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A confusão entre sexo e gênero e seus impactos jurídicos

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Atualizado às 08:13

Um dos pontos mais nucleares de toda e qualquer discussão que tenha a sexualidade como base reside na perfeita compreensão dos elementos que a compõem, tendo sido essa a perspectiva que norteou a elaboração do texto inaugural da presente coluna, onde relatamos a recorrente confusão existente entre os conceitos de sexo e de gênero.

Nos termos ali expostos, o sexo é recorte da sexualidade que está vinculado com as características físicas ou cromossômicas do indivíduo, e que dividiria as pessoas entre aquelas que são homens/machos e mulheres/fêmeas, existindo ainda a possibilidade das pessoas intersexo1, que são aquelas que não se inserem perfeitamente em nenhum dos espectros do binarismo.

De outra sorte, quando tratamos de gênero, estamos diante de uma questão que não se atém a critérios físicos ou genéticos, mas que lastreia-se no âmbito da expressão social que é ordinariamente atribuída a quem tem o sexo homem/macho ou mulher/fêmea, nomeadas, respectivamente, como masculino e feminino.

Com isso, temos que aqueles que apresentam os traços regularmente relacionados ao homem/macho, como a força física, a virilidade, a cor azul, entre outros, revelam o masculino (gênero), enquanto quem traz consigo aqueles atributos usualmente associados à mulher/fêmea, como a fragilidade, a delicadeza, a utilização da cor rosa e de saia, por exemplo, pertencem ao gênero feminino2. Todavia não se pode olvidar que mesmo aqui não há como se trabalhar com esse binarismo de linhas tão claras, vez que muitas pessoas não se enquadram nesses limites, apresentando uma condição de gênero distinta daquelas tradicionalmente consideradas, a ponto de a Comissão de Direitos Humanos de Nova York (EUA) ter oficializado o reconhecimento de 31 tipos de gêneros distintos3.

De se notar que, não obstante uma conexão com o sexo anatômico, o gênero não apresenta uma necessária vinculação com ele, notadamente por ter uma base sociocultural e não biológica4, que faz com que nem toda pessoa do sexo homem/macho tenha o masculino como gênero, tampouco com que toda mulher/fêmea identifique-se com o gênero feminino.

Assim, em um sentido eminentemente técnico, é de se afirmar que sexo pode ser homem/macho, mulher/fêmea e intersexo, segundo traços físicos genitais e do aparelho reprodutor, gônadas e produção hormonal ou composição cromossômica.

Ressalta-se que a despeito de toda a complexidade que envolve o tema, com a existência de uma ampla gama de estados intersexo, atualmente a forma ordinária de fixação do sexo das pessoas se dá meramente pela constatação realizada quando no nascimento de uma criança por parte do médico que, de maneira simplista, atesta ser "menino" aquela criança que apresenta pênis e bolsa escrotal e "menina" quem, por exclusão, aparenta não possuir tal estrutura, mas sim uma vagina.

Apesar disso, em que pese os aspectos relativos ao sexo serem "homem/macho", "mulher/fêmea" e intersexo (englobando em si uma série de possibilidades), se consolidou no Brasil afirmar que o sexo seria "masculino" e "feminino", expressões afeitas ao contexto do gênero, sem considerar as variáveis intersexo. Ou seja, são dois equívocos concomitantes e institucionalizados que permeiam o exame do tema: considerar apenas uma visão binária e trazer uma nomenclatura que não se atenta à técnica.

Tendo acesso a tais informações faz-se mister apreciar o tema de forma abrangente visando compreender os motivos pelos quais tais equívocos se consolidaram e, em seguida, propor soluções.

O binarismo quanto a informação acerca do sexo nos documentos nunca foi estabelecido pela lei, especialmente ao se considerar que a Lei de Registros Público (Lei 6.015/73) assevera apenas que no assento de nascimento haverá de constar o sexo do registrando (art. 54, 2º), sem qualquer menção ao binarismo ou a quais expressões que haveriam de estar ali consignadas.

Considerando que o Registro Civil de Nascimento (RCN) é documento preenchido com base no que consta da Declaração de Nascido Vivo (DNV) que o precede, especificamente quanto as questões que se relacionam a caracteres físicos constatados pelos médicos quando do nascimento, é relevante deitar os olhos sobre o seu conteúdo.

A Lei 12.662/12, que "assegura validade nacional à Declaração de Nascido Vivo - DNV" e regula sua expedição, prevê expressamente no art. 4º, III que da referida declaração deverá constar a informação quanto ao sexo do recém-nascido, sem que, novamente, faça qualquer previsão que indique o sexo como "masculino" ou "feminino"5. Qual seria, então, a origem do masculino e feminino nos documentos?

A questão aqui exposta tem como fonte a Portaria 116/09 da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde que padroniza a Declaração de Nascido Vivo (DNV), estabelecendo em seu art. 11 que o formulário a ser utilizado é o previsto em seu Anexo II. E é exatamente aqui que encontramos o nascedouro oficial do problema, pois o documento padrão a ser utilizado traz no campo 30, destinado ao sexo, três alternativas distintas a serem assinaladas: M - Masculino, F - Feminino e I - Ignorado, em total discrepância com os referenciais técnicos científicos vigentes.

A construção dada ao formulário da Declaração de Nascido Vivo (DNV) demonstra ainda uma atuação do secretário da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde que extrapola totalmente as atribuições a ele conferidas.

Em que pese ser responsável pela fixação de um documento padrão a ser utilizado para a Declaração de Nascido Vivo (DNV) não cabe a ele fixar as alternativas que podem ser indicadas no espaço destinado ao sexo, seja por não haver a imposição de que se trate de um campo com alternativas (e não "aberto" para que se pudesse apor ali textualmente a informação adequada) bem como por utilizar um critério que ignora o conhecimento científico estabelecido.

Ainda que se supere a falta de obrigatoriedade de um campo com alternativas a serem assinaladas, ao estabelecer as variáveis possíveis, ante a complexidade que envolve a compreensão das perspectivas não binárias, seria de se colocar a possibilidade de "I - Intersexo" ou mesmo "O - Outros", conferindo ao profissional que viesse a preencher o formulário a prerrogativa de indicar efetivamente o sexo daquele recém-nascido. Ao fazer a opção por "I - Ignorado", que, além de não ser um dos sexos cientificamente reconhecidos tem o condão de gerar uma perversa exclusão dos corpos intersexo, a escolha realizada pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde na Portaria 116/09 traz também o grave equívoco de dar a impressão de que existiria um sexo "ignorado", além de restringir a autonomia do médico que não teria como declarar o nascimento de uma criança intersexo já que esse é um sexo que não é "ignorado" e tampouco se enquadra na opção de "masculino" ou "feminino".

Esse modelo de formulário para a Declaração de Nascido Vivo (DNV) institucionalizado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde na Portaria 116/09 é o responsável ordinário por inúmeros dos graves problemas vivenciados pelas pessoas intersexo e seus familiares, pois não são poucos os relatos de que Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais negavam-se a fazer o Registro Civil de Nascimento (RCN) quando a Declaração de Nascido Vivo (DNV) indicava o sexo como sendo "I - Ignorado", por sustentar que essa não era uma hipótese de sexo, muitas vezes compelindo os pais a retornar ao hospital para resolver tal situação. E a solução recorrente era a imposição da realização de cirurgias com o objetivo de fazer uma "adequação" da genitália daquele recém-nascido para que pudesse ser enquadrado como alguém com fenótipo coerente com os limites impostos pela binaridade.

Em alguma medida pode-se afirmar que em sede registral o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atuou a fim de garantir o registro fora das amarras da binaridade, quando, após toda a discussão entabulada em decorrência do Ato Normativo nº 0003734-85.2020.2.00.0000, elaborou o Provimento 122/21, em que dispõe sobre o assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais nos casos em que o campo sexo da Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou na Declaração de Óbito (DO) fetal tenha sido preenchido 'ignorado'". Muito nos honra saber que em manifestação realizada no referido Ato Normativo pudemos contribuir com a construção de parecer solicitado pela ABRAI (Associação Brasileira Intersexo) que ajudou na condução do provimento.

Entretanto não se pode ignorar que a solução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é apenas um paliativo que garante que pode constar do Registro Civil de Nascimento (RCN) algo distinto de "masculino" ou "feminino", no entanto o problema continua existindo, já que a única variável permitida é o "ignorado" que revela uma informação falsa, pois o sexo é sabido. A ignorância aqui não está em definir o sexo mas sim em criar um obstáculo para que a condição intersexo seja ali consignada.

Essa confusão quanto a correta concepção do que seja sexo e gênero, atrelada à falta de adequação da nomenclatura habitualmente utilizada, gera consideráveis impactos na compreensão das lutas e necessidades manifestadas por toda a população transgênero e intersexo.

É mais do que urgente que seja determinada a alteração do formulário padrão da Declaração de Nascido Vivo (DNV) já que aquele que foi elaborado pela Portaria 116/09 se mostra equivocado tanto quanto às alternativas possíveis como à nomenclatura correta a ser ali aposta, vez que masculino e feminino não são hipóteses de sexo. E nesse segundo ponto, ousaremos trazer algumas ponderações preliminares e que necessitam de um aprofundamento, mas que precisam ser suscitadas.

A nós parece que um dos motivos que levaram a esse grave erro de utilizar expressões tecnicamente afeitas ao gênero para designar o sexo reside no fato de que em nosso país não se vê com bons olhos a utilização de "macho" e "fêmea" como palavras para referir-se ao sexo de pessoas, sendo mais comuns para animais. Todavia essa posição acabou por fazer com que se estabelecesse uma falha técnica com impactos indesejáveis, ainda que masculino e feminino em sua amplitude semântica possam designar o sexo da pessoa. Seria pertinente se repensar a adequação do emprego de nomenclaturas que ensejam em si uma série de problemas.

Segundo uma percepção de um estudioso do direito, fato que necessitaria de uma extensa discussão englobando outros ramos das ciências, me parece que muito dessa confusão tem por origem a tradução de textos elaborados em língua estrangeira.

Essencialmente, em língua inglesa, o termo usado quando questionado em um formulário ou cadastro acerca da sexualidade de alguém é "gender", que, segundo o dicionário Oxford, seria "the fact of being male or female, especially when considered with reference to social and cultural differences, rather than differences in biology"6, o que encerra em si a concepção de uma expressão destinada a aspectos sociais e culturais, e não biológicos. Reitera-se, mais uma vez, que em território nacional o que é apontado nos documentos não é o equivalente ao "gender" mas sim as informações de natureza médica extraídas da Declaração de Nascido Vivo (DNV).

Note-se que ordinariamente em inglês as designações de gênero são "male" e "female" que teria uma tradução mais adequada a "macho" e "fêmea", distinto de masculino ou feminino, mais afeitos a "masculine" e "feminine", expressões de origem latina que são consideradas mais eruditas e menos populares. O fato é que nas traduções se preferiu usar o masculino e feminino como equivalentes ao "male" e ao "female" embora não expressem a acepção mais exata a ser considerada em nossa língua.

Interessante se pontuar que no Certificate of Live Birth, o equivalente à Declaração de Nascido Vivo (DNV) nos países de língua inglesa, de regra o campo específico para o tema traz a expressão "sex" e não "gender", como pode ser verificado no documento de estados como a Califórnia, Havai e Michigan, apenas a título ilustrativo nos Estados Unidos da América (EUA)

Ao mesmo tempo, em língua francesa, podemos ponderar de forma similar, por "homme" e "femme" que designariam melhor as ideias de homem/macho e mulher/fêmea, distintos dos designativos das características a eles conexas, quais sejam, "masculin" e "féminin". Nas definições de dicionário encontramos que "homme" seria a pessoa do sexo masculino7 e "femme" pessoa do sexo feminino8. Ressalte-se que nos documentos similares à nossa Declaração de Nascido Vivo (DNV) o que se requer é o "sexe" e não o "genre", o que reforça a ideia aqui descrita.

Talvez uma das frases mais icônicas de Simone de Beauvoir, que afirmava que "On ne naît pas femme: on le devient" mereceria uma tradução distinta da tradicional. "Não se nasce mulher: torna-se mulher" ficaria mais coerente e compreensível para os parâmetros nacionais se fosse "não se nasce do gênero feminino: torna-se do gênero feminino", o que poderia evitar muitos questionamentos pois, segundo os critérios postos, biologicamente se nasce mulher, mas o gênero é construído durante a vida.

Seja como for é de se pugnar novamente para que em território nacional, e especialmente em sede de análises técnicas, haja a primazia da cientificidade e se use para a designação de sexo as expressões homem/macho, mulher/fêmea e intersexo, relegando o "masculino" e "feminino" exclusivamente para referir-se a gênero a fim de se extirpar confusões terminológicas que geram enormes prejuízos para as discussões atinentes à sexualidade.

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1 Disponível aqui.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310

3 Disponível aqui.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito à indenização decorrente da ofensa à dignidade da pessoa humana intersexual. Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 201.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 Disponível aqui.