Interesse sobre a sexualidade alheia: Mera curiosidade ou meio para o exercício de preconceito
quinta-feira, 13 de março de 2025
Atualizado em 12 de março de 2025 08:15
Como costumeiramente faço na presente coluna, reitero que é patente que a sexualidade é um elemento inerente à identidade de cada ser humano, aspecto de sua personalidade que se mostra indissociável de sua existência1. Trata-se de característica que se expressa nos mais diversos momentos da vida de todo o indivíduo, com o potencial de gerar um infindável número de reflexos em seu cotidiano.
É, portanto, um fato.
Conviver com a sexualidade é uma constante. Seja com a própria ou com a alheia.
Contudo, mesmo tendo plena ciência da presença contínua da sexualidade na vida de todas as pessoas, ainda me intriga demais o valor dado à curiosidade acerca da sexualidade alheia. Por que existe tanto interesse em saber qual a genitália que alguém sustenta por debaixo das suas roupas (sexo), com quem a pessoa "se deita" (orientação sexual), ou se aquela pessoa é cisgênero ou transgênero (identidade de gênero)?
Note que não fiz aqui menção ao gênero em si, exatamente por ser este constatado face àquilo que se demonstra socialmente, de sorte que se alguma dúvida venha a surgir, esta reside especificamente por não se conseguir enquadrar aquilo que está sendo expressado nos padrões clássicos do que seja o masculino ou o feminino2.
Ante a tais premissas, em verdade, o questionamento a ser feito é: esse anseio por informações quanto à sexualidade alheia é mera curiosidade ou expressão manifesta do preconceito?
Em uma resposta preliminar, tendo a concluir que acessar tais informações é o que viabiliza o pleno exercício do preconceito e discriminação contra as minorias sexuais. Não que a culpa seja dessas pessoas de expor sua sexualidade, mas sim que a falta de letramento de nossa sociedade quanto à sexualidade e aos elementos que a compõem, é o que pavimenta a forma discriminatória que emana da "descoberta" de caracteres vinculados ao sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
Em certos círculos sociais, as bolhas como se tem chamado atualmente, a discussão acerca de elementos da sexualidade alheia ganha contornos de uma pseudo cientificidade que chega a assustar, principalmente por estar lastreado em uma série de informações equivocadas e certezas extraídas de um "conhecimento popular" que está totalmente dissociado dos parâmetros cientificamente constituídos.
Muitas vezes são questões que ordinariamente passariam ao largo da atenção da maioria das pessoas, mas que acabam chegando a elas de forma enviesada, maculada por interesses daqueles que veiculam certas informações, especialmente quando esses são pessoas com algum poder de fazer com que sua voz reverbere, fazendo com que muitos venham crer que tais discussões realmente permeiam o dia a dia de todas as pessoas que vivem em nosso país.
O fato é que, em verdade, para a grande maioria da sociedade tais temas não se convertem efetivamente em questões de relevância, exatamente por não se tratar de fatos que tangenciam sua vida ou mesmo das pessoas que lhes são mais próximas, fazendo com que elas venham a considerar um grande exagero todas as discussões entabuadas sobre esses temas, a ponto de questionarem: "pra que todo esse mimimi?".
É notório que são poucas as pessoas em nossa sociedade que manejam de forma adequada os conceitos vinculados à sexualidade, como se pode constatar facilmente dos recorrentes equívocos e confusões expressadas com relação a conceitos como transgênero, cisgênero, homossexual, bissexual, intersexo e intersexual, para dar apenas alguns exemplos3.
Não são poucas as situações nas quais falas que envolvam os interesses de minorias sejam atravessadas por afirmações que relatam a existência de preocupações maiores para a sociedade do que a discussão ou a luta para garantia dos direitos desses grupos sociais. Entre os menos versados sobre as questões da sexualidade é muito comum um discurso que pondera a relevância de se discutir o direito à mudança do nome das pessoas transgênero enquanto "a criminalidade na cidade só aumenta ".
Esse é apenas um dos vários casos em que podemos constatar manifestações das chamadas "pessoas comuns" se mostrando contrárias às pautas que são caras a todas as minorias sexuais, claramente revelando que quando não se trata de uma dor que a atinge, a tendência é menosprezar a importância das agruras enfrentadas pelos demais.
Interessante considerar, ao mesmo tempo, que muitas dessas pessoas que desprezam as importantes lutas travadas pelas minorias sexuais se sentem profundamente ofendidas quando suas características vinculadas à sexualidade, ou mesmo a elementos decorrentes desta, são ignorados ou não são perfeitamente considerados.
Qual é, ordinariamente, a reação de um desses sujeitos quando alguém erra o seu nome e, por qualquer motivo, vem a chamá-lo por um prenome distinto do seu, especialmente quando não condizente com o seu gênero, principalmente se essa pessoa for alguém do gênero masculino? Como um "macho" se porta quando chamado por um nome feminino? Simplesmente comunicaria o equívoco ou se sentiria ofendido?
Para além dessas discussões tenho notado que tem sido cada vez mais usual que questionamentos quanto à sexualidade alheia venham sendo feitos em contextos desnecessários. Aparentemente, muito desse agir decorre de uma campanha que visa incutir um pânico nas pessoas contra aspectos vinculados à diversidade, criando uma refração social a tudo o que tenha por objetivo garantir direitos elementares aos mais vulnerabilizados4.
Elementos que deveriam ser básicos de qualquer sociedade, por envolverem características humanas, acabam sendo distorcidos, gerando um pavor em certas pessoas quanto a temas que, em verdade, não carregam em si nenhum potencial ofensivo. Visam apenas garantir às minorias aquilo que ordinariamente é ofertado a todos5.
Nesse aspecto basta considerar toda a ojeriza que certa parte da população brasileira tem quando se menciona a necessidade de que crianças e adolescentes tenham acesso à educação sexual. Quando tal expressão chega aos ouvidos de alguns há uma imediata associação com uma absurda ideia de que nessa matéria as crianças serão ensinadas a manter relações sexuais.
Esse tipo de construção se origina de um mundo obscuro, tendo como criadores os mesmos autores que um dia sugeriram a existência de projetos que tinham por objetivo oferecer às crianças "mamadeiras de piroca", uma história absurda, sem qualquer correlato com o mundo dos fatos, mas que ganhou grande notoriedade e que segue presente na cabeça de muitas pessoas6.
Na nova dinâmica de veiculação de informações propiciada pela nossa sociedade da informação, que possibilita a qualquer pessoa, através da internet, manifestar todo tipo de sandice como se fosse uma verdade que foi apurada jornalisticamente, o potencial lesivo de uma invenção como essa é exponencialmente elevado.
Essa realidade atualmente posta tem feito com que algumas discussões relacionadas à sexualidade surjam em contextos que aparentemente não fariam sentido, demonstrando estarem totalmente permeadas por esses ranços preconceituosos.
Na presente coluna trago, à titulo de exemplo, um fato ocorrido no Carnaval de 2025. Essa festa popular que é intimamente associada a uma ideia de liberdade e diversidade, na qual muitas pessoas experimentam, ainda que sem perceber, uma experiencia de crossdresser, algo que não faz parte do seu cotidiano, pode revelar traços dessa problematização da sexualidade sem uma real razão.
Conforme publicado nas redes sociais, o Bloco Afoxé Filhos de Ghandy, uma das associações mais tradicionais do carnaval baiano, encaminhou um comunicado aos associados (termo de aceite) afirmando que apenas homens cisgênero seriam permitidos no cortejo. Tal fato gerou uma grande discussão social, principalmente na cidade de Salvador, com entidades LGBTQIAPN+ e foliões questionando imediatamente a natureza transfóbica de tal manifestação.
Na sequência, a diretoria do bloco se manifestou, afirmando: "Recolhemos o termo de aceite onde consta a palavra masculino cisgênero, passando a constar apenas do sexo masculino, quanto à alteração no estatuto posteriormente convocaremos uma assembleia geral para discutir o assunto".
Chegaram a se justificar afirmando que o bloco possui 76 anos de existência e que, tradicionalmente, só homens nele desfilam. A nota afirma que "tradicionalmente, e de acordo com os preceitos religiosos que o regem desde o início", o bloco "é formado exclusivamente por pessoas do sexo masculino".
O fato ensejou a abertura de investigação pelo Ministério Público da Bahia para apurar um possível caso de "transfobia", tendo sido encaminhado um ofício ao presidente do Bloco Afoxé Filhos de Ghandy para que, no prazo de 24 horas, tal objeção viesse a ser retirada, solicitando ainda o encaminhamento para a promotoria do estatuto social do bloco, haja vista que constava do termo de aceite que a restrição de participação de pessoas transgênero no bloco estaria pautada no disposto no art. 5º do seu estatuto social (item 10 do aceite).
Inusitado notar que também do aceite consta, no item 4, que não será aceita qualquer conduta de desrespeito ao próximo, que conduz ao questionamento básico: Tal tipo de exclusão não seria efetivamente um desrespeito? Ou identidade de gênero divergente faz com que a pessoa deixe de ser considerada "próximo"?
O termo de aceite, a nota e as demais manifestações publicadas sobre o tema revelaram claramente a necessidade urgente de que as pessoas efetivamente entendam os elementos vinculados à sexualidade antes de qualquer manifestação sobre o tema7. Em tudo o que consta desse caso é possível verificar a existência de uma série de equívocos quanto à compreensão do que vem a ser sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
Importante pontuar aqui que a presente coluna não tem o intuito de discutir a autonomia do bloco de determinar quem são as pessoas que poderão integrar o seu cortejo. O que se coloca é se, e como, haveria a verificação quanto tal requisito caso ele pudesse prosperar, especialmente quando se tratasse de uma pessoa que já tivesse realizado a alteração de seus documentos a fim de fazer constar deles o nome e o sexo condizentes com a identidade de gênero expressada.
Teria a associação a prerrogativa de exigir que seu associado apresentasse não apenas uma certidão de nascimento, mas sim a sua versão de inteiro teor, onde seria possível constatar tais alterações? Ou seria imposto que os associados passassem por algum tipo de exame médico ou mesmo exposição do corpo para demonstração de que se trata de uma pessoa cisgênero? Proporiam uma comissão de heteroidentificação para verificar se aquela pessoa seria mesmo uma pessoa cisgênero?
Tais soluções me parecem um tanto absurdas.
Outro ponto que levantamos é se efetivamente houve a procura de pessoas transgênero para participar do bloco ou a discriminação no aceite apresentado aos interessados tinha um caráter de outra natureza. E mais, tenho profundas dúvidas se quem redigiu o aceite e as demais manifestações do bloco tem, efetivamente, a plena compreensão do que caracteriza cada um dos elementos da sexualidade.
Esse caso é apenas mais um que nos faz questionar essa moda de demonizar toda sorte de diversidade sexual para atender a standards conservadores e morais.
Por fim, o que se traz para a reflexão é: qual diferença faz, para desfilar, se aquela pessoa é cisgênero ou transgênero?
Com isso, retomo ao título da presente coluna para instigar a quem me lê: por qual motivo você quer saber o sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero de quem quer que seja?
1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 6.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 3-16.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 245.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 312
6 Disponível aqui. Acesso em: 27 jan. 2024.
7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, 2024.