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Direitos Fundamentais

Direitos fundamentais sob uma ótica pragmática, com base em políticas públicas.

Igor Pereira
quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Um mundo sem crianças, sem família, sem futuro

Custa-me entender por que o Estado desconsidera as famílias em suas políticas sociais. Qualquer um que faz isso, expande a pobreza.  Infelizmente, criamos uma política de gênero artificial, desconstrucionista, que é incapaz de olhar para a realidade e reconhecer que as relações entre homem e mulher estão deterioradas.  Um dos motivos para isso é que temos um direito sexual belicoso, que compreende, erroneamente, que o homem é inimigo da mulher.  Esse direito sexual, compreendendo mal o lema "o privado é político", expande o direito penal aos detalhes mais íntimos das relações humanas, criminalizando frustrações e dificultando o surgimento de relações de gênero estáveis.  Deve-se combater a violência de gênero, mas com dados reais e de modo equilibrado, para resolver o problema, sem criar novos. Afinal, o direito penal não tem o poder de tornar homens maus em bons e nem de suprir más escolhas sexuais.  Direito penal é feito para mitigar problemas graves, respeitando o princípio da intervenção mínima e da presunção da inocência.  Homens e mulheres cooperaram (apesar das tensões) para a sobrevivência da espécie humana. Homens não são (e nunca foram) os vilões da história. Vilania não tem gênero.  O liberalismo e o Estado direcionam os corpos sexuais para o mercado, que melhor lhes convém. Um exemplo disso é a pressão, nos EUA, para a formação de mulheres engenheiras, área em que há carência de profissionais no mercado norte-americano.  Para cumprir seus objetivos, encontrou no feminismo a ideologia perfeita. Fundado e alimentado pelo trauma, a política de gênero dominante atropela o amor, protagoniza a queda das famílias e expande a pobreza intergeracional.  Sem elementos de proteção e isolados, homens e mulheres estão cada vez mais dependentes do Estado e das empresas.  A taxa de natalidade cai exponencialmente, colocando em risco os direitos sociais e o futuro da humanidade. Já temos uma crise global demográfica. Vivemos em um mundo com cada vez menos crianças.  Inventa-se que políticas sociais para mães solo são o progresso do século XXI. Desconsidera-se que já existem experiências mal-sucedidas nesse tema.  O Estado só tem como amortecer o peso da dupla jornada da vida da mulher, mas não resolve. Nenhuma transferência de renda estatal é capaz de suprir os benefícios da colaboração saudável entre homem e mulher.  Devemos, sim, ajudar no combate às desigualdades sociais, considerando a situação das mães solo. Devemos, sim, criar políticas de transferência de renda, que considere as crianças. Devemos fazer isso com ciência sexual e de gênero e sem desconsiderar que medidas paliativas não substituem a cooperação do homem e da mulher na criação das famílias.  Nós, teóricos de gênero alternativos, sabemos que existem diversas famílias. Reconhecemos isso. Porém, como temos responsabilidade social, defendemos políticas públicas, que farão diferença substancial no combate às desigualdades sociais. Sem populismo de gênero.  Nem sempre isso convém ao "oba-oba" hedonista, frágil e mentiroso do nosso débil mundo contemporâneo, à beira de uma crise civilizacional.  Menos trauma, mais amor.
A última pataquada da internet é o caso Klara Castanho. Ela é uma atriz, de 21 anos, que teve que se justificar na internet o fato de entregar o seu filho à adoção. Segundo a atriz, ela teria sido vítima de estupro. Como a gravidez foi descoberta tardiamente, ela resolveu entregar a criança à adoção. Em sua carta, ela diz: "Não posso silenciar ao ver pessoas conspirando e criando versões sobre uma violência repulsiva e um trauma que sofri. Esse é o relato mais difícil da minha vida. Pensei que levaria essa dor e esse peso somente comigo. Relembrar esse episódio traz uma sensação de morte, porque algo morreu em mim. Não estava na minha cidade, não estava perto da minha família nem dos meus amigos". Ela não fez o boletim de ocorrência por se sentir envergonhada e culpada, o que é um direito dela. A atriz teria o direito de realizar o aborto ou entregar a criança à adoção. O direito protege ambas as hipóteses. O que é de direito de alguém não deveria ser o incômodo de ninguém. Se grupos querem mudar a legislação (acredito que este não seja o caso), que façam isso com base na lei abstrata, e não em casos concretos. No entanto, em nossa sociedade líquida decadente, a atriz teve que explicar os motivos de se valer do direito de entregar a criança à adoção. Isso porque uma dupla de influenciadores resolveu cancelá-los. Eles criticaram a atriz pela sua escolha de entregar a criança à adoção. Esse não seria o ato de uma "boa mãe". A partir daí, a cultura do cancelamento já estava ativa. Ela nada mais é do que a volta à barbárie. Arrogantes, cremos hoje que os princípios penais e processuais penais não servem de nada. Na nossa cultura são meros detalhes jurídicos. Julgar é fácil. Basta ir contra alguém que praticou um ato polêmico juntando-se à multidão. Quando abrimos mãos dos nossos princípios, chegamos mais rápido ao fundo do poço. A atriz, então, escreve a derradeira carta. Os canceladores mudam de lado. Iniciam o ataque contra os influenciadores, exigindo a sua imediata destruição. Sem saber, de novo, as circunstâncias pelas quais tudo aconteceu. Está claro, nesse caso, que Klara Castanho está correta. Não merecia passar pelo que passou. Mesmo que não tivesse sofrido nenhuma violência, essa é uma decisão de foro íntimo. Se uma mulher não se sente em condições de ser mãe, ela tem a opção de entregar a criança à adoção. Isso é uma bandeira que agrada tanto quem é pró-vida quanto quem é pró-escolha. Mas, então, por que essa polêmica se iniciou? Vivemos em uma cultura do linchamento, que é temperada há anos por programas de fofocas, como Big Brother Brasil, Fazenda, etc. A cultura de massa pode despertar o que há de pior em nós. Desistimos do direito. Queremos vingança. Esse é um dos sinais do nosso declínio civilizacional. Princípios já não são tão importantes. Para atingir uma justiça imediata, fast-food, queremos cancelar todos que agem fora do nosso padrão. Queremos julgar. Infelizmente, queremos sangue. Se a cultura do cancelamento não tivesse tão forte, Klara não teria que se explicar publicamente, porque não teria sido criticada. E, mesmo se fosse, não haveria tanta repercussão. Esta é a raiz do mal: o linchamento público. Enquanto não vencermos essa aberração, viveremos numa cultura que maltrata e pune inocentes, julgando por notícias, perspectivas, ouvi dizer. Homens e mulheres, todos são vítimas das acusações falsas da cultura do cancelamento. Justiça é para ser feita com devido processo legal. Não pela mídia; não pelas redes sociais. Já são anos de acusações irresponsáveis, só para descobrirmos depois que elas eram falsas ou que as coisas não eram bem assim. Inexistem atalhos. Não dá pra fazer justiça sem processo. Sem acalmar os ânimos e dar espaço para cada um expor o seu ponto, apresentando provas e tendo alguém muito bem treinado pelo julgamento. Vivemos em um mundo em que todos se acham juízes. Narcisismo: indica que nos sentimos superiores aos outros. Pobre mundo, que precisa tanto de defensores, mas só ganha julgadores. Cancelar menos, amar mais. É a minha sugestão. Afinal, "o amor é paciente, o amor é bondoso, não inveja, não se vangloria, não se orgulha, não maltrata, não procura os seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade".
Lia Thomas fez história na natação, sendo a primeira mulher trans a conquistar o título da NCAA - The National Collegiate Athletic Association. Ela ganhou o pódio nas 500 jardas livre, mas não sem reviver uma polêmica, que há anos marca os estudos de gênero. As suas rivais se recusaram a se juntar a ela para tirar as fotos das medalhistas. A nadadora foi pouco aplaudida pela torcida e muitas torcedoras não concordaram com a sua participação na competição. O motivo? As diferenças biológicas entre uma mulher trans e uma mulher cisgênero. Lia, que competiu pela Universidade da Pensilvânia, participou por três anos na equipe masculina, antes de fazer a transição de gênero. Ela é apta a competir em eventos femininos, segundo as regras da NCAA, quando cumpre um ano de tratamento de supressão de testosterona. Ela cumpriu as regras, mas o processo é justo? Será que não estamos nos afastando da ciência, para acomodar a nossa própria ideologia? A propaganda de que todos devem ser acomodados em toda parte na sociedade, a partir das suas crenças de gênero, é impossível de ser implementada. Nesse caso, quem pode sair perdendo são as mulheres cisgêneros, que não possuem o mesmo histórico físico e biológico da atleta mulher trans. É justo acomodar as pessoas de acordo com a sua identidade, mas precisamos ser realistas, entendendo que nem sempre isso é possível. Ao tomar uma decisão segura e consciente de fazer a transição de gênero, a pessoa transsexual deve ser informada dos benefícios e prejuízos desse processo. Nem sempre poderemos acomodá-la em todos os seus desejos. A dignidade dela deve ser respeitada? É claro! Porém, há casos em que o direito de outro grupo estará em risco. Nesse caso, o das mulheres cis. As diferenças biológicas entre homem e mulher não existem apenas em relação às dinâmicas de estrogênio e testosterona no corpo humano presente. Os nossos hormônios provocam mudanças durante todas as nossas vidas e o passado sempre contará para as capacidades do corpo presente. Isso sem falar nos aspectos evolutivos. Esse é um caso em que há um conflito de direitos fundamentais entre diferentes grupos - as mulheres cis e trans. As primeiras não podem ter prejuízos substanciais, para acomodar as segundas. As mulheres trans tomaram a decisão consciente de fazer a transição de gênero. Devemos nos esforçar para acolhê-las e integrá-las na sociedade. Mas nem sempre a acomodação que se quer é possível ou justa. A ideia de que todos podem ter tudo, basta querer, é uma propaganda capitalista existencial irresponsável, que está nos jogando em um mundo de ilusões.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

O combate ao tráfico de mulheres deve ser radical!

A economia do crime de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual se estrutura globalmente, com focos regionais, e valendo-se de circuitos alternativos da globalização. A regra é que partam de países em desenvolvimento para países desenvolvidos, da periferia para o centro, de regiões pobres para as ricas. Mesmo quando se dá em âmbito local, é possível observar essa mesma lógica, onde a prostituição ocorre em bairros ricos com mulheres oriundas de bairros pobres. A exploração sexual tem o poder de estruturar o turismo das metrópoles, relacionando-se facilmente com o mainstream, por meio de agentes de intermediação. A definição das rotas do tráfico de mulheres ainda são imprecisas, dada a dificuldade de se rastrear o caminho do crime e obter a colaboração das vítimas. Esforços de esquematização dos dados existentes e elaboração de novos dados quantitativos e qualitativos ainda são necessários. Há indícios de que a exploração sexual está em franco crescimento. Não devemos pensar o tráfico sexual apenas como um crime contra a liberdade individual ou a dignidade sexual. Ele é também um crime contra a ordem econômica, porque é capaz de degradar a indústria do turismo, modificando a sua demanda nas capitais de exploração sexual. Ademais, impõe diversas dificuldades à qualificação das mulheres da periferia, sendo um empecilho ao desenvolvimento nacional. Portanto, essa criminalização protege múltiplos bens jurídicos, dentre eles, a ordem socioeconômica. O combate ao crime de tráfico de mulheres envolve estratégias globais de prevenção e repressão, com foco absoluto na proteção das vítimas e na inserção no mercado formal de trabalho. Para tanto, é necessário cooperação internacional e padrões globais de direito imigratório, impedindo que as mulheres sejam punidas ou deportadas por serem exploradas sexualmente. As vítimas não podem sofrer duplamente: em razão do crime e pelas consequências da sua descoberta. As medidas antitráfico devem ser interdisciplinares, sem se limitar à ponta do iceberg, enfrentando as causas que levaram as mulheres a ficarem vulneráveis ao mercado sexual. A educação de mulheres da periferia, para trabalhar em novos mercados de trabalho tem o potencial de acelerar o desenvolvimento nacional. Enquanto o Direito Penal faz o seu papel de desestruturar as organizações criminosas sexuais, o Direito Administrativo deve traçar as estratégias de políticas públicas preventivas, em um plano holístico de valorização das mulheres brasileiras. O Brasil passa por crises econômicas, sociais, políticas, ambientais e biológicas profundas. Talvez estejamos no momento mais frágil da nossa história. Temos uma "ficha criminal" de objetificação e hipersexualização das mulheres brasileiras. A indústria do entretenimento brasileira é uma das mais sexualizadas do mundo. A psicologia começa a estudar os impactos negativos do sexo casual, que são muito piores quando relacionados à prostituição.  As condições estão postas para o aprofundamento da exploração sexual das mulheres brasileiras. Não podemos perder essa batalha. Conto com cada um de vocês para virarmos esse jogo.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

A Masculinidade Tóxica é um problema?

Os homens são mais propensos do que as mulheres a responder negativamente, quando desafiam o gênero deles e o uso de termos como "masculinidade tóxica" pode estar ampliando inadvertidamente as divisões de gênero. Segundo pesquisa publicada em janeiro de 2022, na revista Organizational Behavior and Human Decision Processes, os homens se envolvem em comportamentos desviantes, mais frequentemente do que as mulheres, quando o seu status de gênero é ameaçado. Por exemplo, mentir ou furtar no local de trabalho. Eles tendem a responder negativamente, quando acreditam que a sua masculinidade está em perigo. É muito difícil definir o que seria masculinidade, mas pesquisas indicam componentes para alguém ser considerado homem: 1) para ser homem, você deve se dissociar de todas as coisas femininas; 2) a masculinidade deve ser conquistada; 3) ela só pode ser confirmada socialmente; e 4) uma vez que a masculinidade seja conquistada, ela pode ser perdida. É inegável que existe sexismo nesses componentes, principalmente no que se refere a se afastar das coisas que são consideradas femininas. Em regra, é saudável que as pessoas tenham a liberdade para assumir papéis distintos na sociedade. Mais liberdade para que os homens possam viver como quiserem é algo positivo, que podemos buscar, desde que com responsabilidade e cientificidade. No entanto, são os homens que devem discutir sobre mudanças na masculinidade. As mulheres podem colaborar, mas não impor. Além disso ser controle e manipulação, a imposição gera comportamentos antissociais. Pode aumentar, inclusive, a violência contra a mulher. Se as mulheres querem homens melhores, elas devem valorizá-los. Se bondade, sensibilidade e fidelidade são qualidades masculinas importantes para as mulheres, elas devem escolher parceiros que as possuem. Mudanças psicológicas são difíceis e requerem anos de conscientização e consultas psiquiátricas, ou psicológicas. E muitas vezes as pessoas não mudam, elas morrem. Quando outros tipos de homens forem valorizados pelas mulheres, sem o padrão-duplo do "homem pra ficar" e "homem pra casar", eles gradativamente mudarão as posturas sobre a masculinidade. Um dos motivos pelos quais não demonstramos outros traços das nossas personalidades, é porque percebemos que as mulheres não os valorizam, podendo até rejeitá-los. O que, realmente, não vai acontecer é homens com problemas de caráter melhorarem, por meio de manipulação, controle e uso de termos como "masculinidade tóxica". Esses tipos de homens gostam desse desafio, porque maquiavelicamente moldam a personalidade para conseguir o que querem (como usualmente fazem pessoas com traços narcísiscos negativos). Microagressões de gênero não tornam os homens melhores. Pioram os homens bons e são prato cheio para os maus. A masculinidade saudável não é nem sexista nem submissa. Ela é humana, diversa e abrange atos empáticos, que podemos encontrar tanto em homens quanto em mulheres. Se a masculinidade de elite é algo que os homens devem conquistar e manter, nós só nos esforçaremos para sermos diferentes, quando tivermos estímulos positivos. Querem que mudemos a partir de estímulos negativos terríveis e ainda somos menosprezados quando mudamos, perdendo esse status de elite. É óbvio que não vai dar certo. Homens não melhoram, quando a sua condição de gênero é minada. Eles pioram. Se continuarmos com as estratégias de gênero atuais, adotando tudo o que o mainstream do feminismo faz, iremos aumentar a violência masculina, piorar as condições domésticas e a qualidade de vida de homens, e mulheres. Tudo isso refletirá nas taxas de natalidade, aprofundando ainda mais a crise existencial.    
sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Lei Mariana Ferrer e o Direito Penal do inimigo

O presidente Jair Bolsonaro sancionou, finalmente, a "Lei Mariana Ferrer", que, supostamente, veio para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas, além de estabelecer uma causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo.  Como todos vocês devem saber, o Brasil é um país que já resolveu os seus problemas de gênero. Os meninos pobres deste país não vivem mais a realidade do tráfico de drogas, bem como a prostituição de meninas é rara, temos famílias prósperas, homens e mulheres vivem em paz e harmonia.  Assim, podemos nos dar ao luxo de ficar brincando de Direito Penal, alterando penas e flexibilizando garantias processuais-penais, porque, afinal, somos um país em que, a despeito da legislação infraconstitucional, aplicamos os princípios constitucionais em nossas vidas.  Só que não.  Eu vou evitar me aprofundar na polêmica sobre a conveniência do nome desta lei. Sabemos que o réu foi absolvido em primeira e segunda instância, sem divergência entre os magistrados. Parece-me uma homenagem, no mínimo, polêmica, que demonstra inversão de valores e acirra desnecessariamente a guerra dos sexos.  A "Lei Mariana Ferrer" é a 14.245, de 22 de novembro de 2021, ela começa inventando uma causa de aumento de pena, no crime de coação do curso do processo, nos casos de crime contra a dignidade sexual.  Até aí nada de novo. É exatamente o que pessoas ignorantes sobre políticas criminal e de gênero fazem: aumentam penas de modo irrelevante, para fingir que estão fazendo alguma coisa e enganar os otários e as otárias, que, quando não entendem de Direito, acham que alguma coisa mudará na sociedade, por causa dessas medidas populistas.  São as legisladoras se valendo do Direito Penal Simbólico, para mandar uma mensagem de representatividade para a sociedade: "Olha, como temos força para aumentar as penas, nesta nossa sociedade eticamente falida!"  Nenhuma mudança positiva material de gênero ocorre em prol das mulheres, mas todas podem se sentir representadas. É uma política criminal à Instagram: dá uma curtida no perfil de todas elas, massageando o ego por alguns segundos, dá tempo de postar no Tiktok e pronto; acabou. Dos cosméticos aos remédios, essa é a única solução que a aliança Estado-Capitalismo consegue entregar em sua política de gênero.  A coação no curso do processo ocorre, quando alguém se vale de violência ou grave ameaça contra alguém relacionado ao processo, para obter algum benefício próprio ou alheio, nos termos do artigo 344, do Código Penal. O curioso é que a vítima também poderia incorrer nesse crime, ou seja, o juiz pode aplicar a causa de aumento de pena contra ela.  O conteúdo principal da lei, no entanto, está nos seus artigos 3º e 4º. São mecanismos supostamente utilizados para proteger a vítima. Só tem um probleminha. O processo penal é feito para proteger a pessoa (homem ou mulher) do poder punitivo do Estado. Salvo no caso de má-fé processual, quando o Estado limita as estratégias e o conteúdo da defesa, ele está expandindo o próprio poder dele às custas das pessoas.  A vítima não está sendo protegida, porque o crime já ocorreu. Essa lei expande o poder punitivo do Estado. Amplia o poder que ele tem de punir às custas dos direitos humanos. Inverte os princípios do processo penal.  A lei determina que todas as partes e demais sujeitos processuais, o que inclui o próprio réu e o seu advogado, têm o dever de zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa.  Mas qual a função do advogado do réu? Zelar pela integridade psicológica da vítima ou defender o seu cliente? Julgamentos são, sim, desagradáveis para a vítima e evitar a revitimização é importantíssimo, mas não às custas do devido processo legal e da ampla defesa.  A Constituição determina que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, assegurando o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A Lei Mariana Ferrer é inconstitucional.  O Estatuto da OAB, em seu artigo 7º, diz que o advogado tem liberdade para exercer a sua profissão, possuindo, para tanto, imunidade profissional, não constituindo injúria ou difamação puníveis qualquer manifestação da sua parte no exercício da sua atividade, em juízo ou fora dele.  A primeira vedação da lei é inútil. Diz que é proibido se manifestar sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos. Já era assim. Óbvio, na instrução processual, cabe ao juiz conduzir o processo para apuração dos fatos relevantes. Por exemplo, um bom juiz já nega a realização de perguntas irrelevantes e cabe a um bom advogado demonstrar a pertinência das suas manifestações. Mais uma vez, o legislador fingiu que estava fazendo algo para proteger direitos, quando na verdade não fez nada. É populismo de gênero.  A segunda vedação é perigosa. As regras do processo penal existem para proteger o réu, mas a Lei Mariana Ferrer restringe o conteúdo da defesa, ao proibir a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.  Em crimes contra a dignidade sexual, quando não há flagrante, é uma linha de defesa válida questionar a veracidade das alegações da vítima, pois podemos estar diante de uma falsa acusação. Ora, como o advogado fará isso sem perturbar a integridade psicológica da vítima? Como ele vai provar que ela está mentindo, sem desqualificar as alegações dela? Se a vítima disse que era virgem e isso for um fato relevante, como o advogado contesta que ela não era, sem mencionar aspectos da vida pessoal dela?  Por mais sensível e doloroso que seja um processo desses (e é por isso que ele corre em segredo de justiça), a discussão é sobre se houve ou não violação à dignidade sexual da vítima, e não tem como condenar uma pessoa sem comprovar esse fato. Do contrário, o juiz punirá alguém sem provas. Não pode. A regra do processo penal é a absolvição, quando houver dúvidas sobre a existência do crime ou se foi o réu que o praticou.  Infelizmente, se o elemento mais robusto do processo é a palavra da vítima, cabe à defesa questioná-la. Se o advogado ficar passivo e não defender o seu cliente utilizando de todos os meios legais e possíveis, ele não agirá com diligência e pode ser responsabilizado civilmente por isso.  Ora, quer dizer que agora o Ministério Público tem a liberdade para acusar, mas o réu não tem para se defender? Mas que processo penal é esse?  Quando se relativiza ou suprime as garantias processuais, direcionando essas leis mais severas a um determinado grupo, no caso, os homens, estabelece-se um Direito Penal do Inimigo.  O homem passa a ser visto como inimigo das mulheres, merecendo um processo penal mais rígido contra eles. O Estado considera que ele é um potencial estuprador, que não se submete às regras, relativizando as garantias deles para aplicar penas.  Nós não estamos mais apenas criticando os homens. Estamos violando os direitos humanos deles. Isso ainda vai acabar muito mal. Isso não é direito; é vingança.  Se querem um processo mais justo nos crimes sexuais, devemos respeitar as garantias processuais e iniciar um debate inteligente sobre colheita e valoração de provas. De modo a proteger as vítimas reais, sem prender inocentes.  Problemas de sexualidade são complexos e não serão resolvidos com soluções simples. A tensão entre os gêneros vai piorar e a crise existencial tende a se aprofundar ainda mais. Se os homens forem tratados como outsiders da sociedade, eles virarão as costas para ela.
quarta-feira, 17 de novembro de 2021

As Constituições de Lula, Moro e Bolsonaro

Faltam menos de um ano para as eleições e os nomes dos candidatos à Presidência da República começam a se definir. A surpresa do mês é a possível candidatura de Sergio Moro ao Planalto, que lança uma nova (e remota) possibilidade de alavancamento de uma terceira via.  Os discursos de cada candidato já revelam sentidos distintos da Constituição. Cada um representa uma parcela considerável de um eleitorado, que se esfacela e se exaure diante da polarização da vida. Vivemos em um país rachado.  Infelizmente, nenhuma dessas três opções parece ser uma alternativa à polarização política. Todas possuem projetos constitucionais específicos, com a força de um anulando a do outro. Em um país carente de reformas básicas, é impressionante como temos dificuldades de produzir consensos. Sem acordos pluripartidários, será impossível avançar em um sistema político dependente de coalizões. Jair Bolsonaro, até o momento, demonstrou ter uma visão constitucional de "escolha de direitos fundamentais relevantes", o que não é tão diferente da de Lula, com signos opostos. Defende a liberdade de expressão e de trabalho, mas tem dificuldade de compreender as ponderações necessárias com o direito à vida e à saúde. Seu modelo econômico-constitucional não ganhou identidade e as reformas estruturais do Estado Brasileiro não vieram à tona.  A proteção da família brasileira não ganhou contornos reais. Pouco se fez para mantê-las unidas e não se avançou nada em matéria de igualdade de gênero. As leis de gênero, que são frutos do seu governo, são punitivistas e apostam em uma criminalização cega. Essa não é a melhor maneira de combater as violências de gênero, porque desrespeitam os princípios penais e processuais penais, e não possuem caráter preventivo.  Lula também cai em contradição. Em seu último discurso no Parlamento Europeu, não quis criticar a ditadura cubana e preferiu culpar os EUA pelos embargos à Cuba. Diz que quer um país tecnológico e industrializado, mas não diz uma palavra sobre como irá fomentar as liberdades públicas e a inovação. Em um país com tantas universidades, por que não usá-las como pólos tecnológicos e campos férteis de inovação? Não sabemos nada sobre como ele e seu partido enfrentarão a tradição autoritária histórica da esquerda brasileira.  Os Poderes não avançaram em nada no combate ao patrimonialismo. Os brasileiros ainda têm dificuldade de se identificar nos espaços públicos, que sempre parecem terem sido cooptados por forças privadas. Lula não tem proposta para combater isso e apenas repete as velhas promessas de transferência de renda. O Brasil precisa de muito mais.  Sergio Moro é uma incógnita. Vem para limpar o legado da Lava-Jato, mas não consegue explicar os benefícios que o Brasil colheu no combate à corrupção. Terceiriza a culpa pelo fim da operação, que teve erros e peripécias processuais-penais. Teve o mérito de acenar, ao mesmo tempo, para as famílias e para o combate à pobreza, mas como produzirá consensos, se possui pouca aceitação em Brasília e alta rejeição nos dois polos da polarização?  Os brasileiros ainda não conseguem ver a luz no fim do túnel. A realização dos sonhos de uma Constituição democrática, plural, livre e social está distante. Os candidatos ainda nos devem discursos mais honestos. Ainda precisam nos dizer quais são os seus planos para um Brasil de oportunidades perdidas, que tem dificuldade para olhar o amanhã.
quarta-feira, 10 de novembro de 2021

O que significa a morte de Marília Mendonça?

Eu fiquei escandalizado com a cobertura que a imprensa fez da morte da Marília Mendonça. Foi um trabalho mal feito. Com a lacração, desta vez, construindo uma personagem da cantora, como se ela fosse uma heroína genérica hollywoodiana.  "Aquela que falava da força da mulher", "aquela que conquistou um lugar dominado por homens", "a exterminadora do privilégio masculino", etc. Bordões superficiais, que a estereotipam e não fazem justiça ao que ela foi.  Antes de tudo, cantava bem sim. A música dela é conversacional. Não era pra ficar inventando melismas e exibir potência vocal. Uma crítica assim é ignorante, porque não sabe relacionar os esquemas vocais à proposta da arte. É como se escrevesse que o Cazuza cantava mal, porque não atingia os agudos do Bruce Dickinson. Não tem cabimento. É ignorância.  Marília foi a maior perda de 2021. É um fenômeno dificílimo de se refazer. Ela foi fruto do nosso tempo, mas não foi dominada por ele. Quando o desconstrutivismo social anticientífico chegou querendo pautar a sua vida, ela o driblou. Quando a ordem foi vender uma mulher forte, ela simplesmente ignorou.  Ela fez o que precisava ser feito. As mulheres estão sofrendo. Não tem heroínas em um país em ruínas. Não tem mulher-maravilha. Tinha Marília. Não era sobre ser a rainha da sofrência; era sobre comunicar o sofrimento.  Mas não era pra ficar lá sofrendo. Nem era essa coisa cadavérica e desumana de tentar controlar os homens e transformar as mulheres. Era algo responsável, como deveria ser qualquer boa política de gênero. Ao menos, como deveria ser em qualquer país com overdoses de exploração sexual feminina e extermínio de meninos.  Era sofrer para ganhar consciência, assumir para si a responsabilidade, levantar e seguir em frente. Coisa simples. Mas tudo era parte de uma conversa. A música dela é relacional, por isso bateu forte no coração das mulheres.  Marília tinha uma coisa mais essencialista. Ela se preocupava em conversar com a mulher. Falava com elas e dava umas dicas nada vitimistas. Em Supera, "Outra vez. Você não aprende mesmo, hein". E continua, sem afundar o sofrimento nos relacionamentos líquidos: "Para você isso é amor, mas para ele não passa de um plano B. Se não pegar alguém da lista, liga pra você. Te usa e joga fora. (...) De mulher pra mulher, supera".  Nas músicas dela, existe um amor forte por trás. Algo que vai além da pele, do corpo, do sexo, mas que às vezes não dá certo. Por isso, supera. Mas essa chama volta nas outras músicas e se renova, porque a gente precisa superar o passado, os traumas, a dor, justamente para não desistir dessa dimensão tão importante das nossas vidas, que são os relacionamentos afetivos.  A gente tem que aprender, né? Não há superação, sem aprendizado ("você não aprende mesmo, hein").  Marília conversava com os homens também. Em "Infiel" e "Vira Homem", comunicou o problema da traição masculina, que machuca tanto as nossas mulheres (e vice-versa, porque traição é mau quase-absoluto; não moeda de vingança). O homem também precisa aprender a assumir as suas responsabilidades, então "assuma as consequências desta traição".  Amor não é competição. Não competimos entre nós e nem para ter alguém que está fora do nosso alcance. Afinal, quem está fora do nosso alcance, não é pessoa pra gente ser feliz. Se "voltou a falar com ela", então "não fez nada do que prometeu". Precisa sumir, porque amor é compromisso com base na verdade da reciprocidade.  Ela foi uma longa conversa, como seria bom ver os seus conselhos envelhecerem. Mas o que Deus dá, Deus tira e é preciso aceitar. A vida é aceitação. Em "Foi Por Conveniência", foi didática: "Não foi por amor. Foi por medo de morrer sozinho, pressão da família, foi tudo menos isso que chamam de amor".  Marília foi resistência, porque se recusou a celebrar a morte do amor. Ela veio falar a verdade sobre a importância dele. Amor é bom, intenso, mas tem que ser recíproco e vem acompanhado do risco do sofrimento. É importante aprender a amar e reconhecer o amor no outro, para que a gente possa entender e superar a falta, os abusos, e seguir em frente.  "Rosa Embriagada" não foi sobre a liberdade da mulher beber, como alguns insinuaram apressadamente: "Hoje ela era mais uma entre tantas por aí, que procura na bebida um motivo pra sorrir. Trocou a felicidade pelas falsas amizades, parece que só agora caiu na realidade".  Ela veio pra conversar com a gente, principalmente com mulheres, e educá-las sobre relacionamentos. Era sobre ter cuidado, precaução, carinho e respeito.  Marília era sobre responsabilidade. O seu último recado também foi assim: tinha tantas delícias para comer, mas ela tinha o compromisso de manter a dieta.  Infelizmente, a morte precoce dela significa o perigo de toda essa conversa se perder. Precisamos manter a chama dela acesa.  A melhor maneira de lembrá-la é continuar indo na contramão. Keep going. Feminismo marginal daí e white pill daqui. Não nos renderemos à horrível condição dos relacionamentos humanos contemporâneos. Não vamos destruir a ponte! Se for tarde demais para nós, lutaremos pelas próximas gerações.  Eu sinto muito.
quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Sergio Moro pode encarnar a terceira via?

O ex-ministro da Justiça oficializará a sua filiação ao Podemos na próxima quarta-feira, no dia 10 de novembro. Tudo indica que ele pode ser candidato à presidência da República.  Sendo coerente ao tema desta coluna, cabe a mim analisar quais as implicações dessa possível candidatura em matéria de direitos fundamentais.  A polarização gira em torno dos direitos constitucionais. É uma luta pelo sentido da Constituição. Uma disputa que é legítima, até certo ponto, mas que põe constantemente a democracia em risco, pois cada lado da polarização tenta excluir o sentido da Constituição do outro.  É por isso que o pluralismo é importante. Ser pluralista significa adotar uma teoria dos papéis constituintes. Um pluralista reconhece que conservadorismo e progressismo não se excluem. Eles cumprem papéis distintos na sociedade e exercem, no âmbito constituinte, o seu próprio mecanismo de checks and balances.  Vivemos, porém, em um Brasil de anormalidade democrática. E não temos previsão de quando essa quase decenal crise política irá terminar. Daí surge a questão: será que uma terceira via poderia resolver o nosso problema? Se sim, Moro seria capaz de encarná-la?  Moro tem dois problemas. A terceira via, provavelmente, não tem força eleitoral significativa e a rejeição do ex-ministro é alta. O "Paraná Pesquisas" fez um levantamento, que constatou que 61% dos eleitores entendem que o ex-ministro não deveria se candidatar, tendo uma rejeição de mais de 60% entre jovens de 16 a 24 anos, aqueles com ensino superior e entre os moradores das regiões Norte e Centro-Oeste.  A terceira via não ganhou significado eleitoral, justamente, por vivermos uma crise de sentidos constitucionais. A sociedade se divide sobre as concepções de família, o alcance da liberdade de expressão, o sentido da educação, a dimensão dos direitos sociais, etc. Nesse sentido, não tem meio-termo.  A terceira via só teria a remota chance de ter viabilidade eleitoral, se houvesse uma candidatura consensual. Alguém que pudesse pôr freios à guerra cultural, fazendo concessões a ambos os lados da polarização. Uma pessoa que fosse capaz de defender, ao mesmo tempo, os direitos sociais e as famílias brasileiras.  Moro não parece ter esse perfil. Ele atiça contra ele os polos da polarização. Assim, não é capaz de produzir consensos. Também é, ainda, monotemático. Só conhecemos os seus posicionamentos sobre Direito Penal. Pouco sabemos o que ele pensa sobre direitos individuais, direitos sociais e família.  Em matéria de direitos fundamentais, tudo indica que as eleições de 2022 serão uma continuação de 2018. Os polos testarão as suas forças, sem possibilidades de maiores interferências. A Terceira Via não adquiriu, até o presente momento, um significado constituinte. Nesse sentido, a possível candidatura de Moro pode virar apenas um balão de ensaio.
terça-feira, 21 de setembro de 2021

O novo feminismo da diferença

Sob os escombros da crise existencial, eu insisto no debate entre essencialistas e desconstrutivistas sociais.  Parte significativa dos nossos atuais problemas sexuais se dá pela falta de democratização desse debate. Preocupou-se mais em fazer "conscientização de massa", para tornar as mulheres engrenagens de movimentos políticos, do que educá-las, de modo apropriado, sobre a complexidade das discussões sexuais e de gênero na história do feminismo (e fora dele).  Sem educação, não há autonomia. Existe uma acintosa desigualdade de educação de gênero entre as feministas de elite, as acadêmicas e as mulheres.  Esse é um problema grave, porque as meninas e mulheres da periferia do mundo estão seguindo tendências sexuais, a partir de informações fragmentadas em redes sociais, que as pressionam a "quebrar padrões de gênero", sem um estudo detalhado do impacto no bem-estar delas.  Por exemplo, a discussão gourmet da prostituição na mídia gira em torno de mulheres da classe-média alta, que resolveram fazer umas aventuras. Isso é uma caricatura de prostituição. Não explica a realidade das mulheres, que, em regra, estão nessa condição.  Gênero é uma questão sensível. Existem vários fatores que influenciam a ordem sexual: a cultura é um deles. O discurso feminista pode até não ter força para, por si só, modificar a ordem sexual, mas a propaganda tende a produzir algum impacto na tomada das decisões das mulheres, principalmente naquelas que estão mais vulneráveis.  As meninas e mulheres da periferia do mundo não possuem o conhecimento da complexidade das discussões de gênero no feminismo. Mulheres de elite estão tomando as decisões por elas. Há um incontestável déficit democrático entre o que essas feministas de elite decidem e as opiniões, desejos e potências das mulheres.  Então, é emergencial que se democratize o conhecimento que o feminismo acumulou, sem manipulações sombrias. As mulheres precisam conhecer a história das feministas apagadas da bibliografia. As mulheres possuem condições de tomar decisões educadas sobre o destino delas.  Aparentemente, o conhecimento que elas receberam foi oriundo de uma propaganda feminista, que tem um cunho forte anti-homem e anti-família. Um viés feminista mais preocupado em controlar homens do que educar mulheres.  Não adianta o feminismo ter teóricas interessantíssimas, se esse estudo não foi democratizado em direção às mulheres da periferia. Parece-me arriscado deixar esse tipo de educação nas mãos da Madonna, da Beyoncé e da Luísa Sonza.  A Nathalie Bressiani, professora de filosofia da Universidade Federal do ABC (UFABC), lembra de uma colocação interessante da Nancy Fraser, sobre igualdade e diferença entre homens e mulheres.  O "feminismo pela igualdade" (eu discordo dessa nomenclatura) seria o desconstrutivismo social. A história que todo mundo conhece. É a diferenciação dos gêneros que oprime a mulher, então é preciso quebrar os padrões e isso vai desaguar nas políticas de gênero da Judith Butler.  Porém, nos meados da década de 70, as feministas pelas diferenças confrontaram essa posição. Elas identificaram essa "busca pela igualdade", como fortalecimento do masculino. Elas foram no ponto-chave e, no decorrer da história, ganharam suporte de teóricos de peso, como Jacques Derrida e Camille Paglia.  As desconstrutivistas sociais diminuem o feminino. Elas partem de uma premissa de que as dinâmicas do masculino são fortaleza e as dinâmicas do feminino fraqueza. É como se esse feminismo fosse um culto solar, em que as suas adeptas buscam inspiração em arquétipos masculinos, como ideais de virtude.  Então, a Nancy Fraser deu razão, em parte, a essas mulheres, mas disse que elas caíram em um "essencialismo", esquecendo que essa ideia das diferenças de gênero se daria dentro de relações de dominação e de poder, que beneficiaria os homens. A questão se desenvolve até a década de 80, quando passa a ganhar força os problemas de interseccionalidade, ou seja, as diferenças entre as mulheres. Daí o debate sobre feminismo da igualdade e da diferença fica em segundo plano.  Quando morre a controvérsia sobre feminismo "da igualdade" (na verdade, do desconstrutivismo social) e da diferença, quem vence são as desconstrutivistas sociais. A interseccionalidade ganha contornos de representatividade, com potencial revolucionário reduzido. Ajuda a promover questões de diversidade, mas não é capaz de, por si só, substituir as discussões sexuais e de gênero, porque interseccionalidade é questão de alteridade, e não de identidade.  Esse processo de desconstrutivismo social se aprofunda, mas não colhe resultados animadores. A mulher fica mais infeliz, o critério de seleção de parceiros não muda, trabalhar também é "um saco", o homem não colabora, as mulheres não necessariamente optam por profissões tradicionalmente masculinas, etc.  Chegamos no momento em que a neurologia e a biologia passam a comprovar as diferenças de gênero, o que explica as dificuldades do desconstrutivismo social.  O medo de parte das mulheres é que essa discussão recaia em um determinismo biológico. Só que o determinismo biológico é indefensável. Ele está morto cientificamente, assim como o desconstrutivismo social.  O ser humano é um complexo de influências sociais e biológicas. Não há motivo para temer a biologia da mulher. As diferenças de gênero, sob a perspectiva da mulher, possuem virtudes poderosas. O essencialismo indica tendências, que não são determinantes.  É a partir dessa premissa que nasce o novo feminismo da diferença. Mais maduro e resistente. Sob os escombros da crise existencial, ele tem a tarefa de equilibrar as relações sexuais e de gênero, agora com respaldo científico e focando no bem-estar da mulher.  O novo feminismo da diferença é das mais pobres. Ele é materialista, científico e não é anti-homem. Tem potencial de reacender os aspectos revolucionários dos debates sexuais e de gênero.  Esta será, provavelmente, a quinta onda do feminismo.
terça-feira, 14 de setembro de 2021

Feminismo sem saída

Escrevo a coluna de hoje a partir de uma crítica da Élisabeth Badinter, em seu best seller Fausse Route, do ano de 2003. O livro tem uma questão interessante na tradução para o inglês.  Em 2006, a obra ganhou o título Dead End Feminism, em sua tradução inglesa da Polity Press, Cambridge. Só que Fausse Route, no francês, não significa necessariamente "sem saída", podemos interpretar apenas como "caminho errado".  Badinter está alertando que o feminismo está sem saída ou tomou o caminho errado. É claro que uma rota equivocada pode nos levar a um destino sem saída. É exatamente isso que analiso hoje.  A autora é uma daquelas pessoas que criticam a cultura da vitimização (sim, esta é uma crítica acadêmica, não apenas uma panaceia das redes sociais). Ela culpa as feministas radicais Andrea Dworkin e Catherine McKinnon por tornarem o feminismo vitimista, demonizando a sexualidade masculina. Essa estratégia levaria ao separatismo sexual. Homens e mulheres tomariam caminhos distintos na vida.  O tema de hoje não é sobre a eterna rixa entre feministas liberais e radicais. Eu sei que a coisa é mais complexa do que isso e que os discursos contrários à exploração sexual possuem o seu valor. Quero apenas realçar que as previsões separatistas estão se concretizando. Na melhor das hipóteses, tomamos, nas políticas sexuais e de gênero, o caminho errado.  O problema está cada vez mais claro. Quem está atento às tensões sexuais já percebeu isso. O feminismo de hoje não é nem liberal nem radical. Ele não está em busca de base. É a ideologia do desconstrutivismo social unida ao capitalismo, com purpurinas interseccionais. A interseccionalidade atual é como a canela, que se pôe em um café velho e amargo, para disfarçar o seu gosto ruim. Esse sistema global de gênero assexual é o que chamo de feminismo mainstream, aquele que não tem saída.  Se o caminho leva a lugar nenhum, é necessário retroceder. Do contrário, a derrota e a rendição são inevitáveis. Não tem jeito. Dizemos que o feminismo está sem saída por vários motivos. Cada uma das divergentes terá a sua própria análise, que não são tão conhecidas pelas mulheres, pois o mainstream some com elas, como se escondesse doces de crianças.  Particularmente, entendo que o feminismo entra em decadência por quatro motivos: a) a tese da bibliografia dominante está equivocada: homens e mulheres são diferentes, sendo os traços biológicos importantes na ordenação dos papéis flexíveis de gênero; b) o separatismo inevitável: a resistência dos meninos e homens ao desconstrutivismo social se torna cada vez mais complexa, aprofundada e digna de estudos; c) a assimetria dos problemas sexuais: homens e mulheres possuem problemas distintos e relacionáveis. Isso significa que a vida da mulher pode piorar, quando as políticas públicas pioram a vida do homem; d) a aliança entre feminismo mainstream e capitalismo: homens e mulheres com poder se unem para aumentar os seus benefícios, em detrimento de todos os outros e outras. É a crítica da Nancy Fraser.  Diante dessa crise existencial, o que tenho feito é pesquisar, na história do feminismo, quem foram as mulheres e homens que incomodaram o movimento. Principalmente, quem foram as mulheres que foram expulsas? E por quê?  Há muito o que se falar sobre esse assunto, que é interessantíssimo, demonstrando que a sisterhood não é tão cintilante assim. Agora, no entanto, concentro-me no que é mais importante, e não no que é mais divertido. Essas resistências, em sua différance, compõem o corpo disforme do feminismo marginal, que se opõe à unicidade corrupta do feminismo mainstream.  Essa tensão entre as mulheres ainda não chegou à ruptura, mas é uma questão de tempo. Ainda existe a utopia da criação da ekklesia. Ainda há a percepção de que as mulheres podem se unir em uma classe, formando um corpo político permanente. Algumas também pensam que podem ignorar o desconstrutivismo social, achando que nada de mal acontecerá com as suas famílias. Essa ilusões podem se desfazer em breve.  Se isso ocorrer, o feminismo marginal entrará finalmente em cena, cobrando a conta dos enganos. Será tarde demais, se estivermos na iminência de ficar sem saída.
terça-feira, 31 de agosto de 2021

Gênero em Billie EIlish

Billie Eilish tem sido fascinante ao repensar gênero e sexualidade. Ela dispensou o padrão de mulher jovem e passou a reconstruir a sua posição no mundo, em uma crítica peculiar de gênero. Nesse sentido, Billie estaria próxima de Greta Thunberg, ao representar o presente com um pé no futuro. Ambas performam questões do presente entrelaçadas no futuro. Billie modifica o estilo da Lana del Rey, antissexualizando-a, em uma fuga sombria e psicológica em direção a um futuro, que não sabemos ainda direito qual é. Aqui, estamos corretos em escrever "gênero", como desempenho dos sexos, referindo-se às múltiplas potências do homem e da mulher no mundo. Billie desempenha uma juventude consciente do seu vazio existencial. Uma geração, que, talvez, caminhe para ser pós-existencialista. Uma juventude deficiente, assim como Billie, que tem a síndrome de tourette. Uma juventude neurodiversa, vivendo em um mundo, em que já se descobriu a relação entre evolução humana e autismo. Isto é, de como dependemos da anormalidade para fazer o bom progresso. Billie cobre o seu corpo, evitando que a sexualizem e, assim, desnuda a sua alma de mulher, para um público que busca nela força, enquanto ela devolve a mesma demanda a ele. O nosso mundo está em busca de sentido. Por isso, talvez, tenhamos tantas demandas identitárias. A procura por uma identidade diferente é tudo o que temos, porque não aguentamos mais o mundo do jeito que ele está.  Esta é a parte revolucionária da coisa: "Eu não aguento mais o que a existência tem a me oferecer! Eu tenho 18 anos e eu irei, ao menos, mudar as minhas roupas, o meu pronome, a cor do meu cabelo e vou esperar o mundo acabar!" Billie nos mostra uma mulher, juveníssima, que aparece de outro modo. Explodindo a sua fragilidade existencial. Ela não precisa ser a mulher forte e má, que mamãe ensinou que ela deveria ser. Ela pode ser o que ela quiser, inclusive a menina que o feminismo não quer. Ela pode simplesmente buscar conexão, voltar-se para a alma. Cantar aos sussurros, "as long as I'm here, no one can hurt you", para se referir ao irmão que é o porto-seguro dela contra o suicídio e que acompanha o seu processo criativo, que a ajuda a brilhar. Billie é uma menina diferente. Uma que não tem medo de ser mulher. Não tem receio de pensar nas coisas da alma. A performance de gênero dela é introspectiva, de conexão emocional. Tirando a atenção do corpo, acolheu e tirou a pressão de todo mundo. E assim encantou, encanta e encantará.
terça-feira, 24 de agosto de 2021

O guia definitivo para o fim do mundo

Nesta semana, resolvi exercer o poder da minha imaginação para rascunhar o futuro dos direitos fundamentais, caso tudo dê errado. Se o futuro for distópico, como o nosso momento atual leva a crer, com a humanidade rejeitando um avanço moral significativo, que minimamente acompanhe as descobertas tecnológicas, como será o mundo? Tentarei não ser tão óbvio, porque, por exemplo, todos sabemos que o fim do mundo envolverá doses cavalares de neoconstitucionalismo, como representação da hermenêutica do desespero. Também sabemos que o apocalipse ocorrerá, quando o jargão jurídico se alastrar pela sociedade, com as pessoas falando verbi gratia e provendo recursos no café da manhã. A questão desconhecida é: quais as forças, que atuando em conjunto, podem fazer com que o papel final do capitalismo seja o fim da humanidade, provocando um silêncio absoluto? Eu não quero soar apocalíptico. Sei que vivemos apenas um momento histórico transitório, em que um vírus desconhecido mata uma geração, enquanto assistimos jogos de futebol, curtimos festas e preenchemos o instagram com felicidades compradas, parcelando a alma em 12 vezes sem juros. Afinal, a depressão hoje é um espetáculo e o Direito Constitucional tem uma função claríssima: vender direitos fundamentais. Nós, constitucionalistas, temos a função de fazer o marketing existencial. Somos os ilusionistas. Os ventríloquos dos direitos. Fazemos eles parecerem reais para distrair a mente da humanidade, em sua peregrinação em direção ao caos. Imagino quatro crises impulsionando a nossa distopia - climática, política, econômica e existencial. A crise climática é a morte. Ela é o introitus do réquiem. Pode ser que não seja possível reverter os danos ambientais, fazendo com que os nossos esforços sejam em vão. As crises biológicas nada mais seriam do que desdobramentos de um meio ambiente em extinção. A nossa gula colocaria a Terra de joelhos. A morte do Direito Ambiental. A guerra é a crise política. Diante da esperança combalida, a polarização se intensificaria, com os idiotas tomando as suas certezas como espadas. A busca pela verdade ou pela razoabilidade não faria mais sentido. As impressões, subjetividades e prazeres seriam rainhas. A humanidade condicionaria a amizade ao alinhamento político absoluto, radicalizando a imbecilidade humana. A morte do Direito Constitucional. A crise econômica é a fome. Sem conseguir harmonia política, um polo trancaria a pauta do outro. Preferindo o monopólio da razão e, reféns do seu eleitorado, os políticos deixariam de aprovar pautas emergenciais, extremando o populismo e derrubando a economia e o trabalho. A morte do Direito Previdenciário. Por fim, a minha especialidade: a crise existencial como peste. O separatismo dos sexos. Homens e mulheres se dividiriam em partidos opostos. O amor líquido gradualmente se transformaria em cultura da prostituição. As famílias sucumbiriam. O desejo humano seria um fogo em extinção, caminhando de aplicativo em aplicativo, acorrentados em um ciclo sem fim de dopamina. Os homens tomariam o seu próprio caminho, enquanto as mulheres defenderiam os direitos do fim do mundo. O amor se tornaria um mito. Uma espécie de força ancestral perdida. Ele seria proibido. Escreveríamos livros sustentando o quanto ele era opressivo. Os sexos seriam extintos em nome da ditadura dos gêneros. A morte do Direito de Família. Sejam bem-vindos ao fim do mundo. Mas fiquem tranquilos, no final, haverá pronomes neutros para todos.  *Escrevi este texto em 32 minutos, ouvindo o Réquiem de Antonín Dvorák em B? minor, Op. 89, B. 165
terça-feira, 17 de agosto de 2021

A verdade sobre a pobreza menstrual

A pobreza menstrual afeta meninas, mulheres e pessoas trans em todo o mundo. Tradicionalmente, ela se refere à falta de acesso a produtos menstruais, a lugares seguros e higiênicos para utilizá-los e aos direitos à educação menstrual, e ao cuidado da menstruação sem estigma.  Em áreas sem conscientização menstrual, elas podem ter a percepção de que o período é algo "sujo" a ser escondido. Elas podem não receber as informações necessárias da mãe ou do pai, para entender o início desta fase biológica e psicológica tão importante.  Assim, a cooperação das escolas é vital, para, em conjunto com os pais e sem desrespeitar o poder familiar deles, apoiar as nossas meninas a descobrir a complexidade da menstruação, providenciando os cuidados necessários.  Nem sempre as nossas meninas e mulheres brasileiras podem se dar ao luxo de comprar produtos menstruais. Esse é um tema sensível, especialmente, às mulheres da classe trabalhadora do nosso país. Exige reflexões qualificadas, para além do senso comum.  É um tema de direito à saúde da mulher, que nos revela uma questão importante, negligenciada nas últimas décadas de estudos sexuais: o cuidado com o desenvolvimento humano. Direitos Sexuais (da Mulher e do Homem) também envolvem amor e proteção. Não é uma questão apenas de liberdade, que pode levar à exposições difíceis de serem curadas.  A missão da família, da sociedade e do Estado (nessa ordem necessária) não se realiza com a garantia aos espaços e recursos necessários para uma vida menstrual digna. Devemos ir além. A pobreza menstrual só é erradicada com educação sobre o ciclo menstrual.  A questão menstrual é essencialista. Ela diz respeito às especificidades psicológicas e biológicas da mulher. A educação sobre o ciclo menstrual envolve um processo complexo de autoconhecimento psicobiológico. Conhecer o ciclo particular de cada uma é essencial, para que meninas e mulheres possam tomar decisões conscientes sobre os caminhos da felicidade.  O problema da pobreza menstrual se torna mais complexo, quando entendemos o ciclo menstrual como uma questão de educação sobre si mesma. Passa a ser um problema direto de muitíssimas mulheres, sem retirar das mais pobres a emergência e o destaque que merecem. Cada mulher tem um ciclo. Ele pode ser específico ao ponto de requerer cuidados de saúde excepcionais. Pode demandar pesquisas médicas e tratamentos para uma vida saudável, feliz.  Riqueza menstrual é uma soma de recursos e espaços adequados, autoconhecimento sobre o ciclo, pesquisa médica, investimentos de saúde para tratar as anomalias menstruais comuns e incomuns, e relacionamentos saudáveis.  Como direito da mulher, o ciclo menstrual suave e equilibrado, como pressuposto da felicidade, é uma crise de saúde emergencial. Que se faça os investimentos necessários para que as nossas meninas e mulheres sejam felizes.
DJ Ivis é um agressor de mulheres da pior das categorias. Não há dúvidas da sua covardia e ainda da necessidade de se apostar um pouco no caráter preventivo da pena, para tentar diminuir os índices de violência doméstica contra a mulher.  A questão é que, por mais que as mulheres sintam um medo justo, não há muito a se escrever sobre esse assunto, sem recair nas velhas esperanças do punitivismo penal, que nos ronda há décadas.  Quando um caso desses é descoberto, é óbvio que devemos provocar uma resposta imediata das forças policiais, para mostrar à população que o Brasil não tolera esse tipo de conduta.  Homens e mulheres perdem com a violência doméstica. Cada caso desse fortalece o receio de se constituir relacionamentos estáveis, dando a falsa impressão de que eles não valem a pena. O medo faz com que a gente se esconda nos nossos casulos de relacionamentos líquidos, que podem nos machucar do mesmo modo.  Só que não podemos nos esquecer de um ponto: o crescente punitivismo penal, que ronda os direitos das mulheres, é um sinal de que estamos perdidos nas políticas públicas.  Nós só conseguiremos melhorar a vida afetiva e familiar das mulheres com políticas estruturais. Isso envolve medidas preventivas de educação psicológica de homens e mulheres, reajuste dos papéis flexíveis de gênero, programas de estabilidade familiar e diálogo sobre as expectativas sexuais.  A criação de condições para o surgimento de famílias estruturadas é uma medida importante para o combate à pobreza no Brasil. Famílias saudáveis reduzem drasticamente a vulnerabilidade das crianças, criam redes orgânicas de solidariedade e aumentam o índice de felicidade de mulheres e homens.  Então, por que estamos falhando na constituição de famílias e produzindo taxas tão altas de violência?  Temos que ouvir mais as mulheres para saber como melhorar as políticas públicas. Mas não só elas. Por mais que seja inútil perguntar para o DJ Ivis, tenho certeza que existem homens capazes de refletir sobre esse assunto. Afinal, questões domésticas também são coisas de homens e eles são capazes de identificar alguns problemas, a partir da perspectiva deles.  Devemos tomar cuidado sobre os rumos do pensamento feminino. Afinal, a esperança era que as mulheres poderiam oferecer algo diferente do que os homens fazem no espaço público. Punitivismo penal não é diferente. Violação de garantias processuais e criação de tipos penais inconstitucionais também não.  O melhor modo de se responder um caso desses é ser juridicamente correto. É assim que se mostra superioridade e controle da situação. Pune o sujeito, mas mostrando sobriedade sobre os alcances e limites do sistema penal.  Direito das mulheres não pode ser sinônimo de punitivismo penal e nem de política de vingança. Se isso acontecer, todas as esperanças depositadas no feminino irão para o ralo e as mulheres se somarão aos homens para produzir as mesmas políticas falhas de sempre.  Podemos evitar mais casos como o do DJ Ivis, mas para isso acontecer precisamos pensar em uma política nacional da relação entre os gêneros. Um pacto nacional que envolva cura, e não que ponha sal em feridas abertas.
terça-feira, 8 de junho de 2021

Fazer a mulher infeliz será crime no Brasil?

Tenho a hipótese de que as relações entre homens e mulheres melhorarão, se evitarmos tensões desnecessárias de gênero. Obviamente, não estou dizendo que devemos aceitar opressões, mas sim que discursos anti-homem ou anti-mulher não devem ser naturalizados. Aliás, Bell Hooks é uma autora que bate bastante nesta tecla: discursos anti-homem produzem políticas que conflitam com os direitos dos homens, sendo disfuncionais para as relações de gênero. Camille Paglia é outra que diz que os discursos anti-homem devem parar imediatamente: são um veneno terrível do feminismo contemporâneo. É imprescindível, por isso, abordar o projeto de lei 741/2021, que pretende criar o crime de violência psicológica contra a mulher, mas, ao fim, criminaliza qualquer relacionamento infeliz (amoroso ou não) cuja vítima é mulher. Em regra, o autor deste crime será o homem. Existe também o projeto de lei 9559/2018, apensado ao PL 6622/2013, que possui uma redação pior, com a aprovação da Comissão de Seguridade Social e Família, na Câmara dos Deputados, em 1º de junho de 2021. Vamos ao tipo penal já com o substitutivo, aprovado pela Câmara dos Deputados e que será encaminhado ao Senado Federal:  Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.  Apesar de haver hipóteses de criminalização constitucional nesse tipo penal, temos que analisá-lo a partir das possibilidades de interpretação analógica, para entender a sua real abrangência. O tipo penal, assim, cria o crime de "causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, por qualquer meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação". Ademais, é necessário analisar o tipo pela interpretação analógica, pois, com ela, as ações descritas no tipo se tornam meramente exemplificativas. Assim, é óbvio que, por exemplo, isolar a mulher para lhe causar dano emocional é uma criminalização legítima, mas o problema está na interpretação analógica, ou seja, no fato de que qualquer ato ou omissão, em regra, masculina se torna, teoricamente, crime, se causar prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da mulher, causando-lhe dano emocional. Não há nenhuma menção no tipo penal à violência psicológica contra mulher. Isso só está no nomen iuris do crime. Do jeito que este tipo penal está escrito, se um homem trair a sua mulher, com o dolo de provocar-lhe dano emocional, haveria crime de violência psicológica contra a mulher. Isso também ocorreria, por exemplo, se o homem lhe abandonasse afetivamente. Teoricamente, também haveria crime se o chefe da mulher não reconhecer reiteradamente os méritos dela como profissional, provocando-lhe dolosamente dano emocional. Ou, ainda, se o seu parceiro lhe disser que terminará o relacionamento, caso ela faça uma viagem, que ele não concorda. Também se o homem disser que não lhe dará mais afeto, caso ela não rompa relações com um amigo, que o parceiro entende que está com segundas intenções. Como podemos notar, o referido tipo penal criminaliza, teoricamente, toda interação mal-sucedida, que a mulher tiver, tratando-a como incapaz de gerir, por si só, a sua vida emocional. A razoabilidade do tipo penal dependerá exclusivamente dos juristas envolvidos no caso, seja a juíza, o promotor, delegado, agentes da polícia, etc. Após o advento da lei, se a mulher tiver dano emocional em um relacionamento, por qualquer ato ou omissão, em regra, do homem, que diminua a sua saúde psicológica, haverá crime. Bastaria um jurista irracional e vingativo nessa cadeia criminal, para que fazer a mulher infeliz vire questão penal no Brasil. Infelizmente, temos feito políticas de gênero sem nenhum respaldo científico, ignorando o estado atual da ciência sobre estudos sexuais e de gênero. Por exemplo, ignora-se as evidências acadêmicas de que os homens também sofrem violência doméstica e familiar. E, que, em regra, essas violências são de ordem psicológica. Como não é uma questão que envolve força física, o tipo penal viola o princípio da igualdade de gênero. É uma medida legal sexista, porque entende que a mulher é mais frágil emocionalmente e nega ao homem a proteção penal contra a violência psicológica. Apesar de ser contra quaisquer violências psicológicas, eu não acredito que felicidade conjugal possa ser criada via lei, ainda mais criminal. Infelizmente, nós estamos indo para um caminho em que os relacionamentos se tornam difíceis e arriscados. Teremos ainda mais individualismo, relacionamentos líquidos, relações sociopáticas, misoginia e misandria. Não vejo como a mulher se beneficiaria com tal crime, já que a Lei Maria da Penha já veda a violência psicológica contra a mulher. É uma medida contrária ao princípio da intervenção mínima e exemplo claro de como a interpretação analógica pode violar o princípio da taxatividade. Esse tipo penal torna arriscado para homens se relacionar com mulheres, incentivando relações líquidas com elas, sem carinho e afeto. Precisamos parar de pautar as relações de gênero com base em ressentimento, estipulando políticas absurdas para a redução das violências conjugais. Não é pela via criminal que esse problema será resolvido. É a partir de medidas preventivas sérias, como a educação psicológica nas escolas e universidades. Se a violência doméstica só se agrava, o modo de resolver é antecipar ainda mais o Direito Penal? Parece-me errado. Precisamos de políticas públicas de gênero científicas, com fundamentos sociológicos, psicológicos, antropológicos, biológicos e neurológicos. Não ganhamos nada ao deixar nas mãos do Estado Penal a análise de quando um relacionamento é criminoso, sob o viés subjetivo-psicológico. Assim, sem nenhum critério, sem nenhuma limitação dos verbos do tipo penal. As pessoas esquecem o grau de esforço e sacrifício, que um casal precisa ter para que um relacionamento tenha sucesso. As vivências líquidas de relacionamento alienaram os seres humanos das dificuldades de criar relacionamentos sólidos. As pessoas estão tão desesperadas, que acreditam em contos-de-fada, como uma lei que cria respeito, amor e consideração. Esquecem-se que amor é uma construção. É algo que exige cuidado e que só se sustenta com honestidade e solidariedade. Esquecem-se da responsabilidade que cada um tem de gerir a sua vida emocional e fazer boas escolhas. Relacionamentos sólidos se constroem com felicidades e infelicidades. Às vezes, a auto-estima aumenta, às vezes diminui. Às vezes tem dano emocional, às vezes cura emocional. O que importa é manter os princípios e valores presentes, sem trair, manipular ou estabelecer relações antipáticas. O capitalismo avança para outra fase. Uma em que não há mais diferença entre ser humano e produto. A destruição da privacidade, a liquidez dos relacionamentos e o marketing existencial nos transformaram nos produtos principais das prateleiras virtuais. Estamos à venda na nossa sociedade prostituída.
A lei complementar 179, de 24/02/2021, define os objetivos e dispõe sobre a autonomia do Banco Central e a exoneração de seu presidente e de seus diretores.  Argumenta-se que a LC 179/21 trata de cargos em autarquia, na Administração Pública Federal. Ocorre que a norma é oriunda de Projeto de Lei Complementar (PLC 19/2019) do Senado Federal. Haveria inconstitucionalidade formal, porque invadiu a iniciativa do Presidente da República (art. 61, da CF).  Ademais, sustenta-se que, como a estabilidade de preços, passa a ser o objetivo fundamental do Banco Central, a eficiência do sistema financeiro, obtendo o controle da burocracia, diretamente vinculada aos bancos, retirando "dos governos eleitos pela vontade da soberania popular qualquer possibilidade de ação e iniciativa de política governamental voltadas à população". Temas como esses deveriam ser aprovados por plebiscito ou referendo, pois necessitam de intenso debate e aprovação popular.  Argumenta-se, portanto, que a autonomia do Bacen retira a autoridade do governo eleito sobre a definição central da política econômica. É como se a esfera eleita do Poder Executivo abrisse mão de uma competência constitucional. O Presidente da República perderia o controle sobre a política econômica, pois não poderia demitir diretores e presidente do Banco Central. Ademais, não há fixação de regras substantivas de controle, fiscalização, proteção e transparência. O governo eleito, por exemplo, não teria controle da política monetária e inflacionária.  Analiso, inicialmente, se há inconstitucionalidade formal da Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021.  O artigo 61, § 1º, da CRFB/88, trata da iniciativa privativa do Presidente da República, estabelecendo as hipóteses em que só ele poderá propor o projeto de lei. Dentre elas, está a "servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria" e a "criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI" (61, § 1, II, c e e).  O Banco Central do Brasil é uma autarquia federal, integrante do sistema financeiro nacional (art. 1º, II, da CRFB/88). Portanto, integra a Administração Pública Indireta, fruto da descentralização administrativa. A LC 179/21 define os objetivos do BACEN, dispondo sobre a sua autonomia, a nomeação e a exoneração de seu Presidente e de seus Diretores. Portanto, versa sobre a sua organização administrativa e regime dos seus servidores:  como o Presidente e os diretores serão nomeados (Art. 4º), a duração dos mandatos (Art. 4º, §1º e 2º), disposições administrativas de condução da política monetária (Art. 2º), modos de exoneração dos Presidentes e Diretores (Art. 5º), natureza do Bacen (Art. 6º), etc.  A organização administrativa é como um quebra-cabeças montado. O legislador se vale de cada peça administrativa para montar um cenário lógico de condução administrativa em prol das políticas públicas. É o que faz a LC em comento. Ela dispõe sobre alguns modos de funcionamento do BACEN. Apesar de não dispor inteiramente sobre a autarquia, determina parte substancial dela, inclusive o grau de autonomia do ente. A autonomia é a peça-chave da descentralização administrativa, a razão pragmática da Administração Indireta. A LC 179/21 versa sobre organização administrativa, dispondo sobre os servidores públicos do Bacen.  Ao versar sobre o Presidente e seus servidores, ela estabelece o seu regime jurídico, pois disciplina as relações estatutárias ou contratuais do Estado com os seus agentes. Por exemplo, formas de nomeação e provimento.  Foi o Senado Federal que deu início ao processo legislativo, que culminou na LC 179/21. Não foi o Presidente da República. Como a matéria é de iniciativa privativa do Presidente da República (61, § 1) e o vício de iniciativa é insanável pela sanção presidencial, não há outra saída: essa lei complementar é formalmente inconstitucional.  Inclusive, na ADI 6337, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser inconstitucional norma da Constituição do Estado de Minas Gerais, que permitia a convalidação de vício de iniciativa em ato posterior do governador. O processo legislativo é uma lógica que deve ser íntegra do início ao fim. Analisa-se cada etapa autonomamente, para verificar a sua higidez.  O Presidente da República não pode convalidar o vício de iniciativa, porque ele não versa sobre a pessoa do Presidente, que concorda ou não com o projeto de lei. O vício de iniciativa é a proteção ao princípio da separação das funções do poder e, diz respeito, a temperatura das relações entre as funções do poder. Assim, a sanção do presidente versa sobre a constitucionalidade ou o interesse público da norma. Ela não corrige inconstitucionalidade, porque o Presidente não tem soberania sobre a separação das funções do poder. Pelo contrário, ele tem o dever de manter a temperatura das relações das funções em parâmetros de constitucionalidade.  No que se refere à alegação de inconstitucionalidade material, trato sobre ela brevemente, uma vez que minha opinião constitucional já está logicamente resolvida pela etapa anterior de análise de constitucionalidade.  Enquadro a discussão da constitucionalidade material no âmbito da separação das funções do poder, porque ela, na trilha de Bruce Ackerman, não se restringe aos presidentes e parlamentos, mas também ao status das agências administrativas. Não enquadro a discussão no âmbito de constitucionalidade de fixação da política econômica, porque não verifico onde que, pragmaticamente, direitos fundamentais seriam violados pela estratégia administrativa do ponto de vista econômico. Parece-me, aqui, que se trata mais de liberdade de organização administrativa do que propriamente vedação constitucional. Que jurista poderia dizer, a priori, se a autonomia do Bacen seria melhor ou pior para os direitos fundamentais? Só é possível constatar isso por meio do direito comparado ou do experimentalismo constitucional. E, para experimentar, é necessário testar essa nova estratégia do Bacen. Depois, se der errado, volta-se aos parâmetros anteriores.  Já no meu enquadramento, ou seja, no plano da separação das funções do poder, a Constituição não impede que haja essa reestruturação administrativa e nem a LC 179/21 perturba o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido. O que a Lei faz é estabelecer níveis maiores de autorrestrição da Administração Direta em relação à Administração Indireta. Os Presidentes continuariam tendo gerência sobre o sistema financeiro nacional e a política econômica, mas com mais restrições por escolha legislativa.  Bruce Ackerman afirma que não devemos buscar salvação em engenharias constitucionais. Sociedades são diferentes e podem requerer organizações distintas. A boa engenharia constitucional combina sensibilidade cultural e realismo econômico. Parece-me que não há violação às relações do Poder Executivo com ele mesmo e nem haveria ingerência indevida de um poder ao outro, uma vez que uma norma dessas só será válida, se o processo legislativo iniciar pelo próprio Poder Executivo.  Desse modo, a reserva da técnica em uma sociedade varia de acordo com as escolhas legislativas. Os status das agências administrativas dependem do procedimento democrático, mas não estão enrijecidos pela Constituição. A organização administrativa não pode ser estática, porque ela serve à efetividade dos direitos fundamentais. Ela não é teleologicamente flexível. Ela é pragmaticamente flexível, ou seja, muda para ser mais efetiva e atingir melhores resultados para os povos brasileiros.  Nessa coluna, não defendo que o conteúdo da autonomia do Bacen será melhor para o Brasil. Defendo, apenas, que a decisão sobre essa autonomia não parte da Constituição. Ela não fixou uma engenharia constitucional única. A constituição tem fins administrativos, mas não intui organização administrativa.  Se uma nova estruturação do Bacen acarretar em prejuízos para os povos, eles e elas irão às ruas buscar uma nova engenharia administrativo-constitucional. Pode ser que decidam pressionar o próprio Bacen, que com o povo terá que lidar.  Repito que me parece dificílimo intuir se determinados aspectos da política econômica seria melhor gerida pela Administração Indireta ou pelo Presidente da República. Não acredito que essa discussão seja meramente ideológica, porque um Presidente do Bacen pode ser alçado ao cargo em um governo popular e lá ficar por mais tempo, impedindo mudanças reacionárias de um futuro governo populista e autoritário. É uma questão de engenharia mesmo.  Não há inconstitucionalidade material, mas sim pragmatismo e experimentalismo constitucional.  OBS: Este parecer foi originalmente apresentado à Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB.
Nos últimos anos, o Brasil tem tido discussões intensas de direitos fundamentais. As nossas velhas certezas ruíram, com a insurgência de novos movimentos, que disputam os sentidos da Constituição de 1988.  Desde as jornadas de junho de 2013, o Brasil passa por um processo de transição do neoconstitucionaismo ao constitucionalismo pragmático-democrático, com base na dinâmica do poder constituinte. Isso significa que perdemos a fé em um direito constitucional de base normativa, que inclui um suposto poder transformador dos princípios, gerido pelo Poder Judiciário.  Nesse novo paradigma democrático, o direito constitucional é intuído nas ruas, para o bem e para o mal. O Supremo Tribunal Federal e as demais instituições acompanham a voz das ruas, tentando distinguir o poder constituinte das traições do poder constituído, que vira-e-mexe tenta golpear a ordem democrática.  O fato é que o povo e as instituições, agora, disputam o sentido da Constituição e dos seus direitos fundamentais nas ruas. O STF recebe as demandas populares via processo constitucional, mas também tem que lidar com investidas das ruas, que são ora legítimas, ora ilegítimas.  O direito constitucional de 2021 é realista. O formalismo jurídico perdeu apoio popular. Ele aparece, no máximo, como um realismo travestido de formalismo. Por exemplo, em demandas da direita bolsonarista de tornar o STF "puramente técnico". O que querem, na verdade, é fazer com que as demandas populares do conservadorismo brasileiro sejam sustentadas pelo Supremo, escondidas por uma suposta contenção constitucional de base técnica.  É a velha história do progressismo constitucional versus originalismo. É uma dinâmica americana, que chega mais forte nas ruas por força da popularização da direita brasileira. Sabemos que se trata de realismo travestido de formalismo jurídico, pelo simples fato dessa demanda se dar nas ruas, atreladas à base cultural do conservadorismo brasileiro.  Nesse contexto, trago três dicas de direitos fundamentais para vencer o fascismo em 2022:  1) Revisão Progressista-Constitucional: As forças democráticas não podem ter medo de dialogar com as narrativas populares. Não devemos afrontar os costumes e as religiões do povo brasileiro. Eles possuem uma racionalidade própria. Não são menos racionais do que a ordem de valores da "elite brasileira". Se o diálogo do lado de lá envolve simbologias religiosas, o diálogo do lado de cá também deve empregar esse vocabulário. Devemos disputar, sinceramente, os sentidos do cristianismo. Devemos ouvir, entender e dialogar na linguagem popular. O poder constituinte se dá no interior de um caldeirão cultural. Quando se menospreza os valores dos povos, perde-se o apoio deles e, consequentemente, as eleições. 2) Diálogo com as minorias políticas: As minorias podem ter menor poder político, mas na nossa democracia se conta um voto por cabeça. Além de ser uma questão de direitos fundamentais, o voto das minorias pode definir uma eleição majoritária. Basta que os democratas comuniquem as demandas de direitos fundamentais de modo popular, mas com base científica e dialogando com as tradições. O direito das minorias perdeu popularidade, porque não dialogamos com elas, e sim com a elite que as representa. Por exemplo, as representantes das mulheres podem vir a defender demandas que não sejam coerentes com os desejos da maioria das mulheres. Quando isso acontece, perde-se o apoio das mulheres. Precisamos identificar as demandas reais das minorias brasileiras e comunicá-las adequadamente via projetos de direitos fundamentais. 3) Eleição se ganha com direitos fundamentais: A dinâmica eleitoral é emocional. Ganha a eleição quem tem a melhor narrativa, mas essa história não pode estar desconectada da realidade ou não convencerá ninguém. A elite progressista acha que é sábia. Não é. A elite progressista sabe tanto quanto o povo e às vezes quer guiá-lo se desconectando da realidade brasileira. É preciso produzir discursos de direitos fundamentais que toquem o coração dos brasileiros e brasileiras. Sem pedantismo. São as ideias de liberdade e solidariedade que encantam as pessoas. É urgente aprender a comunicá-las com sinceridade e amor.
terça-feira, 27 de abril de 2021

Por que Bolsonaro chama jornalistas de idiotas?

Seria ótimo repetir aqui a consternação de todos nós, com um presidente que demonstra a mais completa incapacidade de adequação às regras mais simples de conduta social. Seria também útil ajudar a vocalizar contra o desrespeito mais cru, que este presidente demonstra às mulheres deste país.  Concentro-me aqui, no entanto, a explicar porque Bolsonaro ofende a mídia e as instituições, e qual a tática política por trás disso.  Sabemos que ele parece não ter deferência a ninguém. A jornalista vitimada salientou isso muito bem: a postura grosseira já é de se esperar deste governo. Bolsonaro age a partir de uma dinâmica de masculinidade histérica (conceito que comecei a desenvolver nesta coluna da semana passada).  A histeria masculina é o modus operandi da política dele. Homens do governo e fora dele, que dão escândalos diariamente na esfera pública, fazendo questão de demonstrar destempero e pânico. É Ministro da Saúde que dá soco na mesa, Chanceler sem pudores de sustentar teorias conspiratórias, Vereador que tem crise ao confundir LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) com LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros), YouTuber dando chilique e Mandatário que governa xingando e maldizendo cada detalhe dos direitos fundamentais.  Diante de um cenário delicadíssimo de crises biológica, climática, econômica e de direitos, pedir para que os membros do governo façam psicoterapia, tomem medicamentos ou analisem a sua composição hormonal seria uma utopia. Não há nada mais a se esperar deles.  Porém, por que fazem isso?  Essa postura desrespeitosa à mídia, que curiosamente ele não consegue ter em relação à sua Nemesis política (talvez por medo do tamanho da derrota), vem, possivelmente, das lições de um determinado filósofo famoso (você deve saber quem é).  Nas lições dessa direita extrema, existe um mandamento de desrespeito aos adversários. Isso vem sendo ensinado em cursos. A ideia é desrespeitá-los, xingá-los, desestabilizá-los. Nesse cenário, a imprensa é eleita como um dos inimigos principais.  Para eles, a "grande mídia" jamais fala a verdade. Ela mente e sempre vai tentar distorcer o discurso deles. Por isso, o objetivo do político seria ridicularizar a imprensa antes que ela a ridicularize.  A histeria masculina e a deslegitimação da "grande mídia" são os motivos pelos quais Bolsonaro age de forma destemperada. A jornalista foi a vítima da vez e presto a ela minha solidariedade.  Evidentemente que, do ponto de vista constitucional, não concordo com essa falácia. A liberdade de imprensa é essencial para a democracia. Sem ela, governos e partidos podem facilmente tomar conta de um país. Nós dependemos de uma imprensa livre.  É falsa a narrativa de que as mídias alternativas seriam melhores que as tradicionais. Elas cumprem uma função importante de democratizar a comunicação pública, mas a história recente comprovou que as fake news se propagam justamente pelos órgãos alternativos, cujos mecanismos de controle interno e externo ainda são frágeis.  No Direito Constitucional, ainda vamos discutir bastante sobre questões que envolvem a liberdade da imprensa, a dignidade humana e o direito às informações razoáveis, que preservem a democracia. Mas uma coisa é certa: Bolsonaro está errado. Ele já cansou a todos nós.  Toda a minha solidariedade à imprensa, em especial ao Migalhas, meu carinho e cuidado à jornalista que sofreu este ato grosseiro. Que fiquem todos bem. Vamos superar essa fase sombria da nossa história.
Eu não sou uma pessoa que se rende facilmente a medidas de senso comum de gênero. Gênero é um tema sensível. Se você se rende a repetir o senso comum, você perde a sua relevância teórica e prática. Deixa temas importantes descobertos. Trai as pautas de gênero.  Nós não podemos nos render ao senso comum, mas isso não significa que ele não esteja às vezes certo. Cotas por cadeiras no Poder Legislativo é um daqueles temas de gênero populares, que parece estar correto e ter boas probabilidades de dar certo no Brasil.  A ideia é simples. São 513 deputados e 81 senadores. Dividimos as vagas e damos metade para os homens e a outra metade para as mulheres. Assim, bem simples. Bem natural. De uma hora pra outra, teríamos uma representação de 50% de mulheres no Congresso Nacional.  O intuito dessa medida não é privilegiar as mulheres como minorias políticas. O objetivo é enfraquecer a política masculina e a estrutura do capitalismo patriarcal. E por quê? Pois o problema é exatamente este! Seja na esfera pública ou nos meandros da corrupção administrativa, a política brasileira padece de histeria masculina.  Pense bem. O que escrevo faz sentido. Qual foi a última da política brasileira? Bem, o Supremo Tribunal Federal, acertadamente, determinou que o Senado inicie a CPI da Pandemia. Fez isso seguindo a sua jurisprudência histórica de defesa do direito público subjetivo das minorias parlamentares de terem aquela "joça" instaurada.  E o que fez o Senado Federal masculino, em um cenário de mais de 375 mil mortos? Padecendo de uma situação de pânico intensa, apresentada sob a forma de sintomas físicos, tais como paralisia, cegueira e surdez, e perdendo, aparentemente, o autocontrole, resolve, ao invés de acelerar a CPI, bater com o punho na mesa (ato que já virou moda neste país, entre uma ou outra ostentação de arma) e elucubrar o impeachment dos ministros do Supremo. Como se este país tivesse tempo para qualquer outra coisa, que não seja resolver a pandemia e evitar que os brasileiros morram de fome.  Nós vivemos um problema de gênero na política brasileira. Se qualquer coisa fora-da-linha é dita ou se de qualquer modo se ofende a sensibilidade dos donos do poder, o Brasil para. Para e espera esse fenômeno típico do sexismo: a histeria masculina (sei que estou sendo redundante, mas só para deixar claro o meu ponto).  Quando a Catharine MacKinnon publicou a sua Teoria Feminista do Estado, as mulheres analisaram o livro com a seguinte mentalidade: "o que tem de novo? Como o livro nos ajuda a avançar no movimento? Vamos rápido, que a gente tem que pensar pra frente, porque o dinheiro está acabando".  Mas parece que não é assim no Senado Federal dos homens e nas mais variadas esferas do poder público brasileiro. Tudo para. Tudo é lento. Tudo deixa de funcionar pelas mais banais disputas de ego.  Os entraves da política brasileira têm sido uma questão de gênero. A política brasileira é demasiadamente violenta. Focada nesta lógica de vingança e silenciamento. Nada pode ser dito, porque se for é necessário retaliação, linchamento e as mais variadas disputas fálicas.  O homem de poder no Brasil se sente ofendido por qualquer coisa. O problema da liberdade de expressão no país é masculino. Pode ser que, se tivessem mais mulheres no Senado Federal, elas estariam mais aceleradas para resolver os problemas. Afinal, é parcialmente correta a assertiva de que as mulheres não têm interesse "pela política". Elas não têm interesse pela política dos homens: violenta, estressante e sem direção.  Como todo bom essencialista, vou defender que as mulheres fazem política diferente. E é exatamente aí que está a graça do jogo.  Já passou da hora de experimentar novos horizontes. Em uma tacada só, as cotas por cadeiras para mulheres têm o potencial de revolucionar a política legislativa brasileira.
O autismo e o feminismo podem criar uma relação inusitada, mas importantíssima para o avanço dos direitos humanos. Mas o que os movimentos autistas e feministas teriam em comum?  Além da união entre minorias, que é própria do paradigma da interseccionalidade, o feminismo e o autismo precisam apenas de um "empurrãozinho" para entrarem em simbiose. Ouso dizer, inclusive, que o autismo e o feminismo têm o potencial de produzir a mais incrível relação de interseccionalidade do século XXI.  Você sabe que a interseccionalidade é essa interação entre características distintas das minorias políticas, com o objetivo de criar pautas mais justas de direitos fundamentais, ao mesmo tempo que junta os movimentos em uma união de forças. A ideia é que o conjunto dos movimentos identitários, unidos, produzem uma política de alteridade poderosa.  Mas como o feminismo poderia ajudar o autismo e vice-versa? Em um primeiro momento, é o movimento feminista, que tem a bibliografia e a história para ajudar o movimento autista a evoluir.  Hoje, estamos diante de uma primeira geração do movimento autista, que ainda luta para se libertar das amarras do determinismo biológico. A normalização médica, com os seus mitos e terminologias ultrapassadas, ainda põe obstáculos aos autistas para reconhecerem as suas condições de opressão. Será que isso não soa similar com o que as mulheres sofreram no passado?  As relações de opressão que subjugam os autistas derivam da neurotipicidade, que engloba um sistema de instituições montadas para privilegiar mentes neurotípicas, em detrimento das mentes autistas (neurodiversas).  Eu sei que isso é algo novo, mas, por mais incrível que pareça, existem dois padrões mentais distintos no mundo. Essa diferença é profunda o suficiente para acarretar vivências alternativas no mundo. Escrevendo de modo didático e brincando, é como se os autistas fossem os extraterrestres e tivessem que se adaptar a instituições, que não estão otimizadas para as suas mentes e ordem de prioridades.  Essa neurotipicidade (ou capitalismo neurotípico) tenta a todo momento colocar os autistas no lugar, circunscrevendo o que eles podem ou não fazer, com base em um determinismo biológico mítico. Esse sistema de opressão causa nos autistas comorbidades, reduzem a qualidade de vida deles, faz eles sofrerem.  Agora, você já deve ter se lembrado do patriarcado (ou capitalismo patriarcal) e como as suas explicações biológicas tentaram pôr as mulheres no lugar. Foi o feminismo que desenvolveu teorias de construtivismo social, para domar o determinismo biológico, dando às mulheres mais liberdade para escolherem as suas trajetórias de vida.  O movimento autista deve seguir esse caminho. É subindo nas costas do feminismo, que o autismo conseguirá reconhecer as suas condições de opressão, desenvolvendo o orgulho autista e reivindicando a superinteligência como uma questão de deficiência.  Parafraseando Greta Thunberg, sem as condições ideais, o autismo não se transforma em um presente. Mas com as condições ideais, autismo é força à Leonardo da Vinci. É a partir da percepção da mente autista como poder, que os autistas terão a possibilidade de desenvolver o orgulho autista.  Se as lideranças autistas prestarem mais atenção ao feminismo (e vice-versa), uma união poderosíssima, com pautas de minorias convergentes, poderá surgir, mudando o curso da história para melhor.
A partir da prisão do deputado Daniel Silveira, o Supremo ressuscitou a lei de segurança nacional e terá que lidar com as consequências de despertar esse "fóssil normativo" da ditadura (feliz expressão do ministro Ricardo Lewandowski).  Como "pau que bate em Chico, bate em Francisco", o bolsonarismo passou a utilizar a lei para dar trabalho aos opositores do presidente Jair Bolsonaro, colocando a liberdade de expressão em xeque. E isso é só o começo, pois a LSN possui dispositivos capazes de inviabilizar a democracia das manifestações públicas.  O PSDB, o PTB, o PSB e a DPU acionaram o Supremo para que reconheça a não-recepção da LSN, diante da sua natureza antidemocrática, com tipos penais vagos contrários à República, que criminalizam o livre exercício das manifestações e ferem de morte a liberdade de expressão.  Sabemos disso tudo. Devemos, todavia, refletir sobre os motivos que levaram o Supremo a ressuscitar a LSN e por unanimidade, já que a decisão do Alexandre de Moraes foi confirmada por todos os demais ministros.  O STF passará pelo constrangimento de ter que declarar a não-recepção de uma lei que ele aplicou em fevereiro. Diante de tanto casuísmo, fica dificílimo explicar a racionalidade deste direito às brasileiras e brasileiros.  Lembro o Marco Aurélio dizendo que as instituições estão fracas. Assertiva que nos deixa com medo, ainda mais com o descontrole da pandemia nos escombros deste desgoverno da saúde.  Por mais difícil que seja lidar com o autoritarismo e a petulância de Daniel Silveira, talvez tivesse sido melhor se não tivéssemos ressuscitado a LSN. O problema não será o reconhecimento da sua inconstitucionalidade, mas sim o casuísmo, que deixa o indício de desmoronamento da nossa democracia.  O STF se defendeu com as armas que sobraram. Não é que ele esteja errado, mas revelou os perigos que passa a Constituição de 1988. Ela está em risco.  O Supremo mantém a sua autoridade pela altivez das suas narrativas. A força do direito está na potência dos seus discursos e na coercitividade que vem em seguida.  Quando existem contradições nas decisões constitucionais, tão aparentes que podem ser identificadas por qualquer um, o Supremo perde o poder da narrativa e tudo o que sobra é a força bruta, que nos obriga a cumprir as decisões dele. Mas repare que essa força bruta não é mais Supremo. Ela é polícia e exército. Ela é tudo o que a Lei de Segurança Nacional representa.  O direito só se mantém vivo e democrático, se for capaz de convencer o povo da legitimidade das suas narrativas. Se ele começa a perder força diante das contradições, o Supremo pode tomar um xeque-mate. É tudo o que não queremos.
As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.Ana Cristina Cesar A quarta onda está sendo (ou foi?) arriscada. Ela passou deixando rastros perigosos e perdas de foco. Reconheço os benefícios na melhora dos ambientes de trabalho das mulheres mais ricas, mas as estratégias de man bashing na era do feminismo interseccional pode deixar sequelas geracionais em homens e mulheres.  Além do mais, as críticas exageradas ao feminismo radical colocaram em risco as estratégias de proteção das mulheres pobres, fortalecendo a aliança do capitalismo patriarcal com o feminismo liberal.. Isso sem falar nos problemas do construtivismo social, em um momento em que a neurologia de gênero chega a marcos positivos sobre a biologia da mulher. Afinal, por mais digno que seja o conceito de gênero, ele não deveria ofuscar as necessidades oriundas de um feminismo com base no sexo.  O último relatório da ONU também não é otimista. A Organização Mundial de Saúde constatou que a violência de gênero continua devastadoramente generalizada e atinge mulheres muito jovens. 1 em cada 3 mulheres são submetidas à violência física ou sexual ao longo da vida, cerca de 736 milhões. Esse número permaneceu praticamente inalterado na última década e a situação tem se agravado na pandemia.  A violência por parceiro íntimo é a forma de violência prevalente contra as mulheres em todo o mundo (afetando cerca de 641 milhões) e afeta desproporcionalmente as mais pobres. A violência de gênero não diminuiu nas últimas décadas. Está estável. Como não há tempo a perder, talvez seja interessante reavaliar as estratégias.  Mas não vim aqui só escrever sobre problemas do feminismo, apesar dele ter avançado na história justamente pela coragem das mulheres críticas, que impulsionaram as questões de gênero com seus desejos de transformação. Eu vim aqui reiterar que o sexismo "do lado de cá" mudou e que ele é mais perigoso do que se imagina.  Os homens que abraçam o capitalismo para maltratar mulheres, os red pillers, estão aprimorando as suas estratégias. Estão se adaptando aos discursos do feminismo mainstream e entregando os sinais que as mulheres pedem, porém retirando a empatia do jogo, de modo cada vez mais técnico, pois estão sendo treinados por narcisistas (no sentido técnico da palavra).  Nos últimos anos, a exposição das técnicas do feminismo permitiu que homens de pouca empatia ou traumatizados aprendessem a ser camaleônicos. Adotando as estratégias do capitalismo patriarcal, eles jogam no amor líquido, ostentando símbolos de prosperidade e técnicas psicológicas manipulativas, fazendo dos relacionamentos humanos uma consequência do capital. Mais uma vez, as mulheres pobres serão desproporcionalmente afetadas.  Fundado em uma cultura que idealizou os relacionamentos líquidos e vilanizou o amor, esse novo sexismo pode tornar as coisas piores do que já estão. Eles são adversários à altura. Menosprezá-los é um erro. Dizer que, hoje, os relacionamentos humanos são saudáveis é justamente o que eles querem ouvir.  Então, o que fazer?  Se a coisa for dividida na ordem maniqueísta do bem e do mal, onde um sexo é bom e o outro é ruim, o papel contrarrevolucionário e antidemocrático do feminismo mainstream continuará sendo ignorado. Ademais, etiquetar como injusta toda demanda masculina só fortalecerá os red pillers, dando ao discurso deles ar de racionalidade.  Seria um bom começo, talvez, se ouvíssemos mais as mulheres marginais, das alas radicais e materialistas. Desde Camille Paglia até Germaine Greer, passando obviamente por Nancy Fraser. É muito provável que a semente da quinta onda esteja nos escritos destas mulheres. Que o feminismo marginal seja a luz do caminho.  Para inspirar as boas lutas, ouça este podcast com a leitura de poemas da Ana Cristina Cesar: 
terça-feira, 9 de março de 2021

Lula disputará as eleições de 2022?

A decisão monocrática do ministro Fachin reconheceu que a 13ª vara Federal de Curitiba não era competente para julgar os processos do ex-presidente Lula. Curitiba só seria competente, se o caso de Lula tivesse conexão com os desvios da Petrobras.  O ministro Fachin entendeu que não tinha e, assim, determinou a competência do lugar dos fatos. No caso, Brasília. Violação ao princípio do juiz natural.  A discussão aqui seria se essa nulidade seria absoluta ou relativa. Na competência por conexão (questionada pelo ministro Fachin), a 13ª vara Federal de Curitiba recebeu o processo, porque, segundo a acusação, os supostos ilícitos de Lula teriam vínculos com a corrupção na Petrobras. A conexão existe por uma questão de conveniência de instrução. Assim, a discussão de fundo de competência é territorial.  Como se trata de competência territorial, a nulidade seria relativa, abrindo margem para os atos processuais serem aproveitados, caso não haja demonstração de prejuízo.  A discussão do prejuízo, na verdade, diz respeito à suposta suspeição do ex-juiz Sergio Moro, que não está estritamente relacionada com a competência. A parcialidade se analisa na análise da suspeição ou impedimento. Parece que a questão da competência não é a via mais adequada para se discutir a justiça do processo de Lula. A via adequada seria analisar se o ex-juiz Sergio Moro tinha ou não animosidade quanto à figura do ex-presidente, a ponto de afetar a justiça do julgamento.  O juiz quando começa a analisar um processo é imparcial. No início da instrução, deve-se manter imparcial. Com o tempo, ele vai formando o seu convencimento e, no momento da sentença, decidirá em favor de um ou outro. O momento da sentença é de parcialidade. O que o Supremo Tribunal Federal deveria analisar é se esse processo de convencimento condenatório de Moro foi ou não normal, natural, oriundo da sua atividade regular de juiz.  Ademais, se há necessidade de maturação processual probatória para analisar se Lula tem relação com os desvios da Petrobras, essa questão não é de competência, mas de mérito. Analisa-se a competência com os elementos que se tinha no passado. Não com o que se adquiriu no futuro com a instrução probatória, ainda mais quando se trata de questão territorial e de conexão. Aqui está parte da nota à imprensa do  ministro Fachin, que acredito que prova o meu ponto:  "Embora a questão da competência já tenha sido suscitada indiretamente, é a primeira vez que o argumento reúne condições processuais de ser examinado, diante do aprofundamento e aperfeiçoamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal".  O processo brasileiro não caminha de modo pragmático. É difícil, rebuscado, cheio de entrelinhas. Ele deveria ser mais prático, sem necessidade de tantas traduções. Afinal, é feito para garantir dimensões de justiça. Quando você não entende direito o que está acontecendo no processo, ele vira algo kafkiano e nós ficamos perdidos dentro dele.  A decisão de ontem, do ministro Fachin, demonstra o quanto o processo criminal brasileiro ainda não tem direção. Discute-se muitas vezes as mesmas questões e a qualquer momento tudo pode ser anulado e voltamos à estaca zero. No caso, à estaca zero mesmo, porque será dificílimo escapar da prescrição.  Então, Lula disputará as eleições de 2022. Caso o jogo processual reinicie em Brasília, é bem provável que o ex-presidente seja candidato, porque esse processo kafkiano reiniciará, tanto para o réu quanto para a sociedade, e, nesse caso, tem chances de terminar em prescrição.  É justo? Não sei dizer ao certo. Não atuei nesse processo ou acompanhei os atos processuais de perto. Porém, o tempo irá nos dizer se Lula elegível será bom para o país. Eu já estou em um ponto que, independente do caminho, torço para o melhor. O nosso povo está sofrendo e o Brasil precisa reencontrar o caminho das vitórias.
O ministro Dias Toffoli concedeu parcialmente medida cautelar, entendendo que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, porque contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.  O ministro decidiu interpretar artigos do Código Penal e do Código de Processo Penal conforme a Constituição, excluindo a legítima defesa da honra, do modo como é historicamente aplicada no Tribunal do Júri.  Óbvio. Mas por que uma tese esdrúxula ainda está sendo debatida, ainda mais por um ministro do Supremo?  Por incrível que pareça, as defesas ainda aplicam a tese da legítima defesa da honra para absolver homens nos Tribunais do Júri. Como o júri é leigo e não está obrigado a fundamentar juridicamente as suas decisões, tecnicamente, a defesa poderia sustentar essa tese para colher uma absolvição de um feminicida.  O júri ainda estaria legitimado pela garantia constitucional da soberania dos veredictos e pela plenitude de defesa (argumentos que Toffoli já afastou, corretamente, interpretando a sua amplitude, de acordo com os princípios da igualdade de gênero e da dignidade humana).  Assim, os advogados dos réus não podem mais sustentar a tese de modo algum, direta ou indiretamente, nas fases pré-processual ou processual penais e perante o tribunal do júri, ou haverá a nulidade do ato e do julgamento.  Aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, para "reprimir um adultério", não está se defendendo de nada. Está praticando crime. Ponto final. Não cabe aqui nenhuma relativização.  Já vi esta semana criminalistas defendendo que a legítima defesa da honra existe e que o problema é a desproporcionalidade na tese no Tribunal do Júri, ou seja, você não pode sacrificar um bem maior, a vida, por um bem menor, a honra.  Primeiro, não se defende honra alguma matando uma mulher. Segundo, mesmo que, tecnicamente, seja correto dizer que a honra pode ser defendida e que o problema é o contexto, não é hora de se fazer essas ponderações. É momento de simbolicamente e incisivamente repudiar uma tese de uma estupidez e sexismo abissais.  A legítima defesa da honra, no Tribunal do Júri, reproduz e amplia a violência de gênero em nosso país, fazendo com que o julgamento se desloque para a análise do comportamento da mulher, como se ela fosse a culpada pelo seu próprio assassinato.  A legítima defesa da honra culpava a vítima pela própria morte, naturalizando as práticas mais torpes da violência de gênero. Exorcizava a justiça e transformava o júri em um circo macabro. É uma relíquia triste de um Brasil perdido. Que tenha ido embora para nunca mais voltar!
O impeachment brasileiro é híbrido, porque o Congresso Nacional pode entender como crime de responsabilidade praticamente qualquer ato presidencial que lhe desagrade.  A Constituição e a Lei do Impeachment não definiram, de modo útil, o que é crime de responsabilidade. As definições são pouco úteis, abertas, sem taxatividade. Como o crime de responsabilidade é uma infração político-administrativa, e não penal, não é possível, a princípio, aplicar o princípio da legalidade estrita para considerar parte da Lei do Impeachment como não-recepcionada pela Constituição de 1988.  A Constituição diz que é crime de responsabilidade ato do presidente da República que viole a probidade da administração. Um dos atos que violam essa probidade, segundo a Lei do Impeachment, é o presidente proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.  Outra disposição ampla é aquela que diz ser crime de responsabilidade ato do presidente que violar patentemente qualquer direito ou garantia individual, constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição.  Sob uma perspectiva pragmática, o Congresso Nacional tem poder amplíssimo para retirar o presidente do cargo.  O termômetro mais útil para medir o risco do impeachment é aquele que considera os apoios popular e congressual do chefe do Poder Executivo. Se o presidente perder esses apoios, ele está em risco de impeachment e o resto dependerá da conjuntura política. Sob uma perspectiva pragmática, o impeachment brasileiro é um (quase) recall.  Sendo assim, por que o impeachment do Bolsonaro não aconteceu?  Tenho em mente os seguintes fatores:  a) Saúde pública: A oposição política a Bolsonaro está comprometida com as recomendações científicas contra a Covid-19. Convocar manifestações de massa em um contexto de pandemia seria uma contradição. O presidente fica, então, blindado às demonstrações de perda de apoio popular;  b) Esquerda fragmentada: As esquerdas hoje precisam lidar com dois tipos de políticas complexas, as de redistribuição e as de reconhecimento. As políticas de reconhecimento são aquelas relacionadas à esquerda identitária. São minorias que não buscam apenas acesso às políticas sociais, mas também reconhecimento nos espaços públicos e privados. Só que as identidades são tão múltiplas, que se chocam, causando desagregação. Isso fez com que a esquerda se enfraquecesse; c) Ausência de amor político: A oposição não conseguiu produzir um discurso agregador, que unisse identidades distintas em torno de pautas comuns. A multidão não se fez no Brasil ainda. Como diria Antonio Negri, não temos uma multiplicidade de singularidades, unidas em torno da democracia. Essa força política de oposição democrática ocorrerá, quando trabalharmos as bases políticas em torno de ideais humanitários, que envolvem, principalmente, discursos positivos de amor;  d) Gêneros em crise: As relações entre homens e mulheres estão tensas. Essa tensão provocou uma divisão política sem precedentes entre os gêneros. Não é que os homens sejam "mais de direita", mas sim que a direita conseguiu produzir discursos que endereçaram, de modo torto, questões importantes para eles. Por parte dos homens, há medo envolvido e egoísmo em face da perda de privilégios, mas seria superficial e perigoso analisar as questões de gênero apenas por esse lado;  e) Projeto conservador: A direita brasileira criou um projeto conservador em torno de identidades sólidas. A esquerda não conseguiu isso, porque está fluida, pós-moderna e sofre de crises intelectuais devido ao autoritarismo político. Esse projeto conservador é capaz de unir diante das divergências, enquanto a esquerda desagrega mesmo quando a união é urgente.  Para tornar a situação ainda mais complicada, Bolsonaro não perdeu o apoio congressual, pois ocorreu, finalmente, a sua previsível aliança com o Centrão. Nessa conjuntura, o impeachment é improvável.
O impeachment de Jair Bolsonaro é um pesadelo, mas não pelas razões que você possa pensar.  A remoção de Bolsonaro do cargo é um pesadelo para os brasileiros que querem parar o deslize fascista que o nosso país está tomando. É um pesadelo para os brasileiros que querem preservar a democracia e os direitos humanos. E é um pesadelo para os brasileiros que querem preservar a floresta amazônica.  Mas também é um pesadelo para o resto do mundo, porque a crise climática nos fez interdependentes. O avanço anticientífico do bolsonarismo contra as vacinas é um reflexo do seu ceticismo ambiental: as crises climática e biológica são duas faces da mesma moeda.  A lógica destrutiva do governo, que produziu o maior desmatamento da Amazônia nos últimos dez anos, com crescimento em 30% em 2020 em relação a 2019, é a mesma que conduziu a cruzada antivacina, resultando em mais de 230 mil mortos. Já estamos no 19º dia seguido, com média de mortes por covid-19 acima de mil.  O impeachment de Bolsonaro é um pesadelo, porque, após a aliança com o Centrão, ficou dificílimo.  Parafraseando Greta Thunberg, tirar o Bolsonaro do poder é uma emergência! É uma questão de preservar a ciência. E quem está contra a ciência, está contra a democracia!  Já chegou a hora de todos nós acordarmos para a realidade. Bolsonaro é um homem perigoso e agora ele está se estabilizando. Podemos estar diante do fim da democracia brasileira.  Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em "Como as Democracias Morrem", explicam que demagogos perigosos chegam ao poder alinhando-se aos políticos estabelecidos. Eles chegam ao poder pelo sistema.  Esse arranjo entre uma figura anti-establishment e um velha guarda ocorre quando há uma crise sistêmica e o establishment perde apoio eleitoral. Surge a figura do populista, que é considerado a voz do povo.  Nesse cenário, o establishment, "o Centrão", deixa o populista governar, para tentar recuperar o apoio popular. Mas o demagogo pode simplesmente querer ficar lá, sem jamais querer sair.  Enquanto o povo brasileiro (inclusive a "esquerda lacradora") faz justiça social assistindo ao Big Brother Brasil, o bolsonarismo se consolida para jamais querer sair. Até o Twitter, que era terreno de luta, trocou os seus trending topics políticos para assistir às pessoas confinadas em uma casa, destratando e humilhando umas às outras. Não dá pra esperar este programa acabar! Não temos tempo. O impeachment é o único modo de conter Bolsonaro, pois é o único instrumento constitucional que o povo tem para reivindicar de volta o seu poder!  Mas pode o impeachment realmente acontecer?  Sem um caminho claro para o impeachment, os brasileiros precisam se olhar no espelho e contemplar a única pessoa que tem o poder de remover Bolsonaro: ele mesmo, o povo; ela mesma, a esperança.  E há fundamento jurídico para o impeachment de Bolsonaro? Nunca na história deste país se teve tanto fundamento constitucional para o impeachment de um presidente.  Além do mais, esse instituto no Brasil é um Frankenstein: parte impeachment, parte recall. Sob a ótica do pragmatismo constitucional, a Constituição e a lei do impeachment são tão amplas na definição dos crimes de responsabilidade, que qualquer mínimo desvio do presidente o coloca nas mãos do parlamento e do Supremo. O impeachment no Brasil é materialmente um recall.  O poder constituído não vai nos ajudar sem pressão. As instituições democráticas só irão se mexer, caso o poder constituinte atue, como uma multiplicidade de singularidades, em frente ampla, para produzir as maiores manifestações pacíficas da história da redemocratização brasileira.  É nas ruas que o Brasil precisa encontrar a sua redenção.
"[...] nem todos os vestígios que deixei na minha vida devem me perseguir implacavelmente, em cada momento da minha existência". (Stefano Rodotà) Desde há muito se cogita acerca da recepção ou não do assim chamado "direito ao esquecimento" no ordenamento jurídico brasileiro. Tribunais1 e juristas2 têm derramado rios de tinta sobre este controvertido tema, indo desde aqueles que o entendem como uma forma de censura3 até os que o veem como um novo direito da personalidade4. Finalmente, o plenário do STF, por ocasião do julgamento do RE 1.010.606, marcado para o dia 3 de fevereiro, terá a oportunidade de se manifestar a respeito da controvérsia e resolvê-la de uma vez por todas. O recurso prestes a ser julgado pela Corte Suprema, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, diz respeito ao notório caso Aída Curi. Costuma-se dizer que o assassinato de Aída Curi, por força de suas circunstâncias horrendas, simboliza o fim da inocência do bairro de Copacabana. Acontece, porém, que o programa "Linha Direta Justiça", da Rede Globo, exibiu, anos após o ocorrido, uma versão dramatizada do crime - o que levou os familiares de Aída a ingressarem na Justiça atrás de indenização pela recordação destes fatos. Contudo, o objetivo desta coluna é ir além dos pormenores do caso citado acima. Até mesmo porque, como bem se sabe, todo recurso extraordinário cuja repercussão geral foi reconhecida trata de questões que ultrapassam os interesses subjetivos das partes5 e dizem respeito à sociedade como um todo. Assim, faremos, nas linhas que se seguem, um breve recorte em torno do instituto do direito ao esquecimento e terminaremos por apontar aquela que reputamos como sua faceta mais legítima.          Etimologicamente, foram os franceses que, na segunda metade do século passado, cunharam a expressão direito ao esquecimento (droit a l'oubli)6. Todavia, veio do Tribunal Constitucional Alemão, pouco tempo depois, aquela que é considerada uma das decisões mais paradigmáticas na matéria: o caso Lebach7. Na ocasião, o Tribunal germânico reconheceu que o sujeito condenado e preso pelo homicídio de vários soldados, cometidos durante um roubo de armas, tinha direito de obstar a veiculação de documentário que representaria o ocorrido, meses antes de sua soltura. Em linhas gerais, prestigiaram-se, na decisão, a ressocialização do prisioneiro e a ausência de interesse público na informação em questão, notadamente em virtude do longo período transcorrido desde a prática do crime8. Mais recentemente, ainda no âmbito europeu, há que se destacar a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia no caso Google Spain v. Mario Costeja González. Na hipótese, um cidadão espanhol processou a big tech e pediu para que ela desindexasse de sua página resultados de buscas que fizessem menção a uma cobrança de dívida por ele sofrida no passado9. Não obstante as diversas críticas endereçadas à decisão da Corte, vale ressaltar, como aspecto positivo, que ela destaca um atributo central para a efetivação do direito ao esquecimento: a sua executoriedade no ciberespaço. Em um primeiro plano, ninguém desconhece que, em uma sociedade digitalizada como a nossa, onde as pessoas passam cada vez mais tempo nas redes sociais gerando dados e informações a respeito de suas vidas, a tendência natural é a preservação da memória; lembrar virou a regra, e esquecer, por sua vez, a exceção10. Na feliz síntese de Simón Castellano, podemos afirmar que nossos dados são gravados na rede como se fossem uma tatuagem, que nos seguirá pela vida toda11. Nesse cenário, em que pese a hodierna produção normativa que tem ocorrido na matéria de dados pessoais, não se tem ainda solução para o equacionamento de noções tão caras à proteção de dados como a autodeterminação informativa vis-à-vis do direito ao esquecimento. O GDPR, por exemplo, no âmbito do direito comunitário europeu, disciplina o tema sob o epíteto de "direito a ser esquecido"12, trazendo provisões no sentido do apagamento de dados a ser solicitado pelo seu respectivo titular. Entre nós, a LGPD, de forma confluente ao apresentado acima, trouxe em seu bojo, na figura de um direito reconhecido ao titular em face do controlador dos seus dados, o conceito de eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto na lei13. Sem embargo, nem a extensa vacatio legis pela qual o referido diploma normativo foi submetido fez com que ele entrasse em vigor com soluções definitivas para dilemas como este. A nosso ver, assim como na previsão do GDPR, a norma da LGPD não positiva o direito ao esquecimento, mas meramente regula o direito à exclusão de dados pessoais, em observância à autodeterminação informativa do seu titular.  Além desse, outro ponto problemático são as complicações provocadas por mecanismos como o VPN14, que permitem ao seu usuário navegar de forma anônima por conteúdos e serviços disponíveis apenas em outros países. Se o direito processual, por si só, já possui embaraços em aplicar suas disposições no exterior15 - o que se revela particularmente dramático em tema tão litigioso como o direito ao esquecimento -, a matéria ora tratada impõe outra dificuldade, de natureza técnica, e não jurídica, igualmente capaz de frustrar os interesses de quem vai a juízo buscando a remoção de conteúdos indesejados. Posto isto, lançamos a seguinte proposição: existe alguma esfera para o direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro? A resposta, neste ponto, parece-nos afirmativa.  Em verdade, até mesmo ferrenhos críticos ao instituto reconhecem, em seus próprios termos, algum campo de incidência para a referida categoria16. Para nós, em consonância com o advogado pelo IBDCIVIL na condição de amicus curiae do caso a ser julgado pelo STF, o direito ao esquecimento subsiste enquanto resistência contra a recordação opressiva dos fatos, vale dizer, contra a recordação que se configura, a um só tempo, desatual e sensível, obstaculizando a plena realização da identidade da pessoa humana. Em última análise, partindo-se da ótica do direito civil-constitucional, o direito ao esquecimento, tomado nestes termos, configura corolário da própria noção de dignidade da pessoa humana, de resto uma das mais caras ao direito brasileiro17. Fundamento da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana, consignado no art. 1°, inciso III, da Constituição Federal, desempenha, dentre outros, o importantíssimo papel de identificação de direitos fundamentais, de modo a suprir as lacunas e omissões normativas que impeçam a tutela integral da pessoa humana. Noutras palavras, a dignidade humana atua como "fonte de direitos fundamentais não enumerados"18 no catálogo constitucional. O direito ao esquecimento, por seu turno, afigura-se como uma das expressões merecedoras de tutela da dignidade humana. Por essa razão, parece-nos correto afirmar sua natureza materialmente fundamental, ainda que ele não esteja expressamente previsto no texto da Constituição19. Sua fundamentalidade implicará, por conseguinte, na sua subordinação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, especialmente relevante na (comum) hipótese de colisão com outros direitos fundamentais20 (v.g, direito à informação e à liberdade de expressão). Nestas situações, a solução adequada será a ponderação, in casu, a fim de garantir a compatibilização dos direitos em conflito, de forma a assegurar que sejam salvaguardados os instrumentos necessários para o livre desenvolvimento da pessoa humana. Para tanto, faz-se necessário apontar alguns parâmetros para balizar o trabalho do intérprete, quais sejam: (i) o interesse público na difusão da notícia; (ii) sua atualidade, pertinência e veracidade; (iii) a essencialidade do conteúdo para a transmissão da informação; (iv) o papel exercido pela pessoa retratada na vida pública21; dentre outros. Além disso, é importante salientar que o direito ao esquecimento não se limita apenas à exclusão do conteúdo indesejado. Com efeito, caberá ao magistrado determinar a forma mais adequada para fazer cessar a violação do direito (v.g. correção da notícia, sua contextualização, ou, como ultima ratio, sua remoção). A título de conclusão, afirmamos que o Supremo possui em mãos uma oportunidade ímpar. Muitas das críticas endereçadas ao instituto do direito ao esquecimento têm como objeto o conteúdo e extensão que lhe são dados pelas decisões que o invocam, e não propriamente a noção de um direito ao esquecimento em abstrato. O STF, além de decidir se os familiares de Aída fazem jus à indenização pleiteada, tem a chance de pronunciar-se a respeito do reconhecimento ou não do direito ao esquecimento, e, tão importante quanto, definir o seu exato contorno. Desta forma, fazendo uso da feliz expressão de Luís Roberto Barroso22, como na vida devemos ser janela, e não espelho, chegou a hora da jurisdição constitucional fazer o mesmo, reconhecendo, de uma vez por todas, essa importante faceta da proteção à pessoa humana. __________ 1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097/RJ. Relator: Min. Luís Felipe Salomão. Julgamento: 28/05/2013. Órgão Julgador: 4° Turma. 2 SARLET, Ingo Wolfanf. Tema da moda, direito ao esquecimento é anterior à internet. Disponível aqui. 3 BINENBOJM, Gustavo. Liberdade Igual: o que é por que importa. Rio de Janeiro: História Real, 2020. pp. 31-33. 4 CORDEIRO, Carlos José; PAULA NETO, Joaquim José. A concretização de um novo direito da personalidade: o direito ao esquecimento. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 2, 2015. Disponível em: . Data de acesso: 14/12/2020 5 Art. 1035, §1º, do CPC. 6 "Foi naquele país que se cunhou a expressão "direito ao esquecimento" (droit a l'oubli), pelo Professor Gerard Lyon-Caen, em comentário a uma decisão judicial proferida em 1965, no affaire Landru, em que a ex-amante de um famoso serial killer pretendia obter reparação de danos pela exibição de um filme que retratava fatos do seu passado, que ela desejava que fossem esquecidos" (Sarmento, Daniel. Liberdades Comunicativas e "Direito ao Esquecimento" na Ordem Constitucional Brasileira. Parecer. p. 36). 7 35 BVerfGE 202 (1973). 8 Sarmento, Daniel. Liberdades Comunicativas e "Direito ao Esquecimento" na Ordem Constitucional Brasileira. Parecer. p. 35. 9 Lemos, Ronaldo. Esquecer o direito ao esquecimento. Disponível aqui. 10 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. New Jersey: Princeton, 2009. p. 106. 11 CASTELLANO, Simón. The Right to be Forgotten under European Law: Constitutional Debate. Lex Eletronica, vol. 16.1, Winter 2012, p.4. 12 Art. 19 do Regulamento (EU) 2016/679. 13 Art. 18, IV c/c art. 5º, XIV, ambos da LGPD. 14 A sigla anglófona, traduzida livremente para o português, seria algo como "Rede Virtual Privada". 15 DINAMARCO, Cândido. Instituições de Direito Processual Civil, vol. I. São Paulo: Malheiros, 2017, pp. 120-122. 16  Sarmento, Daniel. Liberdades Comunicativas e "Direito ao Esquecimento" na Ordem Constitucional Brasileira. Parecer. pp. 43-47. 17 Moraes, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. 18 Sarmento, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2° edição. Belo Horizonte: Fórum, 2016. pp. 85 e 326. 19 No mesmo sentido: Schreiber, Anderson. Direito ao Esquecimento e Proteção de Dados Pessoais na lei 13.709/2018: distinções e potenciais convergências. In: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, 1° ed., p. 381.; e, SARLET, Ingo Wolfgang; FERREIRA NETO, Arthur M. O direito ao "Esquecimento" na Sociedade da Informação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 49. 20 SARLET, Ingo Wolfgang. Vale a pena relembrar o que estamos fazendo com o direito ao esquecimento. Disponível aqui. 21 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito ao esquecimento: uma expressão possível do direito à privacidade. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coords.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 270. 22 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2019. 8º edição. p. 22.
terça-feira, 20 de outubro de 2020

Sua busca por misandria termina aqui

É claro que a misoginia é o problema principal. Não quero que as coisas saiam nunca dessa perspectiva e nem vim com a minha navalha afiada como de costume. Digamos que eu esqueci o personagem na cama, para tratar de um dos mais misteriosos temas do feminismo relacional-ideológico contemporâneo: a misandria existe, como ódio ou preconceito aos homens e meninos?  Yo no creo en misandrias, pero que las hay, las hay. É um tema importante, se considerarmos que não seria absurdo pensar que a misandria pode somar forças com a misoginia, para diminuir o índice do bem-estar de mulheres e homens no nosso belo e pacífico planeta Terra.  Afinal, enquanto parte do feminismo e a manosfera travam a batalha mais importante do século (ao menos para aqueles e aquelas que frequentam os rooftops de Manhattan), nós estamos aqui tentando descobrir o que fazer com a queda absoluta e relativa do índice de felicidade das mulheres, somada com a volta da fome e do agravamento da profunda desigualdade social brasileira, que em um contexto de crise econômica, política e ética, deixaram as meninas e mulheres brasileiras pobres sujeitas a toda a sorte de abusos.  A reflexão sobre a existência de misandria é, então, válida, se for relacionada aos estudos da saúde mental da mulher: onde existe ódio frequentemente se encontra um trauma. Assim, é válido encarar a questão de gênero também como algo relativo ao bem-estar. Do contrário, podemos sacrificar gerações de mulheres em experimentos sociais, que não sabemos bem o resultado.  É um fato que a mulher é igual ao homem em direitos e deveres, considerando as adequações da igualdade material. Agora, é preciso dar um passo adiante em direção à proteção da mulher e ao cuidado da sua saúde física e mental.  É uma questão de pensar um feminismo para os 99%, e não para apenas 1% das mulheres dominar, junto a 1% de homens, todos as demais pessoas.  No International Journal of Law in Context, Darren Rossenblum afirma que o feminismo deve assumir uma política de justiça, que vá além do status de vítima e da misandria. Se isso não acontecer, será impossível chegar a uma sociedade equilibrada de gênero.  Eu, como homem, preocupo-me sim com os efeitos da misandria na minha vida (em escala individual, não como sistema). Eu tento tomar cuidado e identificar as red flags nas mulheres com quem me relaciono.  Aqui, porém, a minha preocupação como teórico é mais no sentido de pontuar que a misandria pode levar ao agravamento do bem-estar da mulher. O número de vítimas multiplicará, enquanto a política de gênero não ultrapassar a vitimização. É óbvio que a misoginia é o problema principal, mas ensinar mulheres a odiarem homens só vai aprofundar o problema. Do ponto de vista psicológico, parece mais interessante ensinar mulheres a identificarem bons parceiros e refletirem sobre as suas escolhas.  Violência de gênero não pode jamais ser justificada e devemos cobrar que homens que praticam crimes sejam responsabilizados. Porém, esse viés punitivo não é suficiente para aumentar o bem-estar da mulher. Assim como os homens, mulheres precisam de educação psicológica, para que possam escolher homens de acordo com os seus princípios e valores.  A psicologia nos fornece dicas práticas para escolher parceiros e evitar relacionamentos abusivos. Ao invés de ensinar mulheres a odiar homens, ensinem as mulheres a identificar bons parceiros.  Ademais, diante da dinâmica dos estrogênios na constituição biopsicológica da mulher, eu desconfio que relacionamentos líquidos não aumentarão a qualidade de vida feminina. Hoje, a sexualidade humana já atua de acordo com uma lógica capitalista de acumulação de riquezas. Será que essa estrutura é benéfica à mulher?  Mulheres podem ser o que quiserem, mas seria interessante não perder de vista as forças do sexo delas. Comunicação superior, genialidade na condução das emoções, comunitarismo e empatia são apenas algumas das virtudes biológicas que as mulheres naturalmente possuem.  Com alguma misandria, Rosalind Miles descreveu os homens como o "sexo da morte". Por que então apostar em um mundo em que o testosterona é o padrão das virtudes? Por que não inverter a lógica e valorizar um mundo a partir dos resultados que os estrogênios provocam no corpo da mulher?  Defender educação psicológica, autoconhecimento sobre o ciclo menstrual e atenção à realidade neurológica, e hormonal não afeta em nada a igualdade de gênero.  Pelo contrário, essa ponderação proporciona à mulher conhecimento para buscar a felicidade, estabelecendo uma relação mais saudável com o mundo, para, se quiser, encontrar um parceiro que a ame verdadeiramente, sem abrir mão das suas conquistas materiais. Em "The Female Brain", Louann Brinzendine, neuropsiquiatra e professora da Universidade da Califórnia - San Francisco, explica que estamos finalmente chegando na era em que entenderemos a biologia feminina e como isso afeta as suas vidas, sendo uma das nossas missões educar as meninas e mulheres sobre o seu sistema corporal-mental único, ajudando-as a atingir o melhor delas em cada faixa etária.   Por fim, lembro que as mulheres da classe trabalhadora não estão usufruindo dos benefícios materiais das mulheres de classe média e alta, mas sofrem, provavelmente, os impactos subjetivos da queda do índice de felicidade das mulheres em geral.  As meninas e mulheres mais pobres estão perdendo tudo. Estou preocupado.
terça-feira, 13 de outubro de 2020

Em busca de um Direito Constitucional pragmático

Na semana passada, discorremos sobre a importância de estudar o direito das mulheres de baixo para-cima. Hoje, selecionei uma parte da minha tese de doutorado, que aborda a relação entre Direito e pragmatismo. Esta leitura é importante para desenvolvermos uma escola de Direito Constitucional mais próxima do povo, porque o pragmatismo nos força a produzir consequências reais na vida das pessoas. Torço para que você goste deste singelo trecho sobre a relações entre pragmatismo e Direito: A dogmática e as categorias da filosofia do direito público são relevantes para pensar os problemas jurídicos. Não devem ser menosprezadas. Para Rorty (1999, p. 19), ideias têm consequências. Quando retrabalhamos as ideias usando novas categorias, elas podem produzir consequências distintas. O direito é uma ciência social aplicada, portanto, prática. Precisa dar respostas e o pragmatismo é a ciência de processar respostas efetivas. Nossas ideias podem mudar o mundo, mas isso não significa que haja alguma verdade por trás delas. Pense em como os mitos de terra plana e monstros no fim do mundo podem ter confundido alguns marinheiros. Em como a ideologia da conquista e da superioridade dos ingleses exterminaram os índios. Por exemplo, o chefe indígena Powhatan, na Virgínia, no ano de 1607, dirigiu-se ao capitão inglês John Smith e pediu paz com carinho: "Por que você tomará na força o que você pode ter silenciosamente pelo amor? (...) Por que você está com ciúmes de nós? Estamos desarmados e dispostos a dar o que você pergunta, se você pedir de maneira amigável" (ZINN, 2004, p. 13). Mas os brancos continuaram exterminando os índios por causa da sua ideologia, que envolvia inveja, despeito e preconceito contra quem era diferente deles. Em como a lobotomia foi utilizada indiscriminadamente para tratar a esquizofrenia. Pense em como até hoje a existência de Deus é discutida sem qualquer confirmação sobre o assunto. A própria ciência é uma aposta qualificada, mas limitada aos recursos disponíveis. Não há uma visão de mundo esclarecida, autossuficiente e autojustificada (RORTY, 1999, p.20). As ideias são acreditadas e desacreditadas ao longo dos tempos, sem que haja a certeza de que haja alguma verdade por trás delas. A lei não é capaz de nos dar o último significado das coisas: de nos contar a verdade sobre a igualdade, a propriedade, o crime, a posse, a liberdade, etc. É necessário então tomar decisões de acordo com a lei, mas enfrentando os efeitos práticos das nossas escolhas. Por que há tantos desentendimentos sobre o conteúdo da dignidade humana? Por que tantos constitucionalistas diferem nesse assunto com posições tão diferentes? Até hoje a dignidade humana não foi definida de maneira racional e objetiva, sem divergências. Ela precisa ser sempre complementada por uma razão a mais, que lhe dê concretude. As funções de poder do Estado e os mais diversos estratos da sociedade disputam os significantes da dignidade humana. Pretendem ter autoridade para dizer o que ela realmente é. Apesar disso, parece-me que o melhor que se pode fazer em relação a ela é lutar pelo conteúdo eventual mais estratégico, que promova os direitos fundamentais em cada situação, considerando sempre que possível os dados empíricos. O design estratégico da dignidade humana é pragmático. É necessário sempre uma nova discussão sobre a dignidade humana, para que o seu conteúdo seja democrático. Os mais diversos grupos sociais lutam pelo sentido dela. Lutam por uma audiência, embora a vitória temporal de um conceito de dignidade não seja uma afirmação da verdade. Por exemplo, a Suprema Corte não afirma que a norma é constitucional em essência, quando decide sobre a sua constitucionalidade; ela constrói uma narrativa coerente e adequada em um contexto. Uma nova narrativa coerente pode ser desenhada diante de um novo contexto, alterando a definição de constitucionalidade da norma. É improvável que um dia se encontre o conteúdo definitivo da dignidade humana, capaz de gerar um consenso universal. A história é marcada por divergências. Os filósofos dedicaram as suas vidas refletindo sobre questões existenciais e não chegaram a consensos. A unidade é rara. Pouco pode ser feito para convencer alguém de que o seu conteúdo de dignidade está errado. A imposição de uma verdade é um exercício de poder, e não de razão. Corremos o risco de ser intolerantes usando esse poder excessivamente: "Você se arrisca a perder o senso de finitude e de tolerância, que resultam da percepção de quantas visões sinóticas houve, e quão pouco argumento se pode tecer para escolher uma delas". (RORTY, 1999, p. 20) O sentido da dignidade humana pode afetar substancialmente as políticas públicas de um país. Tomemos como exemplo o caso da prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Uma mulher pode permitir ser explorada sexualmente ou ser traficada para outro país? Ou o exercício dessa liberdade sobre o seu corpo violaria a sua dignidade? Se ampliarmos o conceito de dignidade protegendo as mulheres das suas escolhas, os envolvidos na exploração cometeriam crime, como ocorre no Brasil. Os Estados Unidos foram mais longe e proibiram a atividade de se prostituir na maioria dos estados, exceto em Nevada. No entanto, sabemos que na Holanda as coisas funcionam de forma diferente. A prostituição é uma profissão reconhecida pelo governo. Em Amsterdã, há um lugar para as mais diversas atividades sexuais, o famoso Red Light District, com o uso legal de drogas, os shows de sexo ao vivo, os edifícios históricos e as mulheres expostas nas janelas. A prostituição é um ponto turístico ali com várias atrações. Os visitantes podem pagar para serem fotografados com prostitutas ou visitar o museu da prostituição, onde podem "aprender" sobre a história de vida das prostitutas: como Anna, que tinha mais de 25 mil clientes, ganhou mais de 1 milhão de euros e o cafetão usurpou quase tudo. Suicídio assistido. A Organização Mundial de Saúde estima que 800 mil pessoas se suicidam a cada ano no mundo, uma a cada 40 segundos (BBC, 2014). Houve 11.821 suicídios no Brasil entre 2010 e 2012. O país é o quarto maior país latino-americano no número de suicídios, sendo o líder na região em números absolutos (BBC, 2014). O suicídio assistido é ilegal no Brasil, como na maioria dos Estados Unidos, exceto Califórnia, Washington, Oregon, Vermont, o Distrito de Columbia e Montana. Bélgica, Holanda e Suíça permitem o suicídio assistido em casos de doença terminal. A clínica suíça Dignitas cobra cerca de U$ 4.000 pelo procedimento (GLOBO, 2016). O empresário Jeffrey Spector filmou a sua última semana de vida antes de se matar na clínica. Ele teve um câncer terminal e morreu aos 54 anos. Spector disse: "Nunca julgue ninguém até que tenha estado em seu lugar. Sei que estou indo cedo demais. Minha família discorda, mas eu acredito que isso seja melhor para ela. Eu era uma pessoa saudável e minha vida virou de cabeça para baixo." (GLOBO, 2016) A dignidade humana pode servir de base para justificar a proibição ou a legalização do tráfico de pessoas ou do suicídio assistido. Tudo dependerá da concepção de mundo e dos valores culturais que ganharão o jogo juspolítico. Defender a existência dessa disputa de valores não é ser relativista. Esse termo deve ser rejeitado. O relativismo pressupõe a existência de algo que é absoluto. Não temos provas de que os juristas possam acessar tal coisa, e pior, que seja possível convencer as pessoas dessa verdade, sem violência e derramamento de sangue. A busca pela presença inabalável da dignidade humana é uma ameaça à tolerância e à experimentação como nova estratégia de ação. Rorty (1999, p. xxviii) sustenta: No curso dos séculos, essa distinção tornou-se central para o que Derrida chama de 'a metafísica da presença' - a busca de uma 'presença plena além do alcance do jogo', um absoluto além do alcance da relacionalidade. Então, se quisermos abandonar essa metafísica, devemos parar de distinguir entre o absoluto e o relativo. Nós, anti-platonistas, não podemos nos permitir ser chamados de 'relativistas', uma vez que essa descrição implora à questão central. Essa questão central é sobre a utilidade do vocabulário que herdamos de Platão e Aristóteles. A oposição entre absoluto e relativo não faz sentido no direito, pois ele é formado por leis que mudam conforme o contexto político. O Direito se constrói e se desconstrói todo dia: novas leis são criadas, gerando interpretações distintas que mudam o sentido das coisas. A busca pelo absoluto não é uma tarefa jurídica, porque o Direito recebe sempre novas referências que alteram a sua realidade. As leis do direito não são metafísicas. Elas são um jogo. O absoluto está além dos seus parâmetros racionais. Os pragmáticos rejeitam a oposição absoluto-relativo, porque não trabalham com referências platônicas. A rejeição da metafísica no Direito não impede a utilização de elementos extralegais para tomar decisões jurídicas. Eles são indispensáveis para compreender o mundo que o direito pretende regular. Evita-se a metafísica rejeitando o idealismo, sendo, portanto, materialista. O direito deve encarar a realidade e transformá-la; para isso precisa ser útil. Atualmente, o Direito é estudado por várias escolas realistas (law and economics, critical race theorists, feminist jurisprudential scholars, etc.). Todas elas dizem ter algo a acrescentar sobre a emergência e o desenvolvimento das leis, mas não existe um consenso em direção a uma nova e estável fundação do Direito. O que existe é uma competição entre pontos de vista (MERCURO; MEDEMA, 2006, p. 5).  O Direito assume contornos antiessencialistas, por mais que cada escola tenha as suas pretensões de verdade. É um jogo de linguagem. Juristas podem produzir argumentos coerentes com escolhas adequadas de descrições: "Não há verdade inescapável que os metafísicos ou os pragmáticos estejam tentando evitar ou capturar, pois qualquer candidatura à verdade pode ser evitada por uma escolha adequada de descrição e pode ser subscrita por outra escolha desse tipo". (RORTY, 1999, p. 61) Apresentei um panorama do pragmatismo através da desconstrução, como estratégia teórica para o realismo jurídico, permitindo a aproximação inclusive das vertentes Critical Legal Studies e Law & Economics, pois o que determina o realismo é o empirismo, e não a estratégia empregada para a colheita de dados. Sociologia e economia possuem metodologias que devem ser trabalhadas em conjunto para evitar a metafísica e o modo tradicional de se fazer as coisas. Mercuro, Nicholas; Medema, Steven G.. Economics and the Law: From Posner to Postmodernism and Beyond. 2. ed. Princeton: Princeton University Press, 2006. Rorty, Richard. Philosophy and social hope. New York: Penguin, 1999. ZINN, Howard. A People's History of the United States. London: Pan Macmillan, 2004.