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A incúria do Estado brasileiro na execução de mãe Bernadete Pacífico

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Atualizado às 08:02

No último dia 17 de agosto, o quilombo Pitanga dos Palmares, localizado em Simões Filhos/BA, sangrou!

A execução sádica de mãe Bernadete Pacífico, com pelo menos 20 tiros na cabeça, fez com que, não apenas sua comunidade sangrasse, mas como também toda sociedade brasileira que lamentou e lamenta sua perda.

A vilanesca e ousada atuação de seus algozes, além de escancarar as inúmeras feridas abertas pelo racismo no curso da nossa história, denuncia a pífia e imprestável atuação do Estado brasileiro no cumprimento de seu mister na garantia da proteção às vidas de defensores e defensoras de direitos humanos.

Mãe Bernadete era mulher de axé, liderança quilombola, diretora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos - CONAQ e dedicou sua vida a luta antirracista na defesa de seu território e dos direitos das comunidades quilombolas, reconhecida liderança no estado da Bahia e no Brasil, foi de secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial por sete anos em Simões Filho/BA.

Em decorrência de sua luta, principalmente em relação às disputas fundiárias que circundam a região onde seu quilombo se localiza, passou a viver sob ameaças, mãe Bernadete estava  inserida no Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) do Governo Federal, executado pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia (SJDH), desde 20171, e segundo informações divulgadas na impressa, a Ialorixá estava sob a proteção da polícia militar, por meio da SJDH, há pelo menos dois meses.

Contudo, nada disso foi suficiente para impedir que, conforme investigações,  dois homens armados invadissem seu território e entrassem em sua casa no meio da noite para tirar-lhe a vida.

A incúria do estado brasileira salta aos olhos.

O Estado brasileiro falhou miseravelmente na proteção de mãe Bernadete e sua sórdida execução jogou na cara da sociedade brasileira a lembrança que o Brasil é o país que mais mata defensores e defensoras de direitos humanos.

Uma pesquisa realizada pela Global Witness, demonstrou que o Brasil é o país que ocupa o quarto lugar no ranking dos países que mais matam defensores e defensoras de direitos humanos. E a situação se revela ainda mais drástica quando analisamos os dados apresentados pela Organização das Nações Unidas (ONU): entre 2015 e 2019, foram 1.323 vítimas em todo o mundo, das quais 174 no Brasil, nos posicionando em segundo lugar na lista dos países mais perigosos para quem trabalha com a defesa dos direitos humanos.

Pode-se dizer que a situação foi agravada na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro que apresentava discursos deliberadamente contrários à atuação dos movimentos, entidades e coletivos defensores de direitos humanos, além de sua retórica, indiretamente, incentivar uma "caça às bruxas" aos defensores e defensoras de todo o país.  Para ilustrar, vale resgatar uma fala do ex-presidente quando ainda era candidato e em um discurso proferido na cidade de Araçatuba (SP), em agosto de 2018, além classificar a atividade como "desserviço ao nosso Brasil", afirmou: 

"Conosco não haverá essa politicagem de direitos humanos, essa bandidagem vai morrer porque não enviaremos recursos da União para eles. Em vez de paz, essas ONGs prestam um desserviço ao nosso Brasil. Precisamos de alguém sentado na cadeira presidencial que respeite a tradicional família brasileira, que tenha Deus acima de tudo, como lema nosso".

Em 2021, as ONGs Justiça Global e pela Terra de Direitos realizaram levantamento acerca do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), no relatório que recebeu o título "Começo do fim?" concluíram que o baixo investimento do governo federal no programa, aliado à insegurança política na gestão e a inadequação quanto à perspectiva de gênero, raça e classe, o levaria a enfrentar grave crise colocando em risco ativistas em todo o Brasil2.

Os dados revelaram a baixa  execução orçamentária do programa que, em 2019, menos de 17% de seu orçamento e, em 2020, de um orçamento de R$9.140.968,00 o governo liberou apenas 10,27%. Além disso, o relatório aponta inúmeras falhas quanto a institucionalização do programa nos estados, vez que em 2021, apenas nove programas estaduais estavam totalmente implementados.

Em suma, os dados revelam que o Programa passou por um processo de estrangulamento, fazendo com que a política de proteção às pessoas defensoras de direitos humanos fosse asfixiada lentamente, agonizando até deixar de existir.

Contudo, no final de 2022 o estado brasileiro foi à julgamento no Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo assassinato do advogado popular e defensor de direitos humanos  Gabriel Pimenta, assassinado em 1982 em Marabá-PA, culminando na condenação do Brasil a obrigações a serem cumpridas, das quais destacamos:

"O Estado criará e implementará um protocolo para a investigação dos crimes cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos e um sistema de indicadores que permita medir a efetividade do protocolo, nos termos dos parágrafos 170 a 172 da presente Sentença."

O Poder Executivo Federal, por meio do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e Ministério da Justiça e Segurança Pública, possui papel principal na implementação da sentença cuja centralidade é a garantia da proteção das vidas das pessoas que se empenham na defesa de direitos fundamentais. E o estado brasileiro deve assumir sua responsabilidade na morte da mãe Bernadete, assim como o estado da Bahia, que ao longo dos últimos anos tem apresentado dados assustadores quanto à letalidade por arma de fogo.

É urgente que a incompetência  do estado brasileiro seja de uma vez por todas extirpada, a fim de que se evite que mais  "Mães Bernadetes" venham a tombar em razão de sua luta pelo simples direito de existir e viver em paz.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.