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Lei Mariana Ferrer e o Direito Penal do inimigo

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Atualizado às 08:04

O presidente Jair Bolsonaro sancionou, finalmente, a "Lei Mariana Ferrer", que, supostamente, veio para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas, além de estabelecer uma causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo. 

Como todos vocês devem saber, o Brasil é um país que já resolveu os seus problemas de gênero. Os meninos pobres deste país não vivem mais a realidade do tráfico de drogas, bem como a prostituição de meninas é rara, temos famílias prósperas, homens e mulheres vivem em paz e harmonia. 

Assim, podemos nos dar ao luxo de ficar brincando de Direito Penal, alterando penas e flexibilizando garantias processuais-penais, porque, afinal, somos um país em que, a despeito da legislação infraconstitucional, aplicamos os princípios constitucionais em nossas vidas. 

Só que não. 

Eu vou evitar me aprofundar na polêmica sobre a conveniência do nome desta lei. Sabemos que o réu foi absolvido em primeira e segunda instância, sem divergência entre os magistrados. Parece-me uma homenagem, no mínimo, polêmica, que demonstra inversão de valores e acirra desnecessariamente a guerra dos sexos. 

A "Lei Mariana Ferrer" é a 14.245, de 22 de novembro de 2021, ela começa inventando uma causa de aumento de pena, no crime de coação do curso do processo, nos casos de crime contra a dignidade sexual. 

Até aí nada de novo. É exatamente o que pessoas ignorantes sobre políticas criminal e de gênero fazem: aumentam penas de modo irrelevante, para fingir que estão fazendo alguma coisa e enganar os otários e as otárias, que, quando não entendem de Direito, acham que alguma coisa mudará na sociedade, por causa dessas medidas populistas. 

São as legisladoras se valendo do Direito Penal Simbólico, para mandar uma mensagem de representatividade para a sociedade: "Olha, como temos força para aumentar as penas, nesta nossa sociedade eticamente falida!" 

Nenhuma mudança positiva material de gênero ocorre em prol das mulheres, mas todas podem se sentir representadas. É uma política criminal à Instagram: dá uma curtida no perfil de todas elas, massageando o ego por alguns segundos, dá tempo de postar no Tiktok e pronto; acabou. Dos cosméticos aos remédios, essa é a única solução que a aliança Estado-Capitalismo consegue entregar em sua política de gênero. 

A coação no curso do processo ocorre, quando alguém se vale de violência ou grave ameaça contra alguém relacionado ao processo, para obter algum benefício próprio ou alheio, nos termos do artigo 344, do Código Penal. O curioso é que a vítima também poderia incorrer nesse crime, ou seja, o juiz pode aplicar a causa de aumento de pena contra ela. 

O conteúdo principal da lei, no entanto, está nos seus artigos 3º e 4º. São mecanismos supostamente utilizados para proteger a vítima. Só tem um probleminha. O processo penal é feito para proteger a pessoa (homem ou mulher) do poder punitivo do Estado. Salvo no caso de má-fé processual, quando o Estado limita as estratégias e o conteúdo da defesa, ele está expandindo o próprio poder dele às custas das pessoas. 

A vítima não está sendo protegida, porque o crime já ocorreu. Essa lei expande o poder punitivo do Estado. Amplia o poder que ele tem de punir às custas dos direitos humanos. Inverte os princípios do processo penal. 

A lei determina que todas as partes e demais sujeitos processuais, o que inclui o próprio réu e o seu advogado, têm o dever de zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa. 

Mas qual a função do advogado do réu? Zelar pela integridade psicológica da vítima ou defender o seu cliente? Julgamentos são, sim, desagradáveis para a vítima e evitar a revitimização é importantíssimo, mas não às custas do devido processo legal e da ampla defesa. 

A Constituição determina que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, assegurando o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A Lei Mariana Ferrer é inconstitucional. 

O Estatuto da OAB, em seu artigo 7º, diz que o advogado tem liberdade para exercer a sua profissão, possuindo, para tanto, imunidade profissional, não constituindo injúria ou difamação puníveis qualquer manifestação da sua parte no exercício da sua atividade, em juízo ou fora dele. 

A primeira vedação da lei é inútil. Diz que é proibido se manifestar sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos. Já era assim. Óbvio, na instrução processual, cabe ao juiz conduzir o processo para apuração dos fatos relevantes. Por exemplo, um bom juiz já nega a realização de perguntas irrelevantes e cabe a um bom advogado demonstrar a pertinência das suas manifestações. Mais uma vez, o legislador fingiu que estava fazendo algo para proteger direitos, quando na verdade não fez nada. É populismo de gênero. 

A segunda vedação é perigosa. As regras do processo penal existem para proteger o réu, mas a Lei Mariana Ferrer restringe o conteúdo da defesa, ao proibir a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. 

Em crimes contra a dignidade sexual, quando não há flagrante, é uma linha de defesa válida questionar a veracidade das alegações da vítima, pois podemos estar diante de uma falsa acusação. Ora, como o advogado fará isso sem perturbar a integridade psicológica da vítima? Como ele vai provar que ela está mentindo, sem desqualificar as alegações dela? Se a vítima disse que era virgem e isso for um fato relevante, como o advogado contesta que ela não era, sem mencionar aspectos da vida pessoal dela? 

Por mais sensível e doloroso que seja um processo desses (e é por isso que ele corre em segredo de justiça), a discussão é sobre se houve ou não violação à dignidade sexual da vítima, e não tem como condenar uma pessoa sem comprovar esse fato. Do contrário, o juiz punirá alguém sem provas. Não pode. A regra do processo penal é a absolvição, quando houver dúvidas sobre a existência do crime ou se foi o réu que o praticou. 

Infelizmente, se o elemento mais robusto do processo é a palavra da vítima, cabe à defesa questioná-la. Se o advogado ficar passivo e não defender o seu cliente utilizando de todos os meios legais e possíveis, ele não agirá com diligência e pode ser responsabilizado civilmente por isso. 

Ora, quer dizer que agora o Ministério Público tem a liberdade para acusar, mas o réu não tem para se defender? Mas que processo penal é esse? 

Quando se relativiza ou suprime as garantias processuais, direcionando essas leis mais severas a um determinado grupo, no caso, os homens, estabelece-se um Direito Penal do Inimigo. 

O homem passa a ser visto como inimigo das mulheres, merecendo um processo penal mais rígido contra eles. O Estado considera que ele é um potencial estuprador, que não se submete às regras, relativizando as garantias deles para aplicar penas. 

Nós não estamos mais apenas criticando os homens. Estamos violando os direitos humanos deles. Isso ainda vai acabar muito mal. Isso não é direito; é vingança. 

Se querem um processo mais justo nos crimes sexuais, devemos respeitar as garantias processuais e iniciar um debate inteligente sobre colheita e valoração de provas. De modo a proteger as vítimas reais, sem prender inocentes. 

Problemas de sexualidade são complexos e não serão resolvidos com soluções simples. A tensão entre os gêneros vai piorar e a crise existencial tende a se aprofundar ainda mais. Se os homens forem tratados como outsiders da sociedade, eles virarão as costas para ela.