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Vacinas e covid-19: O que esperar?

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Atualizado às 07:36

Texto de autoria de Fernanda Schaefer

A corrida pela imunização

Em períodos normais o tempo médio para a liberação de uma vacina para o mercado de consumo é de uma década (entre a pesquisa, as fases pré-clínica e clínica e a autorização final). No entanto, quando o mundo enfrenta epidemias e pandemias1 altamente transmissíveis a corrida pela disponibilização de métodos preventivos é acelerada e isso implica também em abreviar os ensaios pré-clínicos e clínicos.

Assim, por exemplo, para conter o surto da SARS (gripe aviária), em 2003, levaram-se vinte meses para a disponibilização comercial das primeiras doses da vacina. Ebola, 2014, foram sete meses. Zika, 2016, foram seis meses! E para a Covid-19?

Tão logo o novo vírus foi identificado, diversos países e laboratórios começaram a se mobilizar para encontrar as melhores e mais eficazes formas de imunização. Em março os primeiros testes clínicos em humanos tiveram início. No momento em que esse ensaio é escrito, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, estão em pesquisa 165 vacinas, dessas 31 estão em fase de testes em humanos, sendo que apenas oito estão na Fase 3 que valida a segurança e eficácia da vacina e é a última antes da autorização de emergência2.

Grande parte dessas pesquisas possivelmente falharão e outras tantas terão sucesso estimulando o sistema imunológico a combater o SARS-CoV-2. No entanto, para que essas vacinas sejam disponibilizadas ao mercado e aos sistemas públicos de saúde é preciso que além de sucesso nos testes clínicos, obtenham uma autorização de emergência3.

No último dia 12 de agosto a Rússia surpreendeu o mundo aprovando a primeira vacina para prevenção da Covid-19 desenvolvida pelo Centro Nacional de Pesquisa Gamaleya e apelidada de Sputnik V. No anúncio o Presidente russo informou que a produção em larga escala deve começar em setembro, a imunização da população nacional deve iniciar ainda em outubro e até o final do ano a vacina deve ser disponibilizada a outros países parceiros (inclusive o Brasil). A vacina russa é cercada de mistérios porque embora tenha tido financiamento público e tenha sido oficialmente liberada por aquele país, segundo a OMS estaria ainda na Fase 1 de testes clínicos, não tendo sido seus resultados divulgados detalhadamente até o momento.

A corrida pelo lançamento comercial das vacinas conduz às seguintes perguntas: quão rápido pode ser feito com garantia de segurança para os imunizados? Quem poderá ser responsabilizado em caso de dano? O presente ensaio, a partir de revisão bibliográfica, não pretende esgotar o tema, mas sim, lançar as primeiras linhas de uma discussão que merecerá ser cuidadosamente aprofundada.

Vacinar ou não vacinar: eis a questão!

A imunização capacita "um organismo para identificar e eliminar organismos estranhos"4. As vacinas constituem um tipo de imunização que para doenças de alta taxa de transmissão vêm historicamente se apresentando como o método mais eficaz de intervenção e de prevenção epidemiológica.

Vacinar "é criar artificialmente e sem riscos, um estado de proteção contra determinadas doenças infectocontagiosas"5. As vacinas "são substâncias biológicas, preparadas a partir dos microorganismos causadores das doenças (bactérias ou vírus), modificados laboratorialmente, de forma a perderem a sua potência de provocar a doença"6.

Tratando-se de imunização fundamentada em necessidade médica autoriza-se sua incorporação a serviços públicos de saúde que podem optar por oferecê-la de maneira compulsória, obrigatória ou facultativa, escolha que vai ser determinada pelos objetivos da imunização previamente determinados pela autoridade sanitária.

Por compulsória entende-se aquela sobre a qual não resta nenhuma margem de autonomia, o indivíduo deve se submeter à imunização, independente de querer a ela aderir. A compulsoriedade justificaria, inclusive, o uso da coação física (como ocorreu na Revolta da Vacina). Já a vacinação obrigatória permite uma certa dose de exercício da autonomia porque não conduz à submissão forçada, embora leis possam trazer restrições ao exercício de diversos direitos caso a pessoa não se submeta à imunização. E a vacinação facultativa é aquela que decorre da livre adesão, sendo ampla a autonomia em se imunizar ou não7.

As autoridades públicas brasileiras ainda não apresentaram as regras de incorporação das novas vacinas ao SUS, mas a experiência pretérita (por exemplo com a H1N1) indica que eventual imunização será oferecida à população com adesão facultativa (mesmo diante da gravidade da Covid-19) estabelecendo-se ordens de preferências que ainda deverão ser determinadas ou que poderão seguir os protocolos já estabelecidos para a vacinação de outras gripes: idosos, crianças (0 a 11 anos), grávidas, profissionais de saúde envolvidos na resposta à pandemia, indígenas, pessoas com doenças crônicas e assim por diante. Ainda assim, dentro desses grupos podem ser estabelecidas outras prioridades.

Sendo de adesão facultativa prevalecerá o espaço de liberdade individual que certamente levará em consideração as informações prestadas pelos órgãos públicos e meios de comunicação. No entanto, sendo disponibilizada de maneira obrigatória os espaços de liberdade individual ficam mitigados em razão do princípios da solidariedade social e em casos de crianças e adolescentes pelo princípio do melhor interesse8.

Enquanto as vacinas não chegam ao mercado e os protocolos não são divulgados, outra questão se apresenta: uma vez disponibilizadas de forma privada (farmácias, clínicas, etc.) ou pelo Sistema Único de Saúde e vindo a causar efeitos adversos poderiam ser os laboratórios responsabilizados pelos danos causados?

Autorização de emergência e risco de desenvolvimento

Do ponto de vista epidemiológico as vacinas destacam-se pelo seu alto grau de eficiência e pelo custo-benefício e, por isso, o grande esforço mundial em desenvolver rapidamente uma imunização contra a Covid-19. No entanto, ao encurtar os testes clínicos os riscos de efeitos indesejáveis9 serem verificados após a chegada da vacina no mercado são altos.

Por isso, alguns executivos dos laboratórios envolvidos nas pesquisas das vacinas, como Ruud Dobber10 da AstraZeneca, recentemente se manifestaram afirmando estarem as empresas protegidas de eventuais processos colocando cláusulas excludentes de responsabilidade em acordos de cooperação firmados com diversos países para a fabricação do imunizante, transferindo todo o risco aos contratantes.

Dessa declaração duas perguntas podem ser feitas: 1- podem os países aderentes realmente assumir todo o risco por eventuais efeitos adversos futuramente apresentados; 2- o risco do desenvolvimento poderia ser invocado como excludente de responsabilidade? Neste ensaio, concentraremos nossas primeiras reflexões na segunda pergunta.

O fast track adotado para se chegar às autorizações de emergência para disponibilização das vacinas no mercado não permite por si só qualquer isenção de responsabilidade sobre eventuais efeitos adversos, mesmo porque, são autorizações temporárias que não dispensam a continuidade das pesquisas e práticas de farmacovigilância.

O próprio Código de Defesa do Consumidor (norma de ordem pública e interesse social) é claro ao determinar que o fornecedor tem um dever indelegável de vigilância sobre os produtos e serviços que oferece ao mercado, devendo também informar sobre qualquer nocividade ou periculosidade (critérios objetivos) que possa colocar em risco a saúde e a segurança do consumidor (arts. 8o. a 10, CDC).

Por isso, na análise concreta deverá se verificar se o dano pode ser considerado oriundo de risco inerente (intrínseco ou latente) do fármaco sendo, portanto, tolerável porque previsível, ou se o evento extrapola a segurança que legitimamente da vacina se espera, trazendo graves riscos e/ou danos aos consumidores (risco adquirido).

Sendo o risco adquirido (ultrapassando a esfera da previsibilidade) no caso das vacinas desenvolvidas em tempo recorde para o combate à Covid-10 poderíamos retornar à questão do risco do desenvolvimento11, conceito jurídico indeterminado que poderia ser invocado como excludente de responsabilidade em situações de fato do produto.

Costuma-se afirmar que o risco do desenvolvimento poderá ser considerado uma excludente de responsabilidade se o fornecedor não tinha conhecimento dos efeitos nocivos em relação ao produto e, por isso, não os revelou ao mercado, não advertindo o consumidor. No entanto, para isso, deverá demonstrar que a técnica e o conhecimento científico disponível na época em que o produto foi colocado no mercado não lhe permitia ter conhecimento ou previsibilidade sobre esses riscos.

O estado da técnica é, portanto, importante para a análise. É a partir dela que se poderá determinar se o efeito nocivo foi negligenciado pelo laboratório, o que não o eximiria de responsabilidade ou se realmente era impossível detectar a nocividade ou periculosidade em razão do desenvolvimento científico disponível no momento do desenvolvimento da vacina. E ainda, assim, essa causa excludente não seria de aceitação pacífica na doutrina.

Resta evidente, portanto, que a mera urgência em combater a epidemia que permite atropelar etapas de pesquisa clínica não é por si só suficiente para excluir qualquer responsabilidade por dano que eventualmente essas vacinas possam causar aos consumidores, mesmo porque, em busca de altíssimos lucros com o imunizante os próprios laboratórios assumem o risco do fast track.

As epidemias e pandemias exigem rápida ação não só para contê-las, mas também para preveni-las. No entanto, o encurtamento das fases de pesquisa clínica para possibilitar a rápida chegada de vacinas no mercado não pode autorizar práticas que coloquem em risco a saúde humana já fragilizada em razão da própria ameaça do vírus que se deseja combater.

As primeiras reflexões deixadas aqui dão conta de que embora a pressa em combater o vírus que assola o mundo justifique as autorizações de emergência para medicamentos e vacinas, não justificam a priori e pelo princípio da precaução e da reparação integral qualquer isenção de responsabilidade dos laboratórios.

Portanto, as boas práticas de farmacovigilância após o ingresso dos medicamentos e vacinas no mercado não só serão extremamente importantes para garantir a segurança e eficácia que legitimamente se espera desses imunizantes, mas também para justificar (ou não) eventual exclusão de responsabilidade.

Não se trata de exigir que as vacinas sejam completamente isentas de risco, pois isso seria irrealizável. Trata-se de afirmar que a urgência não justifica a priori qualquer isenção de responsabilidade do fornecedor por riscos que extrapolem a previsibilidade ou violem a segurança que delas legitimamente se pode esperar, especialmente porque o objeto aqui tutelado é a saúde individual e coletiva.

Referências bibliográficas

AztraZeneca está protegida de processos por efeitos colaterais de vacina contra Covid-19, diz executivo. Disponível aqui. Acesso em 30 de jul. 20.

CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelo risco do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

Draft landscape of covid-19 candidate vaccines. Disponível aqui. Acesso em 13 ago 2020.

Governo do Paraná assina memorando técnico com a Rússia para estudar vacina. Agência de Notícias do Paraná. Disponível aqui. Acesso em 12 ago. 2020.

PNI. Ministério da Saúde. Disponível em: . Acesso em 07 abr. 2020.

ROTHBARTH, Renata. Vacinação: direito ou dever? A emergência de um paradoxo sanitário e suas consequências para a saúde pública. USP. Faculdade de Saúde Pública, dissertação de Mestrado, 2018, 153p., p. 11.

SCHAEFER, Fernanda. Vacinação obrigatória: entre o interesse individual e o social. A possibilidade de responsabilização civil em caso de recusa à imunização. In: ROSENVALD, Nelson. Coronavírus e responsabilidade civil. Indaiatuba: Foco, 2020. p. 417-428.

______. Autoridade parental e vacinação obrigatória. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana (Coords.). Autoridade parental. Dilemas e desafios contemporâneos. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 245-262.

SCHENKEL, Eloir Paulo (Org.). Cuidado com os medicamentos. 5ª. ed. Rio Grande do Sul: UFSC, 2013).

*Fernanda Schaefer é advogada. Pós-doutorado no Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora e coordenadora da pós-graduação Lato Sensu em Direito Médico do UniCuritiba e professora de Direito Civil e Biodireito do Curso de Direito.

__________

1 A organização Mundial da Saúde declarou em 11 de março a situação de emergência sanitária de interesse internacional (pandemia) em razão do SARS-CoV-2.

2 Vide: Draft landscape of covid-19 candidate vaccines. Disponível aqui. Acesso em 13 ago 2020. Estão na Fase 3: University of Oxford/AstraZeneca; Sinovac; Wuhan Institute of Biological Products/Sinopharm; Beijing Institute of Biological Products/Sinopharm; Moderna/NIAID, CanSino Biologics, Murdoh Children's Research Institute e BioNTech/FOsun Pharma/Pfizer.

3 No mesmo dia o Governo do Estado do Paraná assinou acordo com o Fundo de Investimento Direto da Rússia para ampliar a cooperação técnica para o desenvolvimento da vacina por institutos estaduais. Vide aqui. Acesso em 12 ago. 2020.

4 ROTHBARTH, Renata. Vacinação: direito ou dever? A emergência de um paradoxo sanitário e suas consequências para a saúde pública. USP. Faculdade de Saúde Pública, dissertação de Mestrado, 2018, 153p., p. 11.

5 PNI. Ministério da Saúde. Disponível em: . Acesso em 07 abr. 2020.

6 PNI, loc. cit.

7 SCHAEFER, Fernanda. Vacinação obrigatória: entre o interesse individual e o social. A possibilidade de responsabilização civil em caso de recusa à imunização. In: ROSENVALD, Nelson. Coronavírus e responsabilidade civil. Indaiatuba: Foco, 2020. p. 417-428.

8 Sobre o assunto leia: SCHAEFER, Fernanda. Vacinação obrigatória: entre o interesse individual e o social. A possibilidade de responsabilização civil em caso de recusa à imunização. In: ROSENVALD, Nelson. Coronavírus e responsabilidade civil. Indaiatuba: Foco, 2020. p. 417-428.

SCHAEFER, Fernanda. Autoridade parental e vacinação obrigatória. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana (Coords.). Autoridade parental. Dilemas e desafios contemporâneos. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 245-262.

9 "Os termos efeito indesejável, reação adversa, doença iatrogênica ou paraefeito referem-se a qualquer efeito prejudicial ou indesejável que ocorra após a utilização dos medicamentos nas doses normalmente utilizada no homem para a profilaxia, diagnóstico ou tratamento de doenças ou sintomas. Frequentemente esses efeitos são pouco graves, mas eventualmente podem ser responsáveis por distúrbios irreversíveis ou morte. [...]. Existem indicando que 3 a 6% das internações em hospitais seriam devidos a esse problema" (SCHENKEL, Eloir Paulo (Org.). Cuidado com os medicamentos. 5ª. ed. Rio Grande do Sul: UFSC, 2013).

10 Vide aqui. Acesso em 30 de jul. 20.

11 Calixto (2004, p. 176) afirma que Antônio Herman Benjamin e James Marins respectivamente afirmam que "o risco do desenvolvimento é 'aquele risco que não pode ser cientificamente conhecido ao momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto e do serviço'; para o último autor citado o risco do desenvolvimento é a 'possibilidade de que um determinado produto venha a ser introduzido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda que exaustivamente testado, ante o grau de conhecimento científico disponível à época de sua introdução, ocorrendo todavia que, posteriormente, decorrido determinado período do início de sua circulação no mercado de consumo, venha a se detectar defeito, somente identificável ante a evolução dos meios técnicos e científicos, capaz de causar danos aos consumidores'".