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Direito e Sexualidade

Discussões da sexualidade como parâmetro relevante para o Direito.

Leandro Reinaldo da Cunha
É fato que estamos hoje diante de uma sociedade que, ao menos em teoria, se mostra em alguma medida um pouco menos ignorante com relação à existência das minorias sexuais. Até mesmo a extensão da sigla que usamos para indicar essa população (LGBTIANP+), que muito se utiliza para argumentar que torna impossível que se saiba exatamente quem são essas pessoas, conseguiu atribuir um pouco mais de visibilidade à comunidade com um todo. Constantemente vemos nas redes sociais e veículos de comunicação que há uma maior acolhida à diversidade, ainda que estejamos absurdamente distantes de atingir os parâmetros mais elementares de igualdade e dignidade da pessoa humana preconizados em um Estado Democrático de Direito. Não se pode ignorar que pequenos avanços têm acontecido. A enorme dificuldade para se obter essas pequenas vitórias faz com que toda vez que elas acontecem surja uma grande alegria e comoção, que nos confere um sopro de alento, uma crença de que pode haver um futuro melhor para nós como sociedade. Contudo o que é amplamente ignorado é a fragilidade de tais conquistas. Normalmente acompanhadas de uma atitude presunçosa daqueles que são detentores do poder, os parcos direitos que se atribui às minorias sexuais surgem quase que como uma benesse praticada pelos "seres magnânimos" que regem nossa sociedade. Seria a expressão de sua tolerância, permitindo que o "anormal" possa permanecer na sociedade, mas apenas se reconhecer que é inferior e que "deve" a ele essa oportunidade de seguir entre os demais. Uma demonstração dessa natureza revela-se no simples fato de que tais "ofertas" de direitos apenas se dão de forma transversal, nunca ante a positivação legislativa, o que encerra em si o perigo claro de que as concepções que as sustentaram venham a ser atacadas a qualquer momento e elas se esfacelem. Nossa democracia é tão míope que o Poder Legislativo não pauta questões vitais para minorias sexuais por entender que faltaria sustentação popular para tanto, olvidando-se que certamente as minorias dificilmente terão apoio da coletividade, a qual não costuma se mobilizar com o fim de assegurar direitos a quem não seja ela mesma. Evidentemente que não é o simples fato de o Poder Legislativo cumprir seu mister e elaborar a legislação pertinente que fará com que os graves problemas enfrentados pelas minorias sexuais venham a deixar de existir, contudo é claro que a existência de uma base legislativa é premissa elementar para a garantia de direitos. A possibilidade de alteração de nome e sexo/gênero nos documentos de pessoas transgênero, por exemplo, é direito que foi alcançado mediante decisão dos Tribunais Superiores, culminando com a elaboração do Resolução 73 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atualmente incorporada pela resolução 149/23 que criou o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra). Nunca é excessivo se ponderar que os regramentos provenientes do CNJ não se revestem de força cogente para toda a população, sendo diretrizes estabelecidas para aqueles que estão subordinado àquele conselho. Contudo face à ausência de legislação muitas vezes acabam se mostrando como o mais próximo que temos a uma lei sobre dados temas. Da mesma forma que a alteração do nome e sexo/gênero de pessoas transgênero pode-se suscitar que questões como a indicação de "intersexo" no campo destinado ao sexo no RCN - Registro Civil de Nascimento, registro de filho com dois genitores do mesmo sexo/gênero, ou direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero não encontram-se legisladas. Em que pese todas as ponderações que podem ser feitas sobre tais temas é de se consignar que ainda que não estivessem expressamente proibidos na lei acabaram necessitando de uma confirmação do Poder Judiciário para que pudessem ser efetivados na prática, sendo emblemática a decisão na ADI 4.277 em 2011 que, ao fim e ao cabo, simplesmente reconheceu que, em sede de uniões entre pessoas do mesmo sexo/gênero, prevalecem as mesmas regras fixadas para relacionamentos entre pessoas com sexo/gênero distintos, havendo de se aplicar a analogia para suprir a lacuna da lei, questão que jamais chegaria ao STF caso não estivesse atrelada a um elemento vinculado à sexualidade. Ainda que se sustente que conquistas dessa natureza não possam vir a ser suprimidas em decorrência do princípio da vedação do retrocesso é evidente que eventuais ondas que confundem eliminação da diversidade com conservadorismo venham a tentar vedar o acesso a direitos elementares a pessoas "diferentes" apenas por serem elas "os outros" e não estarem inseridas no padrão ao qual a lei "genericamente" costuma referir-se. O grande risco decorrente de se resignar com as conquistas obtidas ante a manifestação do Poder Judiciário vai muito além das absurdas alegações de que estaria havendo um ativismo judicial. Não há que se falar em conduta indevida do Poder Judiciário quando ele cumpre sua incumbência, nos termos exatos previstos na LINDB - Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, conferindo solução ao caso concreto ao ser instado a se manifestar sobre um tema ainda não especificamente legislado. O real perigo é que face a composição dos diversos planos do Poder Judiciário é possível que em razão da mudança de seus integrantes posicionamentos que resguardam direitos humanos, fundamentais e da personalidade das minorias sexuais venham a ser atingidos pela alteração de viés dos julgadores. Todos somos influenciados pelas circunstâncias que nos tangenciam e dificilmente se tem de fato uma análise fundada em imparcialidade real do julgador, sendo utópica a crença da existência de um "juízo neutro" dos magistrados. De se notar que a leniência legislativa1 que grassa em nosso Estado Esquizofrênico2, especialmente demonstrada com relação a questões que referem-se à efetiva garantia dos direitos fundamentais às minorias sexuais é sintoma consolidado em nosso Estado que recorrentemente institucionaliza atitudes discriminatórias. E não legislar especificamente em favor das minorias sexuais é mostrar toda a fragilidade que acompanha os detentores dos privilégios. Nossa democracia, historicamente recente, recorrentemente sob ameaça, sofre influências das mais variadas, muitas vezes contrárias aos seus alicerces estruturantes e que podem fazer com que se entenda que as minorias não mereçam mais proteção, sendo passiveis de extermínio. Os olhares deturpados dos eternos vencedores são capazes de enxergar na imposição de que a igualdade seja conferida e se atribua às minorias iguais direitos aos detidos pelas maiorias um excesso. Sua fragilidade é tamanha que teme pelo fato de que permitir que os "outros" alcancem as mesmas prerrogativas que já são previstas em favor de todos mas que não conseguiam acessar em razão de todo o preconceitos e discriminação que experienciam possa culminar em uma perda de seus próprios direitos. O medo de não mais gozar dos benefícios que a discriminação lhes confere faz com que sejam contra a garantia dos direitos mais elementares aos mais vulnerabilizados. Absurdo, mas real. Há tantas camadas de preconceito sobrepostas que faz com que certos grupos sociais venham a ser desumanizados, retirando-lhes, aos olhos dos detentores do poder, a própria condição de pessoas, fazendo com que se tenha que manifestar de maneira pungente, visando afastar toda essa opacidade imposta, clamando que ainda que minorias são sim pessoas e, portanto, destinatárias de todas as garantias inerentes a tal condição. A inércia em proteger a todas as pessoas, sem discriminações excludentes, é que impõe que se levantem bandeiras constantemente com o fim de que aqueles que não são considerados pelos tidos por normais como pessoas possam vir a "desfrutar" das benesses dos direitos ordinariamente conferidos a todos. É primordial que tenhamos claro que a defesa dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade de todas as pessoas, mas em especial dos grupos vulnerabilizados, depende de uma luta constante. Por não reinarem na condição de "meras pessoas" genéricas, estando sempre acompanhadas de expressões que as qualifica, é importante que o resguardo de seus interesses receba uma atenção diferenciada. Todas as vidas importam, mas quanto as vidas das minorias e grupos vulnerabilizados é sempre relevante se ressaltar que elas também importam, já que nem sempre as pessoas as veem inseridas no conceito universalizante de pessoas. Para além de lutar pela garantia dos direitos em favor das pessoas, é importante que se pontifique que esses direitos devem ser efetivamente franqueados às pessoas que a sociedade vê como sendo "menos pessoas". O reconhecimento como minoritário há de servir para que se ofereça proteção especial, jamais para se fomentar ainda mais a discriminação3. Por tal razão é premente a atenção do Poder Legislativo na garantia dos direitos de pessoas intersexo, mulheres, aquelas que integram a concepção do feminino, transgêneros, homossexuais, bissexuais, assexuais, pansexuais e toda a gama de pessoas divergentes presentes em nossa sociedade. Para elas a existência de direitos para "pessoas" não basta. O que se está a ponderar aqui não é sobre a existência de uma contraposição entre pautas conservadoras ou progressistas, de direita ou de esquerda. Trata-se não de uma questão de governo, mas sim de Estado. E é muito mais amplo do que os meros limites das fronteiras de uma Nação. É tão somente uma questão de humanidade e de preservação de quem somos no universo. Impõe-se a necessidade de que se positive os direitos para aqueles que os tem em teoria mas que, de fato, não os possui. -------------------- 1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015. 2 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 3 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
O desejo de perpetuar sua existência leva as pessoas a buscarem as mais diversas formas de fazer com que sua presença permaneça no mundo mesmo após a sua morte, valendo-se de diversos meios para atingir tal objetivo, sendo uma das maneiras mais ordinárias para tanto a constituição de uma prole, tornando possível que traços daquela pessoa (crenças e valores ou mesmo aspectos genéticos) mantenham-se vivos para a posteridade. Tradicionalmente a prole estava atrelada, ao menos para fins legais, à constituição de uma família, lastreado na premissa de que as pessoas apenas poderiam manter relações sexuais entre si após o casamento. Mesmo com a consolidação da laicidade do Estado tais preceitos de raízes eminentemente religiosas seguem presentes em nosso ordenamento jurídico, que continua replicando de forma anacrônica concepções arraigadas em uma realidade social que já de longa data não mais se verifica1. O Código Civil, mesmo que seu texto vigente tenha sido incorporado ao ordenamento jurídico no início dos anos 2000, está repleto de previsões que se mostram dissociadas da realidade atual, bem como desconhece uma ampla quantidade de situações fáticas já existentes à época e que hoje fazem parte do cotidiano da população. Um dos temas ignorados (quase que plenamente) pelo Código Civil e que ainda não foi contemplado por nenhuma legislação específica, em que pese estar vinculado com a perspectiva de planejamento familiar (art. 227, §7º da Constituição Federal e Lei nº 9.263/1996) é o da reprodução humana assistida (RHA), assim entendida toda a gama de métodos que buscam auxiliar a viabilizar uma gestação e, consequentemente, o nascimento de um filho, quando tal intento não se atinge pelas formas chamadas de naturais. Assim, em linhas bastante panorâmicas, a reprodução humana assistida (RHA) se presta a possibilitar que pessoas que não podem ter filhos segundo os parâmetros usuais consigam alcançar esse objetivo, normalmente ante a utilização de técnicas baseadas em ciência que viabilizem a gravidez e o nascimento da criança. A leniência legislativa2 que faz com que temas extremamente importantes restem não positivado, conduzindo a uma série de discussões exatamente face a ausência de diretrizes normatizadoras, também aqui se faz presente. Como a questão tangencia elementos de cunho médico, como já virou um costume, o Poder Legislativo se acomoda e não desempenha seu mister, fazendo com que, muitas vezes, as previsões deontológicas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) acabem sendo assumidas como se tivessem o poder de regulamentar a questão para toda a população3. Além de uma manifesta impropriedade técnica ainda dá força a manifestações e diretrizes concebidas no âmbito do Conselho Federal de Medicina (CFM) que extrapolam suas atribuições, tocando em pontos que estão além das considerações meramente médicas, imiscuindo-se em temas que estão totalmente fora de seu escopo, como, por exemplo, definir quem pode ser o paciente da reprodução humana assistida (RHA)4 ou quem poderá gestar em uma gestação em substituição, para além de parâmetros eminentemente clínicos. Para as hipóteses em que as técnicas de reprodução humana assistida (RHA) venham a ser realizadas por um profissional da área médica há o regramento elaborado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelecendo os parâmetros médicos atinentes ao tema, aos quais os profissionais vinculados a esse conselho de classe estão sujeitos (Resolução CFM nº 2320/22). Feitas essas ponderações introdutórias passo a efetivamente me debruçar sobre o grande tema acerca do qual tecerei considerações relacionadas à sexualidade. O pano de fundo do presente texto é o que se tem nominado como inseminação caseira, uma resposta imediata5 que acaba restando para quem deseja engravidar e não possui condições arcar com os elevados valores cobrados pelos serviços ofertados por clínicas e profissionais especializados em reprodução humana assistida (RHA). Assim ao lado da reprodução humana assistida (RHA) realizada com base em elementos afeitos à técnicas desenvolvidas por profissionais da área médica há também uma outra vertente, que denomino, genericamente, de técnicas de reprodução humana assistida caseira, que comporta as hipóteses de tentativa de gravidez acompanhadas de um elemento negocial específico direcionado a esse fim. Fugindo do modelo tradicional se está diante de uma avença por meio da qual as partes comprometem-se a atividades que levam a uma gravidez. De forma bastante resumida a reprodução humana assistida caseira baseia-se em um negócio jurídico por meio do qual um indivíduo se compromete a entregar seu esperma para que a mulher venha a engravidar6. Nesse universo que surge a discussão das chamadas formas de inseminação caseira. Nela há o estabelecimento de um acordo de que alguém fornecerá a quem deseja engravidar, as chamadas "tentadoras", o seu esperma para que ela o inocule em seu corpo (com uma seringa) e tente ficar grávida. A ideia de uma gravidez decorrente de se introduzir, de forma "não natural" o esperma na vagina de uma mulher, sem o emprego de técnica médicas, não é uma realidade nova. Basta lembrar o caso que ganhou espaço na mídia brasileira no início dos anos 2000 quando a cantora mexicana Glória Trevi, presa nas dependências da Polícia Federal, sem direito a visitas íntimas, engravidou e se afirmou, à época, que ela teria sido "fecundada com a ajuda de uma caneta Bic"7. Contudo não se pode ignorar que por vezes a reprodução humana assistida caseira se dá de uma maneira ainda mais prosaica. Em busca de uma maior probabilidade de êxito a negociação entabulada prevê simplesmente que as partes manterão uma relação sexual com o mero fim de que a "tentante" venha a engravidar, afastando do contexto qualquer elemento de cunho afetivo ou amoroso que possa envolver uma relação sexual. O ato é praticado com o simples fulcro de engravidar, numa versão atual do que antigamente se costumava chamar de "produção independente". Apenas para manter o tom provocador que marca essa coluna proponho que quem me lê pense: em nossa sociedade, considerando toda a estrutura moral que a rege, como seria vista a hipótese em que a mulher não possa ter filhos e permita que seu cônjuge mantenha relações sexuais com outra para que ela engravide e depois lhe entregue o filho. Tal solução seria bem recebida pela sociedade? Seria uma forma "natural" de gestação em substituição? A inexistência de legislação sobre esses temas cria mitos que são replicados pelas pessoas leigas, pela mídia, e até mesmo por iniciados no mundo jurídico. Mesmo não havendo qualquer previsão expressa na lei quanto ao tema, muitos asseveram que, ante a vedação de cobrança para doações prevista pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) haveria a proibição da pagamento pela oferta de esperma. Contudo se não há a participação de profissional da área médica não há a incidência do regramento do Conselho Federal de Medicina (CFM). Mas é importante se questionar: há de fato uma doação? Qual seria o objeto da doação? O que é doado é efetivamente um bem? Isso que teria sido doado poderia ser objeto de doação? A questão encontra restrição na lei de doação de órgãos e tecidos (Lei 9.434/97)? As restrições constantes na Lei de Biossegurança se aplicam nesses casos? Pode haver uma interpretação ampliativa para restringir direitos? Aquele que oferta seu esperma tem deveres e direitos com relação à criança? O caráter altruístico da conduta tem impacto na apreciação da negociação entabulada? Todos esses temas serão tratados de forma aprofundada em trabalhos futuros, cabendo-me, nesse momento, direcionar a análise para os fins aos quais me propus. O objetivo nesse texto não é discutir os riscos para a saúde em razão de tal tipo de prática (transmissão de doenças ou o risco de uma grande quantidade de crianças filhas do mesmo doador, gerando o perigo de um "incesto acidental", por exemplo), tampouco a possibilidade de que se venha a deparar com pessoas inescrupulosas que queiram se aproveitar da vulnerabilidade apresentada por quem quer engravidar (exigindo benefícios indevidos ou forçando a manutenção de relações sexuais). O que se coloca é: se tais situações de reprodução humana assistida caseira existem, como pode se constatar dos inúmeros grupos em redes sociais nos quais é possível encontrar a oferta de esperma para esse fim8, bem como em decisões judiciais, como fica a definição de quem serão os genitores dessa criança? A resposta desse questionamento passa, na prática, por uma análise que incide sobre elementos atrelados à sexualidade, já que as consequências serão distintas dependendo das características expressadas pelas pessoas envolvidas. Se a "tentante" que realizou a reprodução humana assistida caseira não estiver em um relacionamento com quem quer que seja e seu intento seja figurar sozinha como genitora daquela criança a existência prévia de uma inseminação caseira sequer será suscitada. Ao nascer ela poderá, dotada simplesmente da Declaração de Nascido Vivo (DNV), registrar a criança como sua filha sem questionamentos quanto a forma como se deu sua gravidez. No caso da "tentante" ter um relacionamento consolidado, como um casamento, também poderá dirigir-se sozinha ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e realizar o registro de nascimento daquela criança indicando como genitores, no campo destinado à filiação, ela e seu cônjuge, face à presunção de paternidade existente no Código Civil (art. 1.597). Ainda que eu questione profundamente os parâmetros que norteiam tal presunção não se pode olvidar que ela existe e goza de aplicabilidade prática. Se, porém, a tentante viver em união estável não haverá a possibilidade de que venha a valer-se da presunção pois o Código Civil não abarca expressamente tal alternativa, podendo até mesmo se questionar judicialmente se esse dispositivo não há de ser garantido a quem vive em união estável, mormente ante a compreensão de que também caracteriza uma entidade familiar igual ao casamento, independentemente de ter sido estabelecida entre pessoas do mesmo sexo/gênero ou de sexo/gênero distintos, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 42779. Ainda assim é patente que tal sorte de restrição atingirá de maneira mais forte aqueles que estiverem em uma união estável com alguém do mesmo sexo/gênero, haja vista toda a discriminação que ainda incide sobre as minorias sexuais. Basta se considerar que para aqueles que estiverem em uma relação com alguém de sexo/gênero10 distinto será franqueada de forma inquestionável a possibilidade de que o companheiro da tentante compareça ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e reconheça a paternidade, o que poderá fazer sem que haja perguntas ou oposições, exatamente por ser uma declaração que se coaduna com os padrões postos de um relacionamento que se insere na cis-heteronormatividade vigente. Contudo se a tentante estiver em um relacionamento com outra pessoa do gênero feminino certamente enfrentará objeções para que a criança seja registrada também em nome de sua companheira. Nem mesmo tenho a convicção de afirmar que se fosse casada com alguém do mesmo sexo/gênero conseguiria tranquilamente valer-se da presunção de que o cônjuge de quem deu à luz à criança seria o outro genitor, seja pela estrutura que norteou o Código Civil, ou pela oposição de restrições de cunho moral ou até mesmo pela influência do Provimento 149/23 do Conselho Nacional de Justiça (art. 512 e ss.), que incorporou o conteúdo do Provimento 63/17. O que se pode concluir é que, mais uma vez, o fato de estar inserido em uma relação que foge do padrão normativo que segue sustentando o nosso ordenamento jurídico fará com que a pessoa se veja impedida de estabelecer uma relação paterno-filial em caso de reprodução humana assistida caseira, fator que não incide quando tal prática se estabelece por uma tentante que se relaciona com alguém do gênero masculino. Independentemente de todo o espectro que se possa suscitar para a compreensão da presente questão é primordial que se analise se tal vedação, que claramente ofende os parâmetros elementares da igualdade, estaria atendendo à premissa de que há de se assegurar, com absoluta prioridade, os direitos de crianças e adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Ao filho de um relacionamento furtivo se garante a possibilidade de que tenha ,em sua Certidão de Nascimento, o nome de quem manteve uma relação sexual com sua mãe Da mesma maneira que se garante que haja o reconhecimento, na prática, de um filho que não é seu (por equívoco ou mesmo intencionalmente). Afastar o estabelecimento de vinculação paterno-filial a quem ofertou o material para a inseminação caseira até pode gerar questionamentos com relação aos eventuais direitos dessa criança. Contudo não é esse o caso aqui, já que o objetivo é conferir a essa criança um "genitor". Obstaculizar que quem é fruto de uma reprodução humana assistida caseira seja registrado atende aos interesses de quem? Só o fazer quando se depara com uma relação entre pessoas que não se inserem no modelo clássico do envolvimento heterossexual entre um homem e uma mulher não configura discriminação? A mim parece que estamos diante da presença de mais uma, entre as inúmeras, situações de discriminação institucionalizada pelo Estado, que pode ensejar em uma conduta criminosa, por exemplo, do Oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN), inserida no contexto da criminalização da homofobia, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADO 26. A reprodução humana assistida (RHA) como um todo é tema que necessita de um regramento, não sendo admissível que o Poder Legislativo sig omitindo-se, haja vista a relevância social que recai sobre o tema. Mas como tudo o que tangencia elementos da sexualidade gera um verdadeiro pavor em certos setores da sociedade, seguimos relegados a laborar com princípios para solucionar questões que impõem um regramento tecnicamente sólido. Mas segue sendo mais cômodo para o Estado quedar-se inerte. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I - IV, 2021. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. In: Nelson Rosenvald; Joyceane Bezerra de Menezes; Luciana Dadalto. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. 2ed.: Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 307-321. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. MACEDO, Andreia Assis. Reprodução humana assistida post mortem e direitos sucessórios. Revista Conversas Civilísticas. Salvador, v.2, n.2, 2022, p. 4. 5 ARAÚJO, Ana Thereza Meireles. Projetos parentais por meio de inseminações caseiras: uma análise bioético-jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 24, p. 101-119, abr./jun. 2020, p. 102. 6 Não ignoro o fato de que quem possui útero pode engravidar, o que permite que, eventualmente, um homem transgênero possa vir ter uma gestação. Apenas para tornar a compreensão do tema menos complexa, seguirei me valendo da hipótese ordinária de sexo/gênero que pode engravidar. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da.  A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011 10 Apesar de entender que não deve haver a mistura das figuras de sexo e gênero, como descrito em colunas anteriores, tratarei as duas em conjunto para conferir uma compreensão ampla das hipóteses.
Na primeira parte do presente texto construí as bases do que passarei a analisar na sequência. A premissa criada de que as mulheres são "cuidadoras por natureza", que tem em si um gene que as conduz a exercer as atividades de cuidado, lastreada em uma visão manifestamente machista que permeia toda a nossa sociedade, gera consequências severas. Mais do que crer que os homens são incapazes de cumprir adequadamente com tais atividades de cuidado o que está por detrás dessa visão é exatamente que essas atribuições seriam de menor valor, e, por isso, destinadas às mulheres que, por outro lado, não teriam condições de realizar aquelas incumbências de maior complexidade, as quais apenas os homens teriam as "ferramentas naturais" para desempenhar. É evidente que a estrutura social posta aniquila a discussão efetiva de um equacionamento dessa iniquidade que impõe às mulheres, quase que com exclusividade, o exercício das atividades relacionadas ao cuidado. Ou, como bem traduz Silvia Federici, "o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago"1. Nos termos indicado no final da primeira parte dessa coluna a condição vivenciada ordinariamente pelas mulheres nesse contexto revela-se como uma usurpação que haveria de ser afastada, não podendo seguir prosperando essa situação de enriquecimento indevido de quem se beneficia dessa atividade. Se é evidente que há essa maior oneração das mães em relação aos pais é de se questionar por qual motivo não temos uma mudança dessa situação. Nesse diapasão começam a surgir decisões reconhecendo o dever de ressarcir essa mulher por todo esse trabalho realizado, sendo de se mencionar julgamentos recentes ocorridos na Espanha em que se fixou indenizações em tais casos na monta de 80 mil Euros2 e 200 mil Euros3, bem como decisões aqui no Brasil em que se determinou que esse trabalho invisível exercido pela mulher há de ser considerado quando do arbitramento da pensão alimentícia para os filhos4. Já mencionei anteriormente a imperiosa necessidade de se discutir de forma séria em território nacional a devida compensação dos serviços de cuidado prestados pela mulher quando das ponderações tecidas sobre o uso exclusivo do bem comum do casal após a dissolução de fato do casamento ou da união estável5. Essa visão defasada de que a mulher é a "cuidadora" e o homem o "provedor" dos filhos continua muito presente em nossa sociedade e segue causando graves danos, com reflexos manifestos na atividade legislativa e judicial. No âmbito legislativo a massiva superioridade masculina nas casas legislativas, onde a presença feminina extremamente baixa6 tem evidentes reflexos nos direitos que são franqueados a elas, bem como naqueles que lhes são negados, é fator preponderante. A baixa representatividade é uma mácula indelével de nossa legislação e pode ser facilmente constatada em momentos em que se cria uma igualdade que não se efetiva ou em uma discriminação que a segrega ou fomenta ainda mais sua posição de inferioridade. Em uma legislação que é feita majoritariamente por homens as dores, anseios e expectativas femininas ou são ignoradas ou são imaginadas segundo a perspectiva masculina, gerando um enorme distanciamento entre o que é realmente necessário e o que se garante. Apenas à guisa de argumentação provoco quem acompanha esse texto a ponderar: se estivéssemos diante de um Poder Legislativo composto por uma maioria feminina teríamos tanta dificuldade para aprovar leis que atendem a necessidades eminentemente femininas, como as decorrentes da pobreza menstrual? Como estaria a discussão sobre a possibilidade de aborto, se fossem os homens que engravidassem? Salutar se consignar manifestação do Ministro Luís Roberto Barroso: "Porque se só a mulher engravida, para ela ser verdadeiramente igual ao homem, ela tem que ter o direito de querer ou não querer engravidar. E, se homens engravidassem, esse problema já estaria resolvido há muito tempo"7. Existem outras situações nas quais aparentemente há uma proteção à mulher ou mesmo um respeito às diferenças, mas que acabam por aprofundar ainda mais a crença de que determinadas atividades são "naturais" das mulheres, afastando a responsabilidade dos homens com relação a elas. Nesse aspecto um dos elementos que mais chamam a atenção e que vem sendo objeto de profundas alterações legislativas em alguns países é a figura da licença maternidade. Nos moldes atualmente regulamentados no Brasil esse benefício se revela como um reforço do estereótipo de que apenas a mulher tem obrigações de cuidado com relação aos filhos. Premente que se assevere que a possibilidade de afastamento dos pais do exercício de suas atividades laborais prevista na lei em decorrência do nascimento de filho não se destina apenas à atividade de amamentação, mas especialmente a viabilizar os primeiros cuidados com aquele que acaba de nascer e que, conforme já afirmado nos termos do que determina o Código Civil ao tratar do poder familiar (art. 1.634), é responsabilidade de ambos os pais. Ao se conferir ao homem apenas 3 (três) dias de afastamento do trabalho e à mulher 4 (quatro) meses após o parto passa-se o sinal de que o pai tem alguns dias para celebrar o nascimento e a mãe alguns meses para cuidar, sem que isso seja também uma responsabilidade para ele. A licença em decorrência do nascimento de prole não pode tratar dessa forma distintiva o pai e a mãe, não por ser desejado que o homem tenha dias de descanso pelo nascimento mas sim para que também tenha, como se impõe à mulher, a consciência de que a ele também incumbe cuidar dos filhos. Impor ao homem esse dever de cuidado quando do nascimento do seu filho ante a concessão de um prazo de licença compartilhado ou equivalente com o destinado à mulher além de um enorme caráter pedagógico atenderia aos preceitos insculpidos no Código Civil quando trata dos deveres dos pais como também iria ao encontro do cumprimento da diretriz de se garantir a especial e absoluta proteção à criança e ao adolescente, nos termos trazidos pelo art. 227 da Constituição Federal. Essa desigualdade que parece ser, de início, uma proteção especial à mulher ou mesmo a garantia da igualdade por tratá-la de forma a reconhecer sua diferença natural de ter dado à luz à criança além das raízes machistas de que cabe à mulher cuidar do filho ainda tem efeitos que se protraem no tempo, impactando na manutenção, em toda a sociedade, da ultrapassada visão de que não há qualquer responsabilidade do homem quanto aos cuidados. A ampliação da licença para o homem por si só não resolve. Ele precisa efetivamente cuidar. O problema é que há um lado cultural que precisa ser superado e que a masculinidade frágil não mais lance seus tentáculos fazendo com que se acredite que aquele que exerce atividades "maternas" é menos homem. Isso acaba impondo à mulher que fique em casa e que o homem trabalhe, cerceando sua liberdade e acesso ao trabalho, relegando-a a uma situação extremamente delicada nas hipóteses nada excepcionais em que vem a ser abandonada posteriormente com o filho, sem a real possibilidade de uma inserção no mercado de trabalho nos mesmos moldes que o homem tem. Nem mesmo se pode falar que a legislação garante uma verdadeira proteção a ela nesse caso pois nas situações extraordinárias em que é conferido a ela o direito a alimentos após o casamento esse tem sido deferido de forma que nem sempre se consideram as idiossincrasias do caso concreto, havendo a fixação de um critério temporal para o recebimento do benefício8. Essa estruturação legislativa faz com que empresas prefiram contratar homens a mulheres, já que eles não deixarão o trabalho para cuidar de filhos doentes ou levá-los ao médico, considerando o entendimento geral de que tais deveres competem à mãe. Constata-se um efeito dominó. Infelizmente mesmo com toda a evolução social e o letramento de gênero que se impõe nos dias atuais ainda vivemos na prática em uma sociedade extremamente machista, com toda sua estrutura segregadora, que continua, apesar da igualdade formal e de todas as lutas já travadas, relegando as pessoas do gênero feminino a uma condição de inferioridade, com os mesmos contornos do racismo social que fundamentou a decisão da ADO26 que reconheceu a homotransfobia como conduta inserida no crime de racismo. E por isso provoco: a mulher, independentemente da cor de sua pela, não seria vítima de racismo nos termos fixados pelo STF? Esse é tema que será aprofundado em uma próxima coluna Por fim espero que essa coluna chegue especialmente aos homens, já que são eles que, em sua larga maioria, precisam se libertar de todo o machismo que continuam professando. Mulheres, obviamente, são bem-vindas para a leitura desse texto, mas sinto que para elas boa parte do que aqui foi escrito não passa de uma série de obviedades que elas vivenciam e constatam em seu cotidiano. Pregar para convertidos, como se costuma dizer, não tem o poder de mudar essa realidade. O imprescindível é se atingir aqueles que confortavelmente estão repousando em seu machismo e privilégios para que entendam que a busca da igualdade é uma luta séria e não um "mimimi". Que todos os privilégios que me acompanham permitam que esse texto seja lido por outros privilegiados que compartilhem ao menos um dos marcadores que me torna privilegiado (homem, branco, cisgênero, heterossexual, funcionário público federal, com educação institucional, doutor, professor titular de uma das mais antigas e conceituadas faculdade de direito do Brasil, etc.) e que passem a entender sua condição extremamente favorecida pelo simples fato de não externarem socialmente elementos vinculados ao feminino. Por mais patente que seja, o óbvio deve ser dito: os homens precisam reconhecer sua condição de privilégio, sem que isso seja internalizado como uma ofensa. É um fato e precisamos laborar em busca de uma real igualdade de gênero. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 Disponível aqui. 
Quem somos é, em larga medida, reflexo do mundo em que vivemos. Nossa sociedade atual é resultado de uma construção baseada em múltiplos elementos que, conjugados, nos trouxeram ao que experienciamos hoje. Contudo isso não pode jamais ser associado a uma visão conservadora ou uma ideia de que devemos nos prender ao que se teve pelos tempos como a expressão do correto ou socialmente adequado. Nossa evolução como sociedade com a efetiva implementação dos preceitos nucleares de um Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela ruptura com conceitos e certezas até então postas, haja vista que muitas delas mostram-se arraigadas em um terreno repleto de preconceitos, discriminações e segregações que têm impactos indesejados em um Estado com bases humanísticas. A compressão da estruturação da nossa sociedade atual perpassa necessariamente pelo entendimento de que ela foi construída, inquestionavelmente, segundo preceitos e bases oriundos, eminentemente, de homens, brancos, heterossexuais e cisgêneros, o que se reflete claramente nas premissas que constituem os parâmetros de adequação, normalidade e na noção de certo e errado. Com isso é evidente também que certos marcadores sociais e concepções desse grupo majoritário estão presentes e norteiam o nosso ordenamento jurídico, o que se reflete em uma série de normas que reforçam estereótipos e visões construídas por aqueles que foram alçados ao status de dominantes. Contudo não se pode olvidar, como já tenho explicitado em diversas colunas aqui publicadas, bem como em outros escritos, que é imperioso que se tenha um entendimento minimamente adequado do que é uma democracia pois, diversamente do que muitos asseveram, não se trata de um regime em que apenas há a prevalência da vontade da maioria. Uma das características mais marcantes da democracia é exatamente o estabelecimento de um amplo sistema de proteção com a finalidade de proteger a integridade e a existência das minorias e dos vencidos. Democracia jamais pode preconizar ou buscar a aniquilação das minorias, havendo, ainda, nos exatos termos consignados no corpo de nossa Constituição Federal, que se estabelecer toda uma rede de proteção para aqueles que se encontram em uma situação de inferioridade ou vulnerabilidade, a fim de efetivar preceitos como igualdade, equidade e dignidade da pessoa humana. Basta lembrar que entre os objetivos fundamentais da República Democrática do Brasil está a busca de se eliminar toda sorte de desigualdades (art. 3º, III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;) Um dos grupos que podemos afirmar ser vulnerabilizado é o composto por pessoas que expressam socialmente o feminino. Ou, de forma mais ampla e generalizada, as mulheres. É sabido que atualmente mulheres têm uma baixa presença em cargos de comando no mercado de trabalho em que pese apresentar, em média, uma maior escolaridade que os homens. Nesse mesmo universo, há ainda que se acrescentar o fato de recebem um salário menor que o dos homens exercendo a mesma função e com a mesma qualificação1, além de conviver com toda sorte de assédio e violência no ambiente laboral. Dados revelam ainda que mulheres exercem uma dupla ou tripla jornada, competindo a elas os deveres de cuidados não remunerados que socialmente a si são atribuídos, a ponto de destinarem semanalmente, segundo dados de 2022, 9,6 horas a mais que os homens a tais atividades2. No bojo desse espectro podemos inserir toda a atividade ordinariamente imposta que seja exercida pela mulher em decorrência da maternidade. Mesmo com a legislação civil ponderando que cabe aos pais, em conjunto, o exercício do poder familiar em relação aos filhos, o que, hipoteticamente, poderia sugerir que haveria um compartilhamento do exercício dos deveres inerentes a tal incumbência é fato que em um número extremamente reduzido de situações se encontra uma divisão de tarefas que não se mostre extremamente mais onerosa às mães (mulheres) do que aos pais (homens). A isso pode-se também acrescentar o grande número de mulheres que são obrigadas a desempenhar a plenitude das responsabilidades parentais por encontrarem-se na condição, não querida, de "mães solo", por não contarem com a presença do pai de seus filhos que, de maneira absolutamente irresponsável, abandonou sua prole, por vezes sem nem ao menos ter reconhecido a paternidade e registrado o filho. Na prática é concedido ao homem a escolha se vai ou não ser pai, ao menos em um primeiro momento, pois ele decide se reconhecerá ou não o filho nascido. Essa não é uma prerrogativa que se confere às mulheres, o que traz consigo um enorme ônus. Essa previsão de igualdade que só existe formalmente tem contornos mais deletérios do que a sua não positivação, vez que gera a falsa impressão de que não existe o problema, de que a lei já regulamenta a questão e que, portanto, nada há a ser feito, criando uma falsa aura de que existe proteção legislativa. Como afirmo de forma reiterada o simples fato de haver uma lei, por si só, não basta para que a realidade seja alterada. Não se olvida que grande parte do que as mulheres vivenciam é decorrente de uma sociedade totalmente baseada na prevalência da figura masculina como dominante e que, tradicionalmente sempre relegou as mulheres a uma condição de inferioridade, em um machismo que estrutura toda a nossa sociedade. Esse machismo está tão arraigado que acaba sendo replicado, de forma inconsciente, por muitas mulheres, a ponto de ele ainda se mostrar sólido e reinante em uma sociedade em que a grande maioria dos homens foi criado exatamente por essas mulheres. Vivemos tempos em que um pai que cumpre minimamente com os seus deveres é visto como alguém especial e merecedor de loas. Aquele que realmente desempenha os deveres legalmente determinados e que, portanto, não faz mais do que sua obrigação, é uma exceção tão grande que é notável. Um ser humano minimamente funcional é capaz de, por exemplo, trocar a fralda de uma criança, ainda mais com todas as facilidades da atualidade em que basta limpar o bebê com lenços umedecidos, passar uma pomada para proteger e curar de assaduras e colocar outra fralda, que, em alguns casos, é simplesmente vestida como uma bermuda. Contudo se quem fizer isso for um homem parece que estamos diante de uma enorme façanha. Convido a quem lê essa coluna a fazer um exercício simples: pense em quantas vezes você estava em um lugar onde uma criança precisou ter sua fralda trocada e foi um homem quem assumiu essa tarefa. E em quantas vezes essa troca foi feita por uma mulher? No mesmo exemplo, das vezes em que foi um homem a trocar essa fralda, em quantas delas ele não era o pai da criança? Posso asseverar que o percentual afirmativo dessa resposta é tão baixo que quem se lembrou de uma situação dessa certamente o fez por ter sido algo tão marcante que ficou gravado na memória. Considere a mesma perspectiva e pense quem limpa essa criança após ela ir ao banheiro, quem dá banho nela, quem faz sua comida, quem a alimenta, quem organiza todas as atividades relacionadas a ela. A reposta da grande maioria será a mesma: uma mulher. Longe de querer romantizar a maternidade é premente que se tenha em mente que todas as atividades de cuidado com relação aos filhos são impostas à mulher, não sendo "naturais". Não se nega o prazer e a alegria que envolve o cuidado e a convivência com um filho, contudo não se pode ignorar o tamanho desse encargo, que vai muito além das despesas de caráter econômico saldadas com o adimplemento da prestação alimentícia. Ainda que exista a previsão legal de que, em caso de necessidade de fixação de guarda, a regra seja a de seu estabelecimento na modalidade compartilhada o que é mais comum é que, ainda que definida de tal maneira, na prática o que ocorrerá é o exercício de guarda unilateral pelo genitor do gênero feminino. A discrepância entre a teoria e a prática é abissal e pode ser facilmente constatada com o enorme contingente de mães solo involuntárias ou, em palavras menos douradas, de mulheres que têm que exercer a integralidade ou grande parte do poder familiar sozinhas porque o irresponsável do pai de seu(s) filho(s) não cumpre os deveres legalmente fixados em razão da prole existente. E nesse universo é de se notar que existe um grande contingente que se considera um super pai ou que encontra-se quite com seus deveres pelo simples fato de pagar a pensão alimentícia. Mas olvida que o determinado pela lei vai além de elementos de cunho econômico, como se pode constatar da simples leitura do texto do art. 1.634 do Código Civil que impõe o dever de cuidar e educar. Ao fim e ao cabo, regra geral, o cumprimento de tais deveres são satisfeitos apenas pela mulher. A preocupação imediata de conseguir os meios que permitirão a mantença dos filhos faz com que seja dada uma enorme atenção à fixação das verbas alimentares a serem pagas (normalmente pelo pai), sem que se tenha o mesmo esmero quando da determinação da guarda e regime de convivência com os filhos. Basta se analisar toda a judicialização que acompanha o inadimplemento das verbas alimentares e comparar com a quantidade de vezes que o Poder Judiciário é instado a manifestar-se face ao não cumprimento do regime de convivência, o que antigamente chamávamos de direito de visitas, quando o genitor não comparece para compartilhar seu tempo com sua prole. O fato inescapável é que todo esse trabalho de cuidado exercido pelas mulheres resta não remunerado, em uma manifesta usurpação que gera, se não uma responsabilidade civil, ao menos um enriquecimento sem causa daquele que se beneficia dessa atividade, a qual há de ser, inquestionavelmente, ressarcida. Essas palavras iniciais encerram a primeira parte desse texto que continua na próxima coluna, em que tecerei maiores considerações sobre as razões dessa realidade e possíveis soluções a serem ponderadas. Contudo uma coisa há de ficar registrada: essa é uma das maiores máculas impostas pela histórica segregação da mulher a uma condição de "cuidadora por natureza". É urgente que se discuta tais questões e se encontre soluções. __________ 1 Disponível aqui. 2 Diponível aqui.
Como tem sido recorrente nos tempos atuais em que a sociedade da informação faz com que as pessoas acreditem que sejam obrigadas a ter opinião sobre tudo, vimos pulular nas redes sociais um tsunami de novos especialistas em Direito de Família, plenos de uma falsa erudição1, comentando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que tratou da imposição do regime da Separação Obrigatória de Bens quando um dos nubentes têm mais de 70 anos. Questão de complexidade imensa acabou sendo tratada por muitos com base em achismos e com carência de profundidade técnica. De outra sorte, também fomos brindados com análises sólidas e consubstanciadas de juristas de escol, engrandecendo a discussão sobre a questão. Contudo das manifestações às quais tive acesso não encontrei a apreciação do tema sob um olhar de gênero, o que impõe que eu traga a minha contribuição. A base em que se alicerça a presente celeuma está no disposto no art. 1.641 do Código Civil, o qual preconiza a imposição do regime de separação de bens em dadas situações, visando a proteção daquele nubente que o texto legal considera como vulnerável. Assim, determina-se o regime da Separação Obrigatória de Bens quando o casamento for contraído com inobservância das causas suspensivas (i); por pessoa maior de 70 (setenta) anos (ii); e por quem depender de suprimento judicial para casar (iii). A restrição da liberdade de escolha do regime de bens para o casamento em razão de um elemento etário, objeto do presente texto, é motivo de discussão já de longa data, tendo mesmo o art. 1.641 do Código Civil sofrido alteração em 2010, pela Lei 12.344, que majorou de 60 (sessenta) para os atuais 70 (setenta) anos. O tema encontrou sua decisão mais recente com a tese fixada para Tema 1.236 da repercussão geral, no julgamento do ARE 1.309.642 que estabelece que "Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública". Em linhas panorâmicas o que se tem é que a imposição do regime da Separação Obrigatória de Bens aos maiores de 70 (setenta) anos foi tida como constitucional, contudo ante a uma intepretação conforme à Constituição Federal, sem redução do texto, garante-se a possibilidade de escolha de outro regime de bens pelas partes. Ou seja, transformou o regime para os maiores de 70 (setenta) anos em "não tão" obrigatório, já que faculta aos nubentes a possibilidade de seu afastamento, ante ao exercício de sua autonomia. Assim, no silêncio das partes, segue prevalecendo o regime da Separação Obrigatória de Bens para pessoas com mais de 70 (setenta) anos, seja no casamento ou na união estável, garantindo-se, porém, a escolha de outro regime de bens ante a elaboração de pacto antenupcial ou contrato de convivência. Essa não foi a primeira vez que o regime da Separação Obrigatória de Bens foi relativizado, como bem se extrai do conteúdo da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal (STF), que inseriu um viés de comunicabilidade patrimonial nessa modalidade de separação de bens. O fato é que com o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tem-se, agora, dois regimes supletivos distintos: um para aqueles que ainda não atingiram os 70 (setenta) anos e outro para aqueles que já superaram essa faixa etária. A regra geral segue sendo o regime da Comunhão Parcial de Bens para quem não tem 70 (setenta) anos, conforme previsto no art. 1.640 do Código Civil, contudo para os septuagenários prevalecerá o regime da Separação Obrigatória de Bens, o qual não mais se faz cogente, podendo ser afastado pela manifestação de vontade dos nubentes. A decisão claramente traz um avanço ao que se tinha até então, contudo ainda está bastante distante dos parâmetros que entendo serem os mais tecnicamente adequados. De início é premente que se tenha bastante patente que o cerne de toda a discussão reside em uma figura de cunho eminentemente econômico, qual seja, o medo de que o maior de 70 (setenta) anos venha a ser ludibriado e envolva-se em um relacionamento em que a outra parte apenas se interessa pelo seu patrimônio, em expressão clara do patrimonialismo e do paternalismo estatal. Importante se consignar de plano que tal sorte de previsão de "proteção" do patrimônio apenas de maiores de 70 (setenta) anos revela um desvio manifesto, pois impõe a todas as pessoas com tal idade um regramento diferenciado, independentemente de ela possuir ou não um patrimônio considerável. À guisa de resguardar o patrimônio de quem a lei supõe, sem qualquer parâmetro, ser mais suscetível de ser enganado, cria uma regra especial a todos. Parte-se de um pressuposto lógico manifestamente equivocado de que nessa idade a pessoa estaria mais propensa a ser ludibriada por alguém que lhe declare amor. Ledo engano. A experiência, sempre exaltada das pessoas mais idosas, faz com que ela esteja mais capacitada para perceber os sinais de que possa estar sendo enganada. Essa pessoa pode ser Presidente da República com mais de 70 anos, regendo a vida de toda a nação, mas não poderia decidir o regime de bens do seu casamento? Não teria discernimento para se precaver em caso de estar sendo vítima de um engodo amoroso? Sustento que um jovem corre mais risco de ser vitimado pelo temido "golpe do baú", por ser mais crível a ele que outra pessoa esteja interessada em quem ele é e não no seu patrimônio. E mais, caso esse idoso queira efetivamente que as pessoas se atraiam por ele em razão de seu patrimônio isso seria de interesse do Estado? Tal previsão de imposição de um regime com menor comunicabilidade patrimonial fere o preceito da mínima intervenção do Estado no Direito de Família. Ao entender pela constitucionalidade do art. 1.641, II do Código Civil a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no ARE 1.309.642 mantém e reforça a perspectiva de que o amor estaria vinculado a uma equivalência de aparência física que se faria perdida para os mais idosos, por quem uma pessoa jovem jamais poderia se interessar. De se notar que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) apenas mitiga levemente a incidência do regime da Separação Obrigatória de Bens já que em sua ampla maioria as pessoas não elaboram pactos antenupciais ou contratos de convivência alterando a regra geral prevista de forma supletiva, de maneira que a tendência é que o paternalismo continue a incidir em larga escala nos casamentos e uniões estáveis de pessoas com mais de 70 (setenta) anos. Contudo existe uma questão de fundo que precisa ser trazida à luz e discutida de forma real e sem hipocrisias: A quem interessa, efetivamente, a proteção do patrimônio do nubente? A comunicabilidade patrimonial apenas é sentida, na prática, quando do término do casamento ou da união estável, não trazendo o regime da Comunhão Parcial de Bens grandes variáveis na constância do relacionamento. A grande preocupação recai sobre o destino que o patrimônio tomará quando findar o casamento ou a união estável, especialmente se esse termo decorrer da morte do septuagenário. Uma das verdades ocultas sobre toda a discussão entabulada é que a preocupação não é a "proteção" da pessoa idosa com mais de 70 (setenta anos), mas sim os interesses sucessórios de seus herdeiros. O cônjuge septuagenário, caso não existisse a regra especial, manteria consigo, ordinariamente, todo o patrimônio que já possuía antes de se casar, pois a comunicabilidade recairia apenas sobre o que viesse a ser auferido na constância do casamento ou união estável. Sob a perspectiva da proteção do septuagenário a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dá azo à possibilidade de que venha a escolher o regime de Comunhão Universal de Bens, o qual poderia colocar em risco maior seu patrimônio. Se o intuito fosse mesmo a proteção do septuagenário o pensamento enviesado adotado iria preconizar a imposição da vedação da escolha do regime da Comunhão Universal de Bens. E não foi isso que fez o Supremo Tribunal Federal (STF), tão questionado por muitos em razão de decisões que não se atém exatamente aos limites dos pleitos formulados. De se ponderar, ainda, que se o próprio detentor do patrimônio "em risco", que é uma pessoa capaz, não está preocupado com tal questão, qual a necessidade do Estado intervir? Qual o interesse em imiscuir-se? A mim é muito evidente que estamos diante de uma forma velada de se tratar de herança de quem ainda não morreu. Uma ingerência de terceiros sobre a vida patrimonial do nubente. Reitero que caso viesse a casar-se segundo a regra geral a maior "perda patrimonial" que sofreria em decorrência do fim desse casamento seria de metade do que foi adquirido na constância do casamento ou união estável. Que é menos do que o sujeito pode alienar a título de doação a quem ele bem entender. E isso não é objeto de um levante. Se efetivamente houver o interesse de valer-se de sua condição econômica para "atrair" a atenção de uma pessoa mais jovem o risco de dilapidação do patrimônio é muito maior do que o decorrente do casamento com a incidência do regime de bens. Quem haverá de impedir que o septuagenário venha a fazer vultosas doações em favor de sua jovem namorada? O chamado "golpe do baú" sempre é o elemento aduzido quando se trata da previsão do regime da Separação Obrigatória de Bens para o casamento de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, que seria previsto como fulcro de "afastar o incentivo patrimonial do casamento de uma pessoa jovem que se consorcia com alguém mais idoso"2. Tal pensar vem sendo combatido pela doutrina, que pontuava pela inconstitucionalidade da previsão por trazer uma "velada forma de interdição parcial do idoso"3, com uma presunção de vulnerabilidade ou incapacidade mental. Tal premissa é inquestionavelmente atentatória à liberdade individual das pessoas, com o Estado impondo ao nubente praticamente uma capitis diminutio4 que lhe privava da liberdade de escolher o regime de bens de seu casamento. E agora com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a situação encontra-se pacificada e resolvida... Contudo não é assim que vejo. Há aqui um elemento de preconceito embutido, que vai além do etarismo, que precisa ser desvelado. Ao lado da discriminação silenciosa contra as pessoas maiores de 70 (setenta) anos, que persiste mesmo com os avanços civilizatórios e o movimento contramajoritário do Poder Judiciário5, há também uma perspectiva de gênero que não pode ser ignorada. Faço um convite sincero a quem me lê: tal regra de restrição da comunicabilidade patrimonial busca "resguardar" efetivamente os interesses de homens ou de mulheres? Durante sua leitura até o presente ponto quem era a pessoa que figurava em sua cabeça como sendo esse sujeito de 70 (setenta) anos? Era um homem ou uma mulher? Aqui está o preconceito oculto que aduzi anteriormente. É o estigma da mulher jovem aproveitadora. Mesmo que tenha que encarar manifestações no sentido de que a previsão legal não faz distinção de sexo ou gênero, não posso me furtar a asseverar que há sim elementos históricos respaldando essa regra que têm lastros sexistas. Crendo-se que o objetivo da lei é proteger o patrimônio é evidente que o destinatário de tal previsão legal é o homem. Reitero, como usualmente tenho feito, que essa falsa isonomia oriunda de uma igualdade meramente formal é mais nefasta que a desigualdade expressa, já que emula uma ausência de preconceito que não se efetiva na prática6. Uma busca simples sobre as pessoas mais ricas do mundo ou mesmo do Brasil revelam uma imensa maioria de homens em seu topo. Da lista da Revista Forbes dos bilionários do mundo, de um total de 2640 apenas 320 são mulheres7. Ainda que não estejamos aqui falando efetivamente de pessoas tão abastadas como as indicadas pela revista, é fato que a estrutura social segue concentrando patrimônio e renda nas mãos dos homens, que possuem um rendimento médio cerca de 30% superior ao das mulheres8, e detêm 64% do patrimônio declarado à Receita Federal9, ao que pode-se acrescer o fato de que mulheres ordinariamente são as vítimas de violência patrimonial. Uma visão mais acurada nos conduz a afirmar que a regra prevista no art. 1.641, II do Código Civil destina-se, eminentemente, ao homem septuagenário. O preconceito social é tido em tom de pilheria em muitos casos quando a pessoa mais velha no relacionamento é o homem, contudo reveste-se de contornos muito mais ofensivos quando essa pessoa é uma mulher, fazendo com que a pressão social seja tamanha que, no mais das vezes, essas mulheres não consigam fazer com que o relacionamento se consolide em um matrimônio ou união estável. Faz-se importante também ponderar quem seriam, nos dias atuais, as mulheres septuagenárias que "poderiam" se casar. Normalmente são pessoas que já estiveram envolvidas em um matrimônio ou união estável anterior, viúvas ou que passaram por um divórcio tardio (ou grey divorce), que vivem com uma imensa dificuldade de manter-se economicamente, enfrentando uma redução drástica em sua renda, como descrito em coluna anterior10. Não parece ser ela a destinatária da preocupação do legislador. Não se pode olvidar que a criação de tal norma, existente no sistema codificado pátrio desde o Código Civil de 1916, era inegavelmente um preceito protetivo para o homem em sua origem, pois aquela época era raro a mulher que tivesse qualquer patrimônio próprio. O sistema protetivo possuía viés de gênero em sua criação e continua tendo. O fato prático e que passou ao largo das discussões do nosso Supremo Tribunal Federal (STF), composto quase que em sua totalidade por homens, é que tal aspecto protetivo que foi reconhecido como constitucional fomenta um preconceito manifesto contra as mulheres. Pressupõe que as mulheres que se interessam por alguém que tenha mais de 70 (setenta) anos não nutre um sentimento sincero por seu nubente. De forma bastante pragmática há de se consignar que, em que pese a romantização do instituto do casamento, não há na legislação qualquer previsão de que amor ou afeto sejam requisitos para a realização do casamento ou união estável. Contudo quando se trata de uma pessoa com mais de 70 (setenta) anos o tão aclamado princípio da afetividade, ou o reconhecimento do afeto como um valor jurídico relevante é esquecido, relegado e subjugado por uma visão da mulher aproveitadora, que quer se beneficiar do patrimônio do nubente e que este seria incapaz de notar isso. Mas o mais cruel de tudo o que se traz aqui é o estabelecimento de uma presunção de má-fé da mulher que se casa ou estabelece união estável com alguém que tenha mais de 70 (setenta) anos, refutando toda a principiologia legal vigente. O que se tem, ao final, é uma regra que segue referendando um entendimento pretérito e fundado em manifesto preconceito de que os homens com "posses" precisam ser protegidos das "mulheres interesseiras". O Estado segue institucionalizando a presunção de que homens com mais de 70 (setenta) anos não são merecedores de amor genuíno e que mulheres que por eles se interessam em verdade apenas nutrem afeição por seu patrimônio. Mesmo que ele não o tenha. A boa-fé presumida e a inocência caem por terra. O amor, carinho e afeto não podem ser direcionados a tais pessoas. Ter mais de 70 anos torna a pessoa em um ser abjeto a quem apenas por dinheiro se destina alguma atenção. E como a regra é que o patrimônio esteja circunscrito em sua maioria aos homens, as mulheres que se atraem por eles apenas o poderiam fazer em razão da busca de riqueza. O casamento ou união estável de alguém com mais de 70 (setenta) anos seria, assim, composto por um homem passível de interesse apenas em razão de seu patrimônio e uma mulher interesseira. Me nego a acreditar que é isso, apesar do que dispõe a lei e do que decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF). __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Informações jurídicas imprecisas na mídia e redes sociais. o risco de danos para a sociedade. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 1, jan./jun. 2023, p. IV. 2 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. Vol. VI, 14 ed.. São Paulo: Atlas, 2014, p. 349. 3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família. v. 6. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 317. 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. Vol. 5. 26 ed. São Pulo: Saraiva, 2011, p. 208. 5 NOVAIS CALMON, Patrícia; ALMEIDA, Vitor. Regime de bens e etarismo presumido velado: breve análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no ARE 1.309.642. Disponível aqui. Acesso em 20 fev.2024. 6 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 83. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui.
O preconceito contra as minorias sexuais segue sendo um traço marcante da sociedade brasileira que imprime seu viés discriminatório em uma enorme gama de situações, ainda que os termos que sustentam o Estado Democrático de Direito constitucionalmente estabelecido preconizem aspectos basilares como a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e discriminações. É evidente a discrepância entre as garantias constitucionais e o real estágio civilizatório que experienciamos enquanto sociedade, pois a distância entre a igualdade formal e a material segue presente e gerando suas nefastas consequências, impondo a premência constante de que se tenha que afirmar que os direitos fundamentais resguardados a todos também se destinam às minorias sexuais, exigindo a reiterada lembrança de que não se deixa de ser pessoa por não estar inserido nos marcadores que caracterizam a maioria1. Faz-se mister que se afirme de maneira ostensiva que a condição de minoria não afasta ninguém do direito de ver respeitados os direitos humanos e garantias fundamentais conferidos a todo ser humano. O panorama é tão assustador que impõem que o óbvio seja sempre refirmado: as características individuais e marcadores sociais não podem ser usados como parâmetros com a finalidade de privar essas pessoas dos direitos essenciais. Como tenho repetido em inúmeros escritos e falas nosso Estado Esquizofrênico2 cria uma estrutura legislativa que prima pela proteção dos grupos vulnerabilizados contudo não a implementa em favor das minorias sexuais, permitindo a consolidação de uma realidade em que o reconhecimento da vulnerabilidade não se converte em proteção especial, já que a constatação da condição de grupo minoritário acaba servindo não para estabelecer guarida mas apenas para segregar mais3. Esse preconceito é tamanho e tão arraigado que se manifesta até mesmo em atos institucionais praticados no bojo de processos judiciais, revelando um dos meios mais sorrateiros da discriminação. A garantia de igualdade na lei que não se concretiza na prática, tendo vida apenas no papel em que está impressa4, reveste-se de um grau de periculosidade ainda mais elevado, pois dá a sensação à maioria de que nada mais precisa ser feito já que o direito encontra-se previsto na legislação. Estar positivado, no entanto, não significa que goza de efetividade. Essa equivocada compreensão tem ainda o delicado efeito de fazer com que as maiorias se oponham às conquistas das minorais sexuais que, em verdade, não lhes confere nenhum direito novo mas apenas determina o implemento daqueles que já se encontram consolidados em favor de todas as pessoas.5 Tal sorte situação é o que impõe a necessidade de que se pleiteie, de forma contínua, o estabelecimento de ações afirmativas que, basicamente, têm por fim exigir que "dados direitos gerais que não são conferidos a determinadas minorias"6 sejam efetivados. Exatamente esse cenário repleto de preconceito e discriminação conduziu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) à necessidade de publicar, em 16 de novembro de 2023, a Resolução 532, que tem por fim, basicamente, impor a magistrados(as) e tribunais que respeitem e apliquem os preceitos contidos no art. 5º da Constituição Federal, afastando toda sorte de discriminação contra homossexuais e transgêneros que buscam a paternidade por meio de processo de adoção. A adoção, que é uma modalidade de fixação de parentesco decorrente de decisão judicial, cria uma filiação entre duas pessoas independentemente da existência de laços consanguíneos, mediante a manifestação de vontade expressa do adotante,7 e é instituto histórico do Direito de Família, com raízes remontando ao Direito Romano. Trata-se de uma medida excepcional e irrevogável, cercada de uma ampla gama de mecanismos visando a proteção daquele que será adotado, especialmente quando se tratar de uma criança ou adolescente, em razão de todas as consequências jurídicas decorrentes de se retirar uma pessoa de sua família natural e inseri-la em uma família substituta. Ainda que o inconsciente popular apenas associe a adoção a adotados que ainda não atingiram a maioridade civil, há a possibilidade de que esse seja alguém com mais de 18 (dezoito) anos, hipótese em que, conforme estabelecido após a lei 12.010/09, se aplica, no que couber, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em situação inusitada de sua aplicação a assuntos que não envolvem crianças e adolescentes.8 De qualquer sorte é evidente que o elemento motivador da resolução 532/23 é a adoção de crianças e adolescentes às quais se impõe alguns requisitos, como que o adotante tenha mais de 18 anos, diferença mínima de 16 anos entre adotante e adotado (art. 42), estágio de convivência, laudo psicossocial favorável à adoção, estabilidade familiar e decisão judicial. De se notar que em nenhum momento o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) traz qualquer menção acerca da sexualidade dos adotantes como sendo um critério a ser aferido a fim de se apreciar a viabilidade da adoção, todavia a resolução 532/23 mostra que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considerou necessário trazer ponderações sobre o tema. Se o fez foi, obviamente, porque na prática tal elemento vinha (e vem) tendo relevância para o deferimento dos pedidos de adoção. E revela isso ao pontuar que, nos temos do que se pode constatar do Fórum da Infância e da Juventude do Conselho Nacional de Justiça (Foninj), há a "necessidade de que sejam realizados ajustes nos procedimentos de habilitação e nos processos de adoção de crianças e adolescentes pelos tribunais e pelos(as) magistrados(as)". Evidencia-se que a concepção de que a inserção de uma criança ou adolescente "no seio de uma família formada por pessoas do mesmo sexo, ou que não se adaptam ao conceito heteronormativo de família concebido"9 ainda gera discussões entre os mais conservadores e aqueles que não buscam informações científicas acerca do tema, lastreando-se apenas em seus achismos. Mesmo sendo bastante sólido o entendimento de que a colocação em uma família substituta de um casal de pessoas do mesmo gênero ou que o adotante seja homossexual ou transgênero não encerra qualquer prejuízo para quem está a ser adotado10 (havendo mesmo estudos que demonstram a perfeita adequação de tal prática, como os constatados pelo Estudo Nacional Longitudinal de Famílias Lésbicas dos EUA - NLLFS)11, a realidade expõe que a sexualidade dos adotantes segue gerando impasses práticos. Logo em seu primeiro considerando a resolução pontua "a necessidade de que o processo de adoção seja conduzido em conformidade com as disposições legais pertinentes, a fim de garantir o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, em uma sociedade plural, isenta de discriminação relativa à orientação sexual ou de gênero". Como já asseverado não há qualquer novidade em se determinar que a análise de magistrados(as) e tribunais quando da adoção deva ser isenta de preconceitos, não podendo se consumar em uma atividade discriminatória contra homossexuais e transgêneros, por exemplo. Contudo é inegável que a natureza humana dos que participam e influenciam na decisão final quanto a adoção acaba tendo seu impacto, gerando a restrição da adoção a essas pessoas. Está posto que, em sede de adoção, premissas constitucionais básicas, como o respeito da igualdade e da dignidade da pessoa humana, não são cumpridas, mormente quando os adotantes não se enquadram nos parâmetros cisheteronormativos que regem nossa sociedade e o ordenamento jurídico. Essa "ausência de neutralidade" demonstrada pelo Judiciário impôs ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a necessidade de afirmar, de forma categórica, que "a sexualidade do adotante, seja pela sua orientação sexual ou sua identidade de gênero, não consta como requisito legal para que se conceda a adoção, razão pela qual qualquer restrição baseada neste aspecto há de ser frontalmente combatida por representar manifesta ofensa ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana"12. Não há como se acreditar na crença de total imparcialidade e isenção dos atores que tem papeis centrais no processo de adoção, estando evidente que, seja na elaboração do estudo psicossocial que fundamenta o deferimento da adoção, seja na própria prolação da sentença, elementos que não se vinculam aos requisitos legais para a adoção estão ganhando relevância, fazendo com que o preconceito gere a discriminação que a legislação, em tese, se esmera em proibir. O que se constata é que o que deveria ser uma decisão técnica, baseada somente nos preceitos legais estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vem sendo maculada pelo preconceito daqueles que estão presentes nas diversas fases da cadeia processual que culmina como deferimento ou não do pleito de adoção. Não se pode admitir de forma alguma que entendimentos, pensamentos e preconceitos contra as minorias sexuais possam incidir nos processos de adoção, especialmente quando se tem em mente que a Constituição Federal garante ser dever da família, Estado e sociedade assegurar, com absoluta prioridade, a proteção dos interesses de crianças e adolescentes (art. 227). Discriminar, conferindo valor a um preconceito, está bastante apartado do dever de especial amparo. Ainda que não fale abertamente que a negativa quanto a viabilidade da adoção seja decorrente da condição sexual dos pretensos adotantes é comum que tal preconceito se consolide em afirmações que sejam vinculadas a uma "não compatibilidade", "ausência de elementos que demonstrem o real benefício em favor do adotado" ou "estrutura familiar que não atende ao melhor interesse da criança". Nota-se também que a resolução 532/23 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) suscita as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ADI 4275 e 4277, bem as manifestações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para fundamentar o imperativo de se resguardar tanto a orientação sexual quanto a identidade de gênero como categorias a serem protegidas. A menção à ADI 4277 relaciona-se com a possibilidade de reconhecimento das entidades familiares constituídas por pessoas do mesmo sexo13 especialmente face a tentativa de camuflar o preconceito com assertivas de cunho técnico como era recorrente, valendo-se da alegação de que a adoção por mais de uma pessoa apenas seria possível caso elas fossem casadas ou vivessem em união estável, direitos que seriam vedados a pessoas do mesmo sexo14, fator que manifestamente contraria o nosso Estado Democrático de Direito, como foi devidamente rechaçado pela decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Todavia não se pode ignorar que esse raciocínio ainda povoa as mentes arcaicas de alguns extremistas, em larga medida calcados em uma moralidade retrógrada e em preceitos religiosos decorrentes de uma interpretação enviesada do texto bíblico, como explorado anteriormente nessa coluna15. A resolução 532/23 ressalta a "necessidade de eliminar qualquer forma de discriminação e garantir que o processo de adoção seja conduzido com observância do interesse superior das crianças e dos adolescentes, levando em consideração a idoneidade e a capacidade dos postulantes para exercer a função parental" e que "a adoção realizada de forma inclusiva, igualitária e respeitosa contribui para a proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, das pessoas que pretendem formar suas respectivas famílias, promovendo a construção de uma sociedade mais justa e solidária". Assevera ainda o "compromisso do CNJ quanto à importância de se promover uma cultura de respeito à diversidade e de garantia dos direitos humanos no âmbito do processo de adoção" e a " responsabilidade do Poder Judiciário em combater a discriminação e assegurar a igualdade de direitos a todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, identidade de gênero ou da composição familiar" Passando à apreciação do conteúdo dos artigos trazidos na resolução se constata uma série de obviedades que, mesmo redundantes, se mostram necessárias para que o preconceito que ainda grassa em sede dos processos de adoção seja refreado. E começa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), asseverando que cabe aos tribunais e magistrados(as) "zelar pela igualdade de direitos e pelo combate a qualquer forma de discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero". A mim parece que se estivéssemos verdadeiramente vivendo uma democracia plena, com respeito a cidadania de todos, seria totalmente supérfluo que uma norma elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se iniciasse com a afirmação de que compete aos tribunais e magistrados(as), ou seja, exatamente quem tem por atividade precípua o cumprimento da lei, que venham a fazer valer o disposto naquela que é tida em nosso ordenamento jurídico como a legislação maior. Contudo a realidade é tão preocupante que a resolução 532/23 entendeu por bem relembrar ao nosso Judiciário que ele deve cumprir a lei, o que equivale a determinar que o professor deve ministrar suas aulas e que o cozinheiro deve cozinhar. Na sequência, ainda no art. 1º, há a manifestação expressa de que são vedadas "nos processos de habilitação de pretendentes e nos de adoção de crianças e adolescentes, guarda e tutela, manifestações contrárias aos pedidos pelo fundamento exclusivo de se tratar de casal ou família monoparental, homoafetivo ou transgênero". A baixa compreensão social dos pilares que sustentam a sexualidade16 é replicada, de forma recorrente, por nossos tribunais e magistrados(as) que, em sua larga maioria, desconhecem as distinções entre sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Tal fato é reconhecido pela Resolução 532/23 ao afirmar que os Tribunais de Justiça devem "elaborar cursos estaduais preparatórios à adoção, com caráter interdisciplinar, que contemple a possibilidade de adoção homoparental, bem como explicite as garantias processuais, particularmente de direito a assistente técnico, de assistência jurídica, de manifestação pelos pretendentes sobre os laudos ou pareceres técnicos antes da decisão judicial e da possibilidade de recurso em caso de indeferimento do pedido". (art. 2º), firmando que "Os Tribunais de Justiça devem prover formação continuada a magistrados(as) e equipes sobre adoção com perspectiva de gênero e particularmente adoção homoparental" (art. 3º) Quando os tribunais já oferecerem tais cursos é dever dos magistrados(as) "pessoalmente e assessorados pelas equipes técnicas do juízo, organizar ao menos um encontro local para solucionarem dúvidas e prestar esclarecimentos sobre peculiaridades locais.". Onde eles forem "ministrados pelas Varas da Infância e da Juventude, os(as) magistrados(as) devem participar de ao menos um encontro com os pretendentes visando esclarecimento de dúvidas, bem como assegurar-se de que a possibilidade de adoção homoparental é apresentada aos pretendentes e que todos sejam informados das garantias processuais no processo de habilitação à adoção" (Art. 3º, § 2º). De se notar que mesmo aqui a resolução se mostra frágil por não indicar a necessidade de que todos sejam devidamente esclarecidos acerca dos elementos que compõem a sexualidade, bem como que tais aspectos não podem configurar objeção ao pleito formulado pelos pretendentes. A resolução 532/23 afirma ainda que "Os tribunais e varas da infância e da juventude podem, sempre que necessário e possível, contar com a colaboração de grupos de apoio à adoção com enfoque na adoção homoparental para tratar de assuntos específicos ao público LGBTQIAPN+" (Art. 3º, § 3º). Na sequência a resolução impõe que "Os(as) magistrados(as) devem analisar nas inspeções aos serviços de acolhimento, institucional e familiar, a efetiva qualificação dos responsáveis para preparar as crianças e adolescentes para adoção em qualquer modalidade de família, inclusive homo ou transafetiva, comunicando ao Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente em caso negativo, nos termos do art. 90, § 3º, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente. (Art. 4º). Complementa ainda a Resolução 532/23 que "Os tribunais deverão incluir nas atividades de incentivo à adoção a inclusão de famílias homo e transafetivas, bem como disseminar os canais da ouvidoria para reclamações em caso de situações de discriminação" (Art. 5º). Ao fim ao cabo é bastante peculiar perceber que a presente resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) basicamente tem por fim, como já indicado, determinar que a lei seja cumprida. Nada mais. A resolução 532/23 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) faz com que sejamos obrigados a reconhecer a discriminação existente (e que já haveria de estar superada) e entender que ela persiste em razão da aceitação de que aspectos que não se coadunam com os preceitos instituidores de um Estado Democrático de Direito continuem tendo incidência nas atividades jurisdicionais, seja na elaboração da lei por parte do Poder Legislativo, seja através de sua aplicação pelo Poder Judiciário. Ainda que entenda ser um absurdo ter que reafirmar que a Constituição Federal deve ser cumprida, a nossa realidade tem demonstrado que nunca é demais lembrar que o nosso Estado Democrático de Direito veda práticas discriminatórias contra qualquer pessoa, e, para o espanto de alguns, isso se aplica também em favor de homossexuais e transgêneros. Oxalá cheguemos a um momento em que o óbvio não precise ser dito exatamente por estar-se cumprindo os direitos fundamentais preconizados na Constituição Federal nomeada de cidadã. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 4 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 36-37. 5 Disponível aqui. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 277. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 252. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. DOMINGOS, Terezinha de Oliveira. A nova perspectiva da adoção nacional e o capitalismo humanista, Revista o Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo - v. 9, n. 9. São Bernardo do Campo: Metodista. 2012, p. 35. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 254. 10 Roberto Arriada Lorea. Intolerância religiosa e casamento gay, Diversidade sexual e direito homoafetivo, São Paulo: RT, 2011, p. 40. 11 Disponível aqui. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 253. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011. 14 Disponível aqui. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 
Existem muitas situações práticas pelas quais passamos em nosso cotidiano que acabam se tornando normais e não nos damos conta de toda a complexidade que as permeia. Principalmente quando tais eventos não nos tocam pessoalmente em nenhuma esfera delicada de nossas vidas. Continuamente nos é exigido que comprovemos quem somos, o que fazemos por meio de informações que são consignadas em uma série de documentos de identificação pessoal que, em sua larga maioria, são obrigatórios. Nossos dados pessoais são coletados muitas vezes sem que tenhamos a plena consciência disso, mas não são raras as vezes em que o fazemos de forma expressa e consentida, como ao preenchermos fichas de atendimento e cadastros no comércio, seja no mundo físico ou virtual.    O fornecimento de tais dados e sua publicização encerra em si a exposição de elementos de identificação revestidos de um caráter eminentemente particular, manifestamente personalíssimo, como é o caso daqueles atrelados à sexualidade. Ainda que persista uma enorme confusão entre o que encerra a ideia de sexo e de gênero, muitas vezes utilizadas como sinônimos, como já explicitamos em coluna anterior1, é importante que se inicie o presente texto com um questionamento bastante singelo: qual a necessidade de informações referentes a aspectos da sexualidade em documentos de identificação pessoal? Por qual razão há a sua inclusão em formulários e fichas cadastrais? Não se olvida aqui que, ao menos no caso dos documentos de identificação pessoal, a origem de tal imposição repousa na Lei de Registros Públicos que, expressamente, no art. 54, 2º, determina que a informação quanto ao sexo constará do assento de nascimento. Tampouco se ignora que tal dado é extraído de outro documento, a Declaração de Nascido Vivo (DNV), onde, conforme determinado no art. 4º, III da lei 12.662/12, haverá de se indicar o sexo do recém-nascido. Como já manifestado alhures2 não há em nenhuma dessas normas a imposição expressa que a indicação do sexo seja realizada entre certas variáveis, em que pese o modelo da Declaração de Nascido Vivo (DNV) trazer, em campo de escolha fechada, as alternativas (M) Masculino, (F) Feminino ou (I) Ignorado, em concepção equivocada que além de usar expressões eminentemente associadas ao gênero traz uma restrição a um binarismo que não encontra respaldo na ciência médica3. Consignar a informação relativa ao sexo do recém-nascido na Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou fazê-la constar do assento do Registro Civil de Nascimento não representa, por si só, um problema, pois indica uma característica física daquele indivíduo, que é utilizada por vários motivos, dentre os quais se destaca a necessidade de pormenorização dos dados de identificação da pessoa natural a fim de diferenciá-la de outra em casos de similitude de informações (filhos de mesmo pai, gêmeos, homonímia), bem como na hipótese do prenome do registrado poder ser utilizado para pessoas de ambos os sexos, como Jaci e Ivani, por exemplo, que sem a indicação do sexo pode gerar problema no momento da correta identificação da pessoa. Cumpre salientar, também, que a Declaração de Óbito (DO), instituída pela lei 11.976/09, possui no campo de número 10 a indicação do sexo da pessoa falecida, atendendo ao previsto no art. 80, 3º da Lei de Registros Públicos (LRP). Nota-se, aqui, a repetição do mesmo erro indicado anteriormente quando da análise da Declaração de Nascido Vivo (DNV) vez que traz como alternativas (M) Masculino, (F) Feminino ou (I) Ignorado. De se pontuar que indicar na Declaração de Óbito o sexo do falecido, além das razões já citadas, é relevante para que, na morte de pessoa indigente (sem dados de identificação conhecidos), seja possível, na necessidade de uma verificação futura, ter o máximo de dados do falecido para que se torne viável seu reconhecimento. Contudo não se afigura como adequado que algo tão íntimo e personalíssimo venha a ser exposto de forma indiscriminada a quem quer que seja, por estar descrita em documentos de identificação pessoal ou outros de natureza pública. De se notar que nas certidões de nascimento e óbito, cujos modelos foram estabelecidos nos anexos do Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há campo específico para a aposição da informação referente ao sexo, contudo a Lei de Registros Públicos (LRP) não impõe que esta seja exposta ou franqueada a quem quer que seja. Basta assinalar que nem todas as informações exigidas pela Lei de Registros Públicos (LRP) no art. 54 ao tratar do assento de nascimento são consignadas na Certidão de Nascimento estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como, por exemplo, "... a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal" (7º), ou "os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento, quando se tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar ou casa de saúde" (9º). Mediante uma apreciação singela da legislação vigente se verifica que não há a determinação expressa de que a informação quanto ao sexo de quem quer que seja deva ser exposta em documentos públicos. E, no caso em que se vê tal exposição prevista nos modelos dos documentos, não há na lei o correlato que impõe que do modelo conste tal dado. Contudo, em que pese nossa manifesta oposição ao fato de tal informação quanto a sexualidade estar disponível a quem quer que seja que venha a acessar documentos públicos4, o fato é que atualmente é isso que se tem como consolidado em nosso país. E, enquanto esse equívoco técnico não for superado, é necessário lidar com a situação. Porém mesmo o que se tem utilizado como prática não se coaduna com o determinado, vez que experienciamos uma realidade em que grassa uma enorme confusão com relação aos aspectos que se vinculam à sexualidade, como vem sendo divulgado nessa coluna desde o seu texto inaugural5. Baseado na acepção técnica de que o sexo está vinculado, em linhas panorâmicas, à constituição física da genitália da pessoa6, já que a informação que consta da Declaração de Nascido Vivo (DNV) e que será usada como fonte original para revelar o sexo é fundada, em quase todos os casos, na constatação feita pelo médico quando do nascimento, qual a relevância jurídica de que todos que tenham acesso à certidão de nascimento de alguém possam saber se aquela pessoa possui pênis ou vagina? A exposição de tal informação além de desnecessária tem o condão de ferir o direito à intimidade que é tanto uma garantia constitucional como um direito da personalidade. E reitera-se o questionamento acima proposto: a quem assiste interesse jurídico de ter acesso, por meio da certidão de nascimento ou óbito, à genitália da pessoa a qual tais documentos se refere? Mas a normalização de certas condutas acaba por fazer com que algumas pessoas sequer se atentem para o fato de que sua intimidade está sendo violada até que venham a se deparar com alguma situação fática em que se sentem expostas em decorrência da existência de tal dado em seus documentos. Nem mesmo nos aprofundaremos na análise de outros documentos que trazem a indicação do sexo da pessoa, como é o caso do passaporte e também da Carteira Nacional de Identificação, regulamentada pelo decreto 10.977/227, que, em que pese ter tal questão pendente de análise, trazia na versão inicial a previsão de que a indicação do sexo era elemento obrigatório do documento (art. 11, V), reinserindo em nossa sociedade problemas já superados8. Para além dessa construção quanto à necessidade ou não de que tal informação conste nos documentos é de se pontuar que desde a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) fixou-se que dados referentes à sexualidade são considerados dados sensíveis e, portanto, seu tratamento merece uma atenção diferenciada. O art. 5º da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ao definir, no inciso II, o dado pessoal sensível, assevera que serão assim considerados os que se refiram à vida sexual e, por óbvio, o sexo da pessoa está inserido em tal contexto. Ato contínuo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou o Provimento 134/22, destinado aos registradores e notários, que os coloca na condição de controladores dos dados tratados (art. 4º) e responsáveis pela exposição de dados sensíveis9, sendo que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) fixa que o controlador é o responsável pelos danos que causar no exercício de atividade de tratamento de dados (art. 42)10. Tal raciocínio pode conduzir a uma conclusão de que estamos diante de um conflito aparente de normas ao se considerar que, ao mesmo tempo que a Lei de Registros Públicos (LRP) determina a indicação do sexo nos assentos de nascimento e óbito (mas não nas certidões de nascimento e de óbito), a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) veda a exposição de dados pessoais sensíveis. A solução lógica parece ser simplesmente seguir a lei e não se inserir a informação sobre o sexo na certidão de nascimento ou óbito, vez que os modelos impostos não estão em perfeita consonância com o ordenamento jurídico, permitindo apenas o acesso a tal elemento pela certidão de inteiro teor, requerida pela própria pessoa ou mediante autorização judicial. Essa imposição de exposição da sexualidade oriunda da existência de um campo destinado ao "sexo" na certidão de nascimento ou de óbito, conforme previsto pelos modelos trazidos no Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constitui-se em um especial obstáculo no caso das pessoas transgênero. Isso se dá em decorrência de toda a miscelânea que se faz ao apor no campo destinado ao sexo uma característica atrelada ao gênero, como é o caso das expressões masculino e feminino. Ao trazer em documentos acessíveis uma informação que não deveria estar ali e que, também, se mostra  equivocada, o nosso Poder Público dá azo a sérios problemas, como a necessidade de que se altere o documento para atender às premissas atualmente postas, ainda que erradas. Como se associa o que consta dos documentos ao gênero (que é o que está socialmente exposto)11, as pessoas transgênero viram-se na necessidade de solicitar que o seu "sexo" seja consignado em consonância com a sua identidade de gênero em seus documentos, mesmo que não tenham realizado qualquer sorte de processo transgenitalizador. E se trata de um pleito absolutamente lógico dentro do atual estado da arte, mas que, em sua essência, mostra-se inexato pois o que ele pretende efetivamente é o reconhecimento de sua identidade de gênero, e não do seu sexo. E essa questão vem apresentando um novo desdobramento, novamente reflexo do manifesto descompasso de se consignar o "sexo" em documentos públicos e de se confundir o que é sexo e o que é gênero. Como indicado de forma recorrente nessa coluna temos buscado sempre estabelecer de forma bastante ciosa a distinção entre os elementos que sustentamos compor a sexualidade12. Com isso reiteramos que a distinção técnica entre os conceitos de sexo e gênero colocam-se como relevantes, não sendo admissível a confusão entre eles. Tal lembrança é aqui trazida face a existência de uma série de julgados em tempos recentes entendendo pela alteração da informação consignada quanto ao sexo nos documentos para fazer constar a expressão "não binário", como se deu em decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ/DF). Conforme veiculado, o Corregedor da Justiça do Distrito Federal, após estudo da Coordenadoria de Correição e Inspeção Extrajudicial (Cociex) em parceria com a Associação dos Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg/DF), decidiu que pessoas "não-binárias" poderiam fazer a alteração do "gênero" diretamente nos cartórios extrajudiciais, aplicando o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual foi incorporado pelo Provimento 149/23. No Estado da Bahia, o Tribunal de Justiça, por meio do Provimento Conjunto 08 CGJ/CCI /2022-GSEC, prevê a possibilidade de que seja feito requerimento para "não binário" quando da "alteração da anotação de gênero" (§ 4º) garantida a "toda pessoa maior de 18 (dezoito) anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil" que "poderá requerer ao Registro Civil das Pessoas Naturais a alteração e a averbação do prenome e do gênero no registro de nascimento, a fim de adequá-los à identidade autopercebida, independentemente de autorização judicial" (art. 1º). No mesmo sentido surge o Provimento 16/22 da Corregedoria Geral da Justiça do Rio Grande do Sul (CGJ-RS) que "autoriza pessoas não binárias a mudar registros de prenome e gênero diretamente nos cartórios do Estado" determinando a alteração do art. 161 da Consolidação Normativa Notarial e Registral, para que, em seu § 4º, conste a permissão de que "a alteração da anotação de gênero" permita a inclusão da expressão "não binário". A confusão que apontamos existir no decorrer do presente texto está estampada no que estabeleceram os provimentos dos Tribunais de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Bahia e Rio Grande do Sul. E emanam exatamente de quem tem a incumbência de julgar os casos que versam sobre sexualidade que chegam ao Poder Judiciário. Embora tenhamos muito claro que quando tratamos de sexo não estamos diante de uma situação binária é de se entender que nesse aspecto aquele que não se insere em uma das condições do binarismo (homem/macho ou mulher/fêmea) há de ser designado como intersexo, que é a nomenclatura utilizada para tais casos13. A expressão "não binário" tem sido utilizada nos estudos vinculados à sexualidade como um elemento de gênero, atribuído a quem não se entende pertencente nem ao masculino, nem ao feminino. Autorizar que se insira a expressão "não binário" nos documentos tem, em nosso sentir, o condão de ampliar a celeuma já estabelecida com relação ao tema. Como já asseveramos outrora essa confusão de se entender pela viabilidade do "não-binário" nos documentos é claramente fruto da falha originária que tem a Declaração de Nascido Vivo (DNV) por fonte, pois é ali que pela primeira vez se designa alguém como masculino e feminino, designativos de gênero, e não como homem/macho ou mulher/fêmea, indicativos de sexo, como alternativas a serem assinaladas. Em respeito à coerência não podemos ignorar que a mesma perspectiva pode ser suscitada quando se trata de alteração da indicação de sexo solicitada pela pessoa transgênero nos termos firmados nas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF) e mesmo de Cortes Internacionais. Todavia, novamente, essas se fazem coerentes segundo os parâmetros atualmente postos. Em que pese sermos manifestamente favoráveis a tal alteração pelos motivos aqui amplamente descritos, entendemos que se trata de uma solução paliativa que busca mitigar todo o preconceito e estigma experienciados pelas pessoas transgênero, sendo o mais adequado mesmo a retirada de tal dado dos documentos de identificação pessoal, ainda que mantido nos registros, sem que seja divulgada tal informação em certidões comuns (2as vias). De todo o exposto essa coluna busca essencialmente convidar a quem nos lê à reflexão: por qual motivo meus documentos devem expor o meu sexo? Você já havia se feito essa pergunta? _____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/388613/a-confusao-entre-sexo-e-genero-e-seus-impactos-juridicos 2 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; CUNHA, Leandro Reinaldo da; MARTINS, Raul Aragão. O registro de crianças intersexo no Brasil. Revista Contemporânea, v.3 n.9, p.14270 - 14294, 2023. 3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/385836/intersexo-intersexual-e-a-importancia-da-distincao-para-fim-juridico 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 186. 5 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p.189-204, 2022, p. 191. 7 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/381882/mudanca-de-nome-e-sexo-nos-documentos-das-pessoas-trans 8 Identidade de gênero, efetividade e responsabilidade civil. Transgêneros e o processo transexualizador. Coluna Direito Civil. Editora Forum, disponível em: https://www.editoraforum.com.br/noticias/coluna-direito-civil/identidade-de-genero-efetividade-e-responsabilidade-civil-transgeneros-e-o-processo-transexualizador/. 9 Art. 4º Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, na qualidade de titulares das serventias, interventores ou interinos, são controladores no exercício da atividade típica registral ou notarial, a quem compete as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais. 10 Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310 12 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 26-27.
Tendo trazido na parte 1 os aspectos que nortearam o retorno da discussão acerca das uniões matrimoniais entre pessoas do mesmo sexo, bem como o apresentado pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, sigo o presente texto com a afirmação que inaugurou o anterior: NÃO HOUVE A APROVAÇÃO DE NENHUM PROJETO DE LEI PROIBINDO O "CASAMENTO HOMOSSEXUAL". Nem nada parecido. Dito isso e tendo feito a exposição dos pontos que nos fizeram voltar a tratar de algo que se julgava superado, faz-se mister que se lance um olhar jurídico sobre qual é o atual estado da arte acerca da questão no Brasil. Inexiste legislação que permita o casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo/gênero, tampouco há alguma que proíba. Cabe, portanto, compreender o ordenamento jurídico pátrio, passando especialmente pelos preceitos e princípios constitucionais vigentes, para uma solução. De plano é imperioso que se afirme que entendo que ao Estado não cabe definir o que é família, sendo esta uma construção social fática, conhecida e reconhecida por todos os que se vinculam a uma, não sendo atribuição da lei defini-la, havendo apenas que conferir a elas, de forma igualitária, os direitos pertinentes, em cumprimento dos parâmetros fixados por nosso Estado Democrático de Direito1. O respeito pleno à dignidade da pessoa humana é valor principal a ser perseguido no que concerne à constituição da família, fundada "na aptidão para responder ao mistério do amor" havendo de ser "aberta e inspirada na liberdade, sendo a regra de ouro atribuir ao Estado a garantia e ao homem a [sua] construção"2. Premente que se tenha em mente que o estabelecimento de relacionamentos conjugais insere-se entre os Direitos Humanos, havendo vasto material tratando do tema. Em sede continental podemos ressaltar a proteção do direito ao casamento e uniões estáveis segundo os ditames firmados pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica. Quando da comemoração dos 30 anos de adesão do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em novembro de 2022, a ministra Rosa Weber, então presidente do STF, ressaltou a importância da data e asseverou que ante aos inúmeros ataques perpetrados contra a democracia e o Estado Democrático de Direito "mais do que nunca" se fazia necessário repisar a indissociável vinculação do nosso país com a proteção dos Direitos Humanos e com o Pacto de San José da Costa Rica. A vinculação ao pacto, conforme definido pela ministra, é "marco significativo do compromisso assumido pelo Estado brasileiro com o respeito, a proteção e a realização de direitos, bem como sua integração ampla e efetiva no sistema interamericano de direitos humanos"3. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi incorporada ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto 678/92, havendo alguma discussão acerca do seu status de norma constitucional ou supralegal (nos termos do RE 466.343/SP, que discorre sobre a possibilidade da prisão civil do depositário infiel). Há até mesmo uma perspectiva de direito internacional que insere os tratados em posição superior a qualquer sorte de norma interna. Seja como for, o fato é que estando em uma esfera acima da Constituição Federal, em seu nível ou mesmo em uma condição logo abaixo dela, prevalece o entendimento que foi exposto no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do RE 466.343/SP de que "inaplicável a legislação infraconstitucional" conflitante com o tratado, "seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão". Pode-se, então, afirmar que os regramentos e diretrizes consignados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos não podem ser afastados por uma norma infraconstitucional. Ante a inserção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em nosso ordenamento se impõe que alguns pontos ali consignados sejam explicitados, bem como qual é a interpretação dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) acerca deles. O cerne da Convenção Americana sobre Direitos Humanos está consignado logo no art. 1.1 que assevera que "Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social."  Para que não reste dúvidas de que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos há de ser seguida em território nacional o art. 1º do Decreto 678/92 afirma que "A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente Decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém". Não há, portanto, como se conceber a hipótese de se ignorar as determinações ali apostas. Não se trata de uma discricionariedade. Outro ponto base da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, insculpido logo no art. 2º, determina aos Estados signatários o dever de que adotem disposições de direito interno com o fim de efetivar o compromisso de "respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma", nos termos do art. 1º, sempre que estes não estiverem devidamente garantidos4. Tendo essas informações é de se pontuar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), responsável pela interpretação e proteção do texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, já se manifestou expressamente sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero quando das respostas à solicitação formulada pela Costa Rica na Opinião Consultiva 24/17. Esse mesmo pleito também trazia questões atreladas à identidade de gênero e à condição intersexo, sendo tais aspectos explorados por mim em outros trabalhos já publicados5. Os questionamentos formulados, fundados nos arts. 116 e 247 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos com relação às uniões de pessoas do mesmo sexo e que foram objeto da resposta à Opinião Consultiva 24/17 foram os seguintes8: 3. Com base no exposto, a Costa Rica apresentou à Corte as seguintes perguntas específicas ... 4."Tomando em consideração que a não discriminação por motivos de orientação sexual é uma categoria protegida pelos artigos 1 e 24 da CADH, além do estabelecido no artigo 11.2 da Convenção, essa proteção e a CADH implicam que o Estado deve reconhecer todos os direitos patrimoniais que se derivam de um vínculo entre pessoas do mesmo sexo?", e 5. "Caso a resposta anterior seja afirmativa, é necessária a existência de uma figura jurídica que regulamente os vínculos entre pessoas do mesmo sexo para que o Estado reconheça todos os direitos patrimoniais que se derivam desta relação?"  Na formulação da resposta a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) ponderou que "uma interpretação restritiva do conceito de "família", que exclua da proteção interamericana o vínculo afetivo entre casais do mesmo sexo, frustraria o objeto e a finalidade da Convenção"(§189), concluindo que "a Convenção Americana protege, em virtude do direito à proteção da vida privada e familiar (artigo 11.2) assim como o direito à proteção da família (artigo 17), o vínculo familiar que pode derivar de uma relação de um casal do mesmo sexo", havendo de se resguardar, também, "todos os direitos patrimoniais que derivam do vínculo familiar protegido entre pessoas do mesmo sexo", sendo que "a obrigação internacional dos Estados transcende as questões vinculadas unicamente aos direitos patrimoniais e se projeta em todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, assim como aos direitos e obrigações reconhecidos no direito interno de cada Estado que surgem dos vínculos familiares de casais heterossexuais" (§190). Em seguida a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) assevera que "os Estados que ainda não garantem às pessoas do mesmo sexo seu direito de acesso ao matrimônio, estão igualmente obrigados a não violar as normas que proíbem a discriminação dessas pessoas, devendo, portanto, garantir-lhes os mesmos direitos derivados do matrimônio, no entendimento de que sempre se trata de uma situação transitória" (§ 227), cabendo ainda a eles o dever de "garantir o acesso a todas as figuras já existentes nos ordenamentos jurídicos internos, para assegurar a proteção de todos os direitos das famílias formadas por casais do mesmo sexo, sem discriminação com respeito às que estão constituídas por casais heterossexuais. Para isso, poderia ser necessário que os Estados modifiquem as figuras existentes por meio de medidas legislativas, judiciais ou administrativas, para ampliá-las aos casais constituídos por pessoas do mesmo sexo. Os Estados que tiverem dificuldades institucionais para adequar as figuras existentes, transitoriamente, e enquanto promovem estas reformas de boa-fé, têm da mesma maneira o dever de garantir aos casais constituídos por pessoas do mesmo sexo, igualdade e paridade de direitos em relação àquelas de sexos diferentes, sem discriminação alguma" (§228). Ao fim, interpretando os arts. 1.1, 2°, 119, 1710, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) entendeu:  por unanimidade, que:  . 6 A Convenção Americana, em virtude do direito à proteção da vida privada e familiar (artigo 11.2), assim como o direito à proteção da família (artigo 17), protege o vínculo familiar que possa derivar de uma relação de um casal do mesmo sexo, nos termos estabelecidos nos pars. 173 a 199.  por unanimidade, que: 7 O Estado deve reconhecer e garantir todos os direitos que se derivam de um vínculo familiar entre pessoas do mesmo sexo, em conformidade com as disposições dos artigos 11.2 e 17.1 da Convenção Americana e nos termos estabelecidos nos pars. 200 a 218.  por seis votos a favor e um contra, que: 8 De acordo com os artigos 1.1, 2°, 11.2, 17 e 24 da Convenção, é necessário que os Estados garantam o acesso a todas as figuras já existentes nos ordenamentos jurídicos internos, incluindo o direito ao matrimônio, para assegurar a proteção de todos os direitos das famílias formadas por casais do mesmo sexo, sem discriminação com respeito às que estão constituídas por casais heterossexuais, nos termos estabelecidos nos pars. 200 a 228. Em outros momentos a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) aplicou o disposto no art. 1º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos pontificando que é dever de todos os Estados respeitar os direitos humanos sem qualquer discriminação, o que inclui a orientação sexual como um dos critérios a serem resguardados, como no leading case Atala Riffo y niñas vs Chile, de 2012, e em Fuentes vs Peru, de 2022. Considerando que a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é atribuição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e, se a conclusão que se faz é no sentido de que não pode haver diferenciação entre os direitos atribuídos a entidades familiares compostas por pessoas do mesmo sexo/gênero ou não, é evidente que já está posto que qualquer legislação que venha a vedar o casamentos ou uniões chamadas de "homossexuais" ou "homoafetivas" está fadada a não ser incorporada ao ordenamento jurídico pátrio. E, se por uma teratologia, venha a ser aprovada lei nesse sentido esta haverá de ser prontamente extirpada face à sua inconstitucionalidade manifesta e já constatada. Se o entendimento expresso da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é que se faz necessária a garantia dos direitos, e até mesmo o reforço dessa diretriz em sede legislativa, surge como uma anomalia qualquer proposta que tenha por fim restringir os direitos de pessoas em razão de sua sexualidade, com o afastamento da dignidade da pessoa humana e da igualdade, apenas por sua entidade familiar estar assentada em uma estrutura em que existam duas pessoas do mesmo sexo/gênero. Mais preocupante ainda quando o intento restritivo de direitos se encontra lastreado em fundamentalismo religioso que não pode jamais prosperar na estrutura de um Estado laico e democrático. Feitas todas as considerações supra é hora de responder o questionamento que intitula a presente coluna: E O BRASIL PODE LEGISLAR CONTRA O CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO/GÊNERO? A resposta óbvia é que sim. Contudo não da forma simples como alguns afirmam. De pronto há de se entender que na vigência da atual estrutura constitucional uma restrição ao exercício da dignidade humana e da igualdade jamais poderia se dar por meio de uma lei infraconstitucional, já que esta nasceria presumidamente inconstitucional ante a afronta tanto aos direitos fundamentais constantes da Constituição Federal de 1988, como também aos preceitos de Hireitos humanos, especialmente os insculpidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Se qualquer norma visando impedir o reconhecimento do casamento ou união estável de pessoas do mesmo sexo quiser prosperar ela apenas poderia ser estabelecida após uma nova constituição federal que afastasse todos os direitos e garantias fundamentais. Sob a égide da Constituição Federal atual não há qualquer hipótese técnica em que tal obscenidade possa vicejar haja vista que nem mesmo por emenda constitucional a igualdade e a dignidade da pessoa humana poderiam ser afastadas já que assentam-se entre as cláusulas pétreas, nos termos do art. 60, §4º, IV. Com isso é patente que a atual cruzada visando a restrição aos direitos de pessoas do mesmo sexo que buscam estabelecer um casamento ou uma união estável não tem chance de vingar nos termos postos. Contudo o que se questiona é se tal tipo de manobra tem o efetivo intento de atingir o objetivo nele circunscrito ou se é mais uma forma de atuação visando atrair em um futuro pleito eleitoral os votos daqueles que comungam desses valores. De toda sorte devemos nos manter alertas contra todas as formas de tentativas de ataque aos princípios fundantes dos Direitos Humanos e do Estado Democrático de Direito. O tempo das trevas já passou mas não podemos ignorar as forças que seguem laborando para que o nosso futuro seja repleto de passado. ________________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, p.III - VII, 2022 2 MULTEDO, Renata Vilela. Liberdade e família. Limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2017, p. 25-26. 3 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=497600&ori=1 4 Artigo 2.  Dever de adotar disposições de direito interno Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O posicionamento da Corte Interamericana de Direito Humanos quanto à identidade de gênero. São Paulo: Revista dos Tribunais 991, p. 227-246, 2018; CUNHA, Leandro Reinaldo da; COSTA, Diego Carneiro. A Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e seus reflexos no combate à discriminação contra pessoas trans nas relações de trabalho. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v.8, p.208 - 227, 2020; CUNHA, Leandro Reinaldo da. O posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero e seus reflexos nas relações de trabalho. REVISTA DOS TRIBUNAIS (SÃO PAULO. IMPRESSO, v.1018, p.209 - 226, 2020. 6 Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade 1. pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. 7 Artigo 24.  Igualdade perante a lei Todas as pessoas são iguais perante a lei.  Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. 8 https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf 9 Artigo 11.  Proteção da honra e da dignidade 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. 10 Artigo 17.  Proteção da família 1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção. 3. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos contraentes. 4. Os Estados Partes devem tomar medidas apropriadas no sentido de assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo.  Em caso de dissolução, serão adotadas disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos. 5. A lei deve reconhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento como aos nascidos dentro do casamento.
Preciso iniciar o texto com uma afirmação peremptória: NÃO HOUVE A APROVAÇÃO DE NENHUM PROJETO DE LEI PROIBINDO O "CASAMENTO HOMOSSEXUAL". Nem a união estável. Nada foi aprovado. Nada está proibido nesse contexto. Feito esse esclarecimento inicial é importante saber por qual motivo entramos nessa máquina do tempo e estamos voltando para 2011 quando essa questão foi objeto de apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADI 4277. Qual a razão de se tornar a discutir algo que tínhamos por superado e que se considerava uma conquista civilizatória consolidada em nosso Estado Democrático de Direito? Esse retorno para o passado não foi fruto de um passeio com Marty e Dr. Brown em um De Lorean1. Mas mesmo sem qualquer possibilidade de viagem no tempo parece que visões religiosas conservadoras tomaram de assalto (ou teriam seus defensores se sentido confortáveis para se expor?) alguns postos relevantes de nosso Estado laico e buscam estabelecer, em alguma medida, a imposição de seus valores para a sociedade como um todo. Isso ficou patente com as discussões ocorridas recentemente com relação ao Projeto de Lei 580/07 na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados que, em 10 de outubro de 2023, por 12 votos a 5, posicionou-se pela proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, conforme parecer do relator. O entendimento exposto pela referida comissão, contudo, ainda está longe de se tornar uma lei. Basta que se relembre que para tanto ainda é necessário que ocorra a aprovação das outras comissões (de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial; e de Constituição e Justiça e de Cidadania) ou do plenário da Câmara, votação favorável no Senado e sanção presidencial. No entanto não se pode ignorar que o fato de ter passado por essa primeira comissão ganhou repercussão. E aparentemente era essa a exata pauta dos que encamparam tal projeto. Uma parte da mídia e das redes sociais, seja por ignorância ou por objetivos sombrios, acabou veiculando a ideia de que teria sido aprovada a lei proibindo o casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo, o que, de fato, como já afirmado, não ocorreu. De início reafirmo o que trouxe em coluna anterior no sentido de sustentar que o mais adequado seria tratar a questão sob a perspectiva de gênero, sendo o mais coerente se falar em casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero2. Contudo manterei a nomenclatura "mesmo sexo", que é o que consta do projeto, para uma melhor compreensão. O fio condutor de todo o embate está na ponderação quanto as características individuais das pessoas que desejam estabelecer um relacionamento conjugal. Ignorando parâmetros elementares como afeto, amor e carinho, o ponto fulcral incide sobre a quem se destina o interesse afetivo-sexual daquele sujeito. Diferentemente do pode levar a crer toda a sanha fundada em preceitos religiosos o objeto sob análise não está relacionado a nenhum elemento sacro mas sim ao casamento civil, o qual se encontra desvinculado da igreja já de longa data em território pátrio3. A separação de Estado e Igreja, a consagração do Estado democrático (não teocrático) e a liberdade de crença, de per si, aparentemente não bastam para que se afastasse qualquer menção a restrições de acesso a direitos fundado em religião ou fé. Inquestionavelmente a presente discussão encontra arrimo em uma ingerência que as maiorias sentem deter sobre a vida pessoal das outras pessoas, especialmente das minorias, buscando moldar a existência destes segundo seus preceitos, valores, parâmetros e convicções. E é função inafastável do Estado Democrático de Direito garantir que as minorias possam seguir existindo sem que o Poder Público labore no sentido de inviabilizar a sua existência, fator de suma relevância em sede de Direito de Família, havendo de reinar a premissa de que não há o Estado de intervir em decisões pessoais que não interferem nos direitos alheios, como bem consignava Stefano Rodotà4. Sendo patente, ao menos sob a perspectiva jurídica, que não há espaço para tal sorte de legislação que vise a vedação dos casamentos e uniões de pessoas do mesmo sexo/gênero nos cumpre tecer algumas considerações acerca do que nos conduz a tratar, enquanto sociedade, de absurdos dessa grandeza. Como inexiste previsão expressa em nosso ordenamento jurídico acerca da possibilidade de casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo, nos idos de 2009 foi apresentado o Projeto de Lei 580/07 visando positivar tais entidades familiares. Oposições ao entendimento ali apresentados também foram levadas às casas parlamentares federais, sendo que o Projeto de Lei 5167/09, apensado ao anteriormente mencionado, estabeleceu-se como um contraponto àquele, tendo por fim impedir a constituição de casamentos ou uniões estáveis por pessoas do mesmo sexo. Após tais projetos o tema foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011, fazendo com que as discussões parlamentares sobre a questão restassem adormecidas, com o reconhecimento de que os casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo configuravam-se como entidades familiares nos termos previstos na Constituição Federal. Porém ainda valendo-se dos resquícios de fundamentalismo religioso despertados em meados da década passada a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados deitou-se sobre os referidos projetos e aprovou o entendimento trazido naquele que se mostrava contrário à possibilidade de casamentos e uniões entre pessoas do mesmo sexo. Do ponto de vista jurídico é vital apreciar a justificativa que fundou tanto o projeto de lei quanto o voto a ele favorável. Verificando o conteúdo da fundamentação do projeto encontra-se basicamente uma pregação religiosa, tanto que o texto é dividido em duas partes: a primeira com as considerações jurídicas e; a segunda de fundo religiosos, a qual se inicia com a afirmação de que "Feita a defesa constitucional e legal, passamos a fazer a defesa dos Valores Cristãos, uma vez que os autores representam o segmento católico e evangélico, respectivamente". Seja por uma compreensão bíblica enviesada ou por uma falta de letramento democrático não se pode conceber em um Estado laico que se fundamente a justificativa de uma lei que será aplicável a todas as pessoas em bases religiosas. Os que comungam de um certo credo devem seguir as diretrizes por ele impostas, mas foge a todo o conceito democrático a imposição de seus valores de forma universal, sob pena de ofensa à liberdade religiosa prevista na Constituição Federal (art. 5º, VI). O mesmo direcionamento que lastreou a justificativa do projeto de lei 5167/09 se encontra no relatório apresentado pelo relator do projeto, um pastor que deixa bastante explicito que sua condição foi determinante para a sua manifestação, a qual se constitui como uma ode ao moralismo religioso propalado pelos defensores da "tradicional família cristã", tentando impor uma teocracia e estabelecer um claro retrocesso civilizatório. De se notar que há uma tentativa de conferir contornos jurídicos ao relatório, valendo-se de argumentos rasos como o de que o art. 226 da Constituição Federal assevera que "é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher", e que isso seria um impeditivo para uniões de pessoas do mesmo sexo. Hermenêutica pueril mas que se presta a suscitar afirmações com bases técnicas que podem atingir aos menos preparados. Olvida-se, porém, de forma bastante conveniente o parecer, que quando da promulgação da Constituição Federal de 1988 ainda vigia o Código Civil de 1916 que, por sua vez, teve sua elaboração realizada nas primeiras décadas do século passado, período em que prevalecia o entendimento de que seria supérfluo se consignar de forma expressa no texto da lei a necessidade de que o casamento fosse realizado entre homem e mulher. Pontes de Miranda sustentava, à época, que a diversidade sexual era tão natural e evidente que sequer havia a necessidade de que se declarasse expressamente a sua existência como um requisito indispensável ao casamento, razão pela qual a não atenção a esse "requisito" faria daquela união uma mera materialidade de fato sem significado jurídico5. Com todo o respeito que o aclamado Pontes de Miranda merece é evidente que tal entendimento não se coaduna com a realidade dos tempos atuais. Constata-se que a diversidade sexual segue não constando do texto do Código Civil como um requisito para o casamento, tampouco foi inserida entre as causas que impedem a sua realização, como se vislumbra do art. 1521. Mas os defensores dessa tese argumentam que a vedação viria da inteligência do art. 1.517 que afirma que "O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar". Ainda que seja uma interpretação bastante questionável já que inexiste qualquer vedação expressa é premente que se perceba que não há qualquer menção ao fato de todo o anacronismo que permeia o referido artigo, inconteste reflexo do fato de se tratar de um texto elaborado no início dos anos 1970 (Projeto de Lei 634/75). O relatório traz ainda outros argumentos inquestionavelmente discriminatórios sem qualquer constrangimento. Temos clássicos como a vinculação do casamento com a constituição de prole, com considerações como a de que casamentos seriam "uniões entre um homem e uma mulher com vista a procriação e, portanto, formação de uma família". Externando autoritarismo e estampando toda tentativa de aniquilação que caminha ao lado dessa visão afirma que "As relações homossexuais carecem necessariamente, pela sua própria natureza, das dimensões unitivas e procriadoras da sexualidade humana" e que seriam tais dimensões "que fazem da união corporal do homem e da mulher no matrimônio a expressão do amor com que duas pessoas se doam, de tal modo que esta doação mútua se torna o lugar natural de acolhimento de novas vidas pessoais" pressupondo, em sua sapiência sem limites, que não há amor entre pessoas do mesmo sexo. Coroa tal passagem atestando que o "comportamento homossexual é, portanto, contrário ao caráter pessoal do ser humano e, portanto, contrário à lei natural". A impossibilidade de que as relações homossexuais possam dar azo a filhos naturais é um mote recorrentemente utilizado nessa seara mas que resta absolutamente ignorado pelos detratores das uniões entre pessoas do mesmo sexo em relação a outras situações de pessoas que não podem procriar pelos mais variados motivos, como nos diversos casos de esterilidade natural ou cirurgicamente estabelecida. Logo na sequência pode-se encontrar ainda a afirmação de que "a lei deve ser respeitada e atualmente, inexiste qualquer previsão que permita o casamento ou a união estável entre pessoas do mesmo sexo". Contudo essa hermenêutica seletiva propositadamente não afirma que tampouco existe qualquer proibição para essas uniões. Inusitado ainda que, como bastante usual em situações desse jaez, há a utilização da Bíblia como base para a "análise histórica", sendo considerado do Livro Sagrado apenas aquilo que se mostra conveniente para aquele momento. Faz menção a Levíticos, à destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 13, 14, 18 e 19), a Mateus (5, 17-20), a Romanos (1, 26-27) e a Coríntios (6-9) para imputar às relações entre pessoas do mesmo sexo a conotação de algo indevido ou punível, mas ignora outras passagens como a de que os homens são criados à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:26-27), o que nos pode levar a crer que todo "posicionamento preconceituoso e discriminatório baseado no texto bíblico [é] um claro contrassenso entre os dogmas estabelecidos e a sua efetivação prática"6. Mesmo não sendo um profundo conhecedor das escrituras religiosas penso ser minimamente curioso se constatar as escolhas de quais palavras da Bíblia devem ou não ser seguidas atualmente, já que não há qualquer cruzada em busca de se fazer valer passagens como as que versam sobre a pena de morte para adúlteros (Levítico 20:10), a possibilidade da venda de uma filha como escrava (Êxodo 21:7-11), e as proibições de que pessoas usem roupas de dois tipos de tecido (Levítico 19:19), de deficientes de se aproximarem do altar de Deus (Levítico 21:16-23), de se comer carne de porco (Levítico 11:7-8) ou frutos do mar (Levítico 11:9-12). Visando conferir-se uma aura de autoridade técnica o relatório passa a considerações "científicas" complemente enviesadas, chegando a usar a expressão "homossexualismo" e a afirmar que a retirada da homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) na década de 70 teria sido "ideológica" e não científica, colacionando entendimentos já manifestamente superados, em uma patente tentativa de retomar discussões como a patologização, a qual sustenta absurdos com a discussão da "cura gay". Esse estratagema de tentar conferir cientificidade a questões centradas claramente no preconceito e discriminação é conhecido já de longa data e foi amplamente utilizado durante séculos contra pessoas negras sob a perspectiva de que biologicamente haveriam raças. O absurdo chega ao seu ápice com a assertiva de que a maioria dos países da ONU são contrários ao "casamento gay", enaltecendo que em alguns tal questão seria passível de pena de morte. Novamente, de forma bem oportuna aos seus interesses, o relatório não menciona a informação de que em sua esmagadora maioria tais países são Estados que estão totalmente ou fortemente vinculado à religião. O argumento de autoridade fundado na posição da maioria é raso e patético, além de equivocado. Já houve um momento histórico em que a grande maioria dos países esteve favorável à escravização do povo africano, o que se mostrou um estrondoso equívoco... É singular se verificar a fixação demonstrada pelos partidários da vedação das uniões de pessoas do mesmo sexo com relação à impossibilidade de que o intercurso sexual dessas pessoas possa converter-se em prole, como se a família ainda fosse a morada exclusiva das relações sexuais. Será que a próxima pauta a ser sustentada por esse grupo versará sobre proibição de práticas sexuais antes do casamento? Obviamente que esse meu questionamento está repleto de toda a ironia possível. Ainda nessa ânsia de vincular família com intercurso sexual o relatório nos presenteia com pérolas como a assertiva de que "Não importa o quanto dois homossexuais compartilhem uma cama e propriedades ou ganhos, o relacionamento deles não se parece em nada com um casamento em sua essência pois falta a complementaridade corporal dos sexos - e o seu reflexo psicológico - e a consequente abertura à vida e, portanto, falta o específico da eficácia social do casamento como origem da família". Até tenta fazer uma defesa prévia em nota de rodapé afirmando que, por exemplo, pessoas idosas estéreis ainda teriam a tal "complementariedade de corpos", mas não ponderam outros casos, não naturais, como os de uma pessoa amputada. Será que nesse caso deveria haver a proibição do casamento? Outra vez uma pergunta mergulhada em ironia. Há no texto do voto um outro tanto de absurdos e inconsistências que não mais trarei aqui. A leitura desse material já me causou tamanho incômodo que não mais me torturarei construindo ponderações sobre o restante de seu conteúdo. Quem estiver interessado em infligir-se tal modalidade de penitência o texto segue disponível na internet, mas o que já foi aqui exposto é suficiente para compreender as bases que alicerçam o relatório. Afora todo o repertório religioso há também no relatório um outro ponto, totalmente embebido nos brados raivosos propalados contra o Judiciário, e que assevera que "cabe ao Poder Legislativo, e não ao STF, deliberar sobre o tema"7, opondo-se ao fato de ter o Supremo Tribunal Federal (STF) analisado a questão quando do julgamento da ADI 4277 em 20118. Como já afirmado em coluna anterior, o Supremo Tribunal Federal (STF), quando da ADI 4277, apenas cumpriu o seu dever de guardião da Constituição Federal após ser instado a manifestar-se, face à "toda a batalha conservadora para apartar certas uniões da proteção legal", haja vista que até aquele momento o Poder Legislativo quedava-se silente quanto ao cumprimento do seu mister, o que é recorrente quando se trata de questões que visem a proteção das minorias sexuais9. Ao fim o relatório pugna que se determine que "a Justiça interprete o casamento e a união estável de forma estrita, sem 'extensões analógicas'. Ou seja, deixa claro que essas formas de união dizem respeito apenas a homem e mulher"10. Se houve a necessidade de que o Judiciário decidisse sobre tais casamentos e uniões isso decorreu de leniência atribuível exclusivamente ao Poder Legislativo11 que haveria de ter legislado segundo os exatos termos da Constituição Federal. Se não o fez não parece coerente tentar repassar a responsabilidade para o Judiciário. Toda a discussão travada revela o quanto é relevante se entender que a sociedade é dinâmica e que a interpretação da legislação deve realizar-se de forma a assimilar as vivências experienciadas por todas as pessoas, garantindo nos exatos termos do que preconiza o conceito de democracia, os direitos das minorias, para que não venham a ser vítimas de aniquilação por parte dos grupos majoritários dirigentes12. Tecidas todas essas considerações sobre o que foi consignado no parecer apresentado à Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, passarei às considerações específicas sobre as perspectivas jurídicas que permeiam o caso. Mas isso só ocorrerá na próxima coluna, na qual analisarei se há a efetiva possibilidade de se legislar, em território pátrio, sobre a vedação do casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo. __________ 1 Referência ao carro do filme "De volta para o futuro" e constatação de que corro o risco de que alguns dos leitores talvez não conheçam a obra clássica de Robert Zemeckis. 2 Disponível aqui.  3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 207. 4 RODOTÀ, Stefano. A antropologia do homo dignus. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, jan.-mar./2017, p. 14 5 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 286. 7 Disponível aqui.  8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa. Revista dos Tribunais: RT, São Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, p. I - IV, 2021.
Se o título não é expresso o suficiente afirmo de plano: SIM, sou favorável ao reconhecimento das famílias constituídas por menores de 16 anos. E posso afirmar, ao mesmo tempo, de forma bastante sólida, que NÃO sou favorável ao casamento infantil. Nada há de contraditório nisso. Para explicar é importante se compreender a correlação entre o casamento e a união estável. Efetivamente existem diferenças entre ambos, contudo essas restringem-se apenas à sua forma de constituição e à maneira pela qual se comprovam suas existências. Enquanto o casamento se constitui por meio de um ato solene (comprovado pela respectiva certidão de casamento) a união estável é uma situação de fato cuja prova se faz mediante escritura pública ou sentença. Contudo, socialmente, são instituições absolutamente idênticas na prática, sendo impossível, pela observação da dinâmica cotidiana dos casais, se afirmar quando estamos diante de um casamento e quando se trata de uma união estável. Ainda que haja alguma celeuma doutrinária a tendência do Supremo Tribunal Federal (STF), mormente após a decisão que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, parece ser no sentido de que exista uma equiparação entre os direitos garantidos a cônjuges e companheiros. Feita essa apresentação inicial dos institutos que sustentarão a discussão aqui proposta, passo a discorrer sobre o ponto que enseja o questionamento posto na presente coluna. Qual a idade mínima para a configuração da união estável? Inexiste em nosso ordenamento jurídico uma previsão expressa acerca da idade mínima para a constituição de união estável, a qual apenas é fixada em 16 anos para o casamento, sem qualquer exceção, nos termos do art. 1.517 do Código Civil, conforme redação conferida pela lei 13.811/19. Ora, se estou a asseverar que casamento e união estável devem ser entendidos como institutos equiparados quanto aos seus direitos, como seria possível a afirmação de que considero necessário e imperioso o reconhecimento da união estável de menores de 16 anos? A identidade fática pode induzir à ideia da imposição da idade núbil também à união estável, como foi consignado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgado de 2008 tratando de violência presumida em caso de estupro (HC 77018/SC) em que se lê: "3. Sendo a vítima menor de 16 anos, não há falar em extinção da punibilidade pela união estável, ante o fato de ser a vítima absolutamente incapaz para tal, já que não atingiu a idade núbil (16 anos), conforme previsto no Código Civil". A necessidade de atenção à idade núbil para a caracterização da união estável também se faz presente em decisões de diversos Tribunais de Justiça, como no do Rio de Janeiro (0007798-18.2013.8.19.0045, 13ª Câmara Cível), do Distrito Federal (Apelação 20091010085990), de Goiás (Apelação 0367964-80.2014.8.09.0175, 4ª Câmara Cível), entre outros. Muitos aplaudem tal visão sob o argumento de que se estaria protegendo a vulnerabilidade daquele que tem menos de 16 anos, não hesitando nem um mísero segundo em bradar pela imposição do requisito da idade núbil à união estável, ainda que recorrentemente professem um entendimento de que casamento e união estável são coisas distintas, revelando uma convicção jurídica que transita conforme a conveniência do que se pretende defender. Contudo se questiona algo simples: admite-se a supressão de tal lacuna com analogia, conforme preconiza a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB)? Apesar da tentação de se responder afirmativamente e fazer como nas decisões colacionadas anteriormente a resposta correta é negativa, vez que não cabe interpretação por analogia em sede de norma restritiva1. O próprio conteúdo e extensão do disposto do art. 1520 do Código Civil pode ser bastante distinto daquilo que uma visão menos acurada pode levar a crer. A polissemia que acompanha a expressão casamento permite a exegese de que a vedação estabelecida atem-se tão só à realização do ato solene denominado casamento enquanto não atingida a idade núbil. A inteligência que se extrai da norma em nenhum momento permite entender que proíbe-se a constituição de família por tais pessoas. E é importante se afirmar mais uma vez que nada do que aqui foi dito revela-se como partidário do casamento infantil. O que se está pontuando é que não se pode privar de direitos as pessoas menores de 16 anos que estejam envolvidas em uma situação fática de constituição de família. Influenciado pela "neurose de clareza" de Pablo Stolze é salutar afirmar ser inquestionável que crianças e adolescentes devem estar na escola e vivendo as experiências compatíveis com suas idades. Contudo se a realidade fática não for essa não é plausível privá-las de direitos como os oriundos do reconhecimento de uma união estável. Não se trata de uma discussão sociológica ou antropológica acerca do momento correto para que se venha a estabelecer um casamento mas sim de conferir os devidos direitos a quem faz jus a eles. A mais rasa hermenêutica que acompanha a compreensão da determinação legal de vedação irrestrita ao casamento de menores de 16 anos estabelecida no atual texto do Código Civil funda-se na intenção do legislador de proteção da criança ou adolescente (que não atingiu a idade núbil), no mesmo sentido insculpido tanto na Constituição Federal quando no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Qualquer interpretação que venha a restringir os direitos dessa criança ou adolescente se mostra teratológica por ser contrária a todo o sistema jurídico estabelecido visando a proteção desse grupo reconhecidamente vulnerável, revelando-se claramente inconstitucional ao não conferir a especial e prioritária proteção à criança e ao adolescente estabelecidas no art. 227 da Constituição Federal. Jamais haverá de prosperar a interpretação de uma lei que tem por fim resguardar uma pessoa vulnerável contra essa mesma pessoa. A própria Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) preconiza que na interpretação legislativa haverá de se atender aos fins sociais a que a lei se destina (art. 5º), não restando qualquer respaldo a uma interpretação que venha a desguarnecer a prioritária proteção às crianças e aos adolescentes. À guisa de exemplificação trago uma hipótese bastante comum. Imagine uma garota que, já aos 15 anos de idade, vive como se casada fosse com um rapaz de 18 anos, em um relacionamento que se mostra público, contínuo e duradouro, com o objetivo de constituir família. Havendo a ruptura desse relacionamento, caso não se reconheça a união estável, essa garota faria jus ao direito a alimentos ou mesmo aos efeitos decorrentes do regime de bens e à meação? Se o término fosse oriundo do falecimento do rapaz, sem que ele tenha qualquer parente em linha reta ou colateral, essa garota seria sua herdeira? O não reconhecimento da união estável afastaria dessa menor do direito à herança, de um eventual direito real de habitação (art. 7º, parágrafo único da lei 9.278/96) e da possibilidade de sub-rogar-se nos direitos e obrigações de um contrato de locação residencial realizado pelo falecido (art. 11 da Lei de Locação). Também não seria considerada beneficiária previdenciária, tampouco acessaria a demais direitos decorrentes de seu falecimento. E isso parece justo? Seria essa a intenção do legislador? A legislação teria o objetivo de privar essa pessoa vulnerabilizada de seus direitos sucessórios, deixando-a desamparada? Tal sorte de interpretação traz que benefício real para essa pessoa que supostamente busca proteger? Seria essa a mens legis ou a mens legislatoris? Os relacionamentos interpessoais com objetivo de constituir família envolvendo menores de 16 anos são um fato, atingindo mais de 10% dos casamentos ou uniões estáveis realizadas no Brasil, o que nos coloca, em números absolutos, no 4º lugar do mundo em casamentos infantis2, o que não pode ser ignorado. Porém a solução não está em meramente tentar resolver o tema com uma simples "canetada". Pode o legislador fazer o que entender por bem mas não conseguirá, por imposição legislativa, impedir que aquele relacionamento vivido por essas pessoas seja por elas e pela sociedade que as circunda reconhecido como uma entidade familiar. Aos olhos daquela comunidade em que esse núcleo familiar se estabeleceu não existe qualquer dúvida de que aquilo que se está a presenciar é uma entidade familiar. A imposição legislativa, de per si, jamais vai alterar esse fato. Aos menos atentos pode até parecer que o Estado está efetivamente laborando para garantir a prioritária proteção da criança e do adolescente, contudo não é essa a verdade, sendo tal sorte de medida inserida entre aquelas denominadas "para inglês ver", face a sua pouca ou quase nenhuma efetividade prática. Se a maior incidência de relacionamentos constituidores de família entabulado por menores de 16 anos se dá mediante a sua caracterização de fato (pela união estável) vedar a realização do casamento além de ter pouco impacto não impedirá a constituição da entidade familiar. Tentar impedir que a realidade que se faz presente no cotidiano das pessoas se efetive pela mera imposição de uma noma legal, mormente quando se está a tratar de uma realidade social posta e consolidada, é de uma inocência pueril. Ou, para tentar demonstrar alguma erudição e fugindo das minhas palavras por vezes tão simplórias, valho-me do mestre Orlando Gomes para afirmar que estaríamos apenas a desperdiçar tinta, por meio de normas que tem vida "apenas no papel em que são impressas"3. Configurados os requisitos da união estável não se pode ignorar que aquele relacionamento tem o condão de criar uma família, ainda que não possa vir a ser convertido em um casamento ou mesmo que não se queira permitir que a ele se dê o nome de união estável. Não há a possibilidade que se venha a dizer a uma família que ela não é uma família apenas por ter o legislador entendido que ela não é. Não há lei que refute a afetividade e os laços que foram ali criados4. A união estável se configura como um ato-fato jurídico5, situação de fato em que, carente de uma manifestação de vontade expressa, acaba constituindo uma entidade familiar. Ainda que diante da prática de atos sem uma intencionalidade de se buscar a aquisição de direitos, acaba por configurar-se a união estável, com a consequente atribuição dos consectários que lhe são inerentes. Ante a natureza de ato-fato jurídico não há que se falar em nulidade (art. 166, I, do Código Civil) restando mitigados elementos como capacidade (art. 3º do Código Civil). Sendo a constituição de família em tais casos uma situação existencial fática é perfeitamente aplicável o consignado no Enunciado 138 aprovado na III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, que sustenta como juridicamente relevante a vontade dos absolutamente incapazes que tenham por escopo a concretização de tais hipóteses, desde que se verifique a existência de discernimento bastante para tanto. Por se enquadrar nessa categoria é evidente que, tendo aquele que não completou 16 anos discernimento para a situação existencial em que está inserido, tal ato familiar pode "ser tido como plenamente válido"6. Na sequência, a fim de conferir os contornos de sexualidade que são intrínsecos a essa coluna, me parece que um ponto nevrálgico está alocado no tacanho temor que parcela da sociedade tem de que crianças e adolescentes sejam destinatárias de conhecimento com relação à sua sexualidade. A refração quanto à educação sexual para crianças e adolescentes é oriunda de desconhecimento ou de uma política de desinformação que conduz à bizarra ideia de que lhes seria ensinado a "fazer sexo" na escola. E, obviamente, o objeto do ensino sobre elementos da sexualidade passa longe de orientações e dicas de como manter relações sexuais. Essa perspectiva acaba ensejando outro fator pernicioso que não pode ser olvidado. Uma considerável parcela dessas uniões decorre de gravidezes indesejadas ou não planejadas dessas meninas que começam a ter relações sexuais antes dos 16 anos. Nessas circunstâncias não é possível se afastar a responsabilidade do Poder Público por não promover a plena implantação de aulas visando a educação sexual para crianças e adolescentes, que além das consequências já aduzidas, tem também manifesto impacto na ocorrência de uma série de violências de fundo sexual que sequer são entendidas pelas vítimas face à normalização de condutas absolutamente abjetas. Em meu sentir cabe aqui mais uma vez ponderar quanto a leniência legislativa do Estado7, pois legislar mal e de forma ineficaz equivale a não legislar. Todas essas considerações foram trazidas para, por fim, poder apresentar um recorte que se coloca como um dos mais relevantes mas que tem recebido da doutrina menos atenção do que seria devido em razão de sua natureza. Vedar a concessão dos direitos ordinariamente concedidos às famílias em decorrência de não se reconhecer como união estável ao relacionamento público, contínuo e duradouro, com o objetivo de constituir família em que uma das partes ainda não tenha atingido os 16 anos, além de ser inconstitucional por ofender ao princípio da igualdade e da proteção prioritária à criança e ao adolescente, ainda se mostra sexista, além de social e racialmente discriminatório. Tal afirmação se faz exatamente por saber que normalmente a maior incidência de relacionamentos como o descrito se dá com as mulheres (ou pessoas do gênero feminino), negras e de baixa renda. Ou seja, além de toda essa sobreposição de vulnerabilidades ainda tem que se deparar com uma hermenêutica que interpreta em seu desfavor uma legislação que tem o intuito de lhe proteger. Não basta toda a vulnerabilidade experienciada e ainda tem que lidar com uma tentativa de proteção desse jaez. Para exemplificação basta considerar dados levantados em 2016 que relatam que mais de 10% dos casamentos e uniões realizadas no ano anterior incluíram pessoas com até 19 anos, dos quais se tem 28.379 meninos contra 109.594 meninas8, numa diferença que não pode ser minimizada. As consequências econômicas decorrentes do desconhecimento da união estável de pessoas menores de 16 anos têm maior impacto sobre as mulheres que, em maior número, são as que estão inseridas nessa realidade. Afastá-las dos direitos daí decorrentes apenas aprofunda as mazelas enfrentadas por essas meninas em nossa sociedade. O marcador racial é outo aspecto comum a essas meninas que normalmente são garotas pretas e pardas, atingidas ainda pelo fator de fragilidade econômica e residentes em regiões periféricas. Dificilmente a discussão da carência de elementos para a caracterização da união estável terá como o menor de 16 anos alguém do gênero masculino, branco e abastado economicamente. O remédio não pode matar o "paciente". Se esse for o modo de proteção me parece melhor deixar o menor de 16 anos indefeso pois o mecanismo arquitetado para esse fim está fazendo mais mal do que bem, deixando ainda mais exposto aquele que haveria de resguardar. E quando a isso se associa o viés sexista, social e racialmente discriminatório o quadro mostra-se ainda mais assustador. É evidente que o casamento infantil não é desejado mas vedar o reconhecimento de direitos às situações de fato em que se tem uma entidade familiar com uma pessoa menor de 16 anos em nada vai auxiliar. E em nossa sociedade atual apenas aprofundará a vulnerabilidade de quem se tem a intenção de se proteger. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.  3 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 37. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, p.III - VII, 2022. 5 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Famílias, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 110. 6 Disponível aqui.  7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 8 Disponível aqui. 
quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Direito à intimidade da pessoa transgênero

Um ponto que venho reiterando nas diversas edições da presente coluna está vinculado com a garantia às minorias sexuais dos direitos franqueados a todas as pessoas, vez que inadmissível qualquer sorte de restrição a tais prerrogativas em decorrência da sexualidade. Parece absurdo ter que repisar continuamente que todos são credores dos direitos fundamentais contudo isso se faz necessário exatamente em face da realidade vivenciada por diversos grupos vulnerabilizados que continuamente são privados das proteções mais básicas ofertadas a todo cidadão1. Nessa senda é de se questionar por quais motivos em nossa sociedade se permite e fomenta uma perspectiva de que algumas pessoas poderiam ser tidas como indivíduos de uma segunda classe tão somente pelo fato de não se inserirem nos parâmetros convencionados da "normalidade"2. Além de ser recorrente a vedação, seja expressa ou tácita, ao acesso ao mais nuclear para a efetivação de diretivas basilares consignadas na Constituição Federal é bastante preocupante constatar que muitos consideram que as parcas conquistas obtidas pelas minorias sexuais encerrariam benefícios indevidos ou privilégios3. De se notar que as referidas conquistas não passam da mera concessão dos direitos fundamentais aos quais todas as pessoas fazem jus e que não eram acessados por esses grupos vulnerabilizados, mas alguns consideram que as minorias sexuais nem mesmo são merecedoras do que é o ordinário. E há ainda quem queira criar uma narrativa falaciosa de que as lutas pelo acesso à igualdade e ao respeito aos parâmetros estatuídos pelo princípio da dignidade da pessoa humana configuraria a criação de "super-cidadãos"4. Essa visão deturpada da realidade, certamente lastreada em concepções que ignoram os dados mais elementares, acabam por sustentar situações vis como a experienciada pelas pessoas transgênero, que enfrentam uma sociedade que as marginaliza e objetifica, com estatísticas que nos permitem discutir a ocorrência de um genocídio trans5. Na seara dos direitos fundamentais me aterei na presente coluna a uma breve apreciação do direito à intimidade das pessoas transgênero. O direito à privacidade, que encerra em si também a figura da intimidade, está expressamente consignado na Constituição Federal (art. 5º, X), sendo resguardado também em sede infraconstitucional no Código Civil (art. 21) entre os direitos da personalidade. Em linhas bastante panorâmicas pode-se entender como privacidade tudo aquilo que se relaciona com a vida do sujeito que ocorre fora do âmbito público6 e que, face ao direito à privacidade, é passível de resguardado de toda e qualquer exposição que não seja por si autorizada, já que ninguém está "obrigado a dar publicidade de todos os atos e aspectos da sua vida pessoal para a sociedade"7. Inserida no direito à privacidade encontra-se uma camada mais nuclear, de espectro ainda mais elementar. Trata-se do direito à intimidade, que encerra em si uma posição ainda mais personalíssima da vida do indivíduo, cujo acesso se faz ainda mais restrito, quando não totalmente vedado. Nessa esfera estão "segredos, verdades, anseios ou desejos que são personalíssimos"8 e relativos ao seu próprio "eu", lugar em que se encontram questões que tangenciam quaisquer dos pilares da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero)9. A intimidade emerge como um valor caro ao nosso estado democrático de direito porém toda essa preocupação se esvai quando o seu detentor não figura entre pertencentes aos grupos majoritário, como é o caso das pessoas transgênero. Aqui a atenção a esse direito fundamental torna-se incipiente e passível de toda sorte de ofensa e degradação. Pensando especificamente no direito à intimidade das pessoas transgênero o primeiro tema me toca está vinculado com a necessidade de que venha a expor socialmente a sua identidade de gênero, ainda mais quando dotado de elevada passabilidade como tratado na coluna anterior. A quem interessa saber de informação tão íntima? A mera curiosidade quanto à vida alheia não pode respaldar tal sorte de intromissão, rompendo garantia constitucionalmente insculpida, ainda mais ao se considerar que o conhecimento desse dado será utilizado para sustentar algum tipo de preconceito. Alguma celeuma já se estabeleceu quanto a eventualidade de se expor tal condição em sede de casamento, com base na existência de um dever de boa-fé que também se faria presente no direito de família. Um dos exemplos mais clássicos nos manuais e doutrina de direito de família ao tratar de invalidade do casamento consistia em asseverar que caracterizaria a figura de erro essencial quanto a pessoa do outro cônjuge, fator passível de invalidade do casamento, o desconhecimento relativo ao sexo do seu consorte (Art. 1.577 do Código Civil). Trazendo de uma forma mais explícita, o desconhecimento de que a pessoa com quem se casou é uma pessoa trans permitiria a dissolução daquele casamento por anulabilidade, a qual haveria de ser pleiteada pelo cônjuge "ludibriado". Não se olvida que, segundo os critérios postos da escada ponteana, sustentou-se durante muito tempo que a união entre duas pessoas do mesmo sexo caracterizaria um casamento inexistente, ante a falta da diversidade sexual que, em que pese não constar do texto legal como elemento integrante do plano da existência, tinha-se como um "requisito natural" do casamento que sequer precisaria constar da lei de tão óbvio que seria10 ou uma "condição de tal modo evidente, que dispensa regulamentação legislativa"11. Imprescindível, porém, se ponderar "se este 'ser natural' está em consonância com a sociedade de hoje pois, outrora, já se considerou natural que o homem fosse superior à mulher, ou que brancos fossem superiores a pretos, posicionamentos hoje totalmente superados, havendo ainda de se pontuar que até mesmo na natureza (biologia) este conceito já sofreu inúmeras mudanças no decorrer dos tempos"12. Parece ser mais uma vez a já conhecida situação de buscar meios para se tentar restringir o acesso a direitos a uma minoria sexual como "subterfúgio para negar, num outro plano, efeitos às associações afetivas"13 daqueles que não se coadunam com os preceitos sociais esperados e postos. Considerando que a atual realidade social se faz bastante distinta daquela que serviu de base para a construção do Código Civil de 1916, o qual foi replicado em larga escala na redação da codificação civil vigente, o padrão não mais é o de que as relações sexuais apenas passariam a existir após o casamento, permitindo que só então se viesse a tomar conhecimento de que o sexo do cônjuge é distinto do gênero por ele performado. Me parece que isso por si só já bastaria para se trazer para o diálogo a coerência da existência de alegação de erro essencial quanto a pessoa do cônjuge que tenha por fundamento uma alegação desse jaez, sob pena de se estar contrariando o direito-vivo, como preconizava Orlando Gomes14. Não se ignora que continuam existindo aqueles que, pelos mais variados motivos, acabam por ter relações sexuais com seus parceiros apenas após o casamento, o que, também, não pode ser entendido como fator a sustentar o argumento do erro essencial em razão da transgeneridade do consorte. Tal assertiva se faz de início pelo simples fato de que não mais prevalece a concepção de que o casamento é o permissivo estatal para as práticas sexuais entre as pessoas. De outro lado é de se ponderar que se a pessoa decidiu se casar com a outra o fez com quem ela é naquele momento e não com base em quem ela foi um dia. O fato de ela ter nascido com caracteres sexuais externos pertencentes a um gênero com qual ela não se reconhece não altera quem ela é, ainda mais quando já realizado todo um processo transexualizador que lhe conferiu tamanha passabilidade15 que nem mesmo aquele que com ela se casou tivesse constatado que ela é uma pessoa transgênero. Não se vislumbra a existência de manifestações quanto a qualquer sorte de erro quando a pessoa apresenta um genótipo distinto do binarismo do XX e XY, ou quando tem características sexuais internas do sexo distinto do seu gênero de pertencimento ou mesmo quando tenha passado por intervenções cirúrgicas que não se relacionem com elementos atrelados à sexualidade. Cirurgias que não visem um processo transexualizador ou que se destinem à afirmação de gênero realizadas por pessoas cisgênero, como um implante de silicone nos seios em mulheres ou a redução de glândulas mamárias em homens ou até mesmo em mulheres em razão de questões estruturais (dores nas costas, por exemplo) não são consideradas como fundamentos para uma eventual alegação de invalidade do casamento. Mas quando realizadas por uma pessoa transgênero haveria tal possibilidade? Ou falta coerência ou sobra preconceito. Evidencia-se, portanto, que a questão de fundo não se escora no fato de que o corpo da pessoa passou por intervenções cirúrgicas mas sim na perspectiva do preconceito que existe face à condição sexual apresentada por aquela pessoa. Será que a descoberta da condição transgênero faz com que o sentimento que fez com que aquelas pessoas viessem a se unir deixe de existir por tomar ciência de que ela fez uma operação para adequar seu corpo? Ou são as pressões sociais e o preconceito que ensejam o argumento?  O tema ganha especial relevância a se considerar a "gravidade" maior quando a "pseudo ocultação" do passado é promovida por uma mulher transgênero, o que traz consigo, além do recorte de gênero, todo o tempero originário da masculinidade frágil16. Antes mesmo que tenha que enfrentar argumentações preconceituosas revestidas de um verniz de tecnicidade é importante que fique cristalino que não ignoro aqui uma eventual discussão sobre o fato de que o desconhecimento da condição transgênero do cônjuge poderia ensejar uma frustração quanto a um desejo de procriar. Contudo, nesse caso, a alegação há de ser referente a esse fato e não à condição transgênero, já que essa impossibilidade também poderia acometer uma pessoa cisgênero. Tampouco é plausível se escamotear os reais motivos discriminatórios ante a uma falsa alegação de impossibilidade de prole própria, fator que atualmente vem sendo cada vez mais mitigado face às diversas modalidades de reprodução humana assistida que a ciência proporciona. É fato que a legislação vigente ao tratar do tema apenas assevera que o pleito de invalidade do casamento depende da indicação por parte de um dos cônjuges de uma situação desconhecida antes do casamento que se fosse sabida faria com que a união não viesse a se estabelecer. O argumento básico é de que se o cônjuge tivesse ciência daquele determinado fato (impossibilidade de ter filhos) não se casaria, algo que é, inegavelmente, dotado de uma grande subjetividade na prática. Contudo tal alegação haverá de se devidamente comprovada em sede processual. E, na ausência de prova cabal, me parece bastante prosaico se assumir que o pedido de invalidade do casamento caracterizaria prova (ou ao menos um forte indício) de preconceito.  No mais, se o pleito expressamente se fundar no fato de ter tomado ciência da transgeneridade do outro, fica patente e manifestamente comprovado o preconceito. E não podemos nos esquecer que, nos termos trazidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento da ADO 26, a compreensão jurídica da expressão raça abarca também elementos da sexualidade, o que permite tipificar como crime de racismo condutas transfóbicas. Caminhando para a conclusão daquilo que se propõe no presente texto nos preocupa a existência na doutrina de nomes respeitáveis que já chegaram a suscitar que haveria uma obrigação de que a pessoa transgênero viesse a expor tal condição para seu parceiro antes do casamento, sob pena de responsabilidade civil, o que a mim parece uma interpretação teratológica da legislação vigente, e que acaba por privilegiar um capricho de uma pessoa em detrimento do resguardo de um direito fundamental e da personalidade17. Exigir a revelação de algo tão íntimo é de uma violência atroz. Contudo isso parece não ser algo relevante para uma grande parcela da sociedade que assevera que a "verdade" tem que prevalecer, ao tempo que consome fake news com voracidade. Há ainda a cantilena dos que propagam a necessidade da proteção da "família tradicional" ou da "sagrada família católica" e que, convenientemente, ignoram preceitos cristãos básicos.  Ao permitir que se transija com relação aos direitos fundamentais das pessoas por considerá-las menos merecedoras por não estarem inseridas nos grupos majoritários e dominantes faz com que esse grupo tão vulnerabilizado seja obrigado a seguir confrontando seu passado que, além de traumático, não mais reflete a sua existência atual, contrariando e apagando toda a luta pela passabilidade que lhe permite distanciar-se um pouco de toda a discriminação.  Com base em que essa violência se justifica?  Qual seria o respaldo jurídico para afastar o direito fundamental da privacidade e da intimidade? O direito a ser respeitado não se aplica a quem não é maioria? Pode ser mitigada a dignidade em prol de um preconceito?  A resposta é um enorme NÃO. E quem diz o contrário haverá de me convencer que seu posicionamento não é apenas mais uma reminiscência de um passado que não mais pode prosperar ante ao estado democrático de direito posto por nossa Constituição Federal. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 2  CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 3 Disponível aqui. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 55. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022 6 Luiz Alberto David Araújo; Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 151. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 161. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 161. 9 Disponível aqui. 10 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296. 11 Carlos Roberto Gonçalves. Direito civil brasileiro. Volume 6: Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 142-143. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 200. 13 Luiz Edson Fachin. Direito de Família. 2 ed. Rio de janeiro: Renovar, 2003. p. 126. 14 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 37. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Leandro Reinaldo da Cunha, Identidade de gênero, dever de informar e responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 1, 22 maio 2019.
Por mais anacrônico que possa parecer segue prevalecendo em nossa sociedade uma premissa excludente quanto a garantia de acesso aos direitos mais essenciais. Ainda que estes sejam previstos de forma universal na Constituição Federal, nem todos conseguem acessar efetivamente as prerrogativas nucleares garantidas a todos os seres humanos em nosso Estado Democrático de Direito. Embora a todos sejam franqueados os direitos fundamentais é patente que estar distanciado do padrão posto coloca-se como um obstáculo para ter tal resguardo legal, fato que atinge sobremaneira as minorias sexuais1. Aqueles que em alguma medida ostentam características que os apartam do considerado normal2 encaram uma defasagem em relação ao grupo tido como majoritário. E não raras vezes, obviamente quando viável, os que não estão entre os integrantes dos grupos majoritários procuram o seu ajuste aos padrões postos, seja por ser esse o seu desejo, seja por uma imposição social, ou mesmo como uma forma de tentar transpor todos os percalços impostos pela sua condição primária. Ao se atribuir à incompatibilidade com o padrão ordinariamente esperado um caráter segregatório há o impulsionamento de uma busca por enquadramento nos parâmetros normatizados, norteando a conduta de muitos que sentem que a espera pela efetivação legislativa do respeito às diferenças pode encerrar em si a decretação de uma pena de morte tácita. Estar inserido no que é tido e entendido como "correto" por aqueles que são os detentores do poder tem o condão de garantir uma vivência com menos obstáculos, o que, associado com um desejo de identificação, tem grande impacto quando se analisa a sexualidade segundo a identidade de gênero, a qual há de ser entendida como a compreensão de pertencimento da própria pessoa quanto ao seu gênero, independentemente do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento, como consignamos no texto inaugural da presente coluna3. Com base nesse pilar da sexualidade as pessoas podem ser indicadas como cisgênero (quando entendem-se pertencentes ao gênero esperado em razão do seu sexo) ou transgênero (aquelas que sentem que não pertencem ao gênero associado ao sexo a si designado quando de seu nascimento), sendo que nessa segunda condição podemos destacar a figura de transexuais, travestis e intersexuais. Apenas com o fulcro de não correr o risco de enfrentar mais incompreensões do que as que já são recorrentes, mesmo que possa parecer repetitivo para quem acompanha essa Coluna, relembramos que ainda que uma parcela da comunidade e da militância muitas vezes considere transexuais e travestis como sinônimos prefiro, para fins acadêmicos, trabalhar com o entendimento que firma a distinção entre as duas condições com base na concepção de que transexuais apresentariam uma certa repulsa ou ojeriza com relação ao seu fenótipo sexual (fator motivador de eventuais intervenções visando a adequação física de sua genitália aos padrões do sexo correlato ao gênero ao que se reconhecem), o que não se verificaria em travestis4. Por cautela também se pontua que aqui insero a figura do intersexual por sustentar que se trata de elemento distinto do intersexo que, enquanto característica vinculada ao sexo, constata-se ante a presença de uma constituição física que não possibilita a inclusão imediata do sujeito nos parâmetros estabelecidos pelo binarismo homem/macho ou mulher/fêmea. O intersexual é a pessoa intersexo a quem se conferiu um sexo quando do nascimento (por vezes até mesmo decorrente de uma intervenção cirúrgica de adequação genital) mas que não se identifica com o gênero a ele associado, sendo, portanto, a intersexualidade componente da identidade de gênero que não se confunde com a intersexolidade, nos termos trazidos anteriormente nessa mesma coluna5. Feitos esses esclarecimentos conceituais é o momento de retornar ao fio que conduz o objetivo do presente texto. Em razão dessa incompatibilidade entre o físico (corpo) e o psicológico (mente) que perpassa a existência das pessoas transgênero mostra-se inafastável que um dos pontos mais sensíveis do tema incide exatamente nas alterações corporais que as pessoas transgênero realizam em seus corpos buscando conferir-lhes predicados que as associem ao seu gênero de pertencimento. Geralmente a primeira conduta de expressão da transgeneridade revela-se ante a utilização, que nem sempre torna-se pública nesse estágio, de elementos externos associados ao gênero de pertencimento, como pela utilização de roupas, adornos e acessórios a ele atribuídos. Nesse âmbito estão exemplos como o de homens que experimentam a utilização de roupas íntimas e outras vestes femininas (como vestidos e saias), maquiagem e acessórios (brincos, colares, pulseiras). Quanto aos homens trans (aqueles que nasceram com aspectos físicos de mulher/fêmea mas se consideram do gênero masculino) além das vestes associadas ao masculino é de se ressaltar a presença do "binder", uma faixa utilizada sob as roupas e que tem por fim disfarçar o volume das mamas, que apesar de não poder ser entendido como uma vestimenta masculina passa a fazer parte do "vestuário" daquela pessoa com o fim de conferir uma aparência mais associada com o gênero com o qual se reconhece. Ocultar esse atributo eminentemente feminino é algo relevante para o homem trans, sendo algo que pode trazer a ele uma sensação de satisfação e de pertencimento enquanto alguém do gênero feminino. Após as experiências associadas a roupas e acessórios ganham espaço as intervenções de cunho médico destinadas a propiciar modificações corporais com o fulcro de adquirir uma aparência compatível com a de seu gênero de pertencimento e que podem apresentar duas naturezas distintas, quais sejam: hormonais e cirúrgicas. Os tratamentos hormonais, que normalmente revelam o primeiro passo das intervenções medicinais experimentadas pelas pessoas transgênero, por sua vez, podem ocorrer com o fim de bloquear a produção de hormônios ou, na chamada hormonioterapia cruzada, para prover o corpo de quantidade de homônimos próprios do gênero de pertencimento capaz de lhes conferir características externas com ele associadas.  A terapia hormonal cruzada nos homens trans visa a eliminação da produção de estrógenos e progestágenos (progesterona), bem como a elevação da testosterona, o que conferirá um maior desenvolvimento muscular, aumento nos pelos faciais e corporais, além de supressão a menstruação. Já entre as mulheres trans (pessoas nascidas com aspectos físicos associados ao homem/macho mas que se reconhecem como alguém do gênero feminino) o objetivo é inibir a produção endógena de testosterona, havendo ainda a administração de hormônios femininos (estrogênio) que trará como consequência uma suavização dos traços faciais, diminuição dos pelos faciais e corporais, crescimento mamário, redução do volume testicular e da massa muscular. No âmbito cirúrgico os homens trans realizam inicialmente a mastectomia (redução das glândulas mamárias), sendo recorrente também a histerectomia (retirada do útero), a ooforectomia (retirada dos óvulos) e a neofaloplastia (construção de um pênis). Para as mulheres trans as intervenções passam por cirurgias plásticas mirando a feminização facial e corporal, redução do "pomo de adão" (cartilagem tireoide), cirurgia para adequação da voz, implante de silicone para aumento mamário e neovulvovaginoplastia (cirurgia para a construção de uma vagina). Evidente que para além da busca de uma congruência física com aspectos vinculados ao gênero que se entende pertencer todas essas intervenções passam também por uma perspectiva de inclusão (ou não exclusão) social, marcador indissociável da passabilidade. A passabilidade, sob a perspectiva trans, é a qualidade de ostentar aparência e caracteres que permitem que a pessoa transgênero seja reconhecida socialmente como alguém do gênero ao qual se entende pertencente, sem que sua condição seja notada ou descoberta, garantindo-lhe a possibilidade de "transitar tranquilamente na multidão"6 sem que a sua condição de transgeneridade seja apontada como fator de exclusão social, discriminação ou preconceito. Com isso se pode afirmar que quanto mais for reconhecida segundo a sua identidade de gênero maior será a sua passabildade e, em sentido contrário, quanto mais fácil for se constatar que se trata de uma pessoa trans, menor será essa passabilidade. Evidencia-se, com isso, que quanto maior a passabilidade menor será o risco de sofrer os impactos das discriminações em decorrência da sexualidade diversa daquela esperada, o que atribui uma maior proteção à integridade daquelas pessoas com passabilidade elevada. Por óbvio, em perspectiva diametralmente oposta, uma baixa passabilidade encerra em si a majoração da vulnerabilidade para quem a externa. Basta se apreciar o conteúdo das notícias veiculadas concernentes a pessoas transgênero com maior ou menor passabilidade. Quando associada a quem tem maior passabilidade são enaltecidas a beleza e as notáveis características que revelam essa associação com o gênero de pertencimento, frequentemente acompanhada de expressões como "nem parece que é trans" ou similares. Já quando há baixa passabilidade, os noticiários estão sempre relatando homicídios, usualmente praticados com requintes de crueldade, relevando toda a aversão e ódio que acompanham a existência daqueles que são reconhecidos como sexualmente divergentes. Uma visão meramente teórica pode conduzir a uma ideia de que a realização do processo transexualizador é universal vez que garantido pelo Ministério da Saúde através do Sistema Único de Saúde (SUS), nos termos da Portaria 2.803 de 19 de novembro de 2013. Contudo, segundo o que consta da própria portaria, existem apenas 4 hospitais no Brasil em condições de atender às necessidades cirúrgicas do processo transexualizador, o que faz com que, segundo levantamento realizado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a espera possa ser de até 18 anos7. O Estado que pouco faz em favor das pessoas trans, quando faz não garante a efetivação do que determina, criando "esperanças vazias em boa parte da população que faria jus aos parcos direitos assegurados", o que chega a apresentar contornos de "crueldade e até mesmo de um sadismo mórbido"8. Nota-se, portanto, que a passabilidade também está atrelada a uma questão econômica, vez que quem tem condições pode atingir seu desejo de adequação corporal à identidade de gênero de forma célere e eficaz, sendo que àqueles desprovidos de recursos financeiros restará conviver com uma baixa passabilidade e os perigos de tratamentos clandestinos e automedicação9 enquanto aguarda o acesso ao processo transexualizador garantido pelo Estado, na esperança que não venha a falecer antes desse momento chegar. Não se pode nem mesmo olvidar que durante muito tempo a passabilidade foi tida como requisito para o reconhecimento de direitos a pessoas transgênero, pois o entendimento até pouco tempo atrás, apenas superado ante a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2017, com o julgamento do REsp. 1.626.739, era de que intervenções cirúrgicas para a adequação dos caracteres sexuais externos eram imprescindíveis para a alteração de nome e sexo nos documentos de pessoas transgênero. O fato que não se pode ignorar é que a necessidade de inclusão social é um critério que se faz presente entre os elementos considerados por uma pessoa transgênero quando procura a realização de intervenções visando a ampliação de sua passabilidade. O que pode conduzir a questionamentos simples como: Se o preconceito fosse menor haveria tanta procura para a realização de intervenções? Qual o tamanho do impacto da aceitação social no interesse em se operar? A ineficácia do Poder Público em conferir às pessoas transgênero os direitos definidos afeta a passabilidade, privando-as de experienciar uma vida digna, majorando os obstáculos de uma vivência fora dos padrões impostos e aprofunda a vulnerabilidade de um dos grupos sociais mais exposto aos efeitos da segregação. O que enseja o questionamento: até quando essa conduta restará impune? Garantir passabilidade é incluir. Ter passabilidade está associado a um menor risco de entrar nas estatísticas que mortalidade que acompanham as pessoas trans e que corroboram o chamado genocídio trans10. ____________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do dever de especial proteção dos dados de transgêneros. Revista Direito e Sexualidade. v. 2, n. 2, p. 213-231, jul./dez. 2021, p. 217. 5 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/385836/intersexo-intersexual-e-a-importancia-da-distincao-para-fim-juridico 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Além do gênero binário: repensando o direito ao reconhecimento legal de gênero. Tradução de texto original de THEILEN, Jens T.. por Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2020, p. 8. 7 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/04/05/um-ano-apos-decisao-favoravel-na-justica-professora-trans-aguarda-cirurgia-de-redesignacao-sexual.ghtml 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 274. 9 O'DWYER, Brena; HEILBORN, Maria Luiza. Jovens Transexuais: Acesso a serviços médicos, medicina e diagnóstico. Revista Interseções, v. 20, n. 1, p. 196-219, jun. 2018, p. 214. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022.
Num pragmatismo extremo é possível se asseverar que todo relacionamento amoroso acabará, seja em decorrência do término da afeição que fez com que as pessoas viessem a se unir, seja em decorrência do evento morte. Assim, sendo o seu fim inevitável, resta apenas o fardo de lidar com as suas consequências1. No presente texto me aterei a uma consequência do fim do relacionamento em decorrência de um fato inter vivos que, ordinariamente, tem por elemento originário uma ruptura fática, caracterizada pelo afastamento de um dos cônjuges ou companheiros do lar conjugal. Evidente que existem situações em que não há a saída de casa de uma das partes, contudo a hipótese recorrente é que haja a cessação da convivência mútua do casal em domicílio comum. Em tais circunstâncias, mormente quando residem em imóvel próprio, o mais comum é que o cônjuge do gênero masculino deixe o bem, restando a mulher com o exercício exclusivo da posse. Nesse contexto é possível se discutir se esse cônjuge/companheiro haverá de realizar algum tipo de pagamento em favor daquele que é coproprietário do bem mas que não está a exercer a posse direita. A correta interpretação fática exige a ponderação de vários aspectos distintos mas me aterei aos casos em que não há a expressa manifestação de que o outro cônjuge/companheiro está autorizado a exercer a posse exclusiva do bem comum sem o dever de qualquer sorte de compensação econômica, caso em que a avença firmada entre as partes expressamente afasta tal obrigação. Assim, na carência de comodato com relação a utilização da parte ideal pertencente ao consorte (se o bem for integralmente daquele que deixou o imóvel prevalece a mesma concepção agora atinente ao imóvel como um todo) pode-se afirmar que caracterizado está um benefício indevido em favor de quem está exercendo a posse direta, o que dá azo à possibilidade de se questionar o dever de compensar o possuidor indireto. O tema é objeto muita judicialização, sempre laborando sob a perspectiva da responsabilidade civil, considerando elementos como o fim da mancomunhão (REsp. 1375271/SP), ausência de partilha (REsp. 1250362/RS), momento do rompimento fático do vínculo (REsp. 1250362/RS; REsp. 1375271/SP) e possibilidade ou não de abatimento do valor da pensão (REsp. 1250362/RS). E sob esse parâmetro da responsabilidade civil um dos pontos cruciais recai sobre a apreciação da culpa, aspecto que traz complexidade elevada no presente contexto fazendo com que as decisões venham se direcionado para a inexistência do dever de indenizar. Nesse mesmo sentido de inexistência de qualquer dever por parte do cônjuge/companheiro que remanesce no bem pode se verificar o projeto de lei 3498/21, que visa a inclusão de um §4º ao art. 1.320 do Código Civil, com seguinte texto: Art. 1.320. ... ... § 4º O uso exclusivo do imóvel comum por um dos ex-cônjuges, após a separação ou o divórcio e ainda que não tenha sido formalizada a partilha, não autoriza que aquele privado da fruição do bem reivindique, a título de indenização, a parcela proporcional a sua quota-parte sobre a renda de um aluguel presumido, quando aquele residir com filho comum do casal (NR). Importante se consignar que essa proposta não se insere exatamente nos parâmetros trazidos na discussão aqui entabulada já que apresenta características específicas e requisitos determinados. Apenas para que não reste sem a devida apreciação, a inteligência do artigo preconiza que não cabe direito a indenização referente a utilização do bem, após a separação ou divórcio, com base em um aluguel presumido, quando residir com filho comum do casal. De plano manifesto que tenho uma série de objeções ao texto proposto mas não é esse o momento para tecer considerações desse jaez, bastando reiterar que a questão de fundo que estou a considerar consolida-se desde a separação de fato. Apresentado o problema e o todo que o permeia é premente trazer à lume posicionamento diverso daquele que vem sendo utilizado. Entendo que a questão vem sendo enfrentada de forma equivocada por não se tratar de hipótese de responsabilidade civil mas sim de enriquecimento sem causa, o que gera uma severa alteração nos parâmetros a serem considerados para a compreensão do fato posto. Em linhas bastante superficiais a responsabilidade civil questiona a existência de um fato atribuível a alguém e que causou um dano, nos termos do art. 186 do Código Civil, enquanto o enriquecimento sem causa analisa se alguém obteve um benefício que não deveria ter obtido, com base no disposto no art. 884 do Código Civil. De forma absolutamente panorâmicas, enquanto a responsabilidade civil está preocupada em analisar se houve dano, direcionando sua atenção à figura do lesado (quem perdeu), o enriquecimento sem causa deita sua atenção na direção do agente da conduta que obteve um benefício indevido (quem ganhou). Importante se consignar que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se pautado no entendimento de que o uso exclusivo do imóvel comum do casal está inserto na perspectiva de enriquecimento sem causa, previsto no art. 884 do Código Civil, ainda que mantenha-se utilizando de expressões como "obrigação indenizatória" ou "dever de indenizar" o que remete a uma ideia de responsabilidade civil, como se pode constatar do REsp 1888863/SP julgado em 2022, sob a relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Venho sustentando já de algum tempo que não está correta a análise sob o viés do dano eventualmente sofrido pelo coproprietário, pois o que há de ser auferido é se aquele que está valendo-se de forma exclusiva do bem comum, sem a autorização expressão para tanto, está obtendo um benefício e favorecendo-se de forma indevida. Apurado que o possuidor direto está a utilizar patrimônio alheio (ainda que parcialmente) sem qualquer ônus, inexistindo autorização expressa para tanto, é inconteste que experimenta benesse imprópria, e, com isso, haverá de "ofertar ao proprietário o equivalente ao que não teve que dispender por tal uso, pagando o aluguel proporcional à parte do outro, desde o momento em que tal posse exclusiva teve início"2. Anteriormente já tive a oportunidade de tratar da questão com profundidade acadêmica em texto publicado na revista do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC)3, bem como em palestra proferida no IV Encontro Nacional desse mesmo instituto realizado em Fortaleza em meados de 2023. Contudo, exatamente como exposto na parte final dessa palestra, há uma perspectiva extremamente delicada que tangencia a hipótese aqui trazida e que, confesso, sempre me atormentou. Como conciliar a excelência técnica aqui exposta à necessidade da atenção a uma perspectiva de gênero que é inafastável da presente problemática? Esse é o momento em que posso fazer uma apreciação conciliando meus dois grandes amores jurídicos: o Direito Civil e as relações entre direito e sexualidade. A confluência de dois mundos aparentemente antagônicos impõe a necessidade de acuidade técnica que demanda a conciliação da dureza da dogmática civilística com um olhar humanístico indissociável da proteção das minorias sexuais. Que fique aqui evidente o entendimento do qual comungo de que se pode pensar o gênero feminino entre as minorias sexuais, como grupo sexualmente vulnerabilizado, nos moldes traçados desde o texto inicial da presente coluna que concebe a sexualidade alicerçada nos pilares do sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. A conclusão pelo dever de restituir que compete a quem tem o uso exclusivo do imóvel comum após a separação de fato conduz automaticamente à necessidade de uma ponderação de gênero pois tal entendimento pode converter-se em manifesta injustiça, vindo até mesmo a respaldar um controle sobre quem é socialmente mais vulnerabilizado. É perceptível nos tempos atuais uma maior atenção com relação aos impactos da estrutura jurídica eminentemente masculina. Ainda que não exista uma restrição ou direcionamento expresso certas circunstâncias, embora não mencionem o gênero, têm em seu cerne uma preocupação que perpassa por esse quesito, como se verifica da chamada usucapião familiar (art. 1.240-A do Código Civil). Outras normas são explícitas no sentido de proteção, como se vê do "Programa Casa Verde e Amarela" (MP 996/20), sucessor do "Programa Minha Casa, Minha Vida", que determina que "tanto o contrato quanto o registro do imóvel serão feitos, preferencialmente, em nome da mulher"4. Nesse campo vislumbro como grande marco o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que traz alguma esperança quanto a um novo pensar, em que pese não fazer menção específica acerca da figura objeto da presente coluna. De seu texto pode-se extrair que a seção destinada ao Direito de Família inicia-se com a afirmação de que nessa seara "a atuação com perspectiva de gênero mostra-se essencial à realização da Justiça, ao se considerar que as relações domésticas são marcadas pela naturalização dos deveres de cuidado não remunerados para as mulheres e pela predominante reserva de ocupação dos espaços de poder - e serviços remunerados -, aos homens"5. Inquestionável que a dissolução do casamento tem o condão de remeter o cônjuge ou companheiro do gênero feminino à situação de vulnerabilidade ainda mais severa pois haverá de inserir-se em uma nova realidade em que não contará com o suporte financeiro do outro, tendo que arcar com responsabilidades normalmente muito superiores às suas condições, vez que seguirá tendo as mesmas atribuições domésticas sem o mesmo respaldo. O protocolo assevera também que "não se pode deixar de afirmar, outrossim, que a construção de estereótipos de gênero relacionados aos papéis e expectativas sociais reservados às mulheres como integrante da família pode levar à violação estrutural dos direitos da mulher que, não raras vezes, deixa a relação (matrimônio ou união estável) com perdas financeiras e sobrecarga de obrigações, mormente porque precisa recomeçar a vida laboral e, convivendo com dificuldades financeiras, deve destinar cuidados mais próximos aos filhos, mesmo no caso de guarda compartilhada"6. Em coluna anterior tratando do divórcio tardio ou divórcio cinza7 trouxe algumas ponderações referentes aos impactos econômicos do fim do casamento e união estável para as mulheres, as quais enfrentam uma redução de 45% (quarenta e cinco por cento) em seu padrão de vida, o que pode ser descrito como financeiramente devastador8. Vários aspectos poderiam ser colacionados para oferecer suporte à necessidade de uma análise diferenciada para o quadro descrito nessa coluna, como o fato de que em apenas 4,1% dos casos de dissolução do casamento a guarda dos filhos é deferida em favor do pai9, o que faz crer que, ordinariamente, ao estar vivendo no imóvel comum do casal com os filhos do casal, por exemplo, o exercício da posse da parte pertencente ao outro cônjuge estaria sendo desfrutada pelo filho. Todavia não se pode olvidar que isso ensejaria a possibilidade de que o genitor a quem compete o dever de alimentar venha a requerer a compensação de tal "oferta" a título de alimentos in natura (REsp. 1699013/DF). Entendo que está mais do que na hora de se discutir o direito à indenização à mulher por todo o "serviço" por ela prestado em favor da família, especialmente quando se tem em mente que este é amplamente superior ao realizado pelos homens, como demonstra levantamento do IBGE que revela que, em média, mulheres destinam 10,4 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas10. Esse tema é pouco explorado no mundo jurídico além de ser tachado como absurdo pelos tradicionalistas, machistas de plantão e defensores de uma dita "tradicional família brasileira" que não querem ver "a subversão dos valores pelo implemento de ideias feministas". Faz-se imperioso se discutir os impactos patrimoniais que a estrutura machista consolidada (tanto em nossa sociedade como no ordenamento) acabam por impor ao feminino. As débeis ofendículas apostas por aqueles que buscam manter o status quo relegando o feminino a um lugar de submissão e opressão não podem prosperar. Tampouco podem persistir concepções jurídicas que ignoram fatos simplesmente em razão do gênero da pessoa lesada, privando-a de receber aquilo que está determinado de forma cristalina na lei, é francamente defendido pela doutrina e reconhecido pelos tribunais. Caso eu relatasse uma situação de fato em que a lei estabelece deveres compartilhados e uma das partes não desempenhasse seu papel a contento, sendo o outro compelido a suprir tal omissão, me parece suficientemente claro estarmos diante de um enriquecimento ilícito. Mas se a vítima for a alguém do gênero feminino surgem várias ponderações religiosas, morais, culturais e históricas visando obstaculizar qualquer direito a compensação pecuniária, por não ser ela o ente "destinatário originário" dos direitos classicamente estatuídos pelo Direito Civil. Dessa forma, considero que havendo o uso exclusivo do bem comum do casal após a separação de fato, pode-se pugnar, no mínimo, pela compensação entre o devido pelo exercício da posse direta com o crédito oriundo o enriquecimento ilícito experimentado pelo possuidor indireto em razão do desempenho ineficaz dos deveres familiares e domésticos que venha a ser aferido. Não se ignora a dificuldade probatória que pode se estabelecer a fim de demonstrar esse aproveitamento por parte de um dos cônjuges ou companheiros, mas uma vez provado mostra-se perfeitamente cabível a caracterização do dever de restituir os benefícios recebidos, o que, eventualmente, poderia ser compensado com o enriquecimento decorrente do uso exclusivo do bem comum do casal. Preponderante deixar patente que não pode restar ignorada a questão de todo o trabalho destinado pela mulher à família, o qual segue invisibilizado e desvalorizado, corolário de uma sociedade construída e constituída sobre bases formalmente democráticas mas que manifestamente não acolhe os que não se encontram entre os majoritários e detentores das rédeas do poder. Estou consciente de que os posicionamentos aqui adotados serão combatidos por todos os lados, pelos mais variados motivos e fundamentos, mas o intento da presente coluna é, muito mais do que apresentar entendimentos consolidados, propor o pensamento e gerar o desconforto. O privilégio de ser professor titular da cadeira que um dia pertenceu a Orlando Gomes na Universidade Federal da Bahia me impõe esse agir, não podendo me escusar da obrigação de tomar posição e suscitar o enfrentamento de questões espinhosas. Como tenho o costume de pontuar com relação a todas as minhas opiniões e construções jurídicas vistas como apartadas do que é ortodoxamente esperado reitero que não busco estar com a razão (apesar de sempre acreditar que a tenho, caso contrário não me manifestaria da maneira que faço), mas tão somente colocar uma semente de pensamento fora dos parâmetros postos e causar uma fissura no monolito do dogmatismo cego por muitos propalado. A proposta é basicamente trazer subsídios para a busca de uma atuação jurídica que se mostre mais afeita a preceitos constitucionais nucleares, rompendo certezas construídas com base em uma sociedade e direito segregadores, mas ainda assim lastreada nos parâmetros legais. Por fim, penso que, afastados os preconceitos e atendo-se apenas às diretrizes mais essenciais de um estado democrático de direito, a questão é de uma simplicidade extrema, sendo qualquer celeuma muito mais um reflexo de uma visão de mundo que não mais se admite. Faz-se mister afastar a regência de uma falsa ideia de imparcialidade da lei e de sua interpretação até agora vigentes11, impondo a utilização de lentes que equacionem a turbidez que nos conduziu a uma coletividade que até hoje ignora preceitos basilares da democracia e tornam o gênero um marcador social que priva a dita minoria de direitos. Assim, concluo afirmando que ela deve pagar pelo uso exclusivo do bem mas haverá de poder, ao menos, compensar o montante que lhe é devido face à dedicação superior destinada à família que gerou um benefício ao outro. Me parece ser o justo. Concordam? __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Relacionamentos e seu fim inevitável. Revista Conversas Civilísticas, v.1, p.147 - 148, 2021. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Lucro da intervenção e o uso exclusivo do imóvel do casal após a separação de fato. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 52-64, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 4 ago. 2023. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Lucro da intervenção e o uso exclusivo do imóvel do casal após a separação de fato. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 52-64, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 4 ago. 2023. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 I-Fen Lin; Susan L Brown. The Economic Consequences of Gray Divorce for Women and Men, Innovation in Aging. V. 6, n. suplem. 2022, p. 295. 9 Disponível aqui.   10 Disponível aqui.   11 Juliana Paiva Costa Samões. Epistemologias e hermenêuticas jurídicas feministas. Dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia.
Muito do preconceito propalado nos dias atuais é apresentado com um verniz de rigor científico que busca afastar a natureza discriminatória que está na base das discussões entabuladas. Sob um véu de uma aparente tecnicidade se esconde em verdade o ranço do preconceito que, nessas situações, se revela ainda mais pernicioso ao se revestir de contornos de uma cientificidade que, de fato, não existe. Não se ignora que por vezes essa concepção tem até mesmo um viés inconsciente, não revelando uma conduta intencional ou dolosa de agir de forma discriminatória, quando o agente se considera respaldado por certezas que ele mesmo constrói ou que lhe são entregues como verdades consolidadas. Esse panorama aqui indicado se manifesta em inúmeros contextos contudo me aterei na presente coluna a analisar a incidência de tal agir quanto à presença de mulheres transgênero nos esportes. Mulheres transgênero, por terem a si atribuído quando de seu nascimento o sexo masculino, face aos hormônios que suas gônadas produzem, apresentam, ordinariamente, uma maior quantidade de testosterona no corpo caso não venham a passar por um processo de hormonioterapia, nos termos indicados em coluna anterior1. Um dos elementos que me suscitaram a discorrer sobre o tema na presente coluna foi a oportunidade de ter publicado a tradução de um importante estudo realizado pelo Canadian Centre for Ethics in Sports e que encontra-se publicado na mais recente edição da Revista Direito e Sexualidade (V.4, N.1)2. Em "Atletas transgênero e esportes de elite: uma revisão científica" há a apresentação do resultado da compilação de estudos sobre o impacto da participação de mulheres transgênero nos esportes de elite no qual se constatou que inexistem evidências de que elas gozam de vantagens injustas, após o tratamento hormonal, quando competindo com mulheres cisgênero. Ressalta-se não se tratar de um estudo visando aferir clinicamente se existem benefícios para as mulheres transgênero mas que somente analisou os trabalhos já realizados e demonstrou que neles não há a confirmação de vantagens. Em que pese a ausência de elementos comprobatórios de que haveria um benefício quando tal questão é colocada em discussão todas as pessoas tendem a ter uma opinião, independentemente de uma fundamentação técnica. Quando me deparo com essas "certezas" manifestadas por leigos automaticamente me recordo de pessoas que asseveram que vacinas causam autismo e outros negacionismos que afrontam todo o conhecimento científico. Algumas "convicções do senso comum", fundadas na percepção que a pessoa tem da realidade, mesmo quando refutadas pela ausência de demonstração de que aquele entendimento encontra respaldo, segue moldando a sua forma de pensar. É similar à afirmação trazida por Hans Rosling na obra "Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos", que afirma que, diante de uma ilusão de ótica, mesmo tendo havido a medição de duas linhas com a demonstração de que tem exatamente o mesmo comprimento, se segue enxergando uma diferença3. As pessoas são confrontadas com o fato científico de que a informação que elas sustentam não procede, mas seguem agarradas à sua crença de que sua percepção está correta, normalmente seguidas de afirmações como: "é claro que tem benefícios" ou "mesmo com a pesquisa dizendo o contrário você sabe que não é justo", tentando afastar a ciência e os estudos com a afirmação de que o senso comum há de se sobrepor. Por vezes até mesmo pessoas que tem algum conhecimento na área acabam se posicionando sem ter lastro em comprovações científicas fundadas em estudos que atendam a melhor técnica, o que ganha ares bastante preocupantes tentando valer-se de um argumento de autoridade desprovido de sustentação. A participação de pessoas transgênero em competições esportivas não é figura ignorada pelas entidades responsáveis pelos esportes que, já de algum tempo, foram instadas a buscar o estabelecimento de parâmetros visando garantir o equilíbrio competitivo. O Comitê Olímpico Internacional e várias associações esportivas, como a Word Athletics (antiga Associação Internacional de Federações de Atletismo - IAAF) e a Federação Internacional de Voleibol (FIBV) estabelecem critérios técnicos formais, baseado na quantidade de testosterona para determinar se uma mulher transgênero está autorizada a participar das competições. O aspecto do equilíbrio esportivo faz com que o argumento da vontade do ganho competitivo seja trazido como elemento para apreciação do tema, com o questionamento acerca da "mudança de sexo" para competir e ganhar, remontando a existência de um aspecto volitivo na identidade de gênero. A isso é premente se responder que se tal conduta houver não estamos diante de uma pessoa transgênero mas sim de alguém que está tentando valer-se de meios escusos para a obtenção de um benefício, o que há de ser tratado e entendido como uma fraude. É a tentativa de usurpação de uma condição sexual com fins ilícitos sendo de se ressaltar que a transgeneridade não se assenta na vontade ou escolha de quem quer que seja4. É fato que o presente tópico congrega em si aspectos que envolvem os esportes, algo que tem impacto em nossa sociedade, e a sexualidade, um dos grandes catalizadores de preconceito e discriminação. Isso faz com que seja relevante se aproveitar dessa sinergia para colocar em pauta o debate relacionado à identidade de gênero, já que a proteção dos direitos humanos parece não ser o bastante para a maioria da coletividade. Inusitado se constatar que muitas vezes aqueles que se insurgem contra a presença de mulheres transgênero nas competições esportivas são os que tecem as considerações mais misóginas quando diante dos esportes femininos. Nesse exato momento está ocorrendo a Copa do Mundo de Futebol Feminino e, em razão de comentários machistas e preconceituosos, a transmissão pelo YouTube da partida inaugural da competição teve o chat desativado5. Isso nos faz questionar: a oposição à presença de mulheres transgênero nas competições tem por base o interesse no equilíbrio esportivo ou é mero preconceito velado? Se o problema de fato é o equilíbrio esportivo há de se entender, portanto, que enquanto não existirem distinções físicas em razão dos impactos hormonais no corpo não há motivo para se discutir a presença de pessoas transgênero nas competições. Contudo não é o que se vê quando se fala de competições em que meninas transgênero buscam participar, como foi no caso da patinadora brasileira Maria Joaquina Reikdal que foi impedida, aos 11 anos de idade, de competir no campeonato sul-americano de patinação em 20196. Os grandes defensores do equilíbrio esportivo normalmente assumem que a igualdade é parâmetro nuclear das disputas, sendo a meritocracia o diferencial para um melhor desempenho e resultados. Apenas para acender a discussão sobre o tema convido à leitura dos inúmeros trabalhos que discorrem sobre a meritocracia, como a obra de Michael Sandel7. Seja como for, atendo-me ao meu campo do conhecimento, não pretendo discutir se o desenvolvimento de uma compleição física com a presença de testosterona em níveis mais elevados é capaz ou não de conferir uma vantagem competitiva. Deixo isso para os estudos clínicos. Mas não posso me esquivar de um questionamento que parece ser dos mais relevantes em termos sociais, qual seja, o que vale mais: o pseudo equilíbrio ou a inclusão? Se os estudos não são conclusivos com relação à existência de uma vantagem competitiva qual o motivo de tanta objeção e grita quando da participação de mulheres transgênero em competição com outras mulheres? Ante a ausência de elementos a conduta correta é a de segregação e não inclusão como muitos professam? Nos últimos dias vi nas redes sociais a provocação de uma pessoa (que infelizmente não me recordo quem foi para citar devidamente) que afirmava de maneira singela que ou as mulheres transgênero não tem nenhum benefício em face das demais mulheres ou há um enorme equívoco do técnico da seleção de vôlei feminino em não convocar a oposta/ponta Tifanny Abreu, primeira mulher transexual a participar de uma partida oficial da Superliga. Sob a lente jurídica é relevante se considerar que a vedação da participação de mulheres transgênero em competições esportivas com as demais mulheres além de configurar as hipóteses já consolidadas de práticas discriminatórias pode também ter outros desdobramentos. A proibição da mulher transgênero em competições esportivas com as demais mulheres enseja em si uma hipótese manifesta de dano. Possível se vislumbrar, no campo dos danos patrimoniais, a incidência de dano material face aos gastos tidos para a preparação para aquela competição em específico e despesas de locomoção e estadia já realizadas ou mesmo lucros cessantes ante a perda de valores que seriam recebidos a título de patrocínio pela participação numa dada competição, por exemplo. Nesse mesmo âmbito é justo se pensar também em indenização oriunda da perda de uma chance, considerando eventuais premiações que poderiam ser alcançadas pela atleta que se viu privada indevidamente da participação na competição. Em sede de danos extrapatrimoniais não se pode ignorar a configuração de danos morais, os quais haveriam de ser acrescidos de outros que se apartam do espectro patrimonial, como o dano existencial. Feitas essas ponderações me parece ser imperioso que a presença das mulheres transgênero nos esportes seja tratada de maneira séria e sem leviandades, despida de achismos. Mas o que se questiona, em verdade, é: as pessoas querem mesmo apreciar o tema de forma responsável ou apenas ter mais uma área onde o preconceito contra as minorias possa vicejar? __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 Hans Rosling. Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. 9. ed.. Rio de Janeiro: Record, 2023, p. 24. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direitos dos transgêneros sob a perspectiva europeia. Revista Debater a Europa, N. 19, 2018, p. 49  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui. 7 Michael Sandel. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum. São Paulo: Editora Civilização brasileira, 2020.
quinta-feira, 13 de julho de 2023

Não é tolerância. É respeito

Somos obrigados a nos deparar em nosso cotidiano com uma série de situações inusitadas que acabam tocando de maneira direta, ou ao menos resvalando, em questões relacionadas com a sexualidade e que, por consequência, merecem uma apreciação de natureza jurídica. O que haveria de ser ordinário e um simples desdobramento dos parâmetros mais básicos da convivência em sociedade passa a ser objeto de batalha. A diferença entre os indivíduos, fator que nos trouxe até aqui em termos biológicos, deixou de ser uma característica nuclear da humanidade, gerando tensionamentos e embates sociais que chegam a culminar com a proposta manifesta ou sugerida de extermínio do diferente1.  A ampliação do acesso à internet conjugado com a imersão no mundo virtual aparentemente fez com que algumas distinções entre as pessoas fossem evidenciadas, levando cada grupo social a se colocar como o único dotado dos valores corretos e adequados de condução da vida em sociedade. Em um mundo em que se tem como equivocado ou mesmo inimigo a ser dizimado (quando não possa ser cooptado) aquele que não comungue com os seus preceitos o respeito à diversidade se torna uma utopia. A impressão é que muitos anseiam por um mundo de ausência de posições dissonantes, onde a uniformidade de pensamento se mostra o ideal, desde que essa confluência se dê na direção dos conceitos por eles defendidos. No que concerne à sexualidade se construiu um entendimento social que admitiu denominar de anormal qualquer conduta que se mostrasse desviada das diretrizes mais ordinárias ou recorrentes da heterossexualidade e da cisgeneridade2, fator crucial para a estruturação de uma sociedade que tem a discriminação como uma conduta disseminada e até mesmo positivada no ordenamento jurídico. Para os que professam visões mais extremistas o respeito às diferenças passou a ser visto como uma fraqueza ou uma traição por não buscar a conversão do diferente aos padrões por eles enaltecidos. Outros chegam a ostentar o "respeitar" como uma qualidade, conferindo a si mesmos uma aura diferenciada, um atributo digno de uma divindade que se distingue da horda pelo simples fato de se mostrar capaz de respeitar o outro. A realidade que nos circunda faz com que o tema respeito volte a ser objeto da presente coluna, em conexão com o que foi trazido anteriormente no texto "O respeito como parâmetro elementar para a dignidade da comunidade LGBTIANP+" publicado em 18 de maio de 20233. A insanidade instalada parece ignorar que o respeito às diferenças é pedra angular de uma sociedade que se encontra lastreada em um Estado Democrático de Direito, vez que um dos alicerces mais básicos da consolidação da dignidade humana. A materialização de um Estado Democrático de Direito pressupõe o respeito às diferenças como corolário basilar, não sendo possível se conceber sua estruturação sob bases de aniquilamento de valores, ideias e vontades dos grupos minoritários4. A existência de um entendimento que pressuponha a possibilidade de uma sexualidade tida por anormal, por si, tem o condão de fomentar condutas denominadas recorrentemente de intolerantes, fundada em um inconteste menosprezo a tudo o que emana das minorias5. A imposição de que todos sejam iguais ou que as minorias sejam extirpadas da convivência social (caso não se adequem ao determinado pela maioria) é característica de sistemas que se afastam dos parâmetros essenciais da democracia. Contudo muitos preferem expor uma visão de que quando não é o caso de extermínio, as minorias deveriam ser reduzidas a uma condição de existência subalterna, havendo de se contentar com o que lhe for ofertado, já que são os inferiores e derrotados por não deterem o controle do poder. E esse não é o fundamento de sustentação da democracia. Democracia pressupõe exatamente o respeito e proteção às minorias ante a sua posição perante a maioria. Nesse âmbito as maiorias não necessitam de proteção exatamente por não estarem correndo qualquer risco, fato que não se aplica à minoria que, por seu status e pela distorção de compreensão de alguns, acabam estando continuamente sob os holofotes da segregação, discriminação e destruição6. E nesse cenário que ganha força a figura do integrante da maioria que se vangloria de ser tolerante, pois "permite" com a sua "benevolência" que as minorias sigam existindo. Normalmente tais manifestações de elevação espiritual são acompanhadas de frases como: "esse mundo de hoje tem cada coisa" ou "o certo tá virando errado", ou ainda "não se pode falar mais nada". Compõe o manual básico, logo após a aquelas manifestações, as afirmações de que "não tenho nada contra" ou "tenho até amigos que são" para, a seguir, passar a desfiar uma enormidade de preconceitos e considerações enviesadas. De regra é de se entender que a tolerância pressupõe alguma medida de altruísmo, pois quem é tolerante está a enfrentar algum ônus mas se portará de forma a suportar esse gravame. Contudo, no mais das vezes, quando a "carta" da tolerância é apresentada como uma enorme qualidade a ser enaltecida e valorizada não se vislumbra, de fato, a existência de qualquer ato de tolerância. "Tolerar pressupõe a necessidade de suportar, permitir ou aceitar algo que se mostra contrário aos seus interesses e convicções e que terá reflexos em sua vida"7. Então é de se questionar: em que a existência das minorias sexuais impacta na vida dos demais integrantes da sociedade que os leva a afirmar que estão a tolerar a presença de tais pessoas? A fragilidade demonstrada pelas maiorias é tamanha que há quem proteste contra as conquistas mais singelas e que somente visam conferir o mínimo de proteção às minorais sexuais, chegando mesmo a bradar que estariam querendo a destruição da masculinidade ao se criar políticas públicas e ações afirmativas em favor das minorias. Até o absurdo argumento de um preconceito contra homens, heterossexuais e cisgêneros tem sido suscitado, similar ao racismo reverso que pessoas brancas chegam a afirmar sofrerem, como se as minorias pudessem subjugar e oprimir os grupos majoritários. Os seres humanos que se colocam como tolerantes costumeiramente são levados a um enorme conflito interno quando se deparam com seus ídolos declarando uma sexualidade dissonante ou mesmo quando seus ascendentes ou descendentes revelam-se como integrante da população LGBTIANP+. A mera proposição hipotética de tais situações faz com que, quando instados a se manifestar quanto a sua reação nesses casos, os coloca acuados e acabam demonstrando a real faceta do preconceito que carregam. Ser tolerante traz consigo um espectro de autonomia e discricionariedade que confere ao indivíduo a prerrogativa de determinar se quer ou não expressar tal característica para a sociedade como um todo. Na essência pode-se asseverar que aquele que está suportando alguma sorte de ofensa teria a escolha de contrapor-se a ela ou suportá-la. E não é essa a questão que se vislumbra aqui, pois não cabe a maioria nem suportar, tampouco opor-se à existência daqueles que se mostram diferentes do ordinariamente esperado. Trata-se apenas de respeitar. E nessa seara não se discute discricionariedade. O respeito não é uma escolha mas sim uma imposição. Deve existir e se fazer presente, sob pena de responsabilização. Quem se diz tolerante por ser heterossexual e "aceitar" pessoas homossexuais, bissexuais, pansexuais ou assexuais merece loas? Em que sua vida é atingida pela existência de pessoas com orientação sexual distinta da sua?  O mesmo se questiona com relação à pessoa cisgênero que afirma aceitar os transgêneros. O aceitar reveste-se também de uma prepotência assustadora pois assenta-se em uma perspectiva de tamanha arrogância que faz crer que a existência das diferenças é dependente da sua concordância ou permissão. Inegavelmente o que há de balizar tal compreensão é apenas o respeito por não ser "plausível se pensar que compete à maioria o poder de autorizar, permitir ou concordar com o fato de a minoria não seguir os seus parâmetros"8. O esfacelamento das bases democráticas dá azo a uma sensação, aos grupos majoritários, de que são detentores de poderes de vida e morte em face das minorias. E essa sensação de superioridade fica ainda mais evidente quando nos deparamos com os grupos vulnerabilizados em razão de sua sexualidade face a todo o histórico de estigma que sempre caminhou ao lado dos que não poderiam ser considerados "normais" quanto ao seu sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Salutar que se expresse a distinção entre tolerância e respeito face aos contornos jurídicos daí decorrentes. Não respeitar é diferente de não ser tolerante, em que pese a utilização consolidada em muitos meios da expressão "intolerância" em contextos em que efetivamente há desrespeito. Estamos hoje em uma sociedade fortemente segregadora e discriminatória na qual não ser alguém que se coadune com o que se tem por ordinário faz com que se venha a ser incluído entre os "anormais", os quais podem ser ofendidos e atacados. E muito disso é a expressão das numerosas omissões do Estado ao não desempenhar seu precípuo dever de proteger as minorias, o que é manifesto ao se constatar a eloquente leniência legislativa associada aos temas de interesse das minorias sexuais9. E ainda existem os presunçosos arautos da democracia que asseveram sua grandiosidade como seres humanos ao aduzir que respeitam as diferenças e que não são pessoas intolerantes, como se isso fosse algo que não haveria de se fazer presente na conduta de todas as pessoas10. Fazer o que deve ser feito é algo tão pouco usual nos dias atuais que respeitar virou uma qualidade, um enorme diferencial no mundo de trevas da segregação e discriminação em que vivemos. Segundo um olhar jurídico é relevante se ter em mente que condutas que revelem um desrespeito às diferenças em razão da sexualidade são ensejadoras de consequências tanto na esfera civil (responsabilidade civil) quanto na penal, especialmente após o julgamento da ADO 26 em que as condutas de natureza homotransfóbicas foram reconhecidas como ofensas raciais, passiveis da aplicação das penas cominadas para o racismo e para injúria racial. É primordial que se perceba que, em verdade, não estamos diante de uma realidade que exija das pessoas a tolerância quanto a existência e os direitos das pessoas LGBTIANP+. Viva e deixe viver. E que a diferença floresça num mundo em que o respeito impere. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 10. 3 Disponível aqui. 4 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 6-7. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 13. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015, p. 43. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015, p. 43. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 13.
Um dos pontos mais nucleares de toda e qualquer discussão que tenha a sexualidade como base reside na perfeita compreensão dos elementos que a compõem, tendo sido essa a perspectiva que norteou a elaboração do texto inaugural da presente coluna, onde relatamos a recorrente confusão existente entre os conceitos de sexo e de gênero. Nos termos ali expostos, o sexo é recorte da sexualidade que está vinculado com as características físicas ou cromossômicas do indivíduo, e que dividiria as pessoas entre aquelas que são homens/machos e mulheres/fêmeas, existindo ainda a possibilidade das pessoas intersexo1, que são aquelas que não se inserem perfeitamente em nenhum dos espectros do binarismo. De outra sorte, quando tratamos de gênero, estamos diante de uma questão que não se atém a critérios físicos ou genéticos, mas que lastreia-se no âmbito da expressão social que é ordinariamente atribuída a quem tem o sexo homem/macho ou mulher/fêmea, nomeadas, respectivamente, como masculino e feminino. Com isso, temos que aqueles que apresentam os traços regularmente relacionados ao homem/macho, como a força física, a virilidade, a cor azul, entre outros, revelam o masculino (gênero), enquanto quem traz consigo aqueles atributos usualmente associados à mulher/fêmea, como a fragilidade, a delicadeza, a utilização da cor rosa e de saia, por exemplo, pertencem ao gênero feminino2. Todavia não se pode olvidar que mesmo aqui não há como se trabalhar com esse binarismo de linhas tão claras, vez que muitas pessoas não se enquadram nesses limites, apresentando uma condição de gênero distinta daquelas tradicionalmente consideradas, a ponto de a Comissão de Direitos Humanos de Nova York (EUA) ter oficializado o reconhecimento de 31 tipos de gêneros distintos3. De se notar que, não obstante uma conexão com o sexo anatômico, o gênero não apresenta uma necessária vinculação com ele, notadamente por ter uma base sociocultural e não biológica4, que faz com que nem toda pessoa do sexo homem/macho tenha o masculino como gênero, tampouco com que toda mulher/fêmea identifique-se com o gênero feminino. Assim, em um sentido eminentemente técnico, é de se afirmar que sexo pode ser homem/macho, mulher/fêmea e intersexo, segundo traços físicos genitais e do aparelho reprodutor, gônadas e produção hormonal ou composição cromossômica. Ressalta-se que a despeito de toda a complexidade que envolve o tema, com a existência de uma ampla gama de estados intersexo, atualmente a forma ordinária de fixação do sexo das pessoas se dá meramente pela constatação realizada quando no nascimento de uma criança por parte do médico que, de maneira simplista, atesta ser "menino" aquela criança que apresenta pênis e bolsa escrotal e "menina" quem, por exclusão, aparenta não possuir tal estrutura, mas sim uma vagina. Apesar disso, em que pese os aspectos relativos ao sexo serem "homem/macho", "mulher/fêmea" e intersexo (englobando em si uma série de possibilidades), se consolidou no Brasil afirmar que o sexo seria "masculino" e "feminino", expressões afeitas ao contexto do gênero, sem considerar as variáveis intersexo. Ou seja, são dois equívocos concomitantes e institucionalizados que permeiam o exame do tema: considerar apenas uma visão binária e trazer uma nomenclatura que não se atenta à técnica. Tendo acesso a tais informações faz-se mister apreciar o tema de forma abrangente visando compreender os motivos pelos quais tais equívocos se consolidaram e, em seguida, propor soluções. O binarismo quanto a informação acerca do sexo nos documentos nunca foi estabelecido pela lei, especialmente ao se considerar que a Lei de Registros Público (Lei 6.015/73) assevera apenas que no assento de nascimento haverá de constar o sexo do registrando (art. 54, 2º), sem qualquer menção ao binarismo ou a quais expressões que haveriam de estar ali consignadas. Considerando que o Registro Civil de Nascimento (RCN) é documento preenchido com base no que consta da Declaração de Nascido Vivo (DNV) que o precede, especificamente quanto as questões que se relacionam a caracteres físicos constatados pelos médicos quando do nascimento, é relevante deitar os olhos sobre o seu conteúdo. A Lei 12.662/12, que "assegura validade nacional à Declaração de Nascido Vivo - DNV" e regula sua expedição, prevê expressamente no art. 4º, III que da referida declaração deverá constar a informação quanto ao sexo do recém-nascido, sem que, novamente, faça qualquer previsão que indique o sexo como "masculino" ou "feminino"5. Qual seria, então, a origem do masculino e feminino nos documentos? A questão aqui exposta tem como fonte a Portaria 116/09 da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde que padroniza a Declaração de Nascido Vivo (DNV), estabelecendo em seu art. 11 que o formulário a ser utilizado é o previsto em seu Anexo II. E é exatamente aqui que encontramos o nascedouro oficial do problema, pois o documento padrão a ser utilizado traz no campo 30, destinado ao sexo, três alternativas distintas a serem assinaladas: M - Masculino, F - Feminino e I - Ignorado, em total discrepância com os referenciais técnicos científicos vigentes. A construção dada ao formulário da Declaração de Nascido Vivo (DNV) demonstra ainda uma atuação do secretário da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde que extrapola totalmente as atribuições a ele conferidas. Em que pese ser responsável pela fixação de um documento padrão a ser utilizado para a Declaração de Nascido Vivo (DNV) não cabe a ele fixar as alternativas que podem ser indicadas no espaço destinado ao sexo, seja por não haver a imposição de que se trate de um campo com alternativas (e não "aberto" para que se pudesse apor ali textualmente a informação adequada) bem como por utilizar um critério que ignora o conhecimento científico estabelecido. Ainda que se supere a falta de obrigatoriedade de um campo com alternativas a serem assinaladas, ao estabelecer as variáveis possíveis, ante a complexidade que envolve a compreensão das perspectivas não binárias, seria de se colocar a possibilidade de "I - Intersexo" ou mesmo "O - Outros", conferindo ao profissional que viesse a preencher o formulário a prerrogativa de indicar efetivamente o sexo daquele recém-nascido. Ao fazer a opção por "I - Ignorado", que, além de não ser um dos sexos cientificamente reconhecidos tem o condão de gerar uma perversa exclusão dos corpos intersexo, a escolha realizada pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde na Portaria 116/09 traz também o grave equívoco de dar a impressão de que existiria um sexo "ignorado", além de restringir a autonomia do médico que não teria como declarar o nascimento de uma criança intersexo já que esse é um sexo que não é "ignorado" e tampouco se enquadra na opção de "masculino" ou "feminino". Esse modelo de formulário para a Declaração de Nascido Vivo (DNV) institucionalizado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde na Portaria 116/09 é o responsável ordinário por inúmeros dos graves problemas vivenciados pelas pessoas intersexo e seus familiares, pois não são poucos os relatos de que Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais negavam-se a fazer o Registro Civil de Nascimento (RCN) quando a Declaração de Nascido Vivo (DNV) indicava o sexo como sendo "I - Ignorado", por sustentar que essa não era uma hipótese de sexo, muitas vezes compelindo os pais a retornar ao hospital para resolver tal situação. E a solução recorrente era a imposição da realização de cirurgias com o objetivo de fazer uma "adequação" da genitália daquele recém-nascido para que pudesse ser enquadrado como alguém com fenótipo coerente com os limites impostos pela binaridade. Em alguma medida pode-se afirmar que em sede registral o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atuou a fim de garantir o registro fora das amarras da binaridade, quando, após toda a discussão entabulada em decorrência do Ato Normativo nº 0003734-85.2020.2.00.0000, elaborou o Provimento 122/21, em que dispõe sobre o assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais nos casos em que o campo sexo da Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou na Declaração de Óbito (DO) fetal tenha sido preenchido 'ignorado'". Muito nos honra saber que em manifestação realizada no referido Ato Normativo pudemos contribuir com a construção de parecer solicitado pela ABRAI (Associação Brasileira Intersexo) que ajudou na condução do provimento. Entretanto não se pode ignorar que a solução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é apenas um paliativo que garante que pode constar do Registro Civil de Nascimento (RCN) algo distinto de "masculino" ou "feminino", no entanto o problema continua existindo, já que a única variável permitida é o "ignorado" que revela uma informação falsa, pois o sexo é sabido. A ignorância aqui não está em definir o sexo mas sim em criar um obstáculo para que a condição intersexo seja ali consignada. Essa confusão quanto a correta concepção do que seja sexo e gênero, atrelada à falta de adequação da nomenclatura habitualmente utilizada, gera consideráveis impactos na compreensão das lutas e necessidades manifestadas por toda a população transgênero e intersexo. É mais do que urgente que seja determinada a alteração do formulário padrão da Declaração de Nascido Vivo (DNV) já que aquele que foi elaborado pela Portaria 116/09 se mostra equivocado tanto quanto às alternativas possíveis como à nomenclatura correta a ser ali aposta, vez que masculino e feminino não são hipóteses de sexo. E nesse segundo ponto, ousaremos trazer algumas ponderações preliminares e que necessitam de um aprofundamento, mas que precisam ser suscitadas. A nós parece que um dos motivos que levaram a esse grave erro de utilizar expressões tecnicamente afeitas ao gênero para designar o sexo reside no fato de que em nosso país não se vê com bons olhos a utilização de "macho" e "fêmea" como palavras para referir-se ao sexo de pessoas, sendo mais comuns para animais. Todavia essa posição acabou por fazer com que se estabelecesse uma falha técnica com impactos indesejáveis, ainda que masculino e feminino em sua amplitude semântica possam designar o sexo da pessoa. Seria pertinente se repensar a adequação do emprego de nomenclaturas que ensejam em si uma série de problemas. Segundo uma percepção de um estudioso do direito, fato que necessitaria de uma extensa discussão englobando outros ramos das ciências, me parece que muito dessa confusão tem por origem a tradução de textos elaborados em língua estrangeira. Essencialmente, em língua inglesa, o termo usado quando questionado em um formulário ou cadastro acerca da sexualidade de alguém é "gender", que, segundo o dicionário Oxford, seria "the fact of being male or female, especially when considered with reference to social and cultural differences, rather than differences in biology"6, o que encerra em si a concepção de uma expressão destinada a aspectos sociais e culturais, e não biológicos. Reitera-se, mais uma vez, que em território nacional o que é apontado nos documentos não é o equivalente ao "gender" mas sim as informações de natureza médica extraídas da Declaração de Nascido Vivo (DNV). Note-se que ordinariamente em inglês as designações de gênero são "male" e "female" que teria uma tradução mais adequada a "macho" e "fêmea", distinto de masculino ou feminino, mais afeitos a "masculine" e "feminine", expressões de origem latina que são consideradas mais eruditas e menos populares. O fato é que nas traduções se preferiu usar o masculino e feminino como equivalentes ao "male" e ao "female" embora não expressem a acepção mais exata a ser considerada em nossa língua. Interessante se pontuar que no Certificate of Live Birth, o equivalente à Declaração de Nascido Vivo (DNV) nos países de língua inglesa, de regra o campo específico para o tema traz a expressão "sex" e não "gender", como pode ser verificado no documento de estados como a Califórnia, Havai e Michigan, apenas a título ilustrativo nos Estados Unidos da América (EUA) Ao mesmo tempo, em língua francesa, podemos ponderar de forma similar, por "homme" e "femme" que designariam melhor as ideias de homem/macho e mulher/fêmea, distintos dos designativos das características a eles conexas, quais sejam, "masculin" e "féminin". Nas definições de dicionário encontramos que "homme" seria a pessoa do sexo masculino7 e "femme" pessoa do sexo feminino8. Ressalte-se que nos documentos similares à nossa Declaração de Nascido Vivo (DNV) o que se requer é o "sexe" e não o "genre", o que reforça a ideia aqui descrita. Talvez uma das frases mais icônicas de Simone de Beauvoir, que afirmava que "On ne naît pas femme: on le devient" mereceria uma tradução distinta da tradicional. "Não se nasce mulher: torna-se mulher" ficaria mais coerente e compreensível para os parâmetros nacionais se fosse "não se nasce do gênero feminino: torna-se do gênero feminino", o que poderia evitar muitos questionamentos pois, segundo os critérios postos, biologicamente se nasce mulher, mas o gênero é construído durante a vida. Seja como for é de se pugnar novamente para que em território nacional, e especialmente em sede de análises técnicas, haja a primazia da cientificidade e se use para a designação de sexo as expressões homem/macho, mulher/fêmea e intersexo, relegando o "masculino" e "feminino" exclusivamente para referir-se a gênero a fim de se extirpar confusões terminológicas que geram enormes prejuízos para as discussões atinentes à sexualidade. __________ 1 Disponível aqui. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310 3 Disponível aqui. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito à indenização decorrente da ofensa à dignidade da pessoa humana intersexual. Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 201. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.
Uma das grandes dificuldades enfrentadas pelas pessoas que não são iniciadas nos estudos acerca da sexualidade reside em entender o motivo pelo qual a sigla que designa as minorias sexuais está em constante mudança, bem como qual seria o motivo para se utilizar de tantas letras. Reiterando o que foi trazido em nossa última coluna é de suma importância que o conhecimento seja disseminado para todos com o objetivo de ampliar a compreensão acerca da realidade vivida pelas minorias sexuais, possibilitando o afastamento da escuridão da ignorância, o que tem o enorme potencial de fomentar o respeito de que tanto carecem aqueles que não estão inseridos nos grupos ordinariamente considerados majoritários nesse contexto. Destaca-se, novamente, que o que se assevera aqui é que há de ser garantido o respeito aos direitos fundamentais reservados a todas as pessoas independentemente de quaisquer características que venham a apresentar, jamais podendo a sexualidade "ser aspecto utilizado pelo Estado-legislador para privar quem quer que seja de acesso a direitos que são garantidos a todas as pessoas"1. Conferir a todos os direitos que lhes cabem passa, necessariamente, pelo reconhecimento da sua existência como cidadãos, sendo a invisibilidade uma das mazelas mais nefastas a permear a vivência das minorias, fato que, obviamente, incide sobre os grupos vulnerabilizados em razão da sexualidade. Um dos pontos mais relevantes para a concretização dos direitos elementares constitucionalmente firmados perpassa pela ciência de que essas pessoas estão presentes na nossa sociedade, ainda que não tenhamos (ou saibamos que temos) contato com elas. Com esse escopo urge, lastreado pela missão de colocar a sexualidade em foco como fator indissociável da humanidade de todas as pessoas, que nos apoderemos do significado da sigla (ou siglas?) utilizada para identificar esse grupo tão amplo e heterogêneo. De plano é de se considerar que apesar de entendermos que a sexualidade é composta pelo sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero, a sigla originalmente não abrangia a todas essas vertentes, restringindo-se apenas a indicar dimensões da orientação sexual, além de agregar aqueles que não se mostravam refratários aos que ousavam subverter a normalidade esperada nesse âmbito. Dessa forma, tínhamos inicialmente a sigla GLS utilizada nos anos 1980 para referir-se ao grupo como um todo e que albergava gays (homossexuais do gênero masculinos), lésbicas (homossexuais do gênero feminino) e, finalmente, os simpatizantes à causa. Contudo com o passar dos anos se compreendeu que o GLS padecia de falta de representatividade, deixando de fora outros aspectos divergentes da sexualidade e que também eram marginais aos parâmetros socialmente postos como adequados ou corretos2. Com isso, visando conferir uma maior extensão e abrangência, passou-se a usar, nos anos 1990, a sigla GLBT, que logo converteu-se em LGBT. A inversão da ordem teve por fundamento a perspectiva de ofertar um maior protagonismo ao feminino, colocando o L de lésbicas antes do G dos gays, vindo a sigla a ser complementada com o B de bissexuais (aqueles que manifestam seu interesse afetivo-sexual tanto para pessoas do gênero oposto quanto para as do mesmo gênero) e do T de transexuais, característica vinculada à identidade de gênero. Entendendo a identidade de gênero como o pertencimento da pessoa com relação a seu gênero, transexuais seriam aquelas que se entendem como sendo de um gênero distinto daquele que era o esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Contudo, exatamente em razão de critérios relacionados à identidade de gênero, houve uma nova alteração e, por um breve período, usou-se LGBTT, sendo que esse segundo T estava adstrito à figura das travestis. Como consignado em nossa coluna inaugural, ainda que não seja pacífica a distinção entre transexuais e travestis, com a própria comunidade valendo-se, por vezes, das expressões como sinônimas, para fins acadêmicos temos sustentado que o distintivo entre as duas figuras está no fato da existência de uma repulsa ou ojeriza de transexuais com relação à sua genitália, que faz com que venham a ponderar quanto a possibilidade de realização de intervenções cirúrgicas (não que precisem efetivamente realizá-las), fato que não se verifica entre as travestis3. De qualquer sorte, a sigla LGBT acabou por se consolidar com a compreensão de que o T seria referente a transgênero, expressão que englobaria tanto transexuais quanto travestis, bem como outras figuras que podem ser encontradas sob a sua extensão, como intersexuais, não binários, agêneros, entre outros. O LGBT é atualmente a expressão mais conhecida e utilizada com o objetivo de nomear a comunidade que não se entende inserida na concepção esperada pela maioria no que tange aos critérios da sexualidade. Contudo ainda é uma sigla que não incorpora todas as nuances, o que faz com que os grupos não expressamente indicados pleiteiem a inclusão da letra que os identifica, buscando com isso fazer com que venham a ser vistos, entendidos, reconhecidos e respeitados. Esse ideal de buscar visibilidade é elemento de suma relevância quando se estuda as minorias, especialmente as sexuais, vez que a invisibilidade social, o apagamento, a segregação, a discriminação e a percepção de que sua existência está restrita apenas a certos guetos gera uma falsa impressão de que são poucos e irrelevantes, o que culmina em um sentimento de que não merecem qualquer tipo de proteção jurídica. Para os que os entendem como pervertidos, bizarros, desviados ou qualquer outra expressão do mesmo jaez utilizada com o fim de discriminar, além de serem poucos deveriam ser dizimados e extirpados da sociedade, como se pode constatar, por exemplo, da realidade enfrentada pelas pessoas transgênero no Brasil que pode ser entendida como um genocídio trans4, em manifesta afronta ao estado democrático de direito posto. Ser visto e reconhecido é preponderante para que se possa exigir do Poder Público a implementação de políticas públicas e ações afirmativas visando que os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos lhes sejam efetivamente ofertados e garantidos. Não se pode olvidar que toda vez que nos vemos compelidos a discutir a premência de que políticas públicas e ações afirmativas sejam implementadas estamos diante da manifesta constatação de que falhamos como sociedade e como Estado, nos termos apontados na coluna anterior. A invisibilidade que atinge as minorias sexuais no Brasil5 é tamanha que não existem dados oficiais a revelar o seu tamanho exato ou a sua participação na sociedade, impondo que aqueles que destinam sua atenção ao tema tenham que valer-se de informações coletadas por organizações não governamentais ou estatísticas importadas de outros países. A ausência de subsídios evidencia a falta de interesse do Poder Público em conhecer esse grupo e buscar meios que venham a atender suas demandas, relegando-os a uma cidadania distinta daquela experimentada pelas maiorias. Contudo a sigla seguia deixando de fora alguns vulnerabilizados que passaram a pleitear a sua presença, já que mostra-se imperioso, em nossa sociedade, ser compreendido como alguém para acessar os direitos mais elementares. Com isso, na busca pela representatividade, as pessoas intersexo (aqueles que, quanto ao sexo, não podem ser inseridos nos parâmetros clássicos do homem ou da mulher) foram os primeiros a conseguir emplacar sua letra representativa na sigla nessa nova fase, passando a ser utilizado o LGBTI. Exatamente com o intento de demonstrar que o tema se mostra muito mais complexo e amplo do que o ordinariamente considerado pela maioria das pessoas em seguida passou-se a agregar um "+" à sigla, afastando qualquer viés excludente que poderia ser a ela atribuído e indicando todos os demais grupos sexualmente vulnerabilizados que não estavam englobados nas letras já indicadas. Hoje o LGBTI+ começa a ganhar espaço e apresenta-se como a sigla que está próxima de ser tida como a mais ajustada de forma geral, sendo exatamente ela a utilizada pela Aliança Nacional LGBTI+, uma das mais conceituadas organizações da sociedade civil destinada à promoção e defesa dos direitos humanos e cidadania das minorias sexuais6. Na sequência houve a inserção do A à sigla, passando a ser utilizada como LGBTIA+, revelando a figura das pessoas assexuais, entendidas como aquelas que, em linhas bastante superficiais, não expressam interesse sexual por nenhum dos gêneros. Mesmo considerando a abrangência que o "+" busca conferir, o desejo de ser conhecido e notado como um grupo que tem necessidades e anseios a serem resguardados segue conduzindo outras minorias sexuais a pleitear acréscimos que busquem a consolidação de suas letras representativas na composição da sigla. Nesse novo contexto temos preferido a utilização da sigla LGBTIANP+, com os já tradicionais LGBT, mas indicando a condição das pessoas intersexo e intersexual (tema tratado com profundidade em coluna anterior), os não-binários (que não se identificam nem com o gênero masculino tampouco com o feminino) e os pansexuais (aqueles cujo interesse afetivo-sexual não se mostra atrelado a uma questão de gênero), com a manutenção do "+". Mesmo com a inclusão dessas novas letras é importante a permanência do "+" na sigla exatamente para demonstrar que nem todos estão expressamente representados, reforçando que as minorias sexuais não se restringem àquelas inseridas nas letras que compõem a sigla, mas que a sexualidade reveste-se de uma dimensão ainda maior, repudiando qualquer sorte de exclusão. Apenas à guisa de exemplo pode-se relatar que quando se preenche cadastros em redes sociais em outros países são apresentadas até 50 possibilidades de respostas para o campo destinado ao sexo, como se dá com o Facebook7. Há, atualmente, quem chegue a utilizar a sigla LGBTQQICAAPF2K+, que traria, além das minorias já mencionadas, um Q de Queer (termo de origem inglesa usado como guarda-chuva para todos aqueles que não são heterossexuais e cisgêneros, fundado na ideia de que aquele que tinha tais características seria "estranho") e outro de "questionando" (os que não têm certeza quanto a alguma das facetas de sua sexualidade), um C de curioso (quem possui uma sexualidade definida mas demonstra o interesse em experimentar situações diversas daquelas a ela atrelada), um A de aliados (não pertencem a nenhuma das minorias mas unem forças em favor dos seus direitos), mais um P de polissexuais (com orientação sexual por dois ou mais gêneros mas não por todos), um F de familiares (parentes de integrantes de uma das minorias sexuais), um 2 de 2-espíritos (oriundo do two-spirits utilizado por alguns povos originários da América do Norte que identificam-se tanto com um espírito masculino como com um feminino) e um K de kink (pessoas que possuem fetiches), além do abrangente "+". Feitas as devidas apresentações das letras que compõem a sigla entendemos que é crucial, atendendo ao preceito técnico que buscamos reforçar continuamente na presente coluna, que não se use, ao menos no âmbito jurídico, a sigla de forma indiscriminada e sem a acuidade técnica necessária para se evitar maiores confusões ou mesmo discussões desnecessárias. Tal afirmação se faz exatamente para que não se incorra no equívoco de discutir o acesso a atendimento médico especializado para toda a população LGBTIANP+ quando isso não se impõe como no caso de pessoas não-binárias, ou então o acesso a refúgio/asilo para pessoas assexuais. Evidente que a inserção de novas letras na composição da sigla pode dar azo a manifestações jocosas, que fará com que alguns considerem a questão como algo risível. Essa conclusão equivocada é um preço a ser pago para se garantir a visibilidade dos grupos que deixam de ser inexistentes e passam a ser, ao menos, conhecidos, elemento primordial para que venham a ser objeto de discussão social. Outra questão que se coloca é a de que a inclusão de "novas" letras poderia trazer a banalização da discussão, uma redução da relevância das questões atinentes à sexualidade como um todo, todavia, é premente que tais letras sejam expostas e divulgadas para que os problemas existentes sejam conhecidos e passem a receber a devida atenção. Por fim há de ser refutada a afirmação de que a cumulação de letras torna o tema mais difícil de ser assimilado pela população como um todo já que nesse sentido há de imperar o objetivo que tem norteado a presente coluna, qual seja, viabilizar a todos, especialmente àqueles inseridos no universo jurídico, o acesso a informações que não são usuais do seu cotidiano. A compreensão da existência de minorias sexuais com realidades distintas impõe a discussão das suas necessidades e da forma como o ordenamento jurídico tem atuado no sentido de garantir a efetivação de seus direitos fundamentais. Uma das consequências mais elementares de se dar visibilidade é demonstrar que algo existe e, no presente caso, esse "algo" é exatamente uma pessoa que há de ter respeitados seus direitos e garantias fundamentais, os quais não podem jamais ser afastados ou relegados por não ser ela alguém inserida no espectro majoritário, sob pena de uma ruptura do tecido social que dá sustentação ao estado democrático de direito. Temos por certo que o adequado entendimento do tema, com todas as suas idiossincrasias, é indispensável para que a apreciação de certos direitos seja qualificada e entabulada de maneira correta e nos exatos limites previstos constitucionalmente, como no caso do direito à igualdade, à não discriminação, à vedação ao discurso de ódio, à educação inclusiva, à saúde integral, à participação política e social, entre outros. Será demais exigir que todos sejam respeitados e tenham seus direitos garantidos, com a aplicação simples do clássico e surrado preceito cunhado por Aristóteles de que "devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade"? __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 3 Simona Argentieri. Travestismo, transexualismo, transgêneros: identificação e imitação, Jornal de Psicanálise, 42:77, São Paulo, 2006, p. 176. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Da invisibilidade à exposição indevida: as agruras que seguem permeando a vida das pessoas trans no Brasil. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p. I - IV, 2022. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. Acesso em: 30 mai. 2023.
Como tem sido a base principiológica de sustentação da presente coluna buscamos a atenção aos preceitos mínimos da dignidade da pessoa humana como norteadores de uma sociedade que se afirma assentada nos parâmetros de um estado democrático de direito, fato que nem sempre é garantido às minorias sexuais. Muito da vulnerabilidade experimentada pelos grupos tidos como minoritários em razão da sexualidade é oriunda de um manifesto desconhecimento acerca da realidade que envolve os aspectos atinentes ao tema, o qual é amplamente permeado por "achismos" e pseudociência propalados pela população em geral como se fossem fatos incontestes. Por ser um traço humano que toca a todas as pessoas existe uma percepção calcada no senso comum de que a sexualidade não está no campo da ciência, bastando o conhecimento acumulado pela vivência de cada um para se tornar um expert e tecer considerações das mais variadas, expondo um grau de certeza que nem mesmo os maiores especialistas em cada uma das vertentes que compõem a sexualidade ousam expressar. Essa ignorância travestida de conhecimento é um dos maiores fomentadores de todo o preconceito, segregação e discriminação que acompanham aqueles que não se inserem entre os integrantes dos grupos dominantes hegemônicos, o que culmina no desrespeito aos direitos fundamentais dessa minoria. O desconhecimento que se perfaz de sabedoria traz consigo o medo, que se revela em manifestações sociais consternadoras que apenas reforçam todo o estigma que caminha ao lado daqueles que estão inseridos na comunidade LGBTIANP+. Convivemos, mesmo já em meados da segunda década do século 21, com pensamentos tão absurdos como os que sustentam afirmações de que certas cores, brinquedos e brincadeiras, por exemplo, são permitidos apenas a certo gênero, sob o risco de que qualquer transgressão dessa regra colocaria em risco a manutenção das condições esperadas quanto a sexualidade, a ponto de já termos tido representantes da alta cúpula do governo federal ostentando como parâmetro de condução de suas políticas slogans como o de que "menina veste rosa e menino veste azul". A magia1 que faria com que a cor das roupas possa fazer com que alguém passe a apresentar uma conduta "desviada" daquela esperada quanto a sua sexualidade como um todo é o mesmo que sustenta sandices como o da negativa de alguns esportistas de usarem uniforme com o número 24, em razão da associação existente com a homossexualidade decorrente do jogo do bicho onde esse número é o do animal veado. Evidente que não se ignora a existência da cultura e de seu potencial de conduzir condutas sociais, contudo não se pode mais conceber que tais pensamentos ou "crendices" populares sigam sendo repetidas e venham a perpetuar condutas que ferem os direitos fundamentais de um grupo historicamente vulnerabilizado. Somos ainda uma sociedade que tem como xingamento a afirmação de que atribuir elementos de feminilidade para alguém do gênero masculino seria ofensivo, ou mesmo que a prática sexual diversa da aceita pela heterossexualidade seria passível de menosprezo. De se pensar que ordinariamente uma das agressões verbais mais degradantes reside em afirmar que a mãe de alguém mantem relações sexuais mediante pagamento, reforçando a ideia de que atos sexuais marginais à perspectiva de que eles apenas ocorreriam no seio da dita "sagrada família tradicional" mereceriam a pecha de indevidos e inadequados, a ponto de converter-se em uma forma de ofensa. O reforço de tais visões certamente em nada auxilia na luta pela erradicação das discriminações, além de, inegavelmente, potencializar a manutenção de uma realidade aterradora que atinge as minorias sexuais. Utilizando-se apenas de um dos recortes da sexualidade, por exemplo, temos que as pessoas transgênero no Brasil enfrentam algumas ambiguidades notáveis, como o fato de viver no país com a maior procura em sites de vídeos eróticos2 e ao mesmo tempo que carrega a terrível marca de ser o que mais as mata no mundo3 e com uma expectativa de vida de apenas 35 anos, o que é menos da metade da média nacional de 76 anos4. Em pesquisa realizada entre jovens estudantes de escolas públicas de São Paulo, constatou-se que o grupo social que desperta a maior refração quanto a convivência em sala de aula é exatamente a comunidade LGBTQIANP+5, sendo de se questionar as razões para tanto. Fatos como esse corroboram dados como os que demonstram um alto nível de evasão escolar, que faz com que apenas 0,02% das pessoas transgênero tenham acesso ao ensino em nível superior6, o que conduz a impactos severos com relação à inserção posterior no mercado de trabalho formal. Uma das discussões que mais movimentam aqueles que se propõem a estudar as minorias está na necessidade de implementação de políticas públicas visando ações afirmativas com o fulcro de garantir os direitos mínimos para esse grupo social. E, lamentavelmente, a necessidade de políticas públicas é o reconhecimento de que falhamos como sociedade e estado, já que tais medidas apenas se mostram necessárias quando os preceitos constitucionalmente firmados não se efetivam, demonstrando que a leniência do Poder Público vai além da omissão legislativa7 mas recai também na falta de fiscalização e exigência do cumprimento daquilo que ele mesmo determinou que fosse cumprido, demonstrando que há muito em nosso ordenamento que tem "vida apenas no papel" em que está consignado, como bem assevera Orlando Gomes8. Causa espécie constatar que muitas vezes as parcas conquistas alcançadas pela comunidade LGBTQIANP+, que nada mais são do que a singela aplicação dos direitos fundamentais constitucionalmente firmados, são tidas por uma parcela da população como vantagens indevidas, em total descolamento com a realidade. Já fomos obrigados a ouvir afirmações de que "agora as minorias querem direitos" e que estaríamos vivendo uma "ditadura das minorias", ou ainda que "agora seria obrigatório virar homossexual" ou "casar com outro homem" como ocorreu ao tempo das decisões dos tribunais superiores que reconheceram direitos às pessoas LGBTQIANP+. Seja em tom de pilhéria ou mesmo como uma forma de propagar algum tipo de temor nos menos atentos ou preparados, tal conduta acaba por estimular o temor e aprofundar a discriminação. Toda essa situação disseminada em nossa sociedade acaba dando azo a fatos deploráveis e perturbadores. Nesse sentido destacamos a figura do que tem se denominado de estupro corretivo, que pode ser entendido como a prática de atos sexuais de maneira não consentida com o objetivo de controlar o comportamento sexual de determinada pessoa, situação que é objeto do projeto de lei 452/19 que propõe o aumento da pena do crime de estupro praticado nessas circunstâncias. O que se traz como quesito a ser ponderado na discussão do tema é se no atual estágio da sociedade da informação em que vivemos pode-se considerar admissível a utilização da ignorância como escusa. Diversamente do que se tinha em outras épocas em que o conhecimento estava adstrito a alguns poucos privilegiados, nos nossos dias o desassossego estabelece-se quanto a confiabilidade da fonte da qual se extrai o que respaldará as manifestações sobre um determinado assunto. À guisa de provocação é pertinente se questionar o que faz com que alguém permaneça no conforto da ignorância e fundando o seu pensar em nada mais do que a sua parca percepção de mundo, amealhada por suas experiências individuais? A escolha por essa conduta de omissão é escudo para a manutenção de práticas discriminatórias? Em alguma medida nos parece admissível concluir que só não se afasta das trevas da ausência de conhecimento aquele que não tenha interesse para tanto, vez que o acesso aos saberes constituídos, hodiernamente, se faz bastante facilitado. Contudo há uma letargia inerente à natureza humana que aprisiona o indivíduo e faz com que, em grande parcela, apenas venha a se preocupar com temas que lhe toquem particularmente, preferindo superficialidade, sem praticar o exercício da alteridade, sendo essa uma das razões pelas quais as minorias padecem de tanta incompreensão e discriminação. De outra sorte não se pode ignorar que é imprescindível que o conhecimento sobre a sexualidade seja alicerçado em informações de qualidade e lastreadas em preceitos técnico, sob pena de que a pessoas se veja inundada por uma série de dados permeados por um viés de confirmação que caracteriza os algoritmos que regem o mundo virtual. É premente que se garanta à população como um todo educação sexual, qualificada e técnica, com o fim de permitir que as pessoas passem a compreender a sexualidade segundo parâmetros que extrapolem as suas vivências e seus "achismos". Para tanto faz-se imperioso que professores sejam devidamente qualificados para tanto, reunindo meios para transmitir esse conhecimento para cidadãos de todas as idades, respeitando as características a eles inerentes.  É de solar compreensão que instrumentalizar a coletividade como um todo com conhecimento qualificado seria forma elementar de mitigação dessa realidade de segregação e discriminação que incide em questões atinentes à sexualidade. Em verdade o que se almeja é simplesmente a possibilidade de ver reconhecidos e aplicados também às minorias sexuais o que é garantido a toda pessoa e que, face a sua vulnerabilidade, precisa ser objeto de luta vez que estamos em uma nação em que o reconhecimento de tal condição não tem por consequência a fixação de uma ampla e sólida rede de proteção9. O que se quer é apenas o respeito aos ditames garantidos a todos pela singela razão de se ser uma pessoa. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sexualidade e o medo da magia. Revista Direito e Sexualidade, v.2, p. I - IV, 2021. 2 Disponível aqui. Acesso em: 16 mai.2023 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. Acesso em: 14 mai. 2023. 5 ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia; WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Juventudes Na Escola, Sentidos E Buscas: Por Que Frequentam?. Brasília-DF: Flacso - Brasil, OEI, MEC, 2015. p. 94. 6 Bruna G. Benevides. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021.  Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 8 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 36-37. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
Como reiterado na presente coluna a adequada utilização das expressões vinculadas à sexualidade, bem como a correta compreensão de seus sentidos, é indispensável para que as discussões vinculadas ao tema sejam entabuladas com a imprescindível acuidade técnica. Exatamente atendendo a essa premissa o presente texto tem por objetivo apreciar uma das questões mais complexas estabelecidas nos tempos atuais com relação à sexualidade. Na comunidade intersexo existe uma grande celeuma acerca da expressão mais apropriada e que melhor indica a realidade vivenciada por essa minoria sexual em específico. Nesse contexto nos posicionamos (como será devidamente aprofundado na próxima edição do livro Identidade e Redesignação de Gênero) pela pertinência tanto de intersexo como de intersexual como termos apropriados por entender que são expressões vinculadas a preceitos distintos e necessários para atender à necessidade de designação de aspectos distintos da sexualidade. O que sustentamos é que existem as pessoas intersexo (elemento vinculado ao sexo) e as pessoas intersexuais (questão atrelada à identidade de gênero), com critérios objetivos de fixação dos conceitos que não se confundem, vez que lastreados em parâmetros distintos dos pilares da sexualidade como sustentado no texto inaugural dessa coluna. Visando a acuidade técnica que de algum tempo se busca consolidar nessa coluna no que concerne aos elementos que alicerçam a sexualidade, concluímos que não se mostra adequada a utilização das expressões intersexo e intersexuais como sinônimas, ou mesmo que a segunda delas não deva ser utilizada. Com isso nos colocamos de forma a afirmar que não se trata sequer de uma discussão de uma preferência do termo a ser usado por parte da comunidade e ativistas intersexo, mas sim do correto entendimento do que cada uma dessas palavras significa. Inicialmente é relevante se consignar que, nos termos trazidos por Claire Ainsworth em artigo publicado na Nature1, a acepção técnica do conceito de sexo pode ser muito mais complicada do que ordinariamente se acredita, vez que o simples fato de a pessoa não possuir o cromossomo Y não é o suficiente para se afirmar que ela é uma mulher. Como bem relembra a autora não são poucas as pessoas que rompem esses critérios rígidos com os cromossomos dizendo uma coisa enquanto as gônadas ou anatomia dizem outra. Intersexo é condição vinculada ao sexo, indicando uma das inúmeras hipóteses existentes e cientificamente constatadas de pessoas que não se inserem perfeitamente nos parâmetros estabelecidos do homem/macho e mulher/fêmea, seja fenotipicamente ou genotipicamente. A condição daquele que é intersexo (que sugerimos passe a ser chamada de "intersexolidade" e não intersexualidade) está, portanto, atrelada a um aspecto genético (pessoa fora do parâmetro binário XX ou XY) ou físico (ausência da correspondência direta homem/macho com pênis e bolsa escrotal ou mulher fêmea com vagina, útero e ovário, revelando um sexo anatômico atípico2), sem qualquer correlação direita com uma ideia de pertencimento acerca do seu gênero. A condição intersexo, também conhecida como diferença do desenvolvimento sexual ou distúrbio de desenvolvimento sexual (DDS) ou anomalia de diferenciação sexual (ADS) no âmbito médico, é situação que atinge, segundo alguns pesquisadores, de 1%3 a 2%4 da população mundial, o que torna patente que o binarismo sexual entre homem e mulher não espelha a realidade, sendo natural a existência de pessoas que não se insiram perfeitamente nos parâmetros estabelecidos para o homem/macho e mulher/fêmea, instalando-se em áreas de intersecção, como assevera John Achermann do Instituto de Saúde Infantil da University College London5 citado por Dráuzio Varela6 no texto de abertura da obra "Intersexo", coletânea de textos de inúmeros especialistas de diversas áreas do conhecimento versando sobre o tema. É, portanto, fato que se trata de condição que se mostra muito mais incidente do que a maioria acredita e as pessoas podem (e conseguem) perfeitamente ter uma vida baseada nos preceitos da normalidade sem que tal condição sexual a impeça de um convívio social pleno7. Contudo não se pode olvidar que a composição normativa lastreada numa perspectiva binária acaba por gerar uma série de atentados à dignidade de pessoas intersexo, usualmente oriunda de uma ignorância (inconsciente ou deliberada) acerca das questões médicas envolvidas, que, enseja preconceito e discriminação8. É inafastável a necessidade de uma transição da concepção binária para outra que reconheça e confira plenos direitos para as pessoas intersexo, todavia não é possível ignorar que essa luta enfrenta e enfrentará ainda enormes resistências sociais especialmente por "vivermos em uma sociedade em que desde a vida fetal somos posicionados socialmente em um mundo binário, em menino ou menina"9. Vem se ampliando o reconhecimento jurídico do fato científico de que o sexo não se restringe ao binarismo do homem/macho e mulher/fêmea, sendo mesmo de ressaltar julgado tido como paradigmático proferido pelo Tribunal Constitucional Alemão10 que reconheceu, em novembro de 2017, a possibilidade de se consignar a condição de um gênero não binário nos documentos de identificação, determinando ainda que tal questão fosse positivada pelo Parlamento Alemão, com o ajuste do disposto no § 22,3 da legislação destinada ao registro civil que permitia que se deixasse em branco o campo utilizado para a indicação do sexo11. Restando claro o conceito de intersexo (atrelado ao sexo) passamos à apreciação da intersexualidade, condição que atinge a pessoa intersexual, espectro inserido na perspectiva da identidade de gênero. Sob esse prisma afirmamos que o intersexual é uma das perspectivas da transgeneridade, sendo uma das hipóteses de pessoa transgênero (aquela pessoa que apresenta uma percepção de gênero distinta da esperada em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento)12. Com isso asseveramos que a expressão intersexual destina-se a definir a realidade de alguém que nasceu com a condição intersexo (sexo anatômico atípico ou sexo cromossômico distinto de XX ou XY) e que a informação de sexo consignada em seus documentos (seja por uma falta de compreensão do sexo apresentado quando de seu nascimento ou pela realização de uma intervenção cirúrgica precoce) conduz a uma expectativa de performance de gênero distinta daquela autopercebida por ela, inserindo-a na perspectiva de pessoa transgênero. Ao referir-se a alguém como intersexual estamos afirmando que se trata de uma pessoa que não se reconhece como pertencente ao gênero que se vincula ao sexo que lhe foi indicado ao nascer face a impossibilidade de associação com os parâmetros da binaridade ou uma ambiguidade genital. Assim a intersexualidade (condição de quem é intersexual) é uma das nuances presentes no campo da transgeneridade (condição de quem é transgênero) e que, portanto, se assenta na incompatibilidade entre o sexo consignado ao nascer e o gênero que aquela pessoa reconhece como seu, o que também ocorre com transexuais e travestis, por exemplo. Evidencia-se, com isso, que a intersexualidade não é característica presente na vida de toda pessoa intersexo, já que ela pode ser tanto cisgênero (ou ipsogênero como alguns preferem, nomenclatura indicada para pessoas cisgênero - aquelas que não apresentam conflito entre o seu gênero autopercebido e o esperado em razão de seu nascimento - mas que não gozam de todos privilégios inerentes a tal condição, já que seus corpos podem ser tratados como inadequados e com mutações que haveriam de  ser corrigidas)13, quanto transgênero (e, consequentemente, intersexual). Assim, tem-se a expressão intersexo para a especificação de aspectos atrelados ao sexo na perspectiva da representação genética ou física do corpo daquela pessoa que não se enquadra no binarismo tradicional, enquanto intersexual se refere à identidade de gênero daquela pessoa transgênero que é ou nasceu intersexo e a quem se atribuiu um gênero que não se coaduna com o seu gênero de pertencimento. Numa visualização gráfica e tentando ser o mais didático possível, temos:  INTERSEXO ("Intersexolidade")   Sexo Cromossômico (diferente de XX ou XY, mosaico entre XX e XY ou mosaico de outra característica genotípica), ou anatômico (sexo anatômico distinto do genético ou anatomicamente atípico) INTERSEXUAL (intersexualidade) Identidade de gênero Não pertencimento ao gênero esperado em razão do sexo indicado a uma pessoa intersexo quando do nascimento  Em suma, o que sustentamos é que intersexo e "intersexolidade" estão vinculados ao sexo e se enquadram em uma situação não abrangida nem pelos parâmetros clássicos do homem/macho nem da mulher/fêmea, enquanto o intersexual e a intersexualidade se conectam à identidade de gênero, inseridos entre as hipóteses de transgeneridade (pessoas transgênero) por entenderem-se pertencentes a gênero distinto daquele consignado erroneamente quando de seu nascimento em decorrência de ser uma pessoa intersexo. Com isso entendemos que parte da celeuma estabelecida possa ser afastada, bem como que com a definição da amplitude e aplicação de cada expressão será possível uma qualificação nas discussões relacionadas aos interesses das pessoas intersexo, viabilizando uma melhor definição das necessidades e políticas públicas a serem instituídas visando a efetivação dos direitos e garantias fundamentais para esse grupo tão vulnerabilizado e que clama pela simples possibilidade de ser quem é. _______________ 1 Disponível em https://www.nature.com/articles/518288a Acesso em 28 abr.2023. 2 SILVA, Magnus R Dias da. Repensando os cuidados de saúde para a pessoa intersexo. Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 383. 3 Disponível em https://ijpeonline.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13633-019-0065-x Acesso em 28 abr.2023. 4 BLACKLESS, M., CHARUVASTRA, A., DERRYCK, A., FAUSTO-STERLING, A., LAUZANNE, K. and LEE, E. (2000), How sexually dimorphic are we? Review and synthesis. American Journal of Human Biology, vol. 12, p. 151-166, 2000. ISSN 1520-6300 5 Disponível em https://www.nature.com/articles/518288a Acesso em 28 abr.2023. 6 VARELA, Dráuzio. Batalhas sexuais. Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 10. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 308. 9 MARTINS, Raul Aragão; SANTOS, Thais Emilia de Campos dos. Educação da criança intersexo: o que temos? Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 195 - 206, 2018. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Além do gênero binário: repensando o direito ao reconhecimento legal de gênero. Tradução de texto original de THEILEN, Jens T.. por Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2020. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 125. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo para pessoas LGBTI. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, 2022, p. 192. 13 Disponível em https://orientando.org/categorias-relacionadas-a-genero/ Acesso em 30 abr.2023
quinta-feira, 20 de abril de 2023

O divórcio tardio e seus impactos de gênero

Ainda que já tenhamos caminhado muito no sentido de estabelecer efetivamente a igualdade preconizada no texto constitucional é evidente que estamos distantes de alcançar esse objetivo, fato que pode ser constatado em inúmeras situações do cotidiano brasileiro, como na absurda discrepância entre os salários recebidos por homens e mulheres que exercem a mesma função laborativa. Mesmo com a libertação de muitas das amarras que cerceavam a liberdade das mulheres seguem persistindo em nossa sociedade, na prática, alguns obstáculos importantes que dificultam o desenvolvimento pleno de suas vidas, impedindo, com suas ramificações nefastas, que a igualdade formal se consolide em material. O Direito de Família é um ambiente profícuo de proliferação das forças opressora do machismo fundado em uma falsa ideia de tradição e manutenção da estrutura clássica da família, com raízes em um conservadorismo oriundo de uma enviesada compreensão das diretrizes religiosas. Vários preceitos tradicionalistas de fundo manifestamente discriminatório, embora superados legalmente, continuam a encontrar guarida e proteção sob os muros construídos pelas entidades familiares, reverberando uma segregação contra as mulheres que impõe a necessidade de uma ampla proteção face a toda sorte de violência doméstica que se apresenta com números elevados em nosso país. E é nesse território do Direito de Família que ainda hoje, em 2023, é possível se constatar que uma considerável parcela da população desconhece seus direitos mais básicos, como aqueles relacionados à possibilidade de rompimento de um relacionamento constituído por meio do casamento. Continua sendo recorrente o questionamento por parte das mulheres quanto a existência de um direito ao divórcio independentemente do consentimento ou autorização do cônjuge, associado à afirmação de alguns homens de que "não darão o divórcio" caso elas o desejem. Tal dúvida é um manifesto reflexo do entendimento estabelecido em certos círculos de que a mulher, em um casamento entre pessoas de gênero distintos (vide o desenvolvimento do tema gênero e casamento na coluna anterior) seria entendida quase que como uma propriedade de seu marido, tendo a si atribuído o nome de família dele, passando a dever respeito, obediência e submissão a ele. Mesmo com a igualdade consolidada na Constituição Federal de 1988, acompanhada das alterações inseridas no Código Civil de 2002 e acrescido dos novos parâmetros fixados pela Emenda Constitucional nº 66 que alterou o conteúdo do § 6º do art. 226 da Constituição Federal, é evidente que uma grande parcela da sociedade ainda não se apropriou plenamente das novas concepções sociais e legais que permeiam as relações familiares, demonstrando que a transição para uma consciência da atual condição na mulher nas relações matrimoniais ainda encontra-se em curso. Nos corredores acadêmicos e nos núcleos de discussão de excelência o Direitos de Família tem sido objeto de análises de alta complexidade e, especificamente no que concerne aos relacionamentos amorosos/afetivos interpessoais, questões como a contratualização das relações familiares, a liberdade de imposição de cláusulas de natureza existencial em pactos antenupciais e do divórcio post mortem, a título de exemplo, têm exigido dos estudiosos elevado grau de atenção e dedicação. Contudo não se pode simplesmente ignorar que segue sendo necessário difundir para a população leiga as consequências de elementos considerados básicos, permitindo que venham a compreender os direitos legislados e, com isso, possam acessá-los. Nesse contexto é premente que se dissemine de maneira ampla para todas as pessoas, de forma a garantir o exercício pleno da cidadania, que saímos de uma visão de indissolubilidade do casamento no século passado para uma ampla liberdade de dissolução dos matrimônios, que passou a ser entendida como uma possibilidade lastreada na mera discricionariedade dos cônjuges, revelando-se como ato de natureza potestativa e apartada da imposição religiosa de que o matrimônio perduraria até que a morte separasse os cônjuges, não mais imperando o pensamento de que "o que Deus uniu o homem não separa". Não vamos nos aprofundar em questões como o divórcio impositivo ou independente da manifestação do outro cônjuge por não ser esse o escopo do presente texto, mas não é mais possível se olvidar que há a plena liberdade de dissolução dos casamentos formalizados, o que tem manifestos impactos na estruturação da sociedade atual como um todo, especialmente se considerando as novas composições familiares com as chamadas famílias mosaico ou recompostas. Todas essas considerações de fundo técnico-jurídico relacionadas à possibilidade de dissolução do casamento não podem desconhecer do fato de que as diversas diferenças existentes entre as várias camadas da sociedade acabam por exigir uma aferição acurada daquele que se dedica ao estudo do tema, sendo o recorte de gênero um dos mais impactantes. Valoroso que seja possível afirmar que hodiernamente as mulheres gozam verdadeiramente de uma liberdade de tomar para si as rédeas de suas vidas e desvincular-se de um relacionamento que não mais se mostra adequado aos seus ideais, distanciando-se de um mundo que sempre impôs às mulheres uma condição de submissão. Contudo as circunstâncias que permeiam a realidade vivenciada por essas mulheres não podem ser colocadas de lado pois os impactos de uma dissolução de casamento serão distintos para homens e mulheres envolvidos em um matrimônio de pessoas de gênero distintos. Nesse momento direcionaremos nossa atenção a uma hipótese específica de dissolução de casamento que tem ganhado espaço em decorrência da nova condição conferida em favor das mulheres com as alterações que se instalaram no Direito de Família. Questão que já vem despertando a preocupação e estudos mais aprofundados pelo mundo afora é o aumento do número dos divórcios tardios, também chamados de "divórcios grisalhos" como uma tradução da expressão usada em língua inglesa "gray divorce". Essencialmente trata-se das dissoluções de casamento realizadas por pessoas que contam com mais de 50 anos de idade e com um longo período de matrimônio. O tema ganhou algum espaço nas redes sociais nos últimos tempos face a uma reportagem veiculada pela BBC Brasil1 que foi repercutida por alguns colegas que se dedicam ao estudo do Direito de Família. Os dados tem demonstrado uma ampliação no número de divórcios tardios, fato associado a uma redução da estigmatização que acompanhava o divórcio e que confere às pessoas um menor receio dos impactos sociais de se romper o casamento, ao que se associa o aumento da expectativa de vida das pessoas e a cada vez mais presente perspectiva de que a busca da felicidade é um direito inerente à condição humana. Nessa mesma reportagem a BBC Brasil faz um levantamento que revela que no Brasil, em 2021, da totalidade dos divórcios (judiciais e extrajudiciais) ocorridos cerca de 26% tinham ao menos um dos ex-cônjuges com mais de 50 (cinquenta) anos de idade. Inquestionavelmente é louvável se constatar que as pessoas não mais têm se sentido vinculadas a uma imposição religiosa ou social de manter-se em um matrimônio que não se mostra em consonância com os anseios e objetivos de cada um, contudo enaltecer tal situação e ignorar seus desdobramentos é inadmissível. Por óbvio os casamentos mais antigos são aqueles em que prospera a estrutura do relacionamento heterossexual baseado na figura clássica do homem como provedor e arrimo econômico de um lado em contraposição com a figura feminina da mulher desprovida de meios próprios de subsistência e que se responsabiliza plenamente pelas obrigações de cuidado com relação à família e ao lar. A maioridade dos filhos do casal e sua saída da casa da família, aposentadoria do marido que acaba por impor um maior período de convivência entre os cônjuges e mesmo o desgaste natural de um relacionamento duradouro são fatores indicados como alguns dos que acabam por influenciar na decisão de romper aquele relacionamento já que os estigmas do passado vinculados ao divórcio já não mais gozam da mesma força. Apesar de ordinária a compreensão de que em sede de dissolução desses casamentos a mulher venha a pleitear o pagamento de pensão alimentícia visando a sua mantença é de se notar que normalmente um dos aspectos que faz com que as mulheres ponderem se efetivamente querem o divórcio relaciona-se com as condições econômicas que virá a enfrentar em uma nova realidade. Não se pode apreciar a presente questão sem ponderar o fato de que ela se encontra em uma delicada intersecção que atinge marcadores como gênero, idade, classe social e raça. Um estudo feito nos EUA e publicado em 2022 constatou que as mulheres enfrentam uma redução de 45% (quarenta e cinco por cento) em seu padrão de vida enquanto o percentual é de apenas 21% (vinte e um por cento) no caso dos homens, concluindo que os chamados "gray divorces" são, normalmente, devastadores financeiramente especialmente para as mulheres2. Essa mesma pesquisa considerou também outros fatores relacionados a essas pessoas, como a constituição de uma nova família e características econômicas vinculada ao bem estar dessas pessoas, constando que encontram-se em maior risco aqueles que tiveram menor acesso à educação e entendidos como "não brancos", sendo que um "recasamento" é mais recorrente entre os homens, mais jovens e "brancos". Patente está que não é possível compreender o divórcio tardio ("gray divorce" ou divórcio grisalho) no Brasil sem ter em mente que as pessoas serão por ele impactadas de formas distintas considerando sua realidade, em que pese inexistirem dados consolidados em território nacional acerca da questão. A figura do dever de alimentos para o cônjuge no Brasil, como já mencionado, está prevista legislação contudo isso não é garantia de que a mulher gozará de tal prerrogativa na prática (considerando o recorte de gênero propostos no presente texto), e tendo em mente que o "recasamento" é mais comum entre os homens, se mostra bastante provável que esse indivíduo venha a destinar suas finanças para o cuidado da nova família, muitas vezes valendo-se de meios ilícitos para furtar-se de suas responsabilidades alimentares com a ex-cônjuge, que, caso tenha filhos, será, de forma geral, por eles sustentada caso não tenha condições de se inserir no mercado de trabalho. Acrescente-se ainda que o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) é no sentido de que obrigação alimentar devida em favor de cônjuge há de estar vinculada a uma limitação temporal, ressalvadas situações absolutamente excepcionais como a de incapacidade física para o trabalho. Contudo não se olvide que tal posicionamento está atrelado à tese de que o alimentando não pode aproveitar-se da obrigação do alimentante e quedar-se inerte caso tenha capacidade laboral3. O ponto que pode se mostrar preponderante para a discussão aqui firmada está exatamente em se aferir em que medida o fato de ter abdicado de sua vida profissional para dedicar-se ao cuidado da família e do lar conjugal se mostra relevante para a determinação da "incapacidade de inserção no mercado de trabalho", aferição de elevada complexidade que contrapõe o dever de alimentar à vedação do abuso desse direito por seu beneficiário. O divórcio tardio é uma realidade e fruto de conquistas civilizatórias que não mais exigem a manutenção de um casamento para resguardar critérios morais e religiosos que restringiam a autonomia das pessoas, todavia não é possível se ignorar que muitas vezes essa dissolução do matrimônio poderá atingir de forma mais severa as mulheres que podem se ver imersas em uma nova realidade desprovida de meios mínimos para sua mantença, especialmente ao se considerar que muitas dessas mulheres não reúnem as condições necessárias para perceberem benefícios previdenciários que possam garantir a sua subsistência. Com isso é preponderante que direcionemos nossas atenções também para as consequências dos divórcios tardios a fim de viabilizar que as mulheres que venham a sofrer impactos econômicos, que coloquem em risco a sua mantença, tenham meios de efetivamente poder dar sequência em suas vidas sem que sejam relegadas a uma condição de precariedade que faça com que a liberdade de romper com o relacionamento não seja real em razão de obstáculos de fundo econômico que inviabilizariam o exercício de sua liberdade de buscar a felicidade. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 15.04.2023 2 I-Fen Lin; Susan L Brown. The Economic Consequences of Gray Divorce for Women and Men, Innovation in Aging. V. 6, n. suplem. 2022, p. 295. 3 Disponível aqui. Acesso em 17 abr.2023
A concepção de família em nossa sociedade passa inquestionavelmente pela figura dos pactos realizados por pessoas com o objetivo de estabelecimento de uma comunhão de vidas, sendo o seu instrumento mais elementar a figura do casamento, ladeada da união estável. Tradicionalmente o casamento, com todas as suas raízes no direito canônico, foi modalidade destinada à união de um homem e uma mulher, mediante a prática de uma solenidade com o fim de formalizar aquele relacionamento. Contudo com a separação do Estado da Igreja, constitucionalmente estabelecida em 1891, vem se consolidando, ainda que de forma extremamente vagarosa, o afastamento da regência dos preceitos da religião católica do nosso ordenamento (e também das manifestações do Judiciário) no que tange à fixação do conceito de família e, ato contínuo, dos direitos a ela inerentes. Evidente que ainda nos deparamos com a arrogância do universo jurídico de se colocar como o senhor da sociedade e fixador de parâmetros, negando o reconhecimento de direitos a famílias que ele não considera como tal, ainda que na prática sejam efetivamente assim reconhecidas1. Famílias paralelas, simultâneas, poliafetivas, trisais, entre outras, são famílias ainda que o Judiciário venha negando o reconhecimento lastreando seu entendimento na perspectiva de que a monogamia seria princípio adotado por nosso ordenamento, ignorando que tal parâmetro é oriundo de uma interpretação religiosa bastante enviesada e que não poderia nortear a legislação de um Estado laico2. Em que pese toda a batalha conservadora para apartar certas uniões da proteção legal hoje temos consolidado o entendimento de que tanto o casamento quanto a união estável podem ser firmados sem que haja a diversidade de sexos anteriormente exigida. Tal assertiva se faz possível não por ter o Poder Legislativo cumprido o seu papel e adequado a legislação à realidade da nossa sociedade, mas em decorrência da atuação do Poder Judiciário, mormente ante ao julgamento da ADI 4275, mais uma vez estampando de maneira inconteste a absurda leniência legislativa quando o tema está em alguma medida conectado com questões relacionadas com a sexualidade3. De início é interessante notar que outrora quando se tratava do casamento entre pessoas do mesmo sexo Pontes de Miranda chegou a asseverar que tal modalidade de união havia de ser considerada inexistente, mesmo sem qualquer vedação expressa no texto legal, pois essa seria desnecessária a partir da compreensão de que se tratava de uma previsão natural4. O fato é que a realidade social se impôs e após muita luta houve o reconhecimento das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, seguida pela possibilidade de casamento ou de conversão de união estável em casamento, o que acabou se consolidando com a Resolução 175/13 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Com o objetivo de tentar mitigar um pouco o preconceito que sempre permeou os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo em nosso país, em um louvável esforço de Maria Berenice Dias, se difundiu a expressão casamento ou união estável homoafetiva, tendo a condição do afeto homossexual como base da construção do termo. Mesmo compreendendo a intenção e os motivos que conduziram à escolha da expressão "homoafetivo" já de longa data tenho me colocado contrário ao termo por entender que além de não apresentar a construção técnica mais acurada ainda pode dar azo a um aprofundamento de certos preconceitos que circundam as vivências das chamadas minorias sexuais. A expressão homoafetivo se constrói ante a conjugação do prefixo "homo", que significa mesmo ou igual, agregado com "afetivo", relacionado a afeto, carinho, sentimento de afeição, o que conduziria ao entendimento de que se trataria de uma união entre pessoas que demonstram o mesmo afeto. E aqui surge o primeiro ponto de dissonância pois ao buscar indicar uma condição de afeição ou relacionamento homossexual está valendo-se de uma palavra que não atende perfeitamente ao que pretende revelar, especialmente ao se partir do pressuposto que em todo relacionamento, ao menos em teoria, as pessoas compartilham do mesmo afeto. A tal ideia há de se agregar que na origem a perspectiva já se mostrava lastreada no equívoco de pressupor que todo relacionamento entre pessoas de sexo distinto seria heterossexual e os de pessoas com o mesmo sexo estaria fundado na homossexualidade. Como fizemos questão de deixar patente no texto inaugural dessa coluna sexo é aspecto da sexualidade distinto da orientação sexual, ao que há de se acrescentar que nesse sentido não se pode pensar em uma perspectiva meramente binária de heterossexualidade e homossexualidade, havendo ainda as figuras da orientação bissexual, assexual e pansexual. Em seguida é pertinente se ponderar que o parâmetro utilizado para a vedação desses casamentos, ao menos tecnicamente, estava fundado na inexistência da diversidade de sexos e não na orientação sexual dos nubentes. É imprescindível para a boa técnica jurídica e uma análise escorreita das situações que envolvem as chamadas minorias sexuais que não se confunda o que são sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Considerando os critérios tradicionais fixados para a possibilidade do casamento vinculados à diversidade sexual dos nubentes nota-se que o aspecto que era aferido pelos Cartórios no processo de habilitação para o casamento estava atrelado à informação que constava no campo destinado ao sexo na certidão de nascimento daquele que intentava casar-se, sem que se fizesse qualquer questionamento acerca da orientação sexual dos nubentes. Evidente que a expressão de gênero das pessoas poderia gerar algum tipo de estranhamento quando fugisse do usual, contudo o aspecto formal analisado estava conectado com a informação oficial constante do assento de nascimento. A impropriedade de se nomear tal casamento ou união estável de homoafetivo ou homossexual se verifica pela simples assertiva de que não há o costume de nomear o casamento entre pessoas de sexo distintos de casamento heteroafetivo ou heterossexual. Evidente que poder-se-ia refutar essa afirmação com a alegação de que tal modalidade de casamento ou união estável são/eram nominados simplesmente de casamento ou união estável por se tratarem da modalidade "normal" prevista pelo nosso sistema cis-heteronormativo, contudo entendo que é importante que passemos a compreender melhor a concepção que envolve a questão posta, sobretudo ao se considerar que a inclusão de uma qualificação a esse casamento acaba por reforçar um estigma que historicamente acompanha os grupos minoritários sob a perspectiva sexual. Acrescente-se ainda que um relacionamento não ganha uma nova designação no caso de a orientação sexual de seus integrantes se alterar na sua constância por não mais se reconhecerem como heterossexuais. Não se vê a prática de se passar a nomear um casamento ou união estável de assexual (caso os cônjuges ou companheiros deixem de demonstrar interesse no estabelecimento de relações sexuais na constância desse enlace) ou pansexual (pelo fato de os integrantes desse relacionamento passarem a entender que a questão de gênero em si é irrelevante) pela superveniência da compreensão de que a orientação sexual de alguém é distinta daquela percebida no passado. À guisa de provocação acadêmica, haverá a alteração da nomenclatura dada ao relacionamento no caso em que uma pessoa transgênero realiza seu processo de transição na constância de um casamento ou união estável, o que faria com que eventualmente o gênero de pertencimento de ambos os cônjuges ou companheiros passasse a ser o mesmo? Não se tem ciência (ao menos eu não tenho) de casamento que não tenha obtido a habilitação pelo fato de que um dos cônjuges fosse assexual ou pansexual, exatamente por não se levantar tal sorte de questionamento. Nem mesmo nos textos mais conservadores se encontra qualquer menção de que um dos requisitos para a habilitação do casamento seria a necessidade de indicação da orientação sexual dos nubentes. Caso a indicação da orientação sexual fosse exigida para o processo de habilitação podemos imaginar a quantidade de afirmações inverídicas que seriam apresentadas ao cartório nas inúmeras situações em que as famílias tradicionais impunham a seus filhos a realização de casamentos "heterossexuais" para afastar questionamentos sociais quanto a sexualidade "duvidosa" de seus integrantes. Ainda nessa seara do ordinariamente esperado em sede de casamento uma situação que tinha o potencial de gerar um enorme impacto nas bases conservadoras se dava quanto a manifestação de gênero da pessoa que pretendia se casar não se coadunava com o dela esperado em decorrência do sexo que lhe fora atribuído quando do nascimento. Segundo o parâmetro formalmente estabelecido e em manifesta afronta aos preceitos conservadores que pregavam pela prevalência da concepção tradicional, não havia impeditivo, de início, para que duas pessoas transgênero viessem a se casar caso não tivesse havido qualquer alteração em seus documentos, mesmo que já realizado o processo físico de transição5. Estaríamos diante de duas pessoas transgênero heterossexuais se casando, o que não ofenderia nem o imperativo da diversidade de sexo tampouco o do relacionamento heterossexual. Preponderante se ter em mente que o que sempre afrontou os conservadores foi a expressão pública de carinho e afeto entre pessoas que performavam socialmente o mesmo gênero, mormente ao se considerar que as relações sexuais por essas pessoas eram praticadas sob o manto da intimidade do lar. Havia e há uma certa "tolerância social" da ala mais conservadora da sociedade com relação a tais relacionamentos se eles não forem expostos e ficarem restritos ao âmbito doméstico, em uma manifesta ofensa que tenta impor a muitas pessoas que se relacionam com alguém do mesmo sexo ou gênero a obscuridade e a marginalização. Dessa forma fica patente que ao se utilizar de expressões como casamento ou união estável homoafetiva ou homossexual se está a laborar com uma expressão atécnica e que coloca em risco a perfeita compreensão do que se está a tratar, sendo premente que passemos a entender que a fase inicial de tentativa de afastar o estigma da utilização de certas expressões já está no passado, impondo-se que a concepção técnica venha a se sobrepor. A afirmação de que se trata de um relacionamento homoafetivo ou homossexual desvia-se da técnica e também reduz indevidamente a complexidade da sexualidade que permeia as pessoas e suas relações. Assim, não é adequado afirmar que se trata de um relacionamento homossexual ou homoafetivo pois (i) o que se aferia originalmente para a viabilidade do casamento era o sexo, (ii) não se perquirindo sobre a orientação sexual de quem buscava se casar, e (iii) a tida afronta social que se visava impedir estava, na prática, muito mais associada ao gênero expressado pelos nubentes do que com o direcionamento da conduta afetivo/sexual daquelas pessoas. Com isso fica patente que falar de união entre pessoas do mesmo sexo ou gênero não tem necessariamente o mesmo significado de se falar em união homoafetiva ou homossexual. Ao mesmo tempo a utilização nos dias atuais de casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo já não se enquadra nos limites do que se busca estudar, especialmente por se entender, como já indicamos em textos anteriores dessa coluna, que dificilmente as pessoas na sua vida social tem real conhecimento acerca do sexo (aspectos físicos genitais ou cromossômicos, por exemplo) das outras, tendo somente acesso ao gênero por elas expressado. De sorte que, ao fim e ao cabo, o que se vê socialmente é o preconceito e segregação com relação a pessoas do mesmo gênero que relacionam-se entre si. Deixando bastante patente que havendo a prevalência dos preceitos e garantias fundamentais às minorias sexuais, com a garantia de que tais pessoas possam exercer seus afetos de forma plena e com o devido resguardo da lei, a discussão quanto a nomenclatura tecnicamente mais perfeita se torna um elemento de menor relevância, contudo a nós compete a atuação no sentido de prover o implemento das perspectivas técnicas pertinentes visando a escorreita aplicação dos termos apropriados. Assim, considerando o afastamento da vedação ao casamento ou união estável em razão da falta diversidade sexual e a inexistência de sua vinculação com a orientação sexual dos nubentes, atualmente nos parece ser mais coerente que passemos a apreciar os temas conexos que fogem à perspectiva cis-heteronormativa dos relacionamentos amorosos sob o prisma do gênero performada pelos integrantes daquela união, e não por seu sexo ou orientação sexual. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, p. III - VII, 2022. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 7. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 202.
A sexualidade com seus elementos componentes (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero), como ponderado em nossa coluna inaugural, é parâmetro relevante e indissociável da sociedade, o que impõe a todo aquele que se propõe ao estudo do direito o dever de, necessariamente, compreender o nosso ordenamento considerando uma grande variedade aspectos para que sua atuação possa ser tida como minimamente adequada. Essa compreensão torna imperioso que a lente de gênero seja parâmetro primordial para uma exegese de excelência e digna de atenção. A perspectiva do masculino é uma constante em nossa legislação, sendo ela compreendida como a norma (ou seria o normal?) para a fixação de parâmetros, limites, direitos, obrigações, prerrogativas, diretrizes ou qualquer sorte de previsão com o objetivo de reger a vida das pessoas. Trata-se de um traço característico de fundo histórico, com reflexos institucionais e arraigado na estrutura do sistema e que pode ser facilmente constatado, bastando seponderar que em um país onde mulheres representam mais de metade da população a sua presença no Congresso Nacional não chega a 18% dos parlamentares1, montante inferior à média mundial de 26,5%, conforme levantamento divulgado no início do mês de março de 2023 pela União Inter-Parlamentar (UIP)2. A falta de representatividade impacta em diversos aspectos do cotidiano feminino, contudo no parlamento tal realidade tem um potencial ainda mais preocupante pois a quase ausência da voz feminina na elaboração das leis tem o condão de conduzir suas pautas à invisibilização ou a um encaminhamento regido pelas perspectivas masculinas, o que ao longo dos tempos tem se mostrado amplamente ineficiente e perigoso para os anseios e necessidades das mulheres. Essa carência de representatividade política permeia todo o nosso ordenamento, incluindo a Constituição Federal de 1988, a qual foi elaborada por uma Assembleia Constituinte composta de 559 congressistas em que apenas 26 eram mulheres, o que representa menos de 5% do total das pessoas que estabeleceram os parâmetros mais nucleares do nosso Estado Democrático de Direito. Tal fato é crucial para a compreensão de que mesmo a Carta Magna com todo o seu ideal humanista apresenta uma construção na qual o feminino pouco se fez presente, tornando imperativo que sua interpretação considere tal viés. Inegavelmente a perspectiva de gênero acaba encontrando no âmbito do Direito de Família uma zona profícua de discussão, sendo que a Constituição Federal reserva um momento para tratar do tema, asseverando, no art. 226, que a "família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Dentre os vários parágrafos que compõem o referido artigo o presente texto se propõe a tratar de um dos desdobramentos do que se encontra consignado no § 7º, que versa sobre a figura do planejamento familiar. A Constituição Cidadã afirma que, baseado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é "livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". Em 1996 a ei 9.263 regulamentou o § 7º do art. 226 da Constituição Federal e, logo em seu art. 2º, visando a perfeita compreensão do tema, define o planejamento familiar como "o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal". Importante se destacar que a regulamentação de pronto nos brinda com uma evolução em relação ao texto constitucional por prever o aspecto da autonomia pessoal, além de trazer a mulher como o primeiro dos atores relevantes para a compreensão do tema, fato dotado de grande simbolismo. De todo o corpo da referida lei o ponto que nos move para o presente texto está consignado no art. 10 que se destina a tratar da esterilização voluntária, indicando hipóteses específicas em que esta seria possível. A redação do texto legal é bastante clara no sentido de estabelecer o entendimento de que a prática de esterilização voluntária é, de regra, vedada mas, excepcionalmente, permitida quando atendidos os parâmetros fixados na lei. Ante a tal posicionamento restritivo não podemos nos furtar de suscitar a discussão acerca da validade da ingerência do Poder Público de forma paternalista mitigando a autonomia da pessoa sobre o seu próprio corpo, o que também afronta o princípio de intervenção mínima do Estado no Direito de Família3. Feitas essas ponderações nos cabe a apreciação do fato de que a referida lei veio a passar por ajustes em setembro de 2022 com a Lei 14.443 que altera a Lei do Planejamento Familiar e revoga o conteúdo do § 5º do art. 10 e que, com a previsão de vacatio legis de 180 dias (art. 4º), passou à vigência no início de março de 2023. Segundo uma apreciação bastante célere pode-se afirmar que as mudanças trazidas estão atreladas a 4 pontos distintos: a. prazo para a disponibilização dos métodos e técnicas de contracepção; b. quem está autorizado a submeter-se à esterilização voluntária; c. momento da realização da esterilização voluntária; e, d. fim da necessidade de anuência em caso de pessoas casadas. Com isso passaremos à apreciação de cada um dos pontos de forma individualizada. Prazo para a disponibilização dos métodos e técnicas de contracepção O primeiro ponto de mudança introduzido na Lei do Planejamento Familiar pela lei 14.443/22, através da inclusão de um § 2º ao art. 9º, versa sobre a fixação de prazo máximo de 30 (trinta) dias para a disponibilização de "todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção". Tal novidade impõe ao Poder Público um prazo para a efetivação da oferta do preconizado na lei, buscando ao menos mitigar o risco de que o Estado protele por tempo indeterminado o cumprimento de suas obrigações estabelecidas expressamente na Lei do Planejamento Familiar quanto a oferta de métodos e técnicas de concepção e contracepção. A previsão de um prazo para disponibilização de todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção permite que os cidadãos possam, portanto, demonstrar a mora do Estado em cumprir com seus deveres e, com isso, exigir a determinação de sanções para esse inadimplemento, que, em nosso entender, pode até mesmo culminar com a imposição de astreintes ou autorizar o acesso aos métodos e técnicas de concepção e contracepção com a posterior possibilidade de ressarcimento, nos mesmos termos que defendemos ao tratar da ineficiência do Poder Público em garantir o atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de pessoas trans para a realização do processo transgenitalizador4. Importante, portanto, que a previsão temporal tenha sido inserida no texto legal, fato que também confere ao cidadão a perspectiva de alguma previsibilidade acerca da efetivação da oferta dos métodos e técnicas de concepção e contracepção por ele solicitadas nos termos dispostos no caput do art. 9º. Quem está autorizado a submeter-se à esterilização voluntária O art. 10 da Lei do Planejamento Familiar, com a redação dada pela lei 14.443/22, mantém a regra de vedação, a priori, da realização de esterilização voluntária, contudo alterou os critérios em que tal prática será permitida. Ante a apreciação do disposto nos dois incisos do art. 10 da lei, é possível a realização de esterilização voluntária em 3 hipóteses distintas: a. Pessoas maiores de 21 (vinte e um) anos com capacidade civil plena; b. Pessoas com capacidade plena que tenham mais de 2 (dois) filhos vivos; c. Risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos Ainda que as duas últimas hipóteses não tenham sido atingidas com o novo texto legal, a primeira apresenta uma mudança relevante comparada com a originalmente estabelecida. A previsão revogada trazia 25 (vinte e cinco) anos como idade mínima para a realização da esterilização voluntária, o que representa uma significativa alteração com o poder de conferir e respeitar a autonomia de quem tem o interesse em realizar as intervenções dessa natureza. Contudo, como se dá em outras circunstâncias, é extremamente questionável o estabelecimento de 21 (vinte e um) anos como idade mínima para a realização de tais procedimentos, mormente se considerando que a maioridade civil no Brasil é de 18 (dezoito) anos desde o início da vigência do atual Código Civil, ou seja, tem mais de 20 (vinte) anos que a maioridade não mais se atinge aos 21 anos. No entanto nos parece ainda estar incutido em algumas searas esse parâmetro etário já superado, fazendo com que ele venha a ser replicado indevidamente, cerceando direitos personalíssimos de pessoas plenamente capazes, sem qualquer indicação expressa de motivação para tanto5. De se notar que o próprio voto da relatora ao projeto de lei 7.364/14 que deu origem à lei 14.443/22, apresentado em março de 2022, nos conduz a essa conclusão. São frequentemente manifestadas também as dificuldades de pessoas maiores de 21 anos que já têm três filhos. Há grande desejo de que esta situação passe a ser contemplada para possibilitar a esterilização nos termos da lei. Na verdade, observam-se inúmeras gestações precoces e jovens, antes de atingir a maioridade civil, com já três filhos vivos. Não há qualquer respaldo técnico a fundamentar que pessoas capazes que já tenham atingido a maioridade civil não possam exercer antes dos 21 (vinte e um) anos o direito de exercício pleno das diretrizes do seu planejamento familiar. Nos parece ser um equívoco similar ao encontrado anteriormente nas regras do Conselho Federal de Medicina (CFM) para a realização do processo transexualizador por pessoas transgênero e que ainda resiste na Portaria 2.803/13 do Ministério da Saúde6. Evidentemente a redução da idade mínima é um avanço para o pleno implemento dos preceitos constitucionalmente previstos no que concerne ao planejamento familiar, contudo não se pode ignorar que a previsão vinculada aos 21 (vinte e um) anos se mostra ofensiva ao disposto no Código Civil no que concerne à maioridade e à possibilidade de exercício pleno dos direitos civis. Momento da realização da esterilização voluntária Outra alteração introduzida pela lei 14.443/22 está centrada no momento em que pode ser realizada a esterilização voluntária pela mulher. No texto original da Lei do Planejamento Familiar estava consignado no § 2º do art. 10 a vedação para a realização de "esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores". A nova redação dada a esse parágrafo estabelece uma diretriz diametralmente oposta ao que estava previsto anteriormente, já que agora há a menção expressa da possibilidade da "esterilização cirúrgica em mulher durante o período de parto" desde que "observados o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o parto e as devidas condições médicas". Consigne-se que o novo texto não traz qualquer ponderação quanto a restrição da realização de procedimento de esterilização cirúrgica associada ao aborto, viabilizando sua realização concomitante com as intervenções abortivas realizadas nas situações legalmente autorizadas. Tal mudança é relevante pois valoriza a autonomia da mulher que passa a ter a prerrogativa de decidir o momento mais adequado para realizar a esterilização, conferindo-lhe em mais essa instância o protagonismo na condução de sua vida. Fim da necessidade de anuência em caso de pessoa casada Um dos pontos mais controversos (para não usar expressões mais duras) do texto original da Lei 9.263/96 era o § 5º do art. 10 que determinava que "Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges". Inicialmente uma apreciação menos acurada poderia ignorar a existência de problemas no presente dispositivo, asseverando que seria até mesmo bastante igualitário e adequado já que conferia a prerrogativa da anuência a ambos os cônjuges. Contudo tal visão se mostra deveras míope e apartada da experiência vivenciada por uma parcela considerável da população brasileira. Vislumbrando a construção majoritariamente heterossexual dos relacionamentos no Brasil, e tendo por base a construção cultural dos papéis de gênero desempenhados nessas estruturas em que compete à mulher o dever de responsabilizar-se pelo controle da natalidade familiar, já que se ela não utilizar-se de métodos contraceptivos dificilmente o seu cônjuge o fará, é inafastável a conclusão de que o efetivo implemento de qualquer método contraceptivo no cerne de um casamento ou união estável está a cargo da mulher que poderá gestar o filho daquele casal7. Em que pese a prevalência da guarda compartilhada em sede de término de casamentos ou uniões estáveis com relação aos cuidados diretos dos filhos é ainda majoritária, na prática, a imposição às mães (quase que em sua totalidade) dos deveres de cuidado da prole, haja vista que a paternidade responsável não é uma característica presente na maioria dos homens. O fato é que ao estabelecer a necessidade de consentimento expresso para a esterilização o texto legal estava, ao fim e ao cabo, impondo à mulher a necessidade de que o seu cônjuge permitisse que ela não tivesse mais filhos, ainda que o texto legal não fizesse a distinção de gênero. Mas a realidade de nossa sociedade machista o fazia. Mesmo que o Código Civil defina a presunção da paternidade dos filhos nascidos na constância do casamento (art. 1.597), bem como que o dever de cuidado com os filhos seja incumbência (art. 1.631) de ambos os pais é patente que nem sempre os homens estão presentes na criação dos filhos, muitas vezes sequer cumprindo com seus deveres econômicos para a mantença dessas crianças. Nada incomum o marido que não permitia na constância do casamento que a mulher realizasse a esterilização viesse a abandoná-la com os filhos, não cumprindo com o pagamento do dever de prestação de alimentos e impondo a ela todas as responsabilidades com relação aos filhos comuns. Muitas vezes os motivos que levavam os homens a não concordar com a realização de procedimentos de esterilização estavam fundados em preconceitos ou preceitos religiosos que acabavam por aprisionar as mulheres em uma condição de reprodutoras, retirando-lhes a plenitude do exercício de seus direitos fundamentais. O texto original da Lei do Planejamento Familiar deu azo a interpretações totalmente enviesadas e equivocadas, chegando ao absurdo da existência de inúmeros casos em que a anuência do cônjuge vinha sendo exigida por planos de saúde para que mulheres pudessem se valer de métodos contraceptivos distintos da esterilização, como o implante de dispositivo intra-uterino (DIU)8. Quando o texto legal se refere a esterilização está a tratar de intervenções de natureza permanente (ainda que algumas sejam passíveis de reversão), jamais abordando métodos contraceptivos ordinários que podem ter sua eficácia afastada ou venham a ser interrompidos a qualquer tempo. O posicionamento adotado era similar a exigir que houvesse concordância do marido para que a mulher tomasse pílulas anticoncepcionais, o que se mostra absolutamente fora da razão que sustentava o dispositivo. O tema ganhou tamanha dimensão que foi objeto de apreciação na IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal com o Enunciado 646 (Art. 13: A exigência de autorização de cônjuges ou companheiros, para utilização de métodos contraceptivos invasivos, viola o direito à disposição do próprio corpo), claramente conferindo prevalência aos direitos da personalidade perante um eventual conflito com o direito a um planejamento familiar oriundo do casamento ou da união estável. Como bem assevera a justificativa que embasou a apresentação do enunciado é premente se "afastar qualquer interpretação jurídica no sentido de que o homem controla o corpo de sua esposa", bem como que "as relações familiares não impedem a disposição dos direitos da personalidade pelos cônjuges, tendo em vista seu caráter personalíssimo, ou seja, mesmo em uma relação afetiva como o casamento, o corpo da mulher não deixa de ser um atributo personalíssimo seu, oponível contra todos, inclusive seu marido." Note-se que, mesmo com toda a emancipação feminina, tal discussão se fazia presente em território nacional graças ao texto da Lei do Planejamento Familiar que até o início do ano de 2023 estabelecia que no ordenamento jurídico pátrio havia respaldo a um entendimento medieval de que o corpo da mulher ainda pertencia ao seu marido. Felizmente o texto da lei 14.443, em setembro de 2022, depois de quase dez anos da apresentação do Projeto de Lei 7.364/14, finalmente libertou as mulheres do jugo masculino e garantiu a elas efetivamente o direito ao próprio corpo e a possibilidade de decidir quanto a realização de sua esterilização voluntária, independentemente da concordância de quem quer que seja face a revogação do malfadado § 5º da Lei do Planejamento Familiar. Importante não se olvidar considerações consignadas na justificação apresentada quando da apresentação do projeto de lei: ... tal exigência legal deixa a margem o direito individual do ser humano, da autonomia sobre seu próprio corpo, pois ao fazer outro tipo de cirurgia, reparadora ou não, nada é exigido além da autorização do próprio interessado, igualmente, permanecendo submissas à dominação masculina ou à condição de dependente. Apesar de todas as normas juridicamente positivadas para igualar homens e mulheres e ao mesmo tempo tratar de maneira individual, como seres humanos donos de suas próprias vontades, as mulheres não são totalmente livres e independentes para tomar determinadas decisões. No caso da esterilização, as mulheres continuam atreladas a algum tipo de licença ou anuência do cônjuge, ou outro parente autorizado. Com todos os elementos aqui colacionados é de se questionar se tal previsão teria tido tamanha longevidade se a representação feminina fosse mais ampla em nosso Congresso, se os acessos fossem franqueados (efetivamente) de forma igualitária e se o machismo não estivesse tão arraigado ainda na nossa sociedade. A imposição do consentimento para a realização da esterilização voluntária se insere entre aquelas determinações em que a leitura da letra da lei, sem a compreensão da realidade social à qual ela se aplica, é capaz de conduzir a uma percepção absolutamente equivocada de que a legislação é includente e trata de forma igualitária homens e mulheres. Relevante se ponderar que a alteração do texto legal é reflexo da compreensão de que a lei não é um conjunto de diretrizes aplicável em um mundo ideal e utópico, sendo preponderante para que as discussões jurídicas sejam travadas de forma efetiva a compreensão adequada do meio em que ela se insere, sem que se tente impor como parâmetro de discussão uma igualdade formal que está totalmente dissociada da igualdade material. Ainda estamos muito distantes de uma efetiva igualdade de gênero em nossa sociedade, mas é imperioso que as conquistas sejam noticiadas, divulgadas e devidamente apresentadas a fim de que possam servir como estímulo para que a busca de um país que atenda efetivamente à igualdade preconizada na Constituição Federal seja atingida e que as mulheres possam ser donas do seu próprio corpo, protagonistas de sua história e regentes de seus anseios. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 13 mar.2023. 2 Disponível aqui. Acesso em 13 mar.2023. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 207. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 276. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 318. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 272. 7 Não se ignora aqui a possibilidade de que homens transgênero possam vir a gestar seus filhos na relação conjugal estabelecida, contudo estamos trazendo o contexto mais genérico do tema. 5 Disponível aqui. Acesso em 13 mar.2023.
Desde o planejamento, passando pela gestação e culminando com o nascimento, todo o processo de espera por um filho é extremamente idealizado por todos aqueles que fazem parte da família ou ciclo social. Uma considerável parcela dessa projeção quanto a prole associa-se a algumas tradições, e uma das mais antigas está atrelada ao descobrimento do sexo do bebê, informação refletida em diversas cerimônias familiares, e que possui, até mesmo, a característica de ser marco para decisões em nível subjetivo (muitas delas silenciosamente impostas pela sociedade), como a escolha do nome, cores do enxoval e decoração do quarto. A partir desta informação constatada, de regra, por meio de exames de imagem que aferem a presença ou não de uma estrutura peniana e de bolsa escrotal no feto, se "define" se aquele sujeito é menino ou menina, conduzindo os pais a iniciar a construção de uma relação com aquela criança que está para nascer lastreada em aspectos vinculados a padrões relativos à sexualidade. Nesse sentido, é possível observar que, a depender do sexo verificado naquele momento, todo o curso da vida daquele sujeito ganha dimensões distintas, indicando como aspectos vinculados à sexualidade marcam a vivência humana de forma inafastável, com desdobramentos que precedem até mesmo o nascimento. Em sociedades onde o binarismo de gênero e a heteronorma imperam o sexo identificado no momento do nascimento (assim como a cor de pele e outras características) implica em maiores ou menores oportunidades e acessos vinculados ao emprego, estudo, relacionamentos interpessoais entre outros, com manifestos reflexos em direitos ou deveres específicos. Contudo diversamente do que impera no inconsciente coletivo da grande maioria da população o sexo no ser humano não está adstrito à binaridade do homem/macho e da mulher/fêmea. A composição do desenvolvimento do corpo humano envolve diversos fatores, dentre estes, variações em determinados elementos biológicos que podem gerar um quadro divergente do que o consenso social espera quanto à formação da anatomia reprodutiva e sexual, constituindo, assim, o fenômeno orgânico da intersexualidade humana. Assim, fora dos parâmetros da binaridade posta há a figura do intersexo, condição sexual que "surge como uma condição genética, física ou anatômica do sujeito, que apresenta um fenótipo que não permite a clara definição entre a conceituação binária homem/mulher, seja por apresentar estrutura genital que não autoriza a sua alocação em um dos grupos, ou em face de presença de aspectos de genitália condizentes com os dois conceitos"1, algo que atinge quase 2% da população mundial, como trazido na primeira coluna aqui publicada. Como relatado por Aníbal Guimarães trata-se de "uma situação em que não há acordo entre os vários sexos do indivíduo, ou seja, o sexo genético - constituição cariotípica 46, XX ou 46, XY -, o sexo gonadal/hormonal, e o sexo fenotípico"2. Importante se compreender que a construção do conceito de pessoa intersexo perpassa por vários critérios, que superam uma mera aferição física, tangenciando questões culturais envolvendo crenças e mitos, como se pode verificar até mesmo pela simples construção etimológica dos termos utilizados para a sua designação3, o que torna patente não ser possível a compreensão do fenômeno como um todo sem uma análise sólida e abalizada. Por vivermos em uma sociedade onde prevalece o binarismo sexual, por muito, a racionalidade clínica desenvolveu a gestão das propriedades sexuais partindo de um preceito consolidado pela hegemonia do conhecimento médico4, chegando mesmo a impor a realização de intervenções objetivando "normalizar" tais corpos, desconsiderando outros aspectos extremamente relevantes que vão além da adequação estética da genitália ao padrão posto. A condição do intersexo normalmente é designada na literatura médico-científica com as terminologias Distúrbios do Desenvolvimento Sexual (DDS) ou Anomalias do Desenvolvimento Sexual (ADS), as quais acabam por sugerir a existência da intersexualidade enquanto patologia, induzindo à imediata atuação visando a adequação daquele corpo aos padrões da binaridade sem uma análise mais acurada da questão como um todo. Terminologias como "DDS/ADS" ou "hermafroditismo", como ficou popularmente conhecido o fenômeno da intersexualidade humana ao longo do tempo, buscaram fazer referência ao conjunto de casos congênitos nos quais existe um desenvolvimento atípico da anatomia sexual ou dos cromossomos/gônadas, não sendo necessária a presença de genitália ambígua como a crença consolidada assume. A equivocada percepção de que tudo o que fuja dos padrões do binarismo constitui uma "anormalidade" e o paternalismo médico conduzem a condenação moral que identifica estes sujeitos como doentes, estigmatizando-os e criando a errônea concepção de que este grupo social só atingirá uma vida saudável e plena após a realização de protocolos cirúrgicos voltados à adequação direcionada a um único gênero, muitas vezes até mesmo em detrimento da saúde plena daquela pessoa, infligindo danos que extrapolam a mera esfera física, com o real potencial de colocar em risco qualquer projeto de vida daquele indivíduo. Inconcebível que se possa considerar qualquer intervenção cirúrgica de tal jaez, especialmente quando realizada em um neonato, sem que se sopese os danos e benefícios5. Entretanto, contrariando todos os parâmetros mais nucleares e basilares de preservação da dignidade da pessoa humana e proteção da criança e do adolescente, é recorrente que a apreciação do tema se fundamente em concepções deturpadas, equivocadas, anacrônicas e que desconsideram a melhor doutrina e as melhores práticas consolidadas pelo atual estado da arte. As diretrizes para a realização de intervenções cirúrgicas de adequação fenotípica em pacientes portadores de Anomalias de Diferenciação Sexual, terminologia ainda utilizada e fortemente combatida por ativistas intersexo, estão regulamentadas na resolução 1.664 do Conselho Federal de Medicina, regramento deontológico que concebe tais tratamentos como sendo uma urgência social e biológica, podendo gerar, em certos casos, riscos de vida e transtornos em longo prazo6. Mas uma breve aferição das motivações apresentadas na prática indica que o procedimento de designação sexual em neonatos intersexo muitas vezes deriva de fatores socioculturais, com a prevalência de uma imposição dos médicos ou o mero desejo dos responsáveis, desconsiderando a participação da criança, mesmo que não exista uma evidência de que este tratamento representa um real benefício para aquela pessoa. Além de não haver uma efetiva apreciação da necessidade da intervenção naquele exato momento é preocupante se constatar que a imposição de cirurgia com o fim de adequação da genitália aos padrões da binaridade desconsidera a vulnerabilidade dessa criança que se mostra impossibilitada de exercer por si só a tomada de decisão. A ausência da autonomia da pessoa para a prática de atos que envolva o seu próprio corpo, ainda que se trate de um neonato, é conduta que não deve ser fomentada, mormente quando relacionada a tema tão íntimo como os atinentes a elementos da sexualidade, vez que seus reflexos se protrairão no tempo e terão profundo impacto na existência e qualidade de vida daquela pessoa. Face à natureza destes tratamentos, frente aos princípios constitucionais, bem como a principiologia da ética biomédica7 impõe-se a necessidade de uma ponderação que não se atenha exclusivamente aos anseios da existência de uma configuração genital esteticamente padronizada. Contudo se faz premente indicar que existem situações dentro do espectro intersexo que impõem a necessidade de que o neonato receba um atendimento médico emergencial, como nas hipóteses em que sua condição clínica pode implicar risco de vida em decorrência de uma perda salina que pode decorrer de sua intersexualidade. Afora tais situações que são efetivamente emergenciais há de prevalecer o entendimento trazido por Ana Karina Canguçu-Campinho8 de que toda e qualquer intervenção que ultrapasse a manutenção da saúde física do indivíduo não se faz plausível, não podendo o temor quanto a existência de uma condição física ambivalente dar azo a práticas que possam colocar em risco a higidez da criança, ainda mais se considerando o caráter irreversível da proposta terapêutica de realizar operações que busquem a padronização genital. Para conter essa ânsia de se padronizar a genitália da criança intersexo surgem dados científicos que revelam inexistir "evidências suficientes de que o convívio com genitália atípica leva ao sofrimento psicossocial"9, o que se mostra de ordinária compreensão enquanto estamos tratando de neonatos. O fato é que enquanto a criança não manifestar sua identidade de gênero não se deve considerar a realização de tratamentos ou intervenções cirúrgicas com o objetivo de alterar características sexuais ou modificações no corpo, exatamente como positivado em Portugal com a Lei 38/2018, em seu art. 5º. Essa mesma perspectiva fundamentou proposta de enunciado apresentada, mas recusada (aparentemente por uma falta de compreensão plena dos participantes quanto aos parâmetros da intersexualidade), na IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal ocorrida em 202210. Evidencia-se que consequências como o risco de infertilidade, dor contínua e a perda da sensação sexual decorrentes da cirurgia podem acabar gerando impactos negativos no indivíduo intersexo pelo resto de sua vida, reforçando o ideal de que a perspectiva médica deve estar efetivamente aliada ao cuidado integral11, não sendo coerente um protocolo que imponha indiscriminadamente a realização de intervenções cirúrgicas em todo neonato intersexo. Comungando desse mesmo entendimento o Comitê de Bioética do Conselho da Europa divulgou, através de um relatório produzido por docentes da Universidade de Estocolmo, um capítulo onde conclui que os protocolos de tratamento instituídos nos EUA (com um viés manifestamente mais intervencionista) não encontravam respaldo em nenhum ensaio clínico ou pesquisa científica12. Assim, o referido documento acaba por descortinar que diversos profissionais realizaram procedimentos desnecessários visando única e exclusivamente uma "relação pênis-vagina" ou uma reconstrução tendo em vista a corporeidade e o gênero atribuído. Apesar das tentativas de encontrar informações que corroborassem as intervenções ainda em tenra idade, repetidas revisões não encontraram dados que confirmassem a segurança ou benefícios concretos de tal conduta médica13. Dessa forma, é de fácil observação que as concepções sociais que envolvem o corpo, o sexo, e a identidade de gênero acabam por gerar implicações na vida das pessoas intersexo ainda mais severas do que as experimentadas por aqueles que se enquadram no parâmetro binário, assim como se dá com diversos outros integrantes da comunidade LGBTQIAPN+. O corpo, encarado enquanto figura sagrada até os dias atuais, aliado à influência do biopoder, consolidou um panorama no qual todo e qualquer sujeito que esteja fora deste regramento seja considerado desviado ou dissidente, conduzindo-o a uma condição de anormalidade com severos impactos sociais14.  Assim, este paradigma gera reflexos negativos tanto na seara médica, onde os profissionais são ensinados a perpetuar a manutenção de corpos que se enquadrem nos parâmetros do que é concebido como macho/fêmea, como na esfera jurídica, onde inexistem leis que protejam pessoas intersexo, consolidando na legislação padrões excludentes, associado à preocupante leniência legislativa15 característica desse Estado esquizofrênico16 que reconhece a vulnerabilidade das chamadas minorias sexuais e muito pouco (ou nada) faz para proteger esse grupo17.  A adequada compreensão do que seria uma hipótese de "urgência biológica e social" é indispensável para a efetiva proteção da crianças intersexo, impedindo que venham a ser submetidas a procedimentos invasivos e irreversíveis exclusivamente com o fulcro de que tenham uma genitália condizente com a norma social. O fundamento médico utilizado para a submissão aos procedimentos de redesignação sexual amparado na justificativa de que a permanência no estado intersexo poderia gerar estresse psicossocial ao infante já não se sustenta como uma preconcepção a impelir a realização de intervenções cirúrgicas, nomeadamente antes que aquela criança venha a expressar a sua identidade de gênero. Ressalta-se que o protocolo atualmente adotado não se coaduna com o adequado, pois nem mesmo o entendimento de que a cirurgia deva ter por parâmetro a condução para a prevalência dos caracteres sexuais preponderantes não é suficiente. A realização de intervenções que busquem uma conformação física que se direcione ao que aparenta ser o mais provável considerando a estrutura genital apresentada pelo neonato ignora parâmetros da sexualidade que extrapolam a mera figura do sexo, o que pode gerar implicações negativas na futura identidade de gênero daquele sujeito.  A partir de avaliações de estudos nacionais e internacionais acerca do protocolo clínico adotado observa-se a ausência de critérios científicos concretos que comprovem benefícios a partir do procedimento cirúrgico realizado em neonatos, não havendo nenhum indicativo de que a adequação sexual tenha contribuído para um desenvolvimento no âmbito da saúde do paciente ou em suas relações sociais.  A constatação inconteste é que a submissão ao protocolo atual de redesignação sexual aplicado a neonatos intersexo se mostra inadequado em diferentes esferas. No âmbito da Medicina, o protocolo não apresenta evidência científica robusta que comprove sua eficácia, indo no sentido contrário das práticas médicas atuais de excelência. Na esfera bioética, observa-se a violação de princípios elementares, como o da autonomia, beneficência e não maleficência, gerando um quadro de maior vulnerabilidade do paciente em tenra idade. Se apreciado segundo o viés jurídico, o protocolo viola não apenas direitos fundamentais, mas também direitos da personalidade e direitos da criança e do adolescente, desconsiderando preceitos essenciais como o da proteção prioritária e especial que há de se conferir a elas.  O todo aqui exposto evidencia a premência de uma alteração no protocolo atual, onde se considerem outros pontos para a garantia de uma vida saudável para o neonato intersexo e não apenas a adequação da sua configuração física aos parâmetros da binaridade. Salvo os casos onde exista perda salina e consequentemente risco de morte, o pressuposto da autonomia há de nortear a reconstrução dos protocolos cirúrgicos, respeitando o direito ao próprio corpo de todo ser humano. A parametrização adequada apenas será possível caso esteja também lastreada na alteridade, sendo impossível se ignorar que toda vivência é singular e não existe uma unicidade na compreensão do que é satisfatório para a delimitação de um certo projeto de vida, ainda mais ao se considerar a natureza da condição intersexo e as consequências de uma intervenção cirúrgica que ignore todos os aspectos relevantes à saúde plena da pessoa. Qualquer protocolo que se estabeleça e que ignore a alteridade como parâmetro a conduzir no caminho do tratamento mais humanizado e individualizado, compreendendo que adequações serão necessárias para sua aplicação no cenário real, se mostrará desconectado com os ditames mais nucleares que regem o direito médico e, portanto, inadequados ao tratamento de uma pessoa, especialmente com as vulnerabilidades inerentes a um neonato intersexo.   Um modelo deve instalar limites ético-jurídicos para o exercício das autonomias nas relações entre o médico, a família e a criança compreendendo que por não se tratar de uma questão de efetiva urgência o exercício da tomada de decisão pela família não efetiva necessariamente o melhor interesse da criança e ignora seus direitos personalíssimos. Tampouco se mostra plausível se conferir ao médico a discricionariedade da determinação quanto a realização de qualquer intervenção nesse caso que extrapole as hipóteses em que elas se mostrem indispensáveis à manutenção da vida desse neonato, vez que também estaria a apartar a pessoa do exercício de seu direito de autodeterminação. A solução mais coerente aparenta ser a previsão de um protocolo que preveja o acompanhamento da criança pela equipe multidisciplinar, avaliando a progressão da sua autonomia e se aquele sujeito se encontra passível de executar qualquer decisão que envolva sua vida, corpo e saúde, momento em que poderá decidir qual a sua solução com relação ao seu corpo. Nesta nova construção, dois outros pontos basilares devem ser observados: (i) o desenvolvimento de uma disciplina biojurídica adequada, que envolva, desde o processo de criação, sujeitos que tenham a vivência intersexo, bem como aqueles profissionais que trabalham com esta perspectiva, e; (ii) uma proposta terapêutica pautada na medicina baseada em evidências, na qual sejam aplicados critérios científicos para a tomada de decisão pelo corpo clínico.  Preponderante que o foco da questão seja efetivamente a pessoa intersexo e não as vontades, anseios ou convicções ultrapassadas mas consolidadas de médicos e do Estado que acabam por impor que crianças que acabaram de nascer tenham seus corpos mutilados apenas para que se encaixem nos parâmetros fenotípicos padronizados e impostos por uma binaridade sexual que não é natural, mas é imposta como tal. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 26-27. 2 GUIMARÃES JÚNIOR, Anibal Ribeiro. Identidade cirúrgica: o melhor interesse da criança intersexo portadora de genitália ambígua. Uma perspectiva bioética. 2014. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ. Rio de Janeiro. Orientador: Fermin Roland Schramm. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2023. 3 ALBAN, Carlos Eduardo de Oliveira. A reificação nos discursos e práticas biomédicas em intersexos: a violação de direitos e a luta pela despatologização. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito Público) - Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. São Leopoldo. Orientador: Maria Eugênia Bunchaft. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2023. 4 SOUZA, Andrea Santana Leone de; CANGUÇU-CAMPINHO, Ana Karina Figueira; DA SILVA, Monica Neves Aguiar. O protagonismo da criança intersexo diante do protocolo biomédico de designação sexual. Revista Periódicus, v. 1, n. 16, p. 130-162, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2023. 5 SANTOS, Moara de Medeiros Rocha; ARAUJO, Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de. Intersexo: o desafio da construção da identidade de gênero. Revista SBPH, v. 7, n. 1, p. 17-28, jun. 2004.   Disponível aqui. Acesso em:  20 fev. 2023. 6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n.º 1.664. Dispõe sobre as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Publicada no DOU n. 90 de 13 maio 2003, Seção 1. p. 101-2 (12 de Maio de 2003). Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2023. 7 GUIMARÃES, Anibal; BARBOZA, Heloísa Helena. Designação sexual em crianças intersexo: uma breve análise dos casos de "genitália ambígua". Cadernos de Saúde Pública. 2014, v. 30, n. 10, p. 2177-2186. Disponível aqui. Acesso em:  20 fev. 2023. 8 CANGUCU-CAMPINHO, Ana Karina. A construção dialógica da identidade em pessoas intersexuais: o x e o y da questão. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia - UFBA. Salvador. Orientador: Ana Cecília de Sousa Bastos. Disponível aqui Acesso em: 14 set. 2022. 9 ELDERS, Joycelyn et al. Re-Thinking Genital Surgeries on Intersex Infants. Palm Center, June/2017. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2023. 10 Proponente: Leandro Reinaldo da Cunha Enunciado Proposto: É vedada qualquer intervenção cirúrgica, salvo comprovado risco à saúde, visando adequação de características sexuais de crianças até que sua identidade de gênero se manifeste e que possam exercer sua autonomia. 11 CANGUCU-CAMPINHO, Ana Karina. A construção dialógica da identidade em pessoas intersexuais: o x e o y da questão. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia - UFBA. Salvador. Orientador: Ana Cecília de Sousa Bastos. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2023. 12 KNIGHT, Kyle. et al. I want to be like nature made me: medically unnecessary surgeries on intersex children in the US. Human Rights Watch, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2023. 13 KNIGHT, Kyle. et al. I want to be like nature made me: medically unnecessary surgeries on intersex children in the US. Human Rights Watch, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 14 fev. 2023. 14 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504.
Dando continuidade à apreciação dos direitos civis das pessoas trans, tendo o direito à saúde sido o objeto da coluna anterior, compete-nos agora a análise da perspectiva documental da condição dos transgêneros, especificamente no que tange à mudança nos documentos de identificação pessoal da indicação de seu nome e sexo. Inicialmente é de se consignar que originalmente a discussão do tema assentava-se em uma compreensão lastreada na concepção da imutabilidade (de regra) do prenome, bem como na crença da impossibilidade da alteração dos caracteres sexuais indicados nos documentos. Assim constata-se que a questão versa sobre duas vertentes distintas a serem apreciadas de forma específica. De um lado temos o nome, entendido como o elemento de identificação pessoal mais característico, composto pelo sobrenome e pelo prenome, o qual tem a peculiar característica de ser detentor de uma sexualidade, sendo possível se afirmar que existem prenomes masculinos, femininos e neutros1. A coletividade como um todo, portanto, espera que cada pessoa ostente um prenome que seja "compatível" com o gênero que expressa, sendo tal associação realizada automaticamente por todo aquele com quem se venha a interagir. Tal conexão se revela de forma tamanha que uma das hipóteses tradicionalmente autorizadoras da alteração do prenome residia exatamente na existência de um nome vexatório, sendo assim considerado, por exemplo, um "homem com um nome feminino" ou uma "mulher com um nome masculino". Evidente que, no seu cotidiano, as pessoas podem apresentar-se com um nome distinto daquele que lhe foi conferido quando de seu registro, assumindo um prenome que lhe pareça mais conveniente. Contudo quando a fonte volitiva do seu intento de ostentar nome distinto daquele que consta de seus documentos baseia-se em sua identidade de gênero há uma resistência social, havendo quem se negue a chamar a pessoa pelo nome que ela deseja, tal qual um "fiscal do nome alheio", em clara imposição de matiz preconceituosa. Se José afirma chamar-se João tal situação não gera qualquer impacto social (obviamente não se está aqui tratando do tema sob a perspectiva penal da falsidade ideológica ou de alguma situação conexa). Contudo se asseverar que seu nome é Maria haverá uma persecução no sentido de se "descobrir o seu verdadeiro nome", vez que tal prenome não seria adequado. Contudo se fisicamente José apresentar os caracteres externos do feminino, dotado de elevada passabilidade quanto a sua identidade de gênero, tal discussão não será entabulada, surgindo, de outra sorte, apenas caso seu "nome original" vier a ser apresentado. Nesse contexto surge o nome social, "que é aquele pelo qual a pessoa se identifica perante a coletividade, ainda que não se revele seu nome verdadeiro (constante de seus documentos de identificação)"2. Em inúmeros momentos o ordenamento pátrio já reconhece o dever ao respeito do nome social das pessoas trans, determinando que seja esse utilizado para designa-la no serviço público de saúde, nos cadastros eleitorais e na escola, entre outros. Tal conduta se impõe com o fulcro de "garantir os direitos da personalidade do sujeito quando padeça de uma dissonância quanto a sua identidade de gênero, minorando as consequências danosas do preconceito e discriminação"3. Atualmente, em razão das mudanças relativas à questão do nome que traremos a seguir, sustentamos que a discussão da utilização do nome social encontra-se mitigada exatamente em decorrência das possibilidades da alteração do prenome registrado4. Evidencia-se, assim, que face a existência de uma "sexualidade do prenome", bem como de sua automática associação com o gênero expressado pela pessoa, se mostra elementar que pessoas trans pleiteiem a alteração do seu prenome consignado em seus documentos a fim de que ali conste aquele nome social que já vem ostentando, condizente com sua identidade de gênero, atendendo a um dos parâmetros mais elementares da passabilidade. Ante ao exposto até aqui tem-se pacífico o entendimento de que a existência de um conflito quanto ao nome de alguém apenas se faz presente caso se tenha acesso aos documentos de identificação pessoal do indivíduo ou se este apresentar alguma incompatibilidade com o gênero socialmente revelado pela pessoa. Não é ordinário que alguém questione se o prenome indicado por uma pessoa é verdadeiro ou não, salvo em tais circunstâncias, o que torna absolutamente coerente que o prenome consignado nos documentos seja compatível com aquele que o indivíduo revela para aqueles com quem interage. Feita essa introdução quanto a questão no nome, cumpre-nos agora apreciar a aposição nos documentos de identificação pessoal da indicação do sexo da pessoa. De plano questionamos a necessidade de que tal informação seja consignada em tais documentos5, entendendo que, além de ser dado cujo conhecimento se mostra irrelevante para o restante da sociedade, tem o condão de expor informação situada em âmbito dos mais íntimos da existência da pessoa. Por indicar, ordinariamente, a concepção física genital da pessoa (ao menos originalmente, a constatada quando do seu nascimento), revela informação situada na esfera da privacidade, mais especificamente da intimidade da pessoa, a qual tem todo o direito de querer mantê-la dessa forma e não se ver compelida a torná-la pública a toda e qualquer pessoa a quem tenha que apresentar seus documentos. A imposição de que a informação quanto ao sexo conste dos documentos e a confusão existente entre os conceitos de sexo e gênero no Brasil (conforme indicado em nossa primeira coluna) geram a discussão quanto a alteração da informação consignada nos documentos da pessoa quando esta se reconhece como transgênero. A necessidade de transgêneros de adequarem seus prenomes e a indicação do sexo em seus documentos de identificação pessoal fizeram com que tivessem que acorrer ao Poder Judiciário a fim de efetivar tais interesses, o que deu azo ao surgimento de teses relacionadas aos critérios que haveriam de ser preenchidos para que seus pleitos fossem atendidos. Após inúmeras decisões absolutamente conflitantes proferidas pelos juízos de 1ª instância e Tribunais de Justiça, o tema começou a se consolidar em maio de 2017 com o REsp. 1.626.739, que tramitou perante a 4ª Turma Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão. De maneira extremamente didática e elucidativa, entendeu pela admissibilidade da mudança do prenome e do sexo/gênero nos documentos de identificação pessoal do transexual, mediante seu requerimento, independentemente da realização de qualquer intervenção cirúrgica prévia. Tal decisão paradigmática foi reconhecida como uma das mais importantes dos 30 anos do Tribunal e, para minha enorme satisfação e felicidade, cita por duas vezes o livro "Identidade e redesignação de gênero" de minha autoria na fundamentação. Pouco tempo depois, em 2018, o tema dos direitos dos transgêneros foi objeto de apreciação em sede de direito internacional pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), mediante a apresentação de resposta à Opinião Consultiva 24/17 formulada pela República da Costa Rica. O posicionamento adotado pela Corte foi no sentido de reconhecer a identidade de gênero como componente dos direitos humanos, passível de proteção, razão pela qual os transgêneros teriam o direito de requerer a adequação de seu nome e gênero em consonância com a sua sensação de pertencimento, mediante sua autodeclaração, sem a necessidade de que seu pleito tramitasse perante o Poder Judiciário, independentemente da realização de qualquer intervenção cirúrgica prévia ou a apresentação de laudos médicos que corroborassem sua afirmação de ser transexual. A Corte ressalta ainda que o acesso aos direitos ali reconhecidos haveria de ser viabilizado de maneira célere e sem obstáculos, como forma de garantir o efetivo respeito aos direitos elementares inerentes à pessoa trans6. Assim, o entendimento trazido na Opinião Consultiva 24/17 revela a interpretação do Pacto de São José da Costa Rica, revestindo-se de inegável importância, não podendo ser ignorada ou mesmo minimizada por nenhum dos signatários. E sua relevância é inegavelmente considerada no território pátrio, quando, pouco tempo depois, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema da possibilidade de mudança de nome e sexo nos documentos da pessoa trans ao julgar a ADI 4275, vez que inúmeros votos citaram e se utilizaram da Opinião Consultiva 24/17 em sua fundamentação. O entendimento do Supremo Tribunal Federal nesse julgamento foi no sentido de que o pleito de alteração do nome e sexo nos documentos dos transgêneros independe da realização de processo transgenitalizador prévio (conforme já se posicionara o Superior Tribunal de Justiça no REsp. 1.626.739), podendo o pedido ser formulado de forma administrativa, diretamente perante o Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante a declaração do indivíduo de incongruência entre o sexo assinalado no momento do nascimento e o gênero ao qual entende pertencer. Posteriormente o próprio Supremo Tribunal Federal validou o entendimento adotado na ADI 4.275 ao julgar o RE 670.422, em 15 de agosto de 2018, leading case que deu ensejo à Repercussão Geral 761 (Possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo), fixando a seguinte tese. "i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo a` alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá' exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;  ii) Essa alteração deve ser averbada a` margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero';  iii) Nas certidões do registro não constara' nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do pro'prio interessado ou por determinação judicial;  iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, cabera' ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedic¸a~o de mandados especi'ficos para a alterac¸a~o dos demais registros nos o'rga~os pu'blicos ou privados pertinentes, os quais devera~o preservar o sigilo sobre a origem dos atos".  Em decorrência da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou o Provimento 73, em agosto de 2018, destinado a estabelecer o procedimento a ser adotado pelos Ofícios de Registro Civil quando do requerimento de adequação de nome e gênero formulado por transgênero. Segundo o provimento o pleito há de ser formulado por maior de 18 anos que não apresente qualquer restrição para a prática dos atos da vida civil, por meio de requerimento direcionado diretamente ao ofício de Registro Civil, pedindo a adequação de seu nome e gênero à sua condição autopercebida (art 2º). Há, no texto apresentado, a possibilidade da inclusão ou exclusão de agnome (como exemplo, as expressões filho, neto), contudo traz vedação expressa à utilização de prenome já adotado por outro parente (visando impedir a homonímia) ou alteração do patronímico. O provimento determina também que o pedido formulado prescinde de autorização judicial, realização de intervenção cirúrgica, tratamento hormonal ou apresentação de laudos médicos/psicológicos prévios (art. 4º, § 1º), como meio de facilitar ao interessado acesso aos direitos que lhe são tão caros, revestindo-se, ainda, o procedimento de caráter sigiloso (art. 5). Findo o procedimento administrativo compete ao ofício em que se processou a alteração realizar os atos necessários a fim de dar ciência aos órgãos pertinentes das alterações processadas. Ante a ausência de uma legislação específica tratando do tema o Estado esquizofrênico, mais uma vez, revela sua condição patológica7, apresentando a usual leniência legislativa8 no quanto tange a questões atinentes à sexualidade, fazendo com que muitos cheguem a crer que o Provimento 73/18 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) seria a legislação pátria a tratar dos interesses trans, já que acaba por se estabelecer como o que há de mais próximo a isso em nosso ordenamento. Importante se consignar que o tema, ainda que parcialmente, foi fortemente impactado pelas recentes mudanças na Lei de Registros Públicos introduzidas pela lei 14.382/2022, vez que resta afastado o princípio da imutabilidade de nome com a nova redação dada ao art. 56 que permite a mudança do prenome aos maiores de 18 anos, imotivadamente e independente de autorização judicial. Tal alteração legislativa pode aparentar tornar irrelevante as conquistas anteriores, contudo elas continuam importantes, vez que a mudança da Lei de Registros Públicos não faz qualquer menção expressa às questões atinentes à sexualidade, tampouco toca na possibilidade de alteração da indicação do sexo nos documentos, mantendo a relevância do estabelecido na ADI 4.275 e no Provimento 73/18 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mister ressaltar mais uma vez que persiste a omissão do Estado e sua leniência legislativa, não tendo positivado o tema com o escopo de garantir os interesses e necessidades desse grupo vulnerabilizado, reforçando o nosso entendimento de que a concepção de vulnerabilidade de um grupo social serve para conferir-lhe maior proteção estatal, menos se tal condição for oriunda da sexualidade9. Assusta ainda mais, no que concerne à indicação do sexo nos documentos, o retrocesso das movimentações recentes do Estado quanto a Carteira de Identidade Nacional (CIN), prevista no decreto 10.977/2022, que determina a indicação expressa do sexo no documento, entre as informações essenciais que devem estar presentes de seu corpo (art. 11), o que se mostra absolutamente desnecessários e ofensivo à intimidade de todas as pessoas. Patente está que ainda há muito a ser feito visando a garantia dos direitos mais elementares à população trans. A atual realidade jurídica do transgênero no Brasil quanto a possibilidade de alteração de seus documentos de identificação visando a adequação de seu nome e sexo à sua identidade de gênero apresenta alguma evolução se considerarmos a realidade de outrora, contudo tal se dá muito mais pela atuação do Poder Judiciário do que do Legislativo que segue claudicante na atenção aos mais necessitados. O Brasil ainda está engatinhando na proteção dos interesses e necessidades desse grupo social vulnerabilizado tido como uma minoria sexual, o que impõe uma concentração de esforços a fim de que a dignidade da pessoa humana seja efetivada e a cidadania consolidada. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O esvaziamento do preceito do nome social diante das atuais decisões dos tribunais superiores. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 1011, p. 67-81, 2020, p. 69. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 172. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 172. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O esvaziamento do preceito do nome social diante das atuais decisões dos tribunais superiores. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 1011, p. 67-81, 2020. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 186. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O posicionamento da Corte Interamericana de Direito Humanos quanto à identidade de gênero. São Paulo: Revista dos Tribunais 991, p. 227-246, 2018. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504.
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Pessoas trans e o direito à saúde

Os direitos inerentes à condição humana gozam de elevada relevância no momento atual em que a humanidade se encontra, respaldados por preceitos protetivos que emanam na esfera internacional dos Direitos Humanos e, em âmbito interno, dos direitos e garantia fundamentais positivados na Constituição Federal, como também dos direitos da personalidade consagrados no Código Civil. Dentre as características da pessoa que merecem proteção encontram-se os elementos vinculados à sexualidade, aspecto inerente à condição humana e que permeia a existência do indivíduo de forma indissociável, o que impõe o seu imperioso resguardo sob pena de ofensa aos aspectos mais nucleares da humanidade de cada ser humano. Uma das características da sexualidade que merece ampla atenção é a identidade de gênero, mais especificamente, a condição transgênero, caracterizada como a da pessoa que revela uma incompatibilidade entre o sexo a ela atribuído no momento de seu nascimento e o gênero ao qual entende pertencer, em contraposição à figura do cisgênero, entendido como aquele que não apresenta qualquer conflito com relação à sua percepção de gênero esperada face ao consignado quanto ao seu sexo ao nascer1, nos termos já explicitados na coluna anterior. Durante anos foram estabelecidas inúmeras celeumas acerca dos direitos inerentes aos transgêneros, que perpassavam pela discussão quanto a possibilidade de realização de intervenções cirúrgicas para a alteração do seu corpo, a mudança do prenome com o objetivo de compatibilizá-lo com a sua manifestação social quanto ao seu gênero, além da viabilidade da adequação da informação quanto ao sexo em seus documentos para que se ajustasse à sua identidade de gênero. Dessa forma, em linhas muito panorâmicas, tem-se em um primeiro momento, na esfera de seus direitos civis, como coerente se pensar numa divisão dos interesses das pessoas trans entre aqueles que estão vinculados a questões de alteração de suas características físicas e aqueles que se inserem no âmbito do ajuste de seus documentos de identificação pessoal a seu gênero de pertencimento. Essa primeira vertente será objeto de apreciação no presente texto, sendo a segunda a ser tratada na próxima coluna. Para se evitar polêmicas vazias é importante asseverar que a condição sexual das pessoas transgênero não é uma novidade dos tempos atuais, sendo algo que sempre existiu, com outros nomes e dentro das características históricas de cada tempo. Relatos de condições que hoje poderiam ser enquadradas no atual conceito de transgeneridade podem ser encontrados em textos sumérios do Período Dinástico Arcaico (2.900-2.350 a.C.)2, o que serve para reafirmar a absurda invisibilização sofrida pelas pessoas trans na sociedade3, vez que algo que já era mencionado há mais 4000 anos ser visto como "novidade" é bastante significativo. Ainda para uma compreensão inicial é de se consignar que a condição sexual apresentada pelas pessoas trans se faz presente na sociedade em números que não podem ser ignorados, ainda que não existam em território nacional dados oficiais, outro aspecto revelador da invisibilidade que atinge as questões atinentes às chamadas minorias sexuais e que só aprofunda a vulnerabilidade por elas experimentada. Todavia é possível afirmar que, segundo dados recentes, o número de pessoas trans no Brasil seja próximo a 2% da população, conforme constatado em pesquisa elaborada pela Faculdade de Medicina de Botucatu/UNESP4, montante similar ao constatado nos EUA pelo The Williams Institute da UCLA School of Law5. Para a apreciação do tema sob o viés da medicina é imperioso que se tenha de forma bastante clara que a condição vivenciada pela pessoa trans não está lastreada em um aspecto volitivo, não sendo uma vontade, capricho ou perversão6 como muitos asseveram sem qualquer conhecimento técnico. A transgeneridade é apenas um aspecto atrelado à saúde sexual, nos termos fixados na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da Organização Mundial da Saúde (OMS), o que há de afastar a patologização estigmatizante que tanto mal causa a esse grupo vulnerabilizado. Há de se afirmar de forma peremptória, portanto, que a pessoa trans apresenta uma incongruência de gênero, condição relativa à saúde sexual como descrito no item 17 da CID-11 (Códigos HA60, HA61 e HA62), não padecendo de uma desordem mental ou de qualquer sorte de doença, sendo inadequada a sua designação como alguém que tenha um transtorno de identidade de gênero ou uma disforia de gênero. Ainda que a transgeneridade não seja mais vista como uma doença, como entendida durante muito tempo, é patente que existem tratamentos ou intervenções cirúrgicas que se mostram relevantes para que a pessoa trans possa alterar caracteres sexuais externos, visando garantir-lhe maior passabilidade7 e criando a possibilidade de transitar no meio da sociedade sem que encare questionamentos quanto a sua sexualidade, sendo lida socialmente apenas segundo os aspectos de gênero apresentados8. Assim, no que concerne às questões vinculadas às intervenções médicas e tratamentos, o atual estado da arte nos autoriza a afirmar que, depois de inúmeras batalhas, está consolidado o posicionamento de que é possível a realização de operações de adequação de caracteres sexuais externos em pessoas trans visando conferir um aspecto físico que se coadune com o do seu gênero de pertencimento. A legalidade da realização de intervenções cirúrgicas visando a adequação do corpo do transexual à sua identidade de gênero foi a primeira discussão a ser enfrentada no Judiciário brasileiro, sendo que no início dos anos 1970 ganhou repercussão o processo criminal promovido em face do médico Roberto Farina, considerado culpado (processo 799/76 da 17ª Vara Criminal de São Paulo) na acusação de lesão corporal por ter realizado operação de redesignação sexual em uma pessoa transexual9. Hoje, sem o risco de se incorrer em alguma acusação de crime, é possível se asseverar que as pessoas trans encontram respaldo para a realização dos tratamentos médicos pertinentes para buscar uma maior passabilidade, em perfeita atenção aos preceitos da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde. Em solo brasileiro a questão encontra-se de tal forma superada que atualmente se tem claro que as intervenções dessa natureza revestem-se de caráter terapêutico e visam garantir a saúde do indivíduo como um todo, sendo até mesmo subvencionada pelo Poder Público através do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme parâmetros estabelecidos pela Portaria 2803/13 do Ministério da Saúde, que se destina a fixar os requisitos para a realização do chamado "processo transexualizador" pelos hospitais públicos. A referida portaria, que há de ser entendida como uma grande conquista10, apresenta pontos que são passíveis de questionamento, pois, apesar de surgir como um dos poucos oásis no deserto dos regramentos em favor das pessoas trans, não garante a todos os seus destinatários o efetivo acesso ao "processo transexualizador". Um dos pontos preocupantes incide sobre os parâmetros estabelecidos pela Portaria 2803/13 do Ministério da Saúde quanto ao critério etário11 para a realização do "processo transexualizador". A portaria fixa que procedimentos hormonais apenas poderão ser realizado a partir dos 18 (dezoito) anos (Art. 14, § 2º, I), enquanto as  intervenções cirúrgicas só seriam admissíveis após os 21 (vinte e um) anos, "desde que tenha indicação específica e acompanhamento prévio de 2 (dois) anos pela equipe multiprofissional que acompanha o usuário(a) no Serviço de Atenção Especializada no Processo Transexualizador" (Art. 14, § 2º, II), a fim de se certificar que o indivíduo apresenta efetivamente uma condição de pessoa trans. Estabelecer 21 anos de idade para a realização de intervenções cirúrgicas de afirmação de gênero não faz nenhum sentido, mormente considerando que o atual regramento do Conselho Federal de Medicina (CFM) que trata do tema, a resolução 2.265/19, prevê 18 (dezoito) anos como idade mínima (art. 11) para tais intervenções. Nos parece que tal previsão do Ministério da Saúde respalda-se nos parâmetros previstos nos primeiros regramentos do conselho sobre o tema12, os quais lastreavam-se nos padrões de maioridade civil fixados no já superado Código Civil de 1916. Interessante se notar que não se encontra nenhuma "gran­de celeuma social com relação a realização de cirurgias estéticas por parte de garotas menores de 18 anos, quando autorizada pelos pais, para a colocação de implante de silicone nos seios, contudo se vislumbra uma série de restrições quando a questão está atrelada ao transexual"13, fato bastante revelador de todo o preconceito que permeia as questões vinculadas às pessoas trans. Ainda quanto ao critério etário previsto na Portaria 2803/13 do Ministério da Saúde verifica-se a mesma incongruência em relação ao tratamento hormonal, considerando que para o Conselho Federal de Medicina (CFM) a hormonioterapia cruzada pode ser realizada a partir dos 16 (dezesseis) anos (art. 10), e bloqueio hormonal em crianças e adolescentes quando do início da puberdade (art. 9º). Evidente que as determinações oriundas do Conselho Federal de Medicina não se revestem de caráter legislativo para a população geral, gozando apenas de natureza deontológica para a classe médica, contudo não se pode ignorar seus direcionamentos de ordem médica. Ressalta-se ainda que, por ser mais recente do que o texto da portaria do Ministério da Saúde, apresenta maior proximidade com os parâmetros atualmente considerados com relação ao tema. Feita a crítica relativa ao aspecto etário previsto na Portaria 2803/13 do Ministério da Saúde é pertinente que se traga à lume o aspecto que mais causa espécie no contexto dos direitos à saúde das pessoas trans. Uma leitura superficial do tema pode nos induzir a acreditar que a questão das intervenções cirúrgicas necessárias à população trans encontra-se plenamente resolvida já que albergada entre os procedimentos realizados de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Contudo nada mais longe da realidade do que pensar dessa forma, pois na prática se constata a existência de um enorme contingente de pessoas trans que não conseguem a efetivação desse direito fundamental. Tal assertiva se faz face ao fato de que no Brasil apenas 4 hospitais são habilitados pelo Ministério da Saúde14 para as intervenções cirúrgicas necessárias, situação essa que acaba gerando uma elevada espera por parte do interessado para que venha a conseguir ser atendido em seu anseio de passar pelo "processo transexualizador" pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Tal circunstância revela uma das questões mais atrozes que acompanham a vivência da população trans, com contornos de "crueldade e até mesmo de um sadismo mórbido" quando se constata "que o pouco que o Poder Público faz acaba por criar esperanças vazias em boa parte da população que faria jus aos parcos direitos assegurados pelo Estado"15 para as pessoas trans. Estamos aqui diante do que Alícia Garcia de Solovagione, denomina de "crueldade jurídica"16. A atitude do Estado brasileiro nesse quesito, numa perspectiva extensiva, poderia ser equiparada a uma modalidade de tortura, vez que "negligencia certos grupos sociais, relegando-os a uma condição de marginalização social no que se refere à garantia de direitos, em que pese não o fazer quando se trata da arrecadação de impostos ou imposição de deveres", o que se agrava ao se considerar que vários "projetos legislativos encontram-se adormecidos sem qualquer perspectiva de análise num futuro próximo, mantendo aqueles que não se enquadram na heteronormatividade vigente em uma situação de ofensa constante"17. Em nosso sentir tal situação é mais uma das caracterizadoras do que entendemos por um Poder Público doente, um Estado Esquizofrênico18 capaz de determinar a subvenção do tratamento cirúrgico de forma gratuita à pessoa trans sem viabilizar que isso efetivamente aconteça, por não possuir hospitais suficientes para a demanda de pessoas que necessitam desse atendimento. É o mesmo Estado que sequer positivou a possibilidade de alteração do nome e sexo nos documentos em conformidade com a identidade de gênero para a pessoa trans (como já reconhecido pelos tribunais superiores e cortes internacionais), em clara hipótese de leniência legislativa passível de responsabilização objetiva do Estado19. Apenas para que se possa ter uma noção da realidade quanto ao acesso ao tratamento cirúrgico, segundo levantamento feito pela Defensoria Pública de São Paulo, a espera para a realização de cirurgia na rede pública pode demorar até 18 (dezoito) anos20. Não bastasse o absurdo de uma demora dessa grandeza para a realização de uma intervenção de natureza terapêutica, não se deve olvidar que tal descaso pode causar severas consequências para a saúde daquela pessoa, passíveis de culminar até mesmo na perda de sua vida, considerando as elevadas taxas de suicídio constatadas entre as pessoas trans (constatadas nos EUA21 e no Chile22, com 41% e 56% respectivamente - no Brasil não temos números oficiais, mas os dados obtidos revelam a mesma realidade) e a baixa expectativa de vida (que é de apenas 35 anos23). Apreciando os dados em perspectiva é possível compreender que quem precisa valer-se do suporte do Poder Público para a realização do chamado "processo transexualizador" previsto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) possivelmente não conseguirá atingir esse objetivo, fato que se direciona à grande maioria das pessoas trans, considerando que o mais ordinário é que elas estejam inseridas nos estratos inferiores da sociedade, visto o alto nível de evasão escolar, baixa escolaridade e incipiente inserção no mercado de trabalho formal24. O critério econômico exerce um poder destrutivo e avassalador no presente caso, fazendo com que a grande maioria das pessoas trans esteja fadada à automedicação e seus riscos inerentes25, como também a não conseguir realizar o processo transexualizador antes da sua morte, já que, ante a um exercício matemático simples, ao se considerar que as intervenções cirúrgicas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) só podem ser realizadas a partir dos 21 (vinte e um) anos, e que a espera pode chegar a 18 (dezoito) anos, teremos a constatação de que apenas conseguiriam realizar as cirurgias aos 39 (trinta e nove) anos de idade, o que está fora da sua expectativa de vida média. É inquestionável o dever do Estado de satisfazer a obrigação expressamente assumida de garantir à população trans o acesso gratuito ao "processo transexualizador" como previsto na Portaria 2803/13 do Ministério da Saúde, razão pela qual já de algum tempo sustentamos que, por se caracterizar como um obrigação de fazer, caberia à pessoa trans a prerrogativa de exigir o pronto atendimento do previsto pelo Poder Público, sob pena da realização da intervenção cirúrgica necessária em instituição privada às custas do Estado26. Evidencia-se, pelo todo apresentado, que mesmo com o afastamento de qualquer sorte de restrição legal quanto a realização de intervenções visando a alteração do corpo a fim de garantir uma maior passabilidade às pessoas trans, dentro do âmbito do que se tem denominado como direito à saúde, a questão ainda se está bastante distante de se mostrar tranquila e efetiva, exigindo ainda muito daqueles que atuam nessa área. Premente se faz que seja amplamente disseminada a compreensão de que o que aqui se apresenta está indissociavelmente atrelado ao conceito de democracia e de humanidade, compelindo-nos a assumir a busca da implementação plena dos direitos das pessoas trans no âmbito da saúde como uma luta visando a manutenção dos preceitos mais primários de um estado de direito. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16 2 FERREIRA, Joanne Barboza. Eunucos: fontes, realidades, representações e problemáticas da antiguidade oriental ao período bizantino. Dissertação (Mestrado em História Antiga) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Lisboa, p. 54-58. 2019. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Da invisibilidade à exposição indevida: as agruras que seguem permeando a vida das pessoas trans no Brasil. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p. I - IV, 2022. 4 SPIZZIRRI, Giancarlo; EUFRÁSIO, Raí; PEREIRA LIMA, Maria Cristina; CARVALHO NUNES, Hélio Rubens de; KREUKELS, Baudewijntje P. C.; STEENSMA, Thomas D.; NAJJAR ABDO, Carmita Helena. Proportion of people identifed as transgender and non-binary gender in Brazil. Scientific Reports. v.11:2240, 2021. https://www.nature.com/articles/s41598-021-81411-4.pdf. Acesso em 17 jun. 2022. 5 Disponível aqui. Acesso em: 10jul. 2016 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direitos dos transgêneros sob a perspectiva europeia. Revista Debater a Europa, N. 19, 2018, p. 49  7 DUQUE, Tiago. Epistemologia da passabilidade: Dez notas analíticas sobre experiências de (in)visibilidade trans. História Revista: Revista do Departamento de História v. 25, n. 3, 2020, p. 33. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Além do gênero binário: repensando o direito ao reconhecimento legal de gênero. Tradução de texto original de THEILEN, Jens T.. por Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2020, p. 8. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a licitude dos atos redesignatórios, Revista o Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo - v. 10. São Bernardo do Campo: Metodista. 2013. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, p. 165. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 272. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 272. 14 Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás; Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, segundo a Portaria nº 2.736, de 9 de dezembro de 2014, tendo sido retirado da lista original apresentada em 2013 o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco. 15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 274. 16 Alícia Garcia de Solovagione. Transexualismo. Análisis jurídico y soluciones registrales. Córdoba: Advocatus, 2008, p.201. 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 83. 18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 309-310. 19 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 20 Disponível aqui. Acesso em 17 jun. 2022. 21 GRANT, Jaime M.; MOTTET, Lisa A.; TANIS, Justin; HERMAN, Jody L.; HARRISON, Jack; KEISLING, Mara. National Transgender Discrimination Survey Report on health and health care. Washington, 2010, p. 16. 22 Resumen Ejecutivo Encuesta-T 2017, p. 23-24 23 BENEVIDES, Bruna G.. Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Antra, 2022, p. 41. 24 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022, p. III. 25 O'DWYER, Brena; HEILBORN, Maria Luiza. Jovens Transexuais: Acesso a serviços médicos, medicina e diagnóstico. Revista Interseções, v. 20, n. 1, p. 196-219, jun. 2018, p. 214. 26 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 275.
É com enorme satisfação que hoje se dá início à trajetória das discussões da sexualidade como parâmetro relevante para o direito no Portal Migalhas, por meio da Coluna Direito e Sexualidade. Com o objetivo de conferir luz a esse tema tão relevante e muitas vezes ignorado ou marginalizado, a coluna buscará dialogar com os mais diversos ramos do direito demonstrando como aspectos relativos à sexualidade impactam no ordenamento jurídico, bem como seus reflexos na atividade dos nossos tribunais. Ao expor tais considerações é possível que o leitor do Portal Migalhas passe a conhecer a relevância da sexualidade como elemento jurídico ou, caso já seja um iniciado nessa seara, que tenha condições de aprofundar e qualificar sua compreensão, inserindo-o em uma realidade de maior inclusão e diversidade, atendendo aos parâmetros mais nucleares e fundantes de um estado democrático de direito. E exatamente com o fulcro de atingir o objetivo precípuo da presente coluna passaremos, nesse texto inaugural, a tecer algumas considerações acerca dos elementos nucleares da sexualidade e sua inserção no mundo jurídico. De plano se faz premente afirmar que sendo a sexualidade um aspecto indissociável da condição humana não é possível se pensar a sociedade e, ato contínuo, o direito apartado da sua existência. A sexualidade integra a humanidade de cada indivíduo e se faz presente de forma contínua no cotidiano de todas as pessoas, de maneira direta ou indireta, independentemente da consciência de que isso esteja efetivamente ocorrendo, sendo parte integrante dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade1. Todavia de se ressaltar que nossa intenção não é trazer aqui uma discussão antropológica ou sociológica da sexualidade, mas sim um escorço básico da sexualidade e seus alicerces de sustentação, como também a forma como tais questões incidem nas situações fáticas com repercussão jurídica. Nesse sentido, a sexualidade pode ser compreendida como "uma ideia ampla e abrangente que se refere a toda sorte de manifestação vinculada ao sexo, em concepção que se espraia desde as características física do indivíduo até a percepção quanto ao seu gênero e destinação de atração sexual"2 e que sustenta-se estar erigida sob quatro patamares de sustentação: sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. É recorrente que nos deparemos com equívocos na compreensão dos conceitos vinculados à sexualidade na prática, bem como com a aplicação errônea em diversos documentos oficiais, legislações e decisões judiciais, o que se mostra extremamente preocupante. Sendo assim se faz pertinente tecer algumas considerações sobre cada um desses pilares da sexualidade. Considerando o primeiro dos pilares podemos afirmar que o sexo, palavra polissêmica, em sentido estrito e considerando a perspectiva mais ordinariamente utilizada na esfera jurídica, "há de ser compreendido como sendo a conformação física ou morfológica genital constatada no instante do nascimento da pessoa e que, de regra, haverá de ser consignada na Declaração de Nascido Vivo (DNV) e, ato contínuo, na Certidão de Nascimento da pessoa, atendendo, ordinariamente, ao padrão binário de homem ou mulher"3. Em uma visão bastante superficial, em um momento inicial, se considera homem (macho) aquele que nasce com pênis e bolsa escrotal e mulher quem não os apresenta, sendo tal parâmetro preliminar o que será consignado na Declaração de Nascido Vivo (DNV) a ser levada a registro. Contudo a questão não se restringe a essa visão simplória, existindo um grande número de condições sexuais que não se enquadram nessa dualidade do ideal binário do homem/macho ou mulher/fêmea, caracterizando a figura da pessoa intersexo, situação que pode ser encontrada em até 2% da população mundial4. A presente questão vinculada ao sexo tem sido objeto de discussão fundada na simples perspectiva de que como há a imposição de que a informação do sexo conste da certidão de nascimento há a necessidade de se afastar a percepção da binaridade que ainda faz com que muitos médicos e cartórios indiquem a realização de intervenções cirúrgicas precoces em crianças em tenra idade, o que pode se revelar extremamente traumático e perigoso. Em seguida há de se apreciar o gênero como alicerce da sexualidade. Em que pese existir uma constante confusão na utilização dos termos, o gênero, tecnicamente, difere da concepção do sexo. Por gênero se tem "a expressão social que se espera de quem seja homem/macho (masculino) ou mulher/fêmea (feminino)" baseado em "expressões socioculturais atribuídas a quem é homem, como a força, a virilidade, a cor azul e outras que são ordinariamente conferidas às mulheres, como a fragilidade, a delicadeza, a utilização da cor rosa e de saia, por exemplo" e, com isso, os "traços ordinariamente vinculados aos homens (sexo) se nomeiam de masculinos (gênero), enquanto aos atrelados à mulher (sexo), denominam-se de feminino (gênero), evidenciando, de outra sorte, que em que pese ter uma associação com o sexo anatômico, trata-se de um conceito cultural desprovido de uma vinculação necessária com ele, já que carente de uma base biológica"5. Os reflexos do gênero no mundo jurídico podem ser aferidos nas inúmeras questões em que a condição feminina se mostra um elemento de segregação ou mesmo de restrição de acessos, como se dá, como exemplo, com a questão da diferença salarial e mesmo a dificuldade de ascender aos cargos de comando nas empresas enfrentados por pessoas do gênero feminino. Ressalta-se também as agruras suportadas pelas mães solo para cumprir sozinha com as necessidades apresentadas por seus filhos. Em seguida há de se apreciar a orientação sexual como sustentáculo da sexualidade e que está atrelada com o "interesse ou atração afetivo-sexual, que não se funda em uma perspectiva de caráter volitivo e que tem sido compreendida em linhas superficiais em 5 grupos, quais sejam: heterossexuais (atração direcionada a pessoa de gênero distinto), homossexual (interesse destinado a alguém do mesmo gênero), bissexuais (atração por pessoas tanto do mesmo gênero quanto de gênero distinto), assexuais (sem a expressão de interesse sexual por qualquer dos gêneros) e pansexuais (atraem-se por pessoas independentemente de qualquer consideração quanto ao gênero), em uma visão bastante superficial"6. No âmbito da orientação sexual é de se consignar que muitas lutas travadas buscando que tal característica não encerrasse um viés de restrição de direitos já encontram-se encaminhadas, mas não vencidas. É o caso da possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero que apesar de respaldada por decisão com força vinculante proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e com provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instrumentalizando-a, ainda não encontra o devido acolhimento na legislação positivada. Finalmente, como último dos arrimos em que se sustenta a sexualidade está a identidade de gênero, a qual está associada "ao conceito de pertencimento de cada um, na sua sensação ou percepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero (masculino ou feminino), independentemente da sua constituição física ou genética"7. Quanto a identidade de gênero é possível se afirmar que as pessoas podem ser compreendidas como sendo cisgênero ou transgênero. Tem-se por cisgênero aquele que se reconhece como pertencente ao gênero esperado em razão do sexo que lhe foi atribuído quando do seu nascimento, enquanto transgênero seria aquele que apresenta uma incompatibilidade entre o sexo que lhe foi indicado ao nascer e o gênero ao qual se entende pertencente, conceito que alberga em si várias figuras, sendo as mais suscitadas a de transexuais e travestis. Em que pese ser reiterada a utilização das duas expressões transexuais e travestis como sinônima há, "segundo parte da doutrina, o entendimento de que poderia ser considerado como elemento distintivo entre essas duas condições a existência de uma repulsa com relação aos órgãos sexuais apresentada pelos transexuais que não se faz presente entre as travestis"8. No que concerne às situações juridicamente relevantes que permeiam a identidade de gênero se tem a figura da possibilidade de mudança de nome e sexo/gênero nos documentos de identificação pessoal garantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da ADI 4275, contudo não se pode olvidar a nefasta leniência legislativa do Estado9 que até o presente momento nada positivou nesse sentido, fato que auxilia no aprofundamento do estado de genocídio10 enfrentado pela população trans. Obviamente que a segregação, a discriminação e o preconceito permeiam a vivência daqueles que não se inserem no conceito de normalidade11 imposto no que concerne à orientação sexual e à identidade de gênero, sendo imprescindível se laborar em busca da efetiva implementação dos direitos e garantias fundamentais a esses grupos vulnerabilizados em razão de sua sexualidade12. O objetivo dessa coluna inaugural é de maneira muito singela tentar demonstrar que a sexualidade é um aspecto da condição humana que permeia continuamente a vida de todos os indivíduos e que imprime sua presença nos mais variados campos da sociedade, com fortes reflexos no contexto jurídico. Dessa forma, a compreensão mínima dos parâmetros elementares que compõem a sexualidade se faz premente para o exercício de qualquer atividade no mundo jurídico com a acuidade técnica esperada de quem compreende o direito com toda a complexidade que lhe é inerente. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 50. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 308 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n., p.189-204, 2022, p. 191 4 BLACKLESS, M., CHARUVASTRA, A., DERRYCK, A., FAUSTO-STERLING, A., LAUZANNE, K. e LEE, E. (2000), How sexually dimorphic are we? Review and synthesis. American Journal of Human Biology, vol. 12, p. 151-166, 2000. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, 162 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do dever de especial proteção dos dados de transgêneros. Revista Direito e Sexualidade. v. 2, n. 2, p. 213-231, jul./dez. 2021, p. 217. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504.