventual derrota no próximo pleito. Algo do tipo: se perdi, é porque roubaram! Se tal conduta não fosse ameaçadora dos pilares da democracia, poderia ser qualificada apenas como infantil. O problema é que ela esconde uma ameaça de desestabilização das instituições democráticas, ao incitar a desordem e, até mesmo, em um quadro extremo, a intervenção das Forças Armadas fora dos limites constitucionais.

Não se deve brincar com a democracia. Como obra imperfeita, ela carece de zelo permanente, sobretudo contra aqueles que, em seu nome e empregando as ferramentas que ela oferece, lutam para eliminá-la. De fato, os maiores algozes da democracia muitas vezes atuam como seus supostos defensores, de forma sorrateira.

Por todas essas razões penso que o modo como o debate em torno do voto auditável foi colocado na sociedade é o grande responsável pela sua fragilidade. Tivesse o debate se limitado a discutir o aperfeiçoamento do modelo vigente, na busca de maior transparência e credibilidade perante a população, estaríamos diante de uma situação mais racional e produtiva. Todavia, foi introduzido de forma a minar a credibilidade do atual sistema, sem qualquer prova e, o que é mais grave, em tom de ameaça.

Ao assim agir, os responsáveis acabaram por inviabilizar qualquer discussão racional em torno de um tema tão importante. É bom lembrar que a maioria das pessoas que milita pela modificação do sistema de apuração eleitoral defende sua posição de boa-fé, sem qualquer interesse em inviabilizar a convivência democrática.

Entretanto, todos sabemos, e bem, que há uma parcela que vive da discórdia, do tumulto e que acaba por se aproveitar da instabilidade para levar adiante projetos que em nada se compatibilizam com a democracia. É essa parcela que corrói as tentativas de aperfeiçoamento das instituições vigentes, sempre bem-vindas na democracia.

Feitas as críticas que entendo pertinentes, aponto aquele que deveria ser o caminho mais seguro, para pacificar a nação em torno da confiabilidade das eleições.

Caberia ao Congresso Nacional, sem a pressa de introduzir um novo sistema de forma integral já para as eleições de 2022, considerando o tempo necessário para a conversão de um novo modelo, convidar autoridades de países de tradição democrática para que apresentem a sua experiência no assunto, explicando, de forma clara e objetiva, qual o sistema de apuração de votos utilizam, os eventuais problemas que vivenciam e, se for o caso, as razões pelas quais não empregam um sistema semelhante ao nosso.

Aprender com a experiência de outras nações é um sinal não apenas de sabedoria, mas também de maturidade. Isso não significa que devemos importar, de forma acrítica, sistemas que produzam efeitos positivos em determinados países, pois muitas vezes estamos diante de realidades fáticas completamente diferentes. Entretanto, assim como a roda não é inventada todo o dia, é perfeitamente possível que boas ideias sejam passíveis de exportação e, se assim for o caso, delas podemos colher bons frutos.

Somente um debate suprapartidário e supraideológico poderá conduzir ao aperfeiçoamento do modelo vigente. Se for para apaziguar a nação, dentro do que se mostra viável e sem risco de se comprometer a natureza do voto secreto e a higidez da apuração, que se altere o sistema vigente, ainda que de modo gradativo, de acordo com as possibilidades técnicas vigentes.

Contudo, jamais se poderá condicionar tal necessidade à realização de eleições livres, já que a liberdade de se contestar o modelo vigente tem que, obrigatoriamente, ser exercida com responsabilidade que a nação espera dos seus líderes, sempre dentro dos limites da ordem constitucional, sob pena de ingressarmos no caos.

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1 Disponível aqui.

2 Veja aqui.

3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 36 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 131.

4 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999., Rdn. 23ss.

5 MÜLLER-GRAFF, Peter-Christian. Konstitutionalisierung der Europäischen Union als Option deutscher Politik. In: SCHNEIDER, Heinrich; JOPP, Mathias; SCHMALZ, Uwe. (Hrsg.). Eine neue deutsche Europapolitik? Rahmenbedingungen - Problemfelder - Optionen. Bonn: Europa Union Verlag, 2002, p. 737ss.