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A fragilidade das conquistas da população LGBTIANP+

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Atualizado em 17 de abril de 2024 16:25

É fato que estamos hoje diante de uma sociedade que, ao menos em teoria, se mostra em alguma medida um pouco menos ignorante com relação à existência das minorias sexuais. Até mesmo a extensão da sigla que usamos para indicar essa população (LGBTIANP+), que muito se utiliza para argumentar que torna impossível que se saiba exatamente quem são essas pessoas, conseguiu atribuir um pouco mais de visibilidade à comunidade com um todo.

Constantemente vemos nas redes sociais e veículos de comunicação que há uma maior acolhida à diversidade, ainda que estejamos absurdamente distantes de atingir os parâmetros mais elementares de igualdade e dignidade da pessoa humana preconizados em um Estado Democrático de Direito.

Não se pode ignorar que pequenos avanços têm acontecido.

A enorme dificuldade para se obter essas pequenas vitórias faz com que toda vez que elas acontecem surja uma grande alegria e comoção, que nos confere um sopro de alento, uma crença de que pode haver um futuro melhor para nós como sociedade.

Contudo o que é amplamente ignorado é a fragilidade de tais conquistas.

Normalmente acompanhadas de uma atitude presunçosa daqueles que são detentores do poder, os parcos direitos que se atribui às minorias sexuais surgem quase que como uma benesse praticada pelos "seres magnânimos" que regem nossa sociedade. Seria a expressão de sua tolerância, permitindo que o "anormal" possa permanecer na sociedade, mas apenas se reconhecer que é inferior e que "deve" a ele essa oportunidade de seguir entre os demais.

Uma demonstração dessa natureza revela-se no simples fato de que tais "ofertas" de direitos apenas se dão de forma transversal, nunca ante a positivação legislativa, o que encerra em si o perigo claro de que as concepções que as sustentaram venham a ser atacadas a qualquer momento e elas se esfacelem. Nossa democracia é tão míope que o Poder Legislativo não pauta questões vitais para minorias sexuais por entender que faltaria sustentação popular para tanto, olvidando-se que certamente as minorias dificilmente terão apoio da coletividade, a qual não costuma se mobilizar com o fim de assegurar direitos a quem não seja ela mesma.

Evidentemente que não é o simples fato de o Poder Legislativo cumprir seu mister e elaborar a legislação pertinente que fará com que os graves problemas enfrentados pelas minorias sexuais venham a deixar de existir, contudo é claro que a existência de uma base legislativa é premissa elementar para a garantia de direitos.

A possibilidade de alteração de nome e sexo/gênero nos documentos de pessoas transgênero, por exemplo, é direito que foi alcançado mediante decisão dos Tribunais Superiores, culminando com a elaboração do Resolução 73 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atualmente incorporada pela resolução 149/23 que criou o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra).

Nunca é excessivo se ponderar que os regramentos provenientes do CNJ não se revestem de força cogente para toda a população, sendo diretrizes estabelecidas para aqueles que estão subordinado àquele conselho. Contudo face à ausência de legislação muitas vezes acabam se mostrando como o mais próximo que temos a uma lei sobre dados temas.

Da mesma forma que a alteração do nome e sexo/gênero de pessoas transgênero pode-se suscitar que questões como a indicação de "intersexo" no campo destinado ao sexo no RCN - Registro Civil de Nascimento, registro de filho com dois genitores do mesmo sexo/gênero, ou direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero não encontram-se legisladas.

Em que pese todas as ponderações que podem ser feitas sobre tais temas é de se consignar que ainda que não estivessem expressamente proibidos na lei acabaram necessitando de uma confirmação do Poder Judiciário para que pudessem ser efetivados na prática, sendo emblemática a decisão na ADI 4.277 em 2011 que, ao fim e ao cabo, simplesmente reconheceu que, em sede de uniões entre pessoas do mesmo sexo/gênero, prevalecem as mesmas regras fixadas para relacionamentos entre pessoas com sexo/gênero distintos, havendo de se aplicar a analogia para suprir a lacuna da lei, questão que jamais chegaria ao STF caso não estivesse atrelada a um elemento vinculado à sexualidade.

Ainda que se sustente que conquistas dessa natureza não possam vir a ser suprimidas em decorrência do princípio da vedação do retrocesso é evidente que eventuais ondas que confundem eliminação da diversidade com conservadorismo venham a tentar vedar o acesso a direitos elementares a pessoas "diferentes" apenas por serem elas "os outros" e não estarem inseridas no padrão ao qual a lei "genericamente" costuma referir-se.

O grande risco decorrente de se resignar com as conquistas obtidas ante a manifestação do Poder Judiciário vai muito além das absurdas alegações de que estaria havendo um ativismo judicial. Não há que se falar em conduta indevida do Poder Judiciário quando ele cumpre sua incumbência, nos termos exatos previstos na LINDB - Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, conferindo solução ao caso concreto ao ser instado a se manifestar sobre um tema ainda não especificamente legislado.

O real perigo é que face a composição dos diversos planos do Poder Judiciário é possível que em razão da mudança de seus integrantes posicionamentos que resguardam direitos humanos, fundamentais e da personalidade das minorias sexuais venham a ser atingidos pela alteração de viés dos julgadores.

Todos somos influenciados pelas circunstâncias que nos tangenciam e dificilmente se tem de fato uma análise fundada em imparcialidade real do julgador, sendo utópica a crença da existência de um "juízo neutro" dos magistrados.

De se notar que a leniência legislativa1 que grassa em nosso Estado Esquizofrênico2, especialmente demonstrada com relação a questões que referem-se à efetiva garantia dos direitos fundamentais às minorias sexuais é sintoma consolidado em nosso Estado que recorrentemente institucionaliza atitudes discriminatórias. E não legislar especificamente em favor das minorias sexuais é mostrar toda a fragilidade que acompanha os detentores dos privilégios.

Nossa democracia, historicamente recente, recorrentemente sob ameaça, sofre influências das mais variadas, muitas vezes contrárias aos seus alicerces estruturantes e que podem fazer com que se entenda que as minorias não mereçam mais proteção, sendo passiveis de extermínio.

Os olhares deturpados dos eternos vencedores são capazes de enxergar na imposição de que a igualdade seja conferida e se atribua às minorias iguais direitos aos detidos pelas maiorias um excesso. Sua fragilidade é tamanha que teme pelo fato de que permitir que os "outros" alcancem as mesmas prerrogativas que já são previstas em favor de todos mas que não conseguiam acessar em razão de todo o preconceitos e discriminação que experienciam possa culminar em uma perda de seus próprios direitos.

O medo de não mais gozar dos benefícios que a discriminação lhes confere faz com que sejam contra a garantia dos direitos mais elementares aos mais vulnerabilizados. Absurdo, mas real.

Há tantas camadas de preconceito sobrepostas que faz com que certos grupos sociais venham a ser desumanizados, retirando-lhes, aos olhos dos detentores do poder, a própria condição de pessoas, fazendo com que se tenha que manifestar de maneira pungente, visando afastar toda essa opacidade imposta, clamando que ainda que minorias são sim pessoas e, portanto, destinatárias de todas as garantias inerentes a tal condição.

A inércia em proteger a todas as pessoas, sem discriminações excludentes, é que impõe que se levantem bandeiras constantemente com o fim de que aqueles que não são considerados pelos tidos por normais como pessoas possam vir a "desfrutar" das benesses dos direitos ordinariamente conferidos a todos.

É primordial que tenhamos claro que a defesa dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade de todas as pessoas, mas em especial dos grupos vulnerabilizados, depende de uma luta constante. Por não reinarem na condição de "meras pessoas" genéricas, estando sempre acompanhadas de expressões que as qualifica, é importante que o resguardo de seus interesses receba uma atenção diferenciada.

Todas as vidas importam, mas quanto as vidas das minorias e grupos vulnerabilizados é sempre relevante se ressaltar que elas também importam, já que nem sempre as pessoas as veem inseridas no conceito universalizante de pessoas.

Para além de lutar pela garantia dos direitos em favor das pessoas, é importante que se pontifique que esses direitos devem ser efetivamente franqueados às pessoas que a sociedade vê como sendo "menos pessoas". O reconhecimento como minoritário há de servir para que se ofereça proteção especial, jamais para se fomentar ainda mais a discriminação3.

Por tal razão é premente a atenção do Poder Legislativo na garantia dos direitos de pessoas intersexo, mulheres, aquelas que integram a concepção do feminino, transgêneros, homossexuais, bissexuais, assexuais, pansexuais e toda a gama de pessoas divergentes presentes em nossa sociedade. Para elas a existência de direitos para "pessoas" não basta.

O que se está a ponderar aqui não é sobre a existência de uma contraposição entre pautas conservadoras ou progressistas, de direita ou de esquerda. Trata-se não de uma questão de governo, mas sim de Estado. E é muito mais amplo do que os meros limites das fronteiras de uma Nação.

É tão somente uma questão de humanidade e de preservação de quem somos no universo.

Impõe-se a necessidade de que se positive os direitos para aqueles que os tem em teoria mas que, de fato, não os possui.

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1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015.

2 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.

3 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.