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O casuísmo da bengala

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Atualizado às 07:51

Tem-se por casuística a tomada de decisões políticas, legislativas ou judiciárias que buscam se esconder em argumentos falsos. Tais decisões, tomadas em face de casos concretos, vocacionadas a destinatários específicos, baseiam-se em conveniências momentâneas e não em convicções ou princípios consolidados.

A aprovação da PEC 159/20191 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados2, que reduz de 75 para 70 anos a aposentadoria compulsória dos servidores públicos - inclusive dos Ministros do STF - é um dos claros exemplos de decisões dessa natureza. Assim como a proposta "irmã" (PEC 32/2021), que eleva de 65 para 70 anos a idade máxima para o ingresso de novos membros nos Tribunais.3

O problema não é novo. De fato, no que diz respeito à modificação da idade fixada para a aposentadoria compulsória dos Ministros do STF, o casuísmo já havia se manifestado de forma cristalina.

A diferença é que, por critérios de conveniência ideológica e política, as vozes então contrárias à medida eram bem mais tímidas que as atuais, muito embora o casuísmo seja o mesmo. Uma breve retrospectiva dos fatos contribui para se chegar a essa conclusão.

O Congresso Nacional, em 2015, aprovou a chamada "PEC da Bengala", formalizada pela EC 88/2015, que com efeito imediato elevou de 70 para 75 anos de idade a aposentadoria compulsória dos Ministros do STF, dos Tribunais Superiores e do TCU.4

À época, dois foram os principais argumentos apresentados em favor da elevação da idade de aposentadoria compulsória dos servidores públicos. O primeiro dizia respeito à economia gerada aos cofres públicos, ao evitar aposentadorias precoces; o segundo apontava para o incremento da eficiência no serviço público, ao evitar desperdício de talentos por parte de servidores experientes.

Em verdade, um olhar atento à conjuntura política daquele momento revela que tais propósitos eram uma espécie de cortina de fumaça para um casuísmo escancarado.

O que realmente se pretendia, era retirar da então Presidente Dilma Rousseff a prerrogativa de indicar inúmeros ministros para o STF, caso tivesse permanecido no cargo até o final de seu mandato, em 2018.

Agora o fenômeno é o mesmo, porém em direção inversa. Com a revogação da EC 88/2015, visa-se a conferir ao Presidente Jair Bolsonaro a prerrogativa de nomear mais dois Ministros para o STF, até o final do seu mandato, no ano de 2022.

São vários os problemas que surgem ao se apoiar decisões de natureza meramente casuística. Em comum elas costumam, mais cedo ou mais tarde, contra-atacar seus defensores.

Por não se apoiarem em convicções que decorrem de princípios sólidos na forma de conceber a organização estatal, as decisões casuísticas acabam por gerar uma instabilidade nas próprias instituições.

Ao gerar instabilidade, abrem-se espaços para uma incessante conjuntura de dificuldades de diferentes intensidades. Com efeito, a PEC 159/2019 nada mais é do que a afirmação da máxima de que um erro leva a tantos outros.

Caso venha a ser aprovada pelo Congresso Nacional neste momento de instabilidade político-institucional, essa PEC tende a suscitar uma reação do STF, que provavelmente verá na inovação constitucional uma ameaça ao Tribunal.

Surgirá, assim, a necessidade de uma complexa argumentação constitucional, que contribuirá para acirrar ainda mais a tensão entre os Poderes da República.

Isto porque, abstratamente considerada, vale dizer, independentemente de segundas intenções que a motivaram, a PEC 159/2019 não seria inconstitucional, até mesmo porque restitui uma solução prevista na redação original da Constituição de 1988. A lógica é clara: o que nasceu constitucional não se torna inconstitucional na mesma Constituição.

Entretanto, se o exame constitucional se direcionar à natureza casuística da proposição, o que requer demonstração nem sempre fácil de ser revelada, considerando a natureza política do debate, aí as considerações que servirão de suporte à eventual declaração de inconstitucionalidade da proposição assumirão contornos bem distintos.

Isso porque existe uma vedação implícita na ordem constitucional, que aponta para a inconstitucionalidade da aprovação de espécies legislativas de conteúdo casuístico ou meramente discriminatório.

O fundamento dessa proibição repousa na necessidade de observância do princípio da igualdade, em particular em sua dimensão material, que afasta a edição de normas totalmente apartadas dos requisitos de generalidade e abstração.

Esse seria o caso de normas que, a pretexto de promoverem melhoramentos no ordenamento jurídico, miram, em verdade, indivíduos determinados. Usa-se a conveniência política para manipular o processo de alteração da Constituição, configurando, assim, o estado de inconstitucionalidade das chamadas leis individuais camufladas ou encobertas (Getarntes oder verdecktes Individualgesetz).5

Esse tipo de normas, inclusive na roupagem de emendas à Constituição, por se apartar totalmente dos requisitos de generalidade e abstração, acaba por criar privilégios e discriminações diversos, com a finalidade de atender a interesses não republicanos.

Ainda que se cogite que a PEC 159/2019 poderia ser aplicada somente aos futuros integrantes do STF, de modo a afastar a pecha de retaliação, ela não esconderia o inconveniente de criar duas categorias de Ministros dentro do mesmo órgão, aspecto que, invariavelmente, encontraria dificuldades de ser abrigado pela essência da igualdade.

Romper com a lógica de aprovação de Emendas Constitucionais casuísticas é um caminho necessário para se combater o arbítrio. Esse é o motivo pelo qual - repita-se - a alteração das regras de aposentadoria compulsória dos Ministros do STF não deveria ter sido realizada lá atrás, no ano de 2015.

O casuísmo que beneficia determinados grupos políticos é o mesmo que irá persegui-los no futuro, de modo que contra esse risco só há uma conduta possível: não manipular as regras de funcionamento das instituições à luz de meros interesses políticos e de poder.

Ao desestabilizar as instituições, a tomada de decisões casuísticas gera prejuízos incalculáveis, contribuindo para a irracionalidade do seu funcionamento.

Para tanto, é bom lembrar que a democracia, em sua dimensão substancial, não se compatibiliza com as posturas individualistas, ligadas a grupos ou corporações, sob pena de sucumbir, golpeando o interesse coletivo.6

Tivesse o Congresso Nacional se privado de interferir de forma casuística na aposentadoria compulsória dos Ministros do STF no ano de 2015, a atual polêmica seria totalmente desnecessária.

Por fim, outra consequência devastadora das decisões de natureza casuística: elas ofuscam a necessidade do bom debate em torno de aprimoramentos institucionais.

Ao se misturarem aos grandes e preciosos temas do debate político, costuma-se colocar na rede de argumentação contrária às boas mudanças a alegação de que as inovações positivas também seriam casuísticas.

Ingressa-se, assim, em um emaranhado de discussões que levam à paralisia institucional, impedindo o necessário aprimoramento, com o efeito de estagnar a evolução.

Cabe ao bom debate separar o joio do trigo. Nem toda modificação deve ser vista como indevida, pelo contrário. Há mudanças que são urgentemente necessárias, inclusive com impacto no funcionamento do próprio STF.

Dentre elas não se situa a discussão da revogação da "PEC da bengala", nem a que aumenta a idade para nomeação de novos membros dos Tribunais, ao menos no atual e conturbado momento político que o país vive.

Modificações casuísticas: é disso que se trata o debate travado pelas PECs em análise.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

Disponível aqui.

Disponível aqui.

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte Staatsrecht II. 25. neu neubearbeitete Auflage. Heidelberg: Müller, 2009, Rdn. 322.

6 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 9.