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Um adeus às armas: repensando a guerra às drogas

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Atualizado às 08:01

A dita "Guerra às Drogas" é um fenômeno próprio do século XX. Num primeiro momento, nasceu em meio à histeria quanto aos efeitos das drogas ilícitas, misturando o compreensível receio com os medos da dependência química com uma visão moralizante da sociedade e da política de saúde - não se perca de vista que os filmes que destacavam os supostos perigos do consumo da Cannabis são contemporâneos à vigência, nos Estados Unidos da América, da chamada "Lei Seca", que visou a proibir, por emenda constitucional e lei federal, o consumo de bebidas alcoólicas naquele país. Em segundo momento, na década de 1970, e por interesses escusos da  Administração Nixon (em reprimir o consumo de drogas tanto por motivos raciais e de migração, mas também para abrir novo flanco no enfrentamento à contracultura, aos estudantes universitários e ao movimento pelo fim na Guerra do Vietnã), a "Guerra às Drogas" se torna global: a delegação dos Estados Unidos da América foi determinante em manobrar a orientação das organizações internacionais, em especial o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) a adotar tratados internacionais extremamente restritivos no tocante às obrigações assumidas pelos Estados-membros da Organização das Nações Unidas na criminalização das condutas de tráfico ilícito de drogas. A título de exemplo, os artigos 21 a 23 da Convenção das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, que demandam a implementação de medidas criminais contra o tráfico ilegal de drogas (Artigo 22.1.a), sendo permitido ao Estado tratar com mais rigor do que o previsto no arranjo internacional (Artigo 23), mas nunca de modo menos severo. Cumpre anotar que a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 foi peça determinante para a adoção da primeira Lei de Drogas, lei Federal 6.368/1976 - da qual a atual terceira Lei de Drogas, lei Federal 11.343/2006, é produto direto.

Entre uma e outra Lei de Drogas, a Constituição da República de 1988 (que tornou o tráfico ilícito de drogas um crime equiparado aos crimes hediondos, com as restrições previstas no art. 5º, inciso XLIII) e a Lei dos Crimes Hediondos (lei Federal 8.072/1990) foram peças chave de um recrudescimento do tratamento do crime de tráfico ilícito de drogas, antes mesmo do aumento de pena trazido pela atual Lei de Drogas, combinado com as (inconstitucionais) previsões de regime inicialmente fechado obrigatório a todos os condenados por tráfico, bem como de proibição da conversão da pena privativa de liberdade em penas restritivas de direitos. Até que o Poder Judiciário pudesse, paulatinamente, decotar os exageros punitivos constantes das disposições legais, muitos foram levados ao cárcere de modo antecipado e indevido, e nele mantidos em regime incongruente à gravidade do crime e aos antecedentes do condenado, ou mesmo quando cabível a substituição por penas alternativas. Os dados não mentem: a população carcerária brasileira quase decuplicou no intervalo entre 1990 e 2008, com as correlatas consequências que um aumento brutal como esse acarreta - o surgimento das facções criminosas modernas, que operam de dentro dos presídios e causam intensa insegurança do lado de fora dos muros; o aumento do recrutamento nas comunidades pobres e carentes de ação estatal, perdendo duas gerações para a morte precoce nos enfrentamentos entre organizações criminosas, ou dessas organizações contra a polícia, ou para a prisão e seu aspecto estigmatizante (uma vez "bandido", dificilmente se sai do caminho do crime); o crescimento dos homicídios, do tráfico de armas de grosso calibre, da lavagem de dinheiro, enfim, de todos os crimes acessórios ao mercado proibido do tráfico.

Os míseros avanços da atual Lei de Drogas - retirar a pena de prisão da conduta de porte de drogas para uso próprio, sem, contudo, retirar-lhe o caráter de ilícito penal (art. 28); conferir igualdade entre a pequena produção de droga, para consumo próprio, e o porte de droga para consumo próprio (art. 28, § 1º); conferir ao traficante ocasional redução de pena expressiva (art. 33, caput e § 4º); e prever a figura do tráfico-uso (art. 33, § 3º) - não se contrapõem perfeitamente ao que a Lei agrava: o aumento das penas mínima e máxima previstas para o crime de tráfico ilícito de drogas (art. 33, caput); a previsão exacerbada da prisão preventiva e da prisão temporária nos crimes de tráfico (art. 44); a conversão do concurso eventual de pessoas em figura típica própria e não mais em causa de aumento de penal (art. 35); a criação de novos tipos legais de crime, para punir a associação para o tráfico (arts. 36 e 37); entre outras modificações mais gravosas. Embora pareça mostrar face progressista, a vigente Lei de Drogas é peça chave de uma política social de repressão e de contenção dos negros, pobres e jovens usualmente selecionados pelo sistema penal, enquanto mal se emprega, na mídia, o título "traficante" para descrever o acusado branco, de maior poder aquisitivo. A seletividade da Lei, que muitas vezes começa na ação ostensiva da Polícia Militar e vai sendo convalidada, acriticamente, pelo Ministério Público e pelas sucessivas instâncias judiciais, é o mais nítido e mais danoso efeito colateral da lei Federal 11.343/2006.

O legado da "Guerra às Drogas" não ficou restrito aos países fabricantes de drogas, como a Bolívia ou a Colômbia, nem aos países consumidores na América do Norte ou na Europa, nem tampouco aos países consumidores de menor poderio econômico, que ficam na rota do tráfico, como é o caso do Brasil. Tal como doença contagiosa, nenhum canto do planeta escapou às suas consequências danosas e perniciosas. A explosão das populações carcerárias, o aumento do poder de fogo das organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, a violência nas disputas territoriais de mercados de venda, todos esses efeitos foram percebidos em escala global. Não seria equivocado perguntar se, nessa "Guerra", o direito e as forças de aplicação da lei estão vencendo, ou perdendo, e por muito.

De fato, quando se coloca o preço, em vidas, da dita "Guerra às Drogas", é impossível não pensar que, ante o conflito de mais de setenta anos, sem sucesso à vista, contra um "inimigo" tão antigo quanto a humanidade e muito mais antigo do que o aparato penal do Estado contemporâneo, qualquer alternativa, por pior que seja, ainda não será tão ruim quanto o status quo. Não se defende, em absoluto, que simplesmente o Estado bata em retirada: mas que adote, o quanto antes, uma visão racional do problema, sem preconceitos, sem apostar nas velhas fórmulas falidas para os mesmos problemas de sempre. A início, considerar que nem todo uso de droga (ilícita) implica dependência; que a dependência química deve ser considerada como questão de saúde pública, e não de política criminal; que o tráfico só se torna lucrativo porque a criminalização demanda a sua clandestinidade; e que a melhor abordagem ao traficante eventual é lhe estender a chance de escapar da sobrevida no crime, dando-lhe oportunidades reais de ressocialização. Rompendo a cadeia de transmissão entre o tráfico ocasional, o encarceramento em massa e o tráfico organizado, desidrata-se este último, reduzindo a criminalidade e, em última análise, salvando vidas.

No início do mês de setembro de 2020, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu Habeas Corpus coletivo a mais de mil condenados que estavam presos, em regime fechado, pelo crime de tráfico de drogas ocasional, em São Paulo. Essa decisão, pautada na lei e em muitos precedentes, envia um forte sinal aos Tribunais de todo o país que insistiam, por ideologia, em ignorar a letra expressa da lei. Em termos contundentes, o Superior Tribunal de Justiça deixou claro não ser mais admissível, nessa quadra, aplicar a Lei de Drogas como se não existissem, ou não tivessem importância, em prol de uma visão punitivista do teor da norma. Levar a sério os direitos fundamentais dos apenados por tráfico ocasional de drogas é um sólido passo no sentido de rever as práticas do sistema penal quanto a esse público.

Em Minas Gerais, um corajoso grupo de profissionais do Direito - juízes, integrantes do Ministério Público, Defensores Públicos e advogados - deflagrou um movimento por um tratamento mais racional e socialmente adequado das figuras de crime previstas na Lei de Drogas. Intitulando-se "Repensando a Guerra às Drogas", estes líderes pretendem criticar e, em tempo, reformar as rotinas viciadas do sistema de Justiça Criminal - que, a um só tempo, consegue prender muito e prender mal. O grupo não pretende extrapolar sua capacidade, sugerindo reformas legislativas, mas demandar, por suas ações e manifestações, que a aplicação da Lei de Drogas respeite os marcos constitucionais vigentes, sem abusos ou violências. Aplicar a lei, a tempo e modo, já é uma guinada de 180º no tratamento da política criminal de drogas no Brasil, e porque o movimento parte internamente da Magistratura e do Ministério Público, espera-se que surta mais efeitos do que os lamentos da Academia jurídica, que desde a vigência da Lei de Drogas de 1976, já se insurge contra a irracionalidade dessa política pública.

Lá fora, já se ensaia um terceiro momento da "Guerra às Drogas": o seu fim. Nos Estados Unidos da América, em julho de 2020, a Cannabis recreativa é legal em 11 Estados e no Distrito de Colúmbia. Justamente no berço da "Guerra às Drogas", principia o movimento de superação da visão de enfrentamento bélico, em prol de uma legalização parcial e profundamente pautada pela visão de negócios: há fortuna a ser feita no mercado de fabricação e de comercialização da maconha medicinal e recreativa, e são poucos os que podem se dar ao luxo de desprezar esse mercado promissor.

Por aqui, ainda parece distante o horizonte da reforma legislativa. Contudo, superar a "Guerra às Drogas", por de lado as armas e salvar vidas, não é tarefa para outro dia, mas para hoje. Cumpre aos operadores do Direito, em todos os seus âmbitos de ação na seara criminal, oferecer seus esforços para que o aparelho estatal deixe de figurar entre os agressores, e passe a militar em prol da vida e da paz.

*Marcelo Sarsur é advogado criminalista, integrante da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/MG e coordenador da Setorial de Justiça e Segurança Pública do movimento Livres.