COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Direito e Sexualidade >
  4. O PL 896/23 e a criminalização da misoginia

O PL 896/23 e a criminalização da misoginia

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Atualizado em 10 de dezembro de 2025 11:51

Mesmo vivendo em uma sociedade tão evoluída quanto a que vivemos, na qual discussões extremamente avançadas, que perpassam considerações sobre os impactos da inteligência artificial no futuro da humanidade ou a exploração do espaço e viagens a Marte, ainda nos deparamos cotidianamente com seres humanos que se consideram superiores aos outros pelos mais distintos critérios, e acreditando que, por isso, podem desprezar, ofender, diminuir, oprimir e subjugar aqueles que são diferentes deles.

Em um dado recorte, essa prática encontra-se direcionada às mulheres e ao feminino, reflexo de uma opressão paternalista que segue entendendo que a mulher haveria de ver "o homem de baixo para cima, como o lacaio vê o patrão"1, como constatava Simone de Beauvoir.

A proteção da mulher e do feminino segue sendo almejada em nossa sociedade, já existindo um certo arcabouço jurídico destinado a esse fim, merecendo especial menção a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) e a criminalização do feminicídio, inicialmente como qualificadora do homicídio (art. 121, § 2º, VI, do Código Penal), que agora, com o pacote antifeminicídio (14.994/2024), passa a figurar como tipo penal específico no art. 121-A do Código Penal2.

Mais recentemente, visando conferir uma maior robustez ao sistema, tem ganhado força a tentativa de reconhecer a misoginia como uma conduta a ser criminalizada, com a sua inclusão entre os preceitos a serem resguardados pela Lei do Racismo (lei 7.716/1989)

Nesse contexto o PL 896, de 2023, que tem por objetivo alterar a Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989), para incluir os crimes praticados em razão de misoginia, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, em 22 de outubro de 2025.

A discriminação contra as mulheres e o feminino é tema recorrente na presente coluna, com alguns textos versando sobre o assunto, os quais serão mencionados novamente aqui enquanto discorremos de forma mais detida sobre a concepção de misoginia e as premissas que alicerçam a proposta legislativa.

O primeiro passo é, portanto, compreender a acepção do conceito de misoginia.

De origem grega, composta por mîsos (µ?s??), que significa ódio e gyné (????), traduzida como mulher, a expressão misoginia (µ?s?????a - misogunía) comporta a ideia, literalmente, de "ódio às mulheres", tendo sua primeira utilização atribuída a Aristóteles, na obra hoje perdida denominada Ajax. Em textos existentes, a remissão mais antiga que se tem está no tratado "Economics", onde surge com o sentido de expressar o homem que evita a convivência com a esposa.

Com a chamada 2ª onda do feminismo, em meados dos anos 70 do século passado, a expressão passa a ser utilizada segundo uma perspectiva mais ampla, não se restringindo apenas ao ódio individual às mulheres, passando a compreender algo mais abrangente, como um sistema de opressão, controle e violência contra mulheres3.

Expressão dos papéis de gênero impostos culturalmente às mulheres, bem como um meio de reforçá-los, a misoginia pode ser entendida como sendo o ódio, aversão ou preconceito contra as mulheres, ou, no sentido trabalhado por Andrea Dworking, como um ódio sistemático às mulheres, enraizado na cultura (presente em mitos, religião, arte) e nas relações sociais, que não se restringe a atitudes individualizadas de ódio, mas sim como um mecanismo estrutural de dominação patriarcal4.

A misoginia constitui-se como uma das mais claras expressões da tentativa de fazer com que a masculinidade hegemônica5 siga pautando a condução da nossa sociedade. Seus desdobramentos culminam numa legislação que praticamente ignora a existência das mulheres e do feminino, apartando-se da oferta de uma atenção específica e relegando-as, em muitos momentos, a um apagamento institucionalizado, como expressamos nas duas colunas nas quais tratamos do paradigma masculino impactando no direito das mulheres6.

Essa aversão ou preconceito quanto a existência das mulheres e do feminino em certas searas é um traço marcante da sociedade ocidental e pode ser constatado enquanto fenômeno estrutural, por exemplo, em toda sorte de violência de gênero experimentada pelas mulheres, que vai desde as violências físicas (feminicídio, estupro, violência doméstica), passando pela baixa representação política, desigualdade salarial, imposição do exercício dos deveres de cuidado de forma não remunerada e reduzida ocupação de espaços de gestão. Se faz presente até mesmo nas discriminações culturalmente aceitas e tidas como de menor relevância, como em estigmas, discursos de ódio, desqualificações e piadas7.

O fato inconteste é que o Estado tem plena ciência de que as mulheres e o feminino constituem-se como aspectos pessoais que podem conduzir uma pessoa a uma realidade social de discriminação, existindo até mesmo mobilizações institucionais com o fim de buscar a eliminação, ou ao menos a mitigação, dessas práticas que visam manter a pseudo supremacia do homem e do masculino sobre elas, sendo a criminalização do feminicídio uma das suas maiores expressões8.

A possibilidade de reconhecimento da mulher como uma minoria sexual, considerando o sexo (mulher/fêmea) e o gênero (feminino) entre os aspectos componentes dos pilares da sexualidade, juntamente com a orientação sexual e a identidade de gênero9, é algo que venho sustentando já de longa data, como exposto em eventos dos quais participei10, textos que publiquei11 e até mesmo em orientações de dissertações de mestrado que conduzi12.

A premissa basilar reside na exata compreensão do conceito raça para fins jurídicos.

Não se sustentando a concepção superada da raça baseada em aspectos biológico, tem se consolidado a dimensão social da raça, a qual "hierarquiza as pessoas não apenas segundo aspectos físicos", mas também face a critérios morais, intelectuais, culturais, étnicos, geográficos, entre outros13, sustentada "na crença de superioridade de um grupo e de inferioridade de outro, que é vítima de discriminação e segregação em razão do seu pertencimento ao grupo tido como minoritário"14. Baseados nessas premissas, entendem ser seu direito, enquanto maioria, a possibilidade de subjugar tais pessoas.

Assim, aqueles que se consideram como majoritários passam "a agir de forma a subjugar, menosprezar, reduzir direitos, e até mesmo extirpar da sociedade" aqueles que não são iguais a eles15. Coloque isso em perspectiva e analise a realidade vivenciada pelas mulheres, bem como toda aquela que expressa o feminino em nossa sociedade e pondere, considerando, por exemplo, que já formos brindados com pérolas como a de um empresário pedindo, de forma convicta e professoral, que Deus o livrasse de mulher CEO16.

Repise-se que essa perspectiva de raça, em sua dimensão social, encontra-se consolidada em sede jurídica.

Hermeneuticamente, essa concepção emana de forma evidente do que consta do art. 5º da Constituição Federal, já que ali se constata a presença, concomitante, das expressões "cor" e "raça". Ciente de que não há palavra inútil ou supérflua no texto da lei (verba cum effectu sunt accipienda)17 patente está que elas não podem referir-se à mesma coisa.

A própria Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989) deixa evidente que a acepção jurídica de raça não se restringe à cor de pele, haja vista que ali encontram-se resguardadas, sob a égide da concepção de raça, pessoas que venham a sofrer discriminação com base em raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art. 2º-A e art. 20).

Nesse sentido, vemos que o Supremo Tribunal Federal (STF) já desde o início dos anos 2000, como ocorrido no Caso Ellwanger (HC 82.424-2/RS), que condenou o editor Siegfried Ellwanger por divulgar material antissemita e negar o holocausto através de sua editora, tem por consolidado o entendimento que os crimes de racismo ou injúria racial não cingem-se apenas aos casos de discriminação por cor de pele ou fenótipo18.

Mais recentemente, o mesmo Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2023, no julgamento da ADO 26 e do MI 4.733 entendeu que o preconceito ou discriminação manifestados contra pessoas homossexuais ou em face de pessoas transgênero configura crime de racismo ou de injúria racial, calcado na dimensão social da raça19.

Com lastro no expressado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a ADO 26 e o MI 4.733 afirmamos que tal decisão sustenta o entendimento de que todas as minorias sexuais encontram-se resguardadas pelos parâmetros da Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989). Trata-se de hermenêutica inafastável, de sorte que "pessoas transgênero, homossexuais, assexuais, bissexuais, pansexuais, mulheres e pessoas intersexo são vítimas de racismo, independentemente de sua cor de pele, apenas e tão somente em razão de sua condição de integrantes de uma minoria sexual"20.

Sim, a assertiva é exatamente essa.

Mulheres, por toda a misoginia sofrida, são vítimas de racismo e injúria racial, com base na concepção de raça em sua dimensão social, como vem sendo reconhecido de forma recorrente pelo Supremo Tribunal Federal.

Essa concepção de compreender a mulher/fêmea, bem como aquela que expressa o feminino, como alguém que encontra-se inserida em um status racializado de inferioridade já é objeto de atenção em estudos desenvolvidos em outros países21, exatamente partindo da percepção social que pauta a misoginia e que considera-as como seres humanos de uma classe inferior22.

 Com o fulcro de positivar essa construção como um todo surge o Projeto de Lei n° 896, de 2023, cujo intento é inserir a misoginia nos tipos penais do crime de racismo e de injúria racial na Lei do Racismo (lei 7.716/1989). Em linhas simples, o projeto apenas introduz a palavra misoginia nos tipos penais descritos no art. 2º-A e 20.

A medida se faz pertinente e compõe a estrutura protetiva indispensável à garantia da integridade plena da mulher/fêmea e do feminino, sendo inafastável a compreensão de todo o potencial pedagógico que a previsão individualizada da misoginia integrando o tipo penal terá em uma sociedade que é movida muito mais pela criminalização das condutas do que pelo desenvolvimento de atividades de conscientização.

O que não pode seguir vicejando é a já tradicional conduta institucionalizada de nosso Estado Esquizofrênico23 que segue protegendo de forma insuficiente aquelas que ele assevera serem merecedoras de especial proteção em razão de sua condição de vulnerabilidade24.

O Poder Legislativo não pode restar inerte, ignorando que ocorrem cerca de 4 feminicídios e 196 estupros por dia no país, como constatado pelo Ministério da Justiça no Mapa da Segurança Pública 202525, com 1 em cada 3 mulheres relatando já ter sofrido violência doméstica26.

Esses números resultam da misoginia não combatida que segue ceifando a saúde e a vida de quem o Estado reconhecidamente sabe ser vítima das condutas discriminatórias praticadas por quem tem medo, aversão ou preconceito à participação das mulheres de forma igualitária na sociedade.

Não há como se olvidar que enquanto não houver a positivação específica da misoginia como crime entendemos que as condutas discriminatórias praticadas contra esse grupo minoritário já comportam a aplicação das penas previstas na Lei do Racismo (lei 7.716/1989) em razão da exata compreensão da amplitude do conceito de raça, que há de ser entendido segundo a sua dimensão social, conforme consolidado pelo Supremo Tribunal Federal.

Contudo é inegável a força social que a indicação expressa da misoginia entre os crimes apenados pela Lei do Racismo (lei 7.716/1989) teria para uma sociedade que segue tratando uma questão tão séria como essa como se fosse algo de menor relevância.

Certo de que a criminalização da misoginia será um forte reforço à proteção da mulher/fêmea e do feminino, com um manifesto potencial de ensejar em uma efetiva redução na incidência de condutas mais gravosas, como feminicídio e outras formas de violência, somos pela inclusão da misoginia entre os crimes previstos na Lei do Racismo (lei 7.716/1989).

Talvez só assim venhamos a nos constituir, no futuro, em uma sociedade que não precisará discutir a criminalização da discriminação da mulher/fêmea e do feminino.

__________

1 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. v. 2. p. 381.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 DWORKIN, Andrea. Woman Hating: A Radical Look at Sexuality. New York: E. P. Dutton, 1974.

5 CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W.. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282, 2013.

6 Disponível aqui.

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O discurso humorístico do comediante sobre minorias: crime ou exercício da profissão do humorista? Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 6, n. 1, p. 326-369, 2025, p. 329-330.

8 Disponível aqui.

9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 1.

10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito e gênero na jurisprudência. Participação de: Camila Gonçalves. Série: Falando de Direito e Sexualidade. YouTube, 20 mai.2020. Vídeo. Disponível em: https://youtu.be/Ve5pZ1Iwvdw . Acesso em: 7 dez. 2025.

12 SAMÕES, Juliana Paiva Costa. Epistemologias e hermenêuticas jurídicas feministas: o gênero como categoria analítica dos princípios da igualdade e da dignidade das mulheres. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.

13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 232.

14 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Transgêneros: conquistas e perspectivas. In: LISBOA, Roberto Senise (coord.). Direito na Sociedade da Informação V. São Paulo: Almedina, 2020. p. 170.

15 Disponível aqui.

16 Diponível aqui.

17 Disponível aqui.

18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O discurso humorístico do comediante sobre minorias: crime ou exercício da profissão do humorista? Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 6, n. 1, p. 326-369, 2025, p. 329-330.

19 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 233.

20 Disponível aqui.

21 MONTOYA, María de los Ángeles. Las claves del racismo contemporáneo. Madrid, Libertarias/Prodhufi. 1994. SOLANA, José Luis. Sobre el racismo como ideología política. El discurso anti inmigración de la nueva derecha. Gazeta de Antropología, Nº 25 /2, 2009. p. 11-12

22 Disponível aqui.

23 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.

24 Disponível aqui.

25 Disponível aqui

26 Disponível aqui