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Direitos Humanos em pauta

Pontos de vistas plurais sobre temas pujantes e atuais no campo dos direitos humanos no Brasil e no mundo.

Silvia Souza
Em resposta ao julgamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 635659, popularmente conhecido como "RE de drogas" - sobre esse tema já publicamos artigo nessa coluna -, parlamentares da Câmara e do Senado Federal se mobilizaram rapidamente para a coleta de assinaturas e apresentarem Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que tratam da política de drogas. Os dois textos (PEC 45/2023 no Senado e PEC 34/2023 na Câmara) dirigem seus esforços para a mesma direção: constitucionalizar a famigerada Guerra às drogas, o que significa aprofundar o proibicionismo e suas consequências nefastas no Brasil. O texto propõe alteração do artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais do ser humano, para inclusão do inciso LXXX, que após tramite na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) sob a relatoria do Senador Efraim, teve o seguinte texto aprovado: "LXXX - a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes ou drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre o traficante e o usuário, aplicáveis a este último, penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência". Existe aqui a nítida e direta intenção de mencionar o texto do art. 28 da Lei de Drogas (11.343/2006), atualmente vigente. E, diga-se de passagem, não só vigente, mas também responsável pelo super-encarceramento de comerciantes varejistas de drogas, em sua maioria homens, negros, jovens e moradores das periferias brasileiras. Já a PEC iniciada na Câmara Federal tem texto maior e mais perigoso, se avaliarmos seus possíveis desdobramentos práticos e suas consequências negativas para a defesa dos direitos humanos/garantias individuais. No texto, propõe-se a alteração do artigo 3º da Constituição Federal, onde figuram os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, para inclusão de um novo inciso; "V - erradicar o tráfico, a produção, a posse, o porte, e o consumo de drogas ilícitas."  Além de inserir no art. 5 º o inciso LXXX, com a seguinte redação: LXXX - é assegurado o direito à proteção contra os efeitos prejudiciais das drogas ilícitas, observados os seguintes princípios: a) é dever do Estado, com a colaboração da família e organizações da sociedade, tais como as comunidades terapêuticas, entidades da iniciativa privada e instituições religiosas, promover a prevenção ao consumo e o tratamento dos usuários, de forma a preservar a saúde, a segurança e o bemestar dos cidadãos; b) é dever do Estado promover a repressão ao tráfico, a produção, a posse e ao porte de drogas ilícitas, ainda que para consumo próprio, sendo vedada a descriminalização dessas condutas; c) é vedada a legalização, para fins recreativos, de quaisquer outras drogas entorpecentes e psicotrópicas que causem dependência física ou psíquica, além das já consideradas lícitas pelo ordenamento jurídico vigente;  Esses delírios em forma PEC nos fizeram lembrar do artigo 49, parágrafo 2, letra e que consta na Convenção Única sobre Drogas (1961) da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabeleceu: "A mastigação de folhas de coca será proibida dentro de 25 anos após a entrada em vigor da presente Convenção", isto é, pretendia-se que em 1986 este hábito milenar das culturas andinas fosse totalmente erradicado, em flagrante derespeito àquela cultura. O que obviamente não aconteceu e não acontecerá. Aliás, a ONU mudou diametralmente seu entendimento sobre as maneiras mais efetivas para atuar nas políticas sobre drogas,em posicionamento conjunto de todas as agências da ONU sobre o tema publicado em 2018, uma das diretrizes de ação é: "promover alternativas ao encarceramento e punição em casos apropriados, incluindo a descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal (.)".1 A despeito do acinte que são essas duas PEC's, destacamos a alínea "a" do trecho do texto da Câmara que atribui ao Estado, familiares e organizações da sociedade civil, com destaque para instituições religiosas o dever de promover a prevenção ao consumo e o tratamento dos usuários, de forma a preservar a saúde, a segurança e o bem-estar dos cidadãos".  Neste caso, assombra-nos a ausência de qualquer referência ao Sistema Único de Saúde e seus serviços de prevenção, redução de danos e tratamento. Ao contrário, são mencionadas as comunidades terapêuticas, entidades geralmente religiosas onde violações graves de direitos humanos têm sido constatadas frequentemente. Em breve análise sobre o aspecto jurídico e político da proposta, causa-nos temor a desfaçatez e o descaramento incutida neste texto, que ao fim e ao cabo, é nada mais que um cabo de guerra entre o Poder Legislativo Federal e o Supremo Tribunal Federal. De um lado o Congresso Nacional - aqueles que assinam a propositura das PEC's querem afirmam que o supremo invade sua competência ao decidir sobre a legalidade e quantidades do porte e posse substâncias entorpecentes para consumo pessoal e, de outro lado, o Supremo Federal afirmando que apenas cumpre seu papel ao apreciar a constitucionalidade de uma norma e sua adequação ao ordenamento jurídico. E o meio dessa guerra política egóica está a população mais atingida pela guerra às drogas e que, em sua, consequência figura como protagonista nas estáticas prisionais e de vítimas da letalidade policial. Porém, nada mais aviltante do que propor a alteração dos artigos que sintetizam os fundamentos da República e os direitos e garantias fundamentais, cláusulas pétreas inspirados inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, para atribuir à guerra às drogas a alcunha de direitos fundamentais, ignorando deliberadamente o entendimento já firmado na literatura especializada quanto ao necessário caminho da saúde pública como base para uma política de drogas efetiva. Além de serem propostas flagrantemente inconstitucionais, pois atentam contra a imutabilidade de cláusulas pétreas para redução de direitos e ampliação da repressão, é também atentatória ao princípio da juridicidade da norma, vez que não está em conformidade com os princípios formais do direito, da licitude e da legalidade.   Em síntese, estas PECs, se aprovadas terão efeitos devastadores em relação a toda política pública que respeite os direitos humanos e que tenha vinculação com a realidade; na realidade, aprofundarão os resultados negativos atualmente vigentes na sociedade brasileira em relação às políticas sobre drogas. __________ 1 Disponível aqui. Acessado em 27.11.2023.
It can't happen here - traduzido como "Isso não pode acontecer aqui" ou "Não vai acontecer aqui" em cada uma das duas edições brasileiras concorrentes lançadas no mesmo ano, 2017 - é classificado como um romance de sátira e distopia política. Publicado no entreguerras e escrito pelo já então laureado Nobel de Literatura Sinclair Lewis, o livro ganhou sucesso comercial imediato e entrou no repertório e imaginário da cultura popular americana. Não é exagero afirmar que, assim como "Nada de novo no fronte", de Erich Maria Remarque, esse livro inaugurou o gênero de romances pacifistas. A criação de Lewis é a fonte inspiradora de uma miríade de obras literárias e audiovisuais que exploram cenários antiutópicos, tendo como pano de fundo o totalitarismo político ou religioso.  Tampouco é excessivo comparar a trajetória do livro com a da obra "Brasil, país do futuro", do filósofo e polímata judeu-austríaco Stefan Zweig: a simples menção do título evoca uma tese rapidamente identificável, apropriada pelo discurso público e incorporada a ele, e referenciada de maneira direta ou indireta, tácita ou explícita, por outras obras com temas semelhantes. Sem menoscabo aos demais autores que se debruçaram sobre o livro do qual se origina o título deste artigo, talvez as duas críticas mais famosas, tanto por causa da inspiração elevada quanto por causa do poder analítico, sejam a obra colaborativa editada pelo professor da Escola de Direito de Harvard, Cass Susteini, e o livro de autoria do CEO da Liga Antidifamação, Jonathan Greenblattii. Sinclair Lewis descreve o percurso de Berzelius "Buzz" Windrip, senador pelo Partido Democrata, desde o nascedouro de sua ambição presidencial até a deposição de seu infame governo por um golpe interno e, em paralelo, a tentativa de a resistência liberal e democrática, expatriada, retomar o poder. A narrativa começa em 1936, na prática, o penúltimo ano de duração do New Deal. O cenário é o de uma América do Norte em franca recuperação, que cumprirá, quatro anos depois, a meta de pleno retorno aos padrões macroeconômicos anteriores e da retomada da vitalidade pré-crise. Nada obstante os efeitos práticos e evidentes do New Deal, ocorreu que, em 1936 e, mais acentuadamente, a partir do ano seguinte, reclamações sobre a elevação da dívida pelo aumento dos gastos públicos, das renúncias fiscais e do assistencialismo fizeram com que o Acordo perdesse velocidade, embora não a benignidade de seus efeitos acumulados. Em comparação com a conjuntura de partida do New Deal, contudo, o panorama não era o de uma generalizada comoção ou crise social, da qual, rezam os manuais, costumeiramente nascem os líderes demagogos e autoritários que, explorando forças profundas psicossociaisiii, engajam multidões em sonhos megalomaníacos e revanchistas como subterfúgio para realizar os próprios desígnios iv. Havia, naquele momento, em 1936, uma relativa estabilidade social, que, no entanto, seja como for, serviu de passagem para a exploração política na forma de uma pauta moral. Essa agenda de costumes, no ano em que a ficção se descortina, consiste, justamente, no desejo temporariamente acomodado, contudo jamais debelado, de eliminação do "outro"v do espaço público. Roosevelt, tentando lidar com o racismo e o machismo enraizados, constrói uma coalizão de sindicatos com a participação de mulheres, afro-americanos e outros grupos étnicos. Tenta avançar proposições no plano legislativo, mas o receio de ruptura da frágil coligação política do governo adia esse momentovi. Na visão de alguns grupos políticos conservadores, já haviam sido feitas concessões demasiadas. Quanto à plataforma presidencial do personagem Buzz Windrip, chamada "Os Quinze Pontos da Vitória dos Esquecidos", 9 referem-se diretamente à exclusão e ao sufocamento de minorias nos espaços públicos, seja na economia ou na política; 4 abordam os judeus como os principais atores ou promotores dos pretensos males a serem combatidos (como a liberdade do sistema financeiro); 2 falam diretamente dos judeus como um problema, seja pela profissão de sua fé, seja por sua participação indesejada no espaço púbico, para o qual estariam habilitados apenas mediante o pagamento do dobro dos tributos e das taxas devidos pelo cidadão comum; 1 menciona a exclusão do negro; e 1 a exclusão da mulher. O nono dos infames Quinze Pontos é, de todos, o mais categórico: "Criticamos veementemente a atitude anticristã de certas nações em tudo mais progressistas na sua discriminação contra os judeus, que já deram provas de estar entre os mais ativos apoiadores da Liga, e que continuarão a prosperar e a ser reconhecidos como plenamente americanizados, embora apenas na medida em que sigam apoiando nossos ideais." O progressismo e o vanguardismo tinham como um de seus corolários a discriminação contra os judeus, e, no contexto dos Quinze Pontos, do judaísmo.  O que permitiu a realização do projeto de poder de Buzz Windrip, a morte da democracia liberal e do republicanismo nos Estados Unidos e a retração dos direitos civis foi traduzido na fala do personagem Doremus Jessup, jornalista que representa a consciência moral na narrativa de Sinclair Lewis: "[...] não existe país no mundo capaz de ser mais histérico - sim, ou mais obsequioso! - do que os Estados Unidos da América." O paradigma americano do livre mercado de ideias2 é um terreno propício para os discursos de ódio, a intolerância e o racismo. E propício para o fascismo, situado à direita, quando se serve de prédicas morais contra estas que são as fissuras estruturais de uma estrutura política liberal, no sentido a ela atribuído por John Rawls: pluralidade razoável de doutrinas conflitantes, mas razoáveis, com suas próprias concepções do bem, compatíveis com a plena racionalidade humana e verificáveis com os recursos de uma concepção política de justiçavii. A obra de Sinclair Lewis foi resgatada e incensada nos anos Trump. Todavia, é falacioso crer que ela amargou qualquer ostracismo reputacional artístico ou político, ou mero esquecimento, no longo interregno entre a vitória dos Aliados e o fim do mandato Obama. Nem sequer o poderia: como obra-matriz da especulação sobre as disfuncionalidades do sistema político americano, e como um freio de arrumação imagético, sempre foi relembrada a cada embaraço da democracia americana. Em contrapartida ao paradigma americano, há países cujos ordenamentos jurídicos que - assumindo a tese do paradoxo de Popper[viii], pelo qual a democracia pode se destruir ao permitir e normalizar a intolerância no ambiente público - impõem limites constitucionais e legais mais claros para a liberdade de expressão, a punição ao racismo sob todas suas formas, ao discurso de ódio e a apologia ao crime. Há países, como o Brasil, que reconhecem, legal e jurisprudencialmente, o antissemitismo como forma racismo. Mesmo nesses países, tem-se percebido, por parte de autoridades, figuras públicas, celebridades midiáticas ou intelectuais, discursos inflamatórios, quando não a conivência, o silêncio covarde, obsequioso ou eloquente a atos de racismo, de intolerância, de violência. Quão confusos são os jogos de sinais quando, justamente à esquerda do espectro político, nascedouro do fértil e necessário pensamento crítico e da defesa dos direitos humanos, discursos de ódio, intolerantes e racistas, são sugeridos, premiados ou permitidos! Segundo Jonathan Greenblatt, mencionado no terceiro parágrafo deste artigo: A hostilidade enraizada em relação aos judeus entre alguns da esquerda ficou dolorosamente clara durante o pico de antissemitismo mencionado anteriormente na primavera de 2021. Durante um período de duas semanas, a LAD [Liga Antidifamação] acompanhou um aumento de 75% nos incidentes antissemitas, de assédio a vandalismo e violência. (...)  as estatísticas não transmitem a crueldade do que os judeus experimentavam. Em Los Angeles, uma multidão agitando bandeiras pró-palestinas atacou um grupo de judeus enquanto jantavam em um restaurante. Em Nova York, um homem gritando palavras de ordem antissemitas atacou um judeu a caminho da sinagoga, chutando-o e perseguindo-o por quarteirões. Em Miami, homens em um SUV gritaram insultos e ameaçaram estuprar as mulheres de uma família judia. Tais episódios evidenciam a mesma raiva e ódio não adulterados que vimos quando nacionalistas brancos marcharam por Charlottesville (...) uma série de autoridades públicas proeminentes e outras figuras da esquerda pareciam sem palavras ou incapazes de oferecer condenações claras e convincentes, muitas vezes qualificando suas declarações com críticas ao Estado de Israel ou comentários sobre o ódio antipalestino. (...). Em comparação, quando os asiático-americanos nos Estados Unidos sofreram uma onda de ataquezaxs violentos e feios a partir de 2020, os líderes políticos não condenaram os ataques, ao mesmo tempo em que argumentaram que a China deveria mudar sua política externa ou que os direitos dos uigures deveriam ser preservados. (...).   Nossa sociedade está se tornando cada dia mais vulnerável ao ódio tanto à esquerda quanto à direita. (tradução livre)ix Por sua vez, o capítulo final da obra editada por Cass Sustein "Can it happen here? Authoritarianism in America" (Pode acontecer aqui? Autoritarismo na América), Geoffrey R. Stone, não fazendo ressalvas ao estado da arte do mercado de ideias norte-americano, oferece como antídoto ou prevenção ao esgarçamento do liberalismo político a necessidade de líderes com clareza moral e caráter para preservar as liberdades constitucionais de todos os grupos. Isso requer a intervenção contramajoritária, a impugnação dos humores das massas em nome da proteção de minorias, fundamento da permanência da própria democracia liberal. E fecha seu raciocínio lembrando a frase de Louis Dembitz Brandeis, Ministro Associado da Suprema Corte Americana, curiosamente, judeu: "Aqueles que conquistaram nossa independência (...) sabiam que a coragem é o segredo da liberdade".  Quando faltam discernimento ou coragem para contraditar o jamais aceitável, faltam também as ferramentas para manter a integridade do discurso público e se permite o temerário deslocamento da "janela de Overton"[x], ou o rosário de discursos públicos moralmente permitidos, para normalizar expressões e ideias intoleráveis que, ora atingem uma minoria, mas, em breve, assim o prova a História, atingirão outras. Sem um decidido freio-de-arrumação, sem uma verdadeira clareza moral, sem coragem política, sem o autêntico exercício do ônus da liderança com responsabilidade social em relação a todos segmentos da sociedade e minorias, indistintamente, em breve, a deturpação do discurso público ruirá, lentamente, os pilares de sustentação da democracia liberal. -------------------- Consultora Legislativa do Senado Federal. Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo. LL.M em Direito e Inovação pela UC. Berkeley. Mestre em História das Relações Internacionais. Especialista em Direito Internacional dos Conflitos Armados pela Universidade de Bochum, Alemanha. Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Distrito Federal. Conselheira. STUART MILL, John. Sobre a liberdade. Coleção Clássicos para Todos. Nova Fronteira, p. 64.; MILTON, John. Areopagitica: um discurso pela liberdade de impressão não licenciada ao Parlamento da Inglaterra. Editora Convivium, p. 38. ----------------- [i] SUSTEIN, R. Cass (ed). Can it happen here? Authoritarianism in America. HarperCollins Publishers Inc. 195 Broadway New York, NY 10007. 2018 ISBN: 978-0-06-269621-2 [ii] GREENBLATT, Jonathan. It Could Happen Here: Why America Is Tipping from Hate to the Unthinkable-And How We Can Stop It. HarperCollins Publishers Inc. 195 Broadway New York, NY 10007. 2018. ISBN: 978-0-06-269621-2 [iii] CANESIN, Carlos Henrique. A ordem e as forças profundas na Escola Inglesa de Relações Internacionais: em busca de uma possível francofonia. Rev. bras. polít. int. 51 (1) .2008. https://doi.org/10.1590/S0034-73292008000100007. [iv] CHURCHILL, Winstom S. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Capítulo 3. Adolf Hitler. Editora Nova Fronteira. 2ª edição revista e impressa. 8ª impressão. Botafogo. Rio de Janeiro. ISBN85.209.0637-0 Pg. 28. [v] O fenômeno da expulsão do outro é aparentemente higienizado e ganha invisibilidade, porém, maior destrutividade, no ambiente das redes sociais, das suas bolhas e do discurso acalorado sem a intenção ou o compromisso com o contraditório, mas o libelo. Segundo o filósofo coreano Byung-Chul Han:  O terror do igual abrange, hoje, todas as esferas da vida. Viaja-se [Man fährt] para todos os lugares, sem se ter uma experiência [Erfahrung]. Tornamo-nos familiares [Man nimmt Kenntnis] com tudo, sem chegarmos a um conhecimento [Erkenntnis]. Acumulam-se informações e dados, sem se chegar a um saber. Cobiçam-se vivências e estímulos, nos quais, porém, se permanece sempre igual a si mesmo. Acumulam-se Friends e Followers, sem nunca se encontrar com o outro. Mídias sociais representam um estágio de atrofia do social. Han, Byung-Chul. A expulsão do outro : sociedade, percepção e comunicação hoje. Tradução de Lucas Machado - Petrópolis, RJ : Vozes, 2022. Título original: Die Austreibung des Anderen. ISBN 978-65-5713-411-5 - Edição digital. Pg.8. [vi] JENKINS, Lord Roy. Roosevelt. Apresentação: Fernando Henrique Cardoso. Editora Nova Fronteira. Botafogo. Rio de Janeiro. 2003. Tradução Glauber Vieira. ISBN 85-209-1710-0 [vii] RAWLS, John. Political Liberalism. Columbia Classics in Philosophy. Columbia University Press. Library of the Congress.  eISBN : 978-0-231-52753-8. Pg. 135. [viii] POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos: o Sortilégio de Platão. Volume 1. Prefácio João Carlos Espada. Edições 70. Coimbra. ISBN 978-9724416588. [ix] GREENBLATT, Jonathan. It Could Happen Here: Why America Is Tipping from Hate to the Unthinkable-And How We Can Stop It. HarperCollins Publishers Inc. 195 Broadway New York, NY 10007. 2018 ISBN: ISBN: 978-0-358-62337-3. Pg. 9 [x] A "Janela de Overton" é um modelo de análise da lavra do cientista político americano e vice-presidente sênior do Mackinac Center for Public Policy, Joseph Overton. Visa a demonstrar como as ideias na sociedade mudam ao longo do tempo e influenciam a política. O conceito central é o de que os políticos são limitados em quais ideias podem apoiar e, geralmente, só perseguem ou apoiam políticas que são amplamente aceitas em toda a sociedade como opções políticas legítimas. Assim, a incorporação e a normalização do discurso público de falas e ideias de intolerância civilizacional ou política tendem a contaminar a política e, com isso, aos poucos, toda a estrutura social.  Em: https://www.mackinac.org/OvertonWindow.
Há duas semanas, celebrou-se os 506 anos da Reforma Protestante. O movimento religioso que tem na figura de Martinho Lutero o seu maior ícone, mas que conta com importantes predecessores e herdeiros.  A Reforma cindiu a Europa religiosa e politicamente, bem como fincou as bases sobre as quais se apoiaria a modernidade. Seu êxito se deveu a uma série de fatores, dentre os quais as insatisfações de alguns monarcas em relação aos desmandos da Igreja Romana, à qual estava sujeita toda a cristandade europeia. Assim, a possibilidade de romper com a tutela da Igreja de Roma, conservando uma identidade cristã, pareceu bastante sedutora aos governantes da época. O continente se dividiu então entre católicos e protestantes. E esta fragmentação resultou, dentre outras coisas, em uma infinidade de guerras que assolaram regiões inteiras da Europa. Valendo dizer que não só entre católicos e protestantes havia disputas e divergências irreconciliáveis, mas também entre os próprios protestantes. Evidentemente, as bandeiras religiosas se tornaram bastante úteis para obnubilar as razões meramente políticas (materiais) não menos (ou talvez muito mais) importantes. Não que o continente europeu experimentasse uma sólida unidade. Porém, a legitimidade de sua estrutura jurídico-política fundava-se numa só fonte religioso-teológica. Isso garantia o mínimo de coesão quando da necessidade de solucionar conflitos entre povos e indivíduos. Após a Reforma, esta centralidade se perde. Para conservar a unidade interna de cada nação, a religião do rei deveria ser a religião dos súditos. E cada nação teria sua própria produção teológica, que, evidentemente, influenciaria decisivamente nos rumos políticos de seu povo. A despeito das mudanças produzidas pela cisão, a religião permaneceu um elemento fundamental para a orientação da vida política e social. Com a diferença que agora não havia mais apenas um modo de compreender as verdades e os desígnios de Deus. Assim, como definir quem estava com Deus? Quem agia em seu nome? Quem de fato estaria, com seu governo, a honrar seu nome? Uma das formas de responder estas questões era a guerra e a imposição de uma perspectiva sobre a outra após a vitória, que, obviamente, era tida como um sinal de aprovação divina. O legado de Hugo Grotius É neste contexto que o jurista holandês Hugo Grotius elabora sua obra magna: De jure Belli ac Pacis (Da guerra e da paz), publicada em 1625, na qual expõe sua concepção do Direito Natural. Obra que talvez constitua a primeira referência que se tem registro de uma visão dessacralizada ou desconfessionalizada do Direito. Isto é, o esforço para pensar o ordenamento jurídico para além das formulações teológicas. O que, em última instância, viria a contribuir para o processo de separação entre religião e Estado. Ou, quando menos, uma maior emancipação do poder político em relação à religião. Filho de pai protestante e mãe católica, Grotius assumiu o desafio de elaborar um pensamento jurídico capaz de dar conta das intermináveis divergências existentes entre povos e nações, pondo termo às sangrentas guerras religiosas que marcariam o período pós-reforma (1524-1648). Levando-se em conta o papel fundamental das crenças religiosas para as cisões e confrontos então existentes, empenhou-se a conceber um ordenamento jurídico, que, para ser internacionalmente aceito, deveria fundar-se  na premissa etiamsi daremus non esse Deum (como se Deus não existisse). Pode-se imaginar que alguns, desgostosos da proposta, devam tê-lo nomeado de apóstata. Um equívoco, pois Grotius era um calvinista piedoso. Tão piedoso que, no texto em que propõe esta inovadora forma de pensar o Direito Internacional (do qual foi precursor), oferece escusas pela sua proposição e praticamente recita sua confissão de fé pessoal, nos moldes da ortodoxia1. Grotius não queria negar a Deus, mas suscitar uma mentalidade jurídico-política que pudesse superar as desavenças surgidas das guerras de religião, atacando o seu cerne: as distintas concepções religiosas e a necessidade de neutralidade e mediação entre estas. Em outras palavras, era fundamental encontrar uma base sólida a partir da qual fosse possível se estabelecer as regras do jogo a serem aceitas por todas as partes envolvidas, evitando assim reivindicações nascidas das particularidades de cada cosmovisão. Ele acreditava que, conquanto Deus fosse uma das fontes do Direito, que se manifestava por meio da própria natureza, havia uma outra forma, também ofertada por Ele à humanidade, e se encontrava na razão. A partir desta "nova concepção do Direito Natural, o princípio último de todas as coisas não seria mais Deus, nem a natureza, mas a razão"2. A oportuna proposição de Grotius não ia ao encontro apenas das necessidades de uma Europa dividida. A ampliação das rotas comerciais favoreceu o intercâmbio entre culturas e tornou cada vez mais urgente a necessidade de se estabelecer consensos mínimos pelos quais as nações cristãs e povos não-cristãos poderiam firmar acordos. O referido jurista teve a genial percepção de que, ao se estabelecer normas internacionais despidas de caráter teológico, transigir seria mais viável. O pacta sunt servanda não seria inviabilizado pela crença particular em uma divindade que pudesse se sobrepor aos interesses das partes. Por esta razão, Grotius é tido por muitos como o pai do Direito Internacional. A ênfase numa abordagem centrada na razão e na pessoa humana contribuiu decisivamente para o processo de secularização da Lei. Não seria possível falar, por exemplo, em laicidade estatal, sem esta mudança de chave hermenêutica. E, mesmo nos países que hoje se mantêm como Estado confessional, em maior ou menor grau, especialmente no mundo dito ocidental, concebe-se a ideia de pluralidade religiosa. O que resulta em certo grau de emancipação da política em relação à religião. Uma herança em cheque, um risco à dignidade humana Há mais de 30 dias, o mundo assiste à ofensiva do Estado de Israel sobre a Faixa de Gaza e na Cisjordânia, como uma resposta a ataques realizados pelo grupo Hamas no dia 7 de outubro. A população civil de Gaza tem sido a maior prejudicada. O número de mortos ultrapassa os 10 mil, sendo que mais de 4 mil são crianças. Nas redes sociais podem ser encontradas imagens vetadas pelos canais de televisão dada sua gravidade e horror. O conteúdo é excruciante. Especialmente o que envolve crianças. Mas importa chamar a atenção para um importante elemento. O discurso religioso que tem operado nesta "guerra"! Diante da denúncia de não cumprimento das normas de Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos por parte de Israel, bem como o pedido para que estas, que visam garantir o mínimo existencial dos mais vulneráveis num contexto de guerra, sejam observadas, o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, tem se valido de fundamentos religiosos para legitimar suas ações. Em um discurso à nação no dia 29 de outubro, Netanyahu fez menção ao povo Amalequita - adversário do povo hebreu nas narrativas bíblicas3 - ao se referir à operação em Gaza. Para uma pessoa medianamente conhecedora dos textos bíblicos, meia palavra basta. Trata-se de uma justificativa para a ofensiva que tem sido denunciada como "genocida". Mas, afinal, o que diz o texto bíblico sobre os Amalequitas? Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos. 1 Samuel 15:34 O discurso se deu dois dias após a aprovação de uma resolução da Assembleia Geral Extraordinária da ONU que, dentre outras coisas, apelou para uma trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada. Uma decisão com ampla maioria, com 120 votos a favor, 14 contra e 45 abstenções. A respeito do resultado, Gilad Erdan, o embaixador de Israel na ONU, comentou: "Hoje é um dia que será considerado infame. Todos testemunhamos que a ONU já não tem nem um pingo de legitimidade ou relevância"5. Evidentemente, trata-se do caso mais recente, porém não isolado. Tem sido frequente o uso da religião por diversos líderes políticos como fundamento para incursões bélicas. O que realmente parece novo e temeroso é o esforço de desmoralização da ONU e demais organismos internacionais. Este rechaço, aliado à ascensão política de grupos fundamentalistas religiosos, alguns dos quais renovam ideologias nazifascistas, parece querer reeditar uma (não)governança global pré-moderna, baseada na lei do mais forte. Neste cenário, no qual textos religiosos são reivindicados como elementos de fundamentação de atos políticos e, ao mesmo tempo, mecanismos como a ONU são desdenhados, deve-se ligar o sinal de alerta. O tempo presente está assistindo à erosão dos mecanismos internacionais cujo objetivo máximo era a manutenção e promoção da paz. O legado oriundo da Reforma Protestante, das preocupações de juristas como Hugo Grotius e da custosa luta de homens e mulheres em prol da afirmação da dignidade da pessoa humana encontra-se em cheque. O que significa, em outras palavras, que a comunidade global corre perigo. O rechaço ao pacto consensual mínimo entre as nações, aliada a impotência da ONU diante de terríveis violações de direitos humanos, apontam para um mundo de insegurança e medo. É importante lembrar que, num mundo governado por deuses, não raro a vida humana é oferecida em sacrifício. ____________ 1 GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Fondazione Cassamarca, (1625) 2004, p.40-41. 2 BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11º Edição. Revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2015, p. 308. 3 Disponível em: https://sarajevotimes.com/israeli-pm-tried-to-justify-the-killing-of-palestinians-remember-what-our-bible-says/. Acesso 07 de novembro de 2023. 4 Versão Almeida Revista e Corrigida. 5 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl05z761y3o. Acesso em: 07 de novembro de 2023.
A questão da população em situação de rua é um recorrente problema das megalópoles e das maiores metrópoles brasileiras. Até a década de 2000 o perfil do morador de rua era de homens, maiores de 40 anos e geralmente com problemas de alcoolismo. Hoje, são famílias inteiras, crianças, pessoas de diversas origens que se encontram acampados em barracas ou dormindo em meros papelões a sobreviverem de doações. Ao contrário do que o senso comum acredita, as pessoas nessas condições encontram-se na sua maioria não apenas por motivos econômicos, mas a tristeza por alguma decepção da vida ou rompimento de vínculo familiar é que justificam o ser humano se maltratar em tamanho desprezo por sua própria dignidade. Tal estágio de lamento é em grande parte ampliado numa tentativa de supressão do sofrimento na entorpecência, das mais variadas ordens, desde as drogas mais brandas até as sintéticas mais agressivas como a preocupante K9. Dados da SMADS1 de 2021 indicam que 16,6% (dezesseis vírgula seis por cento) dessas pessoas são mulheres. O número da época do censo é de mais de 30 (trinta) mil pessoas, mas a mídia divulga fartamente que esse número quase dobrou, levando-se em consideração o pós pandemia como forte agravante. As características dessa população transformou-se, está mais jovem. Quase 50% (cinquenta por cento) têm entre 31 e 49 anos, havendo também crianças e adolescentes sob os efeitos das drogas ilícitas. Por via do processo estrutural, o Ministro Alexandre de Moraes2 exigiu que em 120 dias (a contar de julho de 2023) os municípios de todo país apresentem soluções para a questão da população em situação de rua. Com foco no mapeamento de quem são e quais são suas necessidades, e para os estados, a obrigação imposta foi de prover segurança, apoio para os pets e a proibição do recolhimento forçado de pertences e o transporte compulsório. Numa tentativa de esforço mútuo entre terceiro setor e poder público, a recuperação das pessoas em situação de rua, diga-se, recobrar a dignidade, é um processo longo, iniciado pela disponibilidade de toda sua rotina para submeter-se a tratamento de saúde que promova a desintoxicação. Para alcançar o feito, a cada 40 pessoas que conseguem passar pelo tratamento e superar as adversidades sem retornar às ruas, nenhuma é mulher3. Este fator se dá pelo valor nas relações, o dever de cuidado daqueles que estão à sua volta ou delas dependem sacrifica qualquer chance de tratamento, ou seja, a mulher prefere não aderir a oportunidade de se livrar das condições deprimentes em que vive para seguir acompanhando o esposo, namorado, filhos ou pets. O dado alarmante supramencionado faz das mulheres vítimas sujeitas à mais crueldade nessa conjuntura, uma vez que para angariar recursos também são aviltadas por prostituição e outros estigmas de gênero. Há um olhar todo especial que deve ser provido em favor de todas as pessoas, sejam quais forem suas características, mas para as mulheres, o trabalho de resgate do público feminino tem um agravante superior. Num Estado Democrático de Direito que visa aplicar o artigo 5º, I da Carta Magna, as mulheres em situação de rua demandam mais atenção e opções eficazes, de forma a tratar os desiguais na medida de suas desigualdades em face da nobreza que justifica tamanho sacrifício pessoal. ____________ 1 Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo. Disponível em https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/observatorio_socioassistencial/pesquisas/index.php?p=18626 2 Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/07/25/alexandre-de-moraes-da-120-dias-para-o-governo-apresentar-plano-para-populacao-em-situacao-de-rua.ghtml 3 Dados obtidos com a ABCPovo. https://abcpovo.org.br/
O dia 17 de outubro é marcado pela ONU como o Dia Internacional de Erradicação da Pobreza, a data foi criada em 1987, quando em Paris, mais de cem mil pessoas prestaram homenagem às vítimas da pobreza extrema, violência e da fome. Há mais de 30 anos, esse era um tema que assolava a humanidade e, atualmente, principalmente após a pandemia da Covid-19, volta a ordem do dia, tendo países como o Brasil retornando ao mapa da fome. Seguida epistemologia internacional, a pobreza é um estado em que o nível de renda ou consumo per capita familiar ou domiciliar fica abaixo do mínimo essencial para suprir necessidades humanas básicas, manifestando, assim, por meio da fome, do acesso limitado - ou da total falta de acesso - à saúde, à educação entre outros serviços básicos, culminando na exclusão social, bem como à falta de participação na tomada de decisões1. Segundo o Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (2021), com a  pandemia da Covid-19, a fome e a pobreza tiveram um aumento expressivo, levando pessoas vivendo na extrema pobreza de 8,4% em 2019 para 9,5% em 2020. Por essas razões é que neste artigo, uma vez mais, voltarei minhas reflexões para o maior contingente populacional e o mais pobre desse país - as mulheres negras - a fim de indagar: Quais lugares as mulheres negras estão ocupando na sociedade atual? É fato que existem algumas mulheres negras ocupando espaços importantes, tais como, na academia, no judiciário, em outras profissões que exigem formação em curso superior, na mídia etc. No entanto, esse é um número ínfimo perto da realidade da maioria das mulheres negras brasileiras, os índices sociais e econômicos que apontam para os lugares de subalternidade e precarização, desde a escravidão, revelam que a sociedade imbuída pelo racismo sistêmico e estrutural os reservou para nós, como ocupação prioritária.                 Atualmente, a população brasileira beira aproximadamente 213 milhões2 de pessoas, tendo sua maior concentração no sudeste. As mulheres negras representam 27,8%3 dessa população, sendo um número bastante significativo ao representar pelo menos ¼ da população. No entanto, está longe de ser o número referente à representatividade de mulheres negras em cargos de poder e de tomada de decisão.                 No que tange aos cargos eletivos, por exemplo,  em 2018, as mulheres negras  constituíram apenas 2,5% dos(as) deputados(as) federais e 4,8% dos(as) deputados(as) estaduais(as) eleitos(as),4 e, nas eleições municipais de 2020, apesar de serem mais de 81 mil candidatas, foram apenas 6,1% dos(as) vereadores(as) eleitas5. De acordo com os dados da ONG Mulheres Negras Decidem, apenas 8 milhões de brasileiros(as) ousaram depositar o seu voto em  mulheres negras e nas últimas eleições (2022), nove mulheres negras foram eleitas para o Congresso Nacional, num universo de 94 mulheres eleitas, representando 18% das cadeiras6. O  antagonismo entre o maior contingente racial populacional e a sua pouca representação política  eleita pelo voto direto, aponta para o diagnóstico do quão vividos são entre nós, os paradigmas e estereótipos estabelecidos pelo mito da democracia racial em nossa sociedade, que acentua ainda mais as desigualdades sociais, a má distribuição das oportunidades sob a cortina de fumaça da meritocracia. A incredulidade, a desmoralização social, intelectual e estética, a constante suspeita do ilícito que recaem sobremaneira nos ombros da população negra estão impregnadas no (in)consciente da população brasileira. Uma vez que se reconhece que o racismo estrutural é multidimensional, assim como seus efeitos, é sabido que tais elementos se tornam determinantes para as escolhas da vida em todas as dimensões, inclusive na política. Em contraste com os dados de representatividade das mulheres negras na política estão os dados da pobreza brasileira, neles verificamos  que as mulheres negras protagonizam o topo da exclusão, confirmando mais uma vez o chamado "Matriarcado da miséria" denunciado por Sueli Carneiro7 em sua coluna no jornal Correio brasiliense nos anos 2000. Neste trabalho, Sueli Carneiro reflete sobre a intersecção do racismo e do sexismo na vida das mulheres negras, produzindo sobre elas uma espécie de "asfixia social", que reduz  suas vidas a uma expectativa de, em média, 5 anos a menos que as mulheres brancas. Além disso, os dados da época revelaram que as mulheres negras se casavam menos e, em relação à ocupação profissional, 79,4% das negras estavam nos trabalhos manuais, e 51% no serviço doméstico, sendo a população feminina e negra, em tese, a mais miserável do Brasil.  Sueli Carneiro tomou emprestado o termo "matriarcado da miséria" cunhada pelo poeta negro e nordestino,  Arnaldo Xavier,  para marcar a experiência histórica das mulheres negras brasileiras numa sociedade excludente e discriminatória, que se de um lado as rejeitam, por outro lado impõe a elas o papel de resistência e liderança nas periferias e comunidades miseráveis8.  Em 2021, o mundo foi atravessado pela segunda onda da Covid-19 (Sars-Cov-2). A letalidade violenta e a rápida transmissibilidade do coronavírus levou a maioria dos países do mundo a adotar medidas de fechamento,  isolamento social, entre outras, e um dos efeitos inevitáveis foi o agravamento da crise econômica em diversos países, como foi o caso do Brasil. Naquele momento da história, tanto o Poder Executivo quanto a maioria no Poder Legislativo, transitavam entre a direita conservadora e a extrema direita, fazendo com que as crenças ideológicas alinhadas a esse espectro, fossem, portanto, as bases fundantes de políticas negacionistas adotadas para o enfrentamento do momento pandêmico. Isso implicou no crescimento da situação de pobreza e extrema pobreza no Brasil, escancarando ainda mais o racismo, o classismo e o neocolonialismo embutidos no direcionamento de tais políticas.   Segundo o Made-Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades FEA-USP9, antes da pandemia, a taxa de pobreza atingia 33% das mulheres negras, 32% dos homens negros e 15% das mulheres brancas e dos homens brancos. Já em 2021, transcorrido quase um ano de crise econômica agravada pela pandemia, esses números passaram respectivamente para  38%, 36%, 19% e 19%.                Em relação à taxa de extrema pobreza10, antes da crise, era de 9,2% entre mulheres negras, 8,9% entre homens negros, 3,5% entre mulheres brancas e 3,4% entre homens brancos. Em 2021, a pobreza extrema continua em valores muito acima dos verificados antes da crise: respectivamente 12,3%, 11,6%, 5,6% e 5,5%. De certo que a pandemia atingiu inúmeros grupos sociais, porém segundo os dados, as mulheres negras foram as mais prejudicadas, aprofundando ainda mais o fenômeno da feminização da pobreza e do chamado matriarcado da miséria. Em relação aos rendimentos, a pesquisa realizada pelo IBGE11 aponta para disparidades gritantes. Apenas no recorte de gênero, verifica-se que em 2018, as mulheres receberam 78,7% do valor dos rendimentos dos homens, já numa análise apenas de raça  os(as) negro(as) receberam somente 57,5% dos rendimentos dos brancos(as), Porém, na intersecção de gênero e raça, a manutenção das mulheres negras na base da pirâmide em relação a todos os outros grupos (homem branco, homem negro e mulher branca) só reforçam o argumento de que para a sociedade brasileira os lugares destinados às mulheres negras é o do servilismo e da precarização. Atingidas frontalmente pelo racismo, pelo patriarcado e pela misoginia, acabam na base da pirâmide com uma diferença gritante, inclusive em relação à mulher branca. A vantagem dos homens brancos sobre os demais grupos populacionais é patente e abissal, a pesquisa revela que as mulheres negras recebem apenas 44,4% dos rendimentos do homem branco. E de acordo com a pesquisa, em relação às mulheres negras e brancas a diferença está na órbita de 58,6% a mais para as mulheres brancas. Os homens negros, por sua vez, só levam vantagem sobre nós, tendo rendimentos superiores aos nossos  na razão de 79,1% - a maior entre as combinações -, no entanto, ainda inferiores aos dos homens e mulheres brancas. O mito da democracia racial, de uma sociedade harmônica, igualitária e democrática brasileira tem como uma de suas principais funções mascarar essas avassaladoras diferenças econômicas e sociais entre o grupo dominante  branco e os subalternizados: população negra, indígena, quilombolas, ribeirinhos e qualquer outra etnia menorizada. Portanto, a reflexão para o dia de erradicação da pobreza é a necessária adoção de uma política antirracista que tenha o dispositivo "raça" -  aqui recorremos a noção de dispositivo de Foucault - como elemento central, juntamente com o gênero, para elaboração de políticas públicas específicas voltadas para as mulheres negras. Nessa nova página da história, além do Ministério da Igualdade Racial, nunca havido antes, temos também o Ministério da Mulheres que tem a competência para formular, coordenar, articular e executar políticas para as mulheres e, portanto, jamais poderá se furtar de inserir o dispositivo raça de forma central em suas políticas. __________ 1 Disponível aqui, acessado em 16.10.2023 2 Disponível aqui. Acessado em 20.11.2021; 3 Disponível aqui. Acessado 16.10.2023 4 IBGE: Pesquisa Desigualdade Social por ou ou raça no Brasil, 2019. Disponível aqui. Acessado em 20.11.2021 5 Disponível aqui. Acessado em 21.11.2021. 6 Disponível aqui. 7 CARNEIRO, Suelie; Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil - São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 127-130. - (Consciência em debate/ coordenadora: Vera Lúcia Benedito) 8 Idem 6. 9 Disponível aqui. Acessado em 21.11.2021. 10 O Ministério da Cidadania compreende como extrema pobreza a renda per capita mensal de até R$ 89,00 (oitenta e nove reais). 11 Idem 4.
Dia 2 de outubro de 2023 completou 31 anos do episódio mais horrendo e repugnante da história do Sistema Penitenciário Brasileiro: o Massacre do Carandiru, onde foram "assassinados 111 presos, quase todos negros" oriundos dos bolsões de pobreza e miséria da grande São Paulo, a maioria sem condenação definitiva, na faixa etária de 18 a 25 anos. A Casa de Detenção de São Paulo foi construída em 1954, durante o mandato do presidente da República de Jânio Quadros, localizada em uma área de 60 mil metros quadrados, e tornou o assim o maior presídio da América Latina. Localizava-se na Zona Norte da cidade de São Paulo, o qual foi integrado ao que se denomina de Complexo do Carandiru, onde também está localizado a Penitenciária do Estado, pela Penitenciária Feminina. A Casa de detenção de São Paulo, na época possuía sete pavilhões divididos em blocos, a população na época era de aproximadamente 7.200 presos, neste sentido já havia um encarceramento em massa, e uma superpopulação prisional, há exatos 30 anos atrás. O palco do espetáculo macabro, foi o pavilhão 9,  era o local destinado os presos jovens na maioria negros, centenas oriundos do Recolhimento Provisório de Menores RPM-  extinta Febem- Fundação do Bem Estar do Menor atualmente conhecida como  Fundação Casa para este local eram destinados aqueles que estavam nos distritos policiais, aguardando o momento para "descer para Casa de Detenção de São Paulo" mais precisamente para o Pavilhão 9 também conhecido como  "Favelão" este era  destinados os presos de primeira viagem, sem passagem pelo  Sistema Prisional. A Casa de Detenção de São Paulo, deveria abrigar 3,2 mil presos, na data do Massacre sendo 2000 só no Pavilhão 9, todos distribuídos em 248 celas, ou seja, oito presos em média por cela, ou até 12 ou  15 sendo assim impossível respirar sendo a superlotação um vetor de Tortura. Sendo assim, o Governo do Estado de São Paulo, descumpria a lei 7.210, Lei de Execuções Penais, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, de 11 de junho de 1984, no artigo 83, em que as instituições prisionais deveriam ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade Nesta ocasião eu era Escrevente Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo, lotada na Vara de Execuções Criminais, no setor de Carta de Guia, eu atuava como voluntária da Pastoral Carcerária, e Membro da Subcomissão de Política Criminal e Penitenciaria da OAB e também fundadora do Geledes Instituto da Mulher Negra, e atuava na área de Direitos Humanos. Na tarde deste dia, houve uma intensa movimentação na vara de Execuções Criminais, os telefones começaram a tocar insistentemente, os funcionários ficaram assustados, eis que chega a notícia que 16,30 que ocorreu uma briga, entre 2 presos durante uma partida de futebol do Pavilhão 9  e se iniciou uma rebelião na Casa de Detenção e que a Tropa de Choque da Polícia Militar foi acionada e já havia adentro ao local para o início do "Extermínio". As informações que eram divulgadas pela imprensa e que cerca de 325 policiais, vindos de inúmeras  guarnições, incluindo o batalhão de choque, a GATE (Grupamento de Ações Táticas Especiais), comandado pelo capitão Wanderley Mascarenhas, da COE (Comando de Operações Especiais), comandado por Ariovaldo Salgado e o grupo especial ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) entre eles estava o coronel Ubiratan Guimarães, na época Comandante do Policiamento Metropolitano, e o tenente coronel PM Luiz Nakaharada, no Comando do Policiamento de Choque de São Paulo. Tal  operação, na verdade, não teve  um planejamento prévio, as tropas  sequer conheciam a planta do local e  nunca foi previsto a  invasão do local pelas tropas porque o Secretário da Segurança Pública, que na época era  responsável pela administração do sistema penitenciário e da Casa de Detenção, não se fez presente  onde a sua ausência contrariava toda uma tradição anterior, sempre que houvesse problemas em estabelecimentos prisionais que exigisse uma invasão, o secretário se fazia presente. Exatamente as 16h30, as tropas, armadas com metralhadoras, fuzis, pistolas automáticas e cachorros invadiram o Pavilhão 9,   atirando nos presos, de que resultou  o massacre de 22 mortos de poucos minutos. Nesta atuação macabra não houve sequer nenhum policial morto. Os jornais que fizeram a cobertura da época bem como membros da OEA (Organização dos Estados Americanos) especulavam que possivelmente o número de mortos tenha passado de 111. "Um cartaz colocado numa das janelas pelos presos garantia que 280 pessoas foram mortas. Porém membros da comissão de presos da Casa de Detenção afirmavam que foram 220 mortos. "São 220 mortos"1. Foram todos executados sumariamente, sem que estivesse em vigor a condenação através da Pena de Morte. A violência da operação ficou evidenciada, através de outras provas, através das marcas nas paredes das rajadas de metralhadoras utilizadas pela polícia de Choque. Foi totalmente desconsiderado, que toda   pessoa presa dentro do regime democrático tem assegurado e garantido seus direitos individuais como cidadão, entre estes direitos inclui-se a sua integridade física, e principalmente a não violência contra o preso, que se encontra sob a custódia do Estado.  A ronda ostensiva Tobias de Aguiar deixou seu famigerado e conhecido rastro de sangue, que adubou inúmeras ruas de terra, corredores minúsculos nas vielas próximas as "favelas" território considerado perigoso pois onde habitavam, pessoas em situação de vulnerabilidade social na sua grande maioria negras e pobres. A Polícia Militar que surgi em 1970, e integra-se aos   componentes da extinta Força Pública e Guarda Civil de São Paulo. A polícia militar estava destinada inicialmente à manutenção da ordem e da segurança pública na área do território do Estado onde todas as atribuições destinadas à Polícia Militar são principalmente em atuar de maneira preventiva, em locais e áreas especificas, porem infelizmente não foi o que ocorreu há exatamente 31 anos atras. 0 Foi com esta Polícia, criada para tais finalidades, que foi instaurada na década de 90, a política de "lei e ordem", em São Paulo, que tinha como premissa principal a extinção da violência e da criminalidade Só em 1992, a PM deixou 1.428 pessoas mortas em supostos tiroteios no estado, incluindo os 111 presos massacrados no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo2. O livro de Barcellos - Rota 66 a Polícia que Mata, lançado em agosto de 1992, um mês antes do Massacre dos 111 descreve um estudo feito desde 1970, ano de fundação da Polícia Militar, até 1992, o qual foram investigados os assassinatos da Polícia Militar, com destaque para o histórico dos policiais militares mais violentos da corporação onde também observa-se o mesmo modus operandi que a polícia militar costumava  usar quando mata suspeitos e "supostos" criminosos na maioria desarmados e com tiros na cabeça.  Assim, tal método de execução sumaria foi largamente utilizado durante o Massacre do Carandiru, ao observar através do Laudo do Instituto de Criminalística bem como alguns prontuários de presos mortos no Massacre do Carandiru, apontam que foram disparados 515 tiros fatais onde estes tiros 254 disparos atingiram o tronco e o pescoço, 126 a cabeça e 135 os membros3. Assim,  e possível observar que os policiais que adentraram a Casa de Detenção de São Paulo, eram o próprio Estado,  ou seja, a mais absoluta incapacidade do Estado em proteger os aqueles que estão sob sua custodia, vítimas constates  promovido por uma  "Falsa Abolição da Escravidão, ausentes de políticas públicas,  vitimados pela  exclusão racial e  social, que resulta na marginalizão constante, através da  violência cotidiana que perdura, culminando no encarceramento que expressa o embate racial e  social vivido entre os cidadãos excluídos e o Estado. Todos os direitos que fazem parte do texto de nossa Constituição Federal de 1988, dentro da constituição cidadã a população negra encontra-se na Periferia da Constituição, os . Direitos que são primordiais para dignidade humana como saúde, educação, segurança, moradia, alimentação está ainda longe de serem conquistados. Sabemos que a realidade brasileira é bastante dura, cruel e desumanizante a todo momento. O Massacre do Carandiru apontou que   o racismo é um dos principais fatores estruturantes das injustiças sociais que acometem a sociedade brasileira e que ainda envergonham o país. São inaceitáveis distâncias que ainda separam negros de brancos, ao gozo de direitos civis, sociais e econômicos. Responsabilização pelas mortes A responsabilização pelo Massacre do Carandiru só começou a ser julgada praticamente 10 anos depois, o Coronel Ubiratan Guimarães, foi condenado a 632 anos de prisão sendo responsável pela morte de 102 dos 111 presos, ainda foram realizados outros cinco julgamentos, entre os anos de 2013 e2014, devido a quantidade de vítimas e réus, o julgamento foi desmembrado. Ao final 73 policiais foram condenados com penas que variam de 48 a 624 anos de prisão.  Porem no ano de 2016, três desembargadores da 4ª Câmara Criminal do Júri, responsáveis pelo recurso da defesa dos réus, decidiram anular os julgamentos, o relator do processo defendeu que os policiais agiram em legitima defesa. O TJ já havia anulado condenações no ano de 2018 por entende que a decisão ia contra as provas que se encontravam no processo. Ainda no ano de 2022, de autoria do Capitão Augusto apresentou o projeto que prevê anistia aos policiais militares que atuaram no Massacre do Carandiru junto a Câmara Federal dos Deputados. No dia 23 de dezembro de 2022 foi publicado a concessão do perdão judicial para os policiais condenados há mais de 30 pela participação no massacre do Carandiru, época que este crime não era considerado hediondo. As condenações pelo Massacre dos 111 não podem mais sr revistas na Justiça. O ex-presidente da República, concedeu indulto natalino  aos Policiais Militares envolvidos no Massacre dos 111-  Por outro lado a Ministra Rosa Weber, atendeu o pedido realizado  pela Procuradoria Geral da República, que considero o indulto natalino de 2022, totalmente inconstitucional, por afrontar a dignidade humana e os princípios do direito internacional, uma vez que o decreto concede "anistia" aos agentes de segurança pública que tenham sido condenados por fatos ocorridos há mais de 30anos, caso o  crime não tivesse sido considerado hediondo na época. Reparações Sabemos  que existem muitas maneiras de lidar com o passado que envolvem conflitos, interesses, relações de poder, apagamentos e exclusões, no caso do Massacre do Carandiru, excepcionalmente, através da sociedade civil, ongs, associação, frentes de desencarceramento, movimento negro,  a regra não foi o esquecimento, mesmo após a implosão do presídio para a construção do Parque da Juventude, finalizado em 2003  e diversas instituições lutaram pelo esclarecimento dos fatos, reparação de danos e responsabilização dos culpados. No  dia 22 de fevereiro de 1994, as organizações,  Americas Watch, Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a  Comissão Teotônio Vilela apresentaram junto  a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra  o Estado Brasileiro,  onde foi apresentado, as violações à Convenção Americana de Direitos Humanos no que diz respeito aos direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias processuais - como o devido processo legal - e à proteção judicial das vítimas do Massacre do Carandiru. O Massacre dos 111 deixou claro que a responsabilidade do Estado em casos de mortes decorrentes da atuação de seus agentes possui tratamento diverso no âmbito civil e no criminal. Muito embora a lei preveja a possibilidade de reparação civil em casos de crime. No caso da responsabilidade por mortes em presídios, responsabilizam-se, na esfera penal, os agentes públicos, ao passo que no âmbito civil a tutela se volta contra o Estado, uma vez que o papel de administrador do estabelecimento prisional e de responsável pela integridade dos custodiados. Logo, a tutela penal e a tutela civil não são excludentes. Acerca da responsabilidade civil, especificamente, os arts. 5º, inciso XLIX, e 37, § 6º, da Constituição Federal versam que o Estado deve assegurar aos presos a segurança e o respeito à integridade física e moral. E extremamente um absurdo, e preocupante saber que há casos em que os familiares das vítimas possuem valores a receber, em alguns casos até já depositados em juízo, porem possivelmente nem sequer têm conhecimento da possibilidade de receberem essas quantias em razão do longo período em que seus processos ficaram sem tramitação. Os filhos do Massacre As mulheres gravidas era um grupo muito grande, na porta da Casa de Detenção de São Paulo, segurando a mão de outros seus filhos,  não eram poucas as  avos, esposas, filhas, tias, que eram ofendidas pelos cavalos que estavam montados nos animais,   os quais eram jogados,  contra as mulheres e crianças, de um lado ao som de "assassinos, covardes"  e do outro "vagabundas, etc". A tensão era imensa, eu estava na porta do Carandiru, juntamente com outros membros da família, na busca de informações sobre paradeiro do filho, pai, sobrinho. O episódio foi marcado com inúmeras violações de direitos humanos, inúmeras crianças não foram devidamente informadas das condições da morte, alguns receberam a certidão de óbito. Ainda há inúmeros processos solicitando indenização, em que o valor varia entre 40 e 60 mil reais, aqueles que eram crianças nos braços de seus avôs, mães, tias, ou na barriga de suas mães vão em busca da indenização que o estado lhes deve. Destaca-se que as famílias, das vítimas chegam a aguardar, até 22 anos ou mais para serem indenizadas, sem contar que muitos entes queridos, que  deram entrada na ação de indenização já se encontram mortos. Por onde estará, como vivem os filhos e filhas do Massacre do Carandiru? __________ 1 ALONSO, George. Comissão de presos conta 220 'execuções'. Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 de out. de 1992 2 Segundo diz o jornalista do jornal O Estado de S. Paulo Marcelo Godoy, no livro A Era FHC: Um Balanço, de Bolívar Lamounier e Rubens Figueiredo. 3 SÃO PAULO. Departamento Estadual de Polícia Científica. Instituto de Criminalística. Laudo número 019267. Relator: Dr. Osvaldo Negrini Neto. Rebelião Rixa, São Paulo, 1992.
Na última semana uma delegação de organizações não governamentais brasileiras estiveram em Genebra na Suíça para acompanhar e contribuir com a revisão do Brasil quanto a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturas (PIDESC), adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966, e internalizado pelo Brasil por meio do decreto 591, de 6 de julho de 1992. O processo de revisão dos 170 países signatários ao pacto ocorre de forma periódica e é realizado pelo Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. E para tanto, a presença do Estado brasileiro por meio de delegação com representação dos ministérios cuja promoção de tais direitos estão no bojo de suas competências é indispensável. A Comissão nacional de direitos humanos da OAB se fez presente juntamente com organizações como a Sociedade maranhense de direitos humanos-SMDH, Federação dos trabalhadores e trabalhadoras em agricultura no Maranhão, a Terra de Direitos, o Geledes-Instituto da mulher negra, o Conselho nacional de Saúde, a FIAM-Brasil, entre outras organizações. Embora a delegação do governo brasileiro estivesse em numerosa representação, sentiu-se a ausência de alguns ministérios, com destaque para o Ministério da Justiça Segurança Pública causando impacto, principalmente, quanto a uma questão que está na ordem do dia e é diretamente conectada a não efetivação de tais direitos: a política de segurança pública, com especial enfoque na matança deliberada no estado Bahia e abertamente defendida pelo secretário executivo daquele Ministério, Sr. Ricardo Cappelli, que em entrevista a CNN Brasil, disse:  "Não vejo uma desestruturação da Segurança Pública na Bahia. É grave? É. Tem confronto. Tem? Agora, a polícia da Bahia é uma polícia boa. Tem a questão da letalidade? Tem. Mas você não enfrenta crime organizado com fuzil com rosas. Porém, a letalidade deve ser investigada e combatida". Levantamento feito pela Anistia Internacional1 indica que houve 86 mortes em operações policiais no período de 2 meses no estado da Bahia, o que significa quase 2 mortes por dia.  Os investimentos públicos vultuosos anunciados em programas de segurança pública2 acende um alerta para a continuidade de uma política genocida e letal para corpos negros e pobres. Seguindo na lógica da famigerada "guerra às drogas" que nada mais que uma guerra contra comunidades periféricas e que não resolve o problema do crime organizado em torno do tráfico de drogas e na contramão dessa guerra, estão os baixos investimentos em políticas públicas de saúde e educação corroboram para um quadro disfuncional e deficitário e a manutenção do empobrecimento da população, propiciando a exploração e precarização de mão de obra, cada vez menos valorizada. As perguntas sobre políticas de drogas, segurança pública não foram parcialmente respondidas, ficando aquém daquilo que se espera e que a sociedade brasileira reclama. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
terça-feira, 26 de setembro de 2023

A teocracia do espetáculo

A desinformação contra grupos vulnerabilizados sempre foi um problema da sociedade, quando falamos da população LGBTI+ foi construído no imaginário popular um estereótipo nocivo que se perpetuou no decorrer dos séculos. Quando a separação entre igreja e estado não era clara havia perseguição institucional contra esse grupo, isso pode ser verificado a partir de uma análise das Ordenações do Reino, que tinham em seu rol de crimes a sodomia, punida com a morte na fogueira e o uso de trajes vistos socialmente como de outro gênero com a pena de açoite e degredo. Na leitura dessas legislações históricas é possível perceber a forte influência da igreja no Estado, os textos dos crimes se baseavam na tradição cristã. A título de exemplo, nas Ordenações Filipinas, o crime de sodomia estava previsto no Livro V, título XIII com o nome "Dos que cometem o pecado de sodomia, e com alimárias" que era tratado a todo tempo como pecado: Toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado, e feito pelo fogo pó, para que nunca de seu corpo ou sepultura possa haver memória, e todos os seus bens sejam confiscados para a Coroa de nossos Reinos, posto que tenha filhos e netos ficarão inábeis e infames assim como aqueles que cometem o crime de lesa majestade. A pena de morte na fogueira era justificada não somente como a morte do corpo, mas a morte da memória, o que é bem significativo já que grupos reacionários e fundamentalistas buscam apagar a memória da população LGBTI+ a todo momento. Muito disso se dá em razão de pensarem que ser LGBTI+ é uma escolha, logo essa escolha seria uma falha de caráter, um desvio moral, algo a ser combatido, a lógica de que se alguém escolheu um caminho que é repudiado pela sociedade deve arcar com as consequências. Devo frisar que ser LGBTI+ não é uma escolha, mas uma característica inerente ao ser humano que pode ser descoberta em várias fases da vida, mas ainda que fosse uma escolha deveria ser respeitada. Esse pensamento de apagamento da memória é visto até hoje em projetos de lei, como o PL 504 e São Paulo, que visava proibir publicidade com pessoas LGBTI+, seguindo a mesma lógica muitos pensam que a publicidade é capaz de influenciar pessoas a serem LGBTI+. Com o Código Penal do Império aqueles crimes deixaram de existir, mas a discriminação não, essa sempre esteve presente na sociedade, por muito tempo foi reforçada pela mídia hegemônica que sempre tratava essa população de forma caricata, muitas vezes atribuindo características nocivas a personagens. A população trans foi a que mais sofreu com essa construção de imagem, eram sempre retratados como pessoas violentas, não confiáveis, mulheres trans e travestis eram vistas como pessoas que desejavam enganar os homens, etc. No primeiro filme do Ace Ventura há uma cena em que o detetive descobre que beijou uma mulher trans, logo após a descoberta ele é visto se sentindo enojado, como se tivesse sido vítima de violência sexual. Felizmente na última década parte da grande mídia tem tentado mudar essa imagem e personagens mais humanizadas têm aparecido em meios de comunicação tradicionais. Apesar disso, desde a popularização das redes sociais temos enfrentado o crescente fenômeno da desinformação na internet. Um dos recentes espantalhos criados por esses grupos fundamentalistas é a chamada "ideologia de gênero", algo que simplesmente não existe nem tem uma definição clara, mas que é usada de forma genérica para atacar a população LGBTI+ como um todo. Isso tem um reflexo no processo legislativo brasileiro e pode ser verificado por ferramentas como o Google Trends. A expressão "ideologia de gênero" viralizou no país em julho de 2015, depois disso o termo "gênero" deixou de ser usado em novos projetos de lei. Antes desse espantalho viralizar pela primeira vez, era comum que o termo "gênero" aparecesse na legislação, um exemplo claro é a própria Lei Maria da Penha. A própria lei de feminicídio, que usava "gênero" em seu texto durante o projeto, sofreu uma emenda de redação e a lei trouxe a expressão "sexo", uma óbvia tentativa de excluir pessoas trans dos mecanismos de proteção do Estado. Isso também aconteceu com a lei de stalking, violência política e outras que visam proteger mulheres. Mas a redação não foi o único fator que mudou com a viralização da desinformação contra a população LGBTI+, as mentiras passaram a ficar cada vez mais sofisticadas criando o chamado pânico moral na sociedade. Com isso, projetos de lei discriminatórios passaram a ser apresentados em todo Brasil com justificativas aparentemente nobres como proteger as crianças da ameaça da "ideologia de gênero", preservar valores, etc. Dentre esses projetos se destacam os da "escola sem partido" que em muitos casos proibia o debate sobre gênero, identidade de gênero e orientação sexual no sistema educacional. Obviamente todos os que foram aprovados e chegaram ao STF foram declarados inconstitucionais por uma série de fatores. Hoje, a cada tema novo que viraliza, temos uma enxurrada de projetos que parecem ter saído do esgoto. Recentemente um tema voltou aos holofotes, o casamento homoafetivo, as sessões na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família parecem ter saído do Conto de Aia. Ressuscitaram o PL 5167/2009 no relatório do PL 580/2007, um PL sem grandes chances de aprovação, mas que busca manter seu relator e apoiadores nos holofotes da mídia e das redes sociais. A justificativa do PL em questão é irônica, inicia com os dizeres: "Este projeto deseja aclarar, de uma vez por todas, a situação de direitos de pessoas do mesmo sexo, em relação à família e ao casamento. Preliminarmente, queremos deixar bem claro que não existe de nossa parte a intenção de discriminar ou violar direitos materiais de qualquer pessoa, pois esta atitude viria chocar-se aos valores cristãos dos autores e seria uma negativa, mas, ao mesmo tempo, temos que sair em defesa desses mesmos valores para manter a coerência de atitude e respeito à vontade do povo que nos elegeu". Deixa "bem claro" que "não há discriminação" na tentativa de aprovar uma lei que discrimina, o relatório por sua vez ataca a decisão do STF na ADI 4277. Vale dizer que a decisão da Suprema Corte é tão bem fundamentada e representa um avanço social tão grande que é considerada pela Unesco patrimônio documental da humanidade. Importante destacar que o relator parece não compreender o conceito de laicidade e que o Brasil não é, pelo menos ainda não, uma teocracia do espetáculo, cito aqui trecho do relatório: O Brasil, desde sua constituição e como nação cristã, embora obedeça ao princípio da laicidade, mantém, na própria Constituição e nas leis, os valores da família, decorrentes da cultura de seu povo e do Direito Natural. Nesse sentido, toda lei feita pelos homens tem razão de lei porquanto deriva da lei natural. O projeto dificilmente será aprovado em definitivo, uma vez que ainda deve ser debatido na Comissão de Constituição e Justiça, no Senado, pode ser vetado e, eventualmente, questionado no STF. A inconstitucionalidade do projeto é evidente, viola o arcabouço legal brasileiro e internacional. Vai de encontro ao princípio da igualdade e não discriminação, o princípio da proibição do retrocesso, prejudica a promoção da Justiça social e cria castas sociais no país. Viola a Opinião Consultiva 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que "estabelece a obrigação dos Estados Partes de respeitar e garantir o pleno e livre exercício dos direitos e liberdades nele reconhecidos 'sem qualquer discriminação'". Os princípios de Yogyakarta, dos quais o Brasil é signatário, que estabelecem uma série de parâmetros que os estados devem seguir para combater a discriminação relativa à orientação sexual e/ou identidade de gênero. Há ainda uma série de decisões da Corte Interamericana de Direitos humanos sobre o tema ou questões correlatas como a adoção por pessoas LGBTI+ como Atalla Riffo e filhas v. Chile, de 2012. Nesse julgamento foi reconhecido que orientação sexual e/ou identidade de gênero são classificações suspeitas, ou seja, leis e políticas estatais que discriminem por essas razões serão presumidas como inconvencionais, salvo se o Estado apresentar forte fundamentação a partir de critérios objetivos e razoáveis. Isso foi reafirmado em 2016 nos casos Flor Fleire v. Equador e Duque v. Colômbia, respectivamente sobre discriminação nas forças armadas e no direito previdenciário. Ainda assim, mesmo com a evidente inconstitucionalidade, é um sinal de alerta de que os direitos sociais nunca estão postos e que devemos ser vigilantes, afinal de contas se nos permitirmos voltar ao passado a fogueira pode esperar muita gente.
Perceber a felicidade na atuação profissional: um convite Na defesa dos Direitos, costumeiramente cada advogado utiliza como desfecho de petições "termos em que, requer deferimento". Trata-se, como é de conhecimento amplo, de clássica combinação de palavras que pretende dar ênfase em tudo que foi exposto e assinalar que, como consequência, alguma providência jurisdicional é esperada. E o que mais está atrás de tudo isso? Em um primeiro momento talvez seja o caso de pensar em "justiça", afinal faz muito sentido que o resultado útil de um processo seja exatamente este. Agora, que tal refletir também no quanto a pacificação e mesmo a prevenção de um litígio promovem felicidade? A atuação de todo profissional do Direito também não deve se preocupar com isso? Felicidade possui inúmeros conceitos - neste momento o leitor é aconselhado a parar por alguns minutos e anotar o que entende por felicidade... anotou? -, sendo que sempre foi objeto de estudo em vários campos do saber. Não há uma única definição de felicidade, porém, do mesmo modo que acontece com a justiça, as pessoas sabem quando algo prejudica ou é o exatamente o contrário de felicidade. Fato é que toda vez que um advogado atende um cliente e ao final do diálogo ou de sua atuação percebe que pôde resolver algo, certamente vai sentir o reflexo disto em si e no cliente. Estas duas perspectivas são percepções de felicidade traduzidas em satisfação e gratidão, por exemplo. Entender o quanto a prevenção e solução de um litígio são também fontes de felicidade pode ser um grande aliado na atuação de qualquer profissional do direito. Some-se que a atuação adequada do advogado aumenta as chances de bom relacionamento com os clientes e, aliás, bons relacionamentos são fontes cientificamente validadas de felicidade. No mesmo sentido, a atuação de todo profissional do Direito é força motriz de melhores relacionamentos entre os envolvidos em determinada situação jurídica e de toda sociedade. Deste modo, é recomendável que cada operador do Direito possa refletir facetas de felicidade que suas respectivas atividades oportunizam. Portanto, há uma correlação intensa entre os Direitos defendidos e a felicidade: seja por meio da percepção dos resultados obtidos, seja pela melhora dos relacionamentos, seja pela colaboração do Direito à paz e seja ainda pela própria percepção da felicidade como um Direito. Porém, é a felicidade um Direito? Tecnicamente o vocábulo "felicidade" não está expresso na Constituição Federal de 1988; também não estão "feliz" ou "alegria". O mais próximo disso seria "bem-estar", só que não necessariamente são sinônimos. Assunto resolvido: em sede de compreensão legislativa e observado o rol de Direitos Fundamentais, a felicidade não é Direito. Ocorre que para os que entenderem felicidade e bem-estar como equivalentes, será dever constitucional a atuação pelo bem-estar do povo brasileiro e, portanto, da própria felicidade. Para os que entenderem como conceitos diferentes, fica a orientação: também será dever agir pela felicidade de todos, como um desdobramento de compreensão internacional e mesmo a luz de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal. Sobre o STF, a cúpula do Poder Judiciário já se manifestou acerca do "direito à busca da felicidade". Este foi firmado, em alguns casos, como desdobramento da própria dignidade da pessoa humana e como um princípio. Vale uma pesquisa nas jurisprudências do STF sobre o tema das quais sobressai a necessidade da compreensão de que em qualquer atuação, os profissionais do Direito possam constatar o real impacto em assegurar dignidade e felicidade das pessoas, afinal, ambos são Direitos. Há, portanto, fundamentos internos para fortalecer a argumentação em cada discurso jurídico sobre o tema. Além disso, o Brasil tem recepcionado normativas internacionais de Direitos Humanos e a Organização das Nações Unidas, assim como diversos países no mundo, vem considerando a felicidade como um Direito. Mais recentemente por meio da Resolução 65, de 2011, a ONU afirmou que a felicidade traduz a essência dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). Estes são um conjunto de metas a serem atingidas até 2030 e que representam uma forma global de percepção de como os Direitos Humanos devem ser efetivados. A ONU expressa real interesse em pesquisas, indicadores e presença da felicidade nas agendas públicas e privadas e o Brasil assumiu o compromisso de implementá-los; os indicadores estão em construção, com forte atuação do IBGE, onde é possível acompanhar conquistas e entraves de cada ODS no país. Será o contexto brasileiro favorável para tratar de felicidade? O país é marcado por tantas violações de Direitos Humanos e Fundamentais que pode soar estranho "cuidar também de felicidade". Fome, miséria e desigualdade, problemas sérios no acesso à saúde e educação de qualidade, desigualdade de gênero, discriminações, racismo estrutural, déficit de trabalho decente, entre outros dilemas brasileiros estão em evidência... Só que indispensável reforçar: a) felicidade traduz o anseio, o que sempre se espera como resposta do Direito; b) a felicidade é um Direito por si só, um Direito Humano em construção e que certamente vai conquistar cada vez mais e melhores contornos no Brasil e no mundo e precisamos atuar coletivamente por isso - que contorno você leitor dá para esse Direito?; e c) até justamente por ser necessário compreender que enquanto humanidade, a busca pelo desenvolvimento humano dialoga incessantemente com a promoção da dignidade e também felicidade das pessoas. E isso não é algo apenas para um futuro distante... Aliás, prefere-se e defende-se em trabalho próprio - vide referências -, que seja tratado o Direito à Felicidade não como "direito à busca da felicidade". O verbo "buscar" torna a felicidade como algo futuro e certamente mais difícil de se alcançar. Além disso, não é o usual, eis que não se diz "direito à busca da saúde", "direito à busca da moradia" e, assim, sucessivamente... Devemos (e tomo a liberdade de me incluir agora com o uso do verbo desta forma) agir pelo Direito à Felicidade! Esse agir é "glocal". O reconhecimento de ações locais de impacto global trará a tranquilidade de se reconhecer que: a) a felicidade possui aspectos individuais e, neste caso, no dia a dia, pode-se viver felicidade nos relacionamentos mais próximos e no cotidiano, sempre pensando também em como colaborar à felicidade dos outros e efetivamente agindo; e b) a felicidade possui aspectos coletivos e, neste caso, no dia a dia, todos devem realmente engajar na promoção dos Direitos Humanos e Fundamentais, na compreensão e monitoramento dos indicadores da Agenda 2030, nas boas práticas... Há dados oficiais postos, bastante material de apoio e verdadeira necessidade de agir consistente e persistente em prol da efetividade dos Direitos Humanos e Fundamentais! O contexto é favorável por assim escolhermos perceber a realidade que não deixa de ser desafiadora e mesmo árdua, porém, é justamente na escolha pela atuação reconhecendo conquistas e engajada na transformação e aprimoramento contínuo da realidade que se dará real sentido e propósito de vida. Em linhas de primeiros passos e direcionamentos... algumas conclusões  Há fundamento jurisprudencial e documentos internacionais que permitem tratar de felicidade como Direito. Há ainda o despertar, que se espera tenha gerado, em perceber que é um tema de interesse coletivo, inclusive do leitor, para si e para todos! Em outras palavras, a felicidade é um Direito Humano - seu Direito, inclusive! É de extrema importância que cada pessoa saiba mais cada um desses temas - Direitos Humanos e Fundamentais, ODSs, Dignidade e Felicidade -, e que realmente perceba ser alguém que ao agir também está promovendo felicidade! É necessário simplificar... felicidade é um tema bastante pulverizado, muitas vezes confundido com "ter" bens... ou só expressar sorriso no rosto. Cuidado: felicidade é uma construção diária, um exercício, é acesso aos direitos mais básicos, é acolher estilos de vida diferentes e que se estimula e precisam que sejam sustentáveis, é, ao final, como apontado, um Direito, forte aliado da dignidade e, como apontado: os profissionais do Direito podem colaborar muito para isso. Vamos fortalecer a cultura jurídica da felicidade em todos os espaços? Sugestões de Leitura  DIAS, Maria Berenice. Direito Fundamental à Felicidade. In Revista Interdisciplinar de Direito, [S.l.], v. 8, n. 01, dez. 2011. ISSN 2447-4290.  Disponível aqui. Acesso em mar. 2021. FREITAS, Aline da Silva. Endo-Direito Humano à Felicidade: por quais motivos e como agir para efetivar? São Paulo: Dialética, 2023. GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado Social. FDRP/USP. Revista Digital de Direito Administrativo. Disponível aqui. DOI:. Acesso em mar. 2021. LEAL, Saul Tourinho. Direito à Felicidade. São Paulo: Almedina, 2017.
A história nos mostra que o direito não é uma ciência estática, hermética, ensimesmada ou, pelo menos não deveria ser. Ao longo dos séculos foram surgindo novas áreas de estudos e de atuação prática do direito. O direito é mutável e ao mesmo tempo transformador, deve ser encarado como ferramenta de transformação social.                Nessa perspectiva, o direito antidiscriminatório emergiu no Brasil, nos últimos anos, como um novo ramo das ciências jurídicas e se insere, sobretudo, na órbita do constitucionalismo moderno, vez que está intimamente conectado com o princípio da igualdade. No entanto, apesar de as elaborações teóricas e conceituais sobre o direito antidiscriminatório serem relativamente recentes, tendo como grande expoente a nosso ver, o prof. Adilson José Moreira, sua essência já está positivada na nossa legislação há pelo menos 35 anos, por meio da Constituição Federal que prevê a aplicação do princípio da igualdade como basilar para o estado democrático de direito. A igualdade exerce papel fundamental na construção do estado democrático de direito e o debate a respeito de sua aplicação na perspectiva assimétrica, como propõe o Prof. Adilson J Moreira, em seu livro "Pensando como um negro: Ensaio de hermenêutica jurídica" , se insere nos estudos do constitucionalismo moderno. A nossa carta magna prevê a redução das desigualdades sociais e regionais como um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, IV da CF), além de inaugurar o rol dos direitos individuais e coletivos, no famoso art. 5º  estabelecendo que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza(...)". Portanto, é necessário que o princípio da igualdade, na perspectiva do direito antidiscriminatório seja aplicado de forma versátil e plural, possibilitando aos grupos populacionais socialmente excluídos sua inclusão social. Qualquer estado que se pretenda como democrático, deve considerar que todos os indivíduos devem ser vistos como pessoas de igual valor moral, devendo ser considerados como atores sociais competentes e relevantes, tendo garantida sua participação nos processos políticos e sociais. Entretanto, essa ainda é uma teoria que na prática ainda não existe de forma determinante no campo da realidade, isso porque as sociedades modernas foram forjadas no patriarcalismo, no racismo e no machismo e rotineiramente criam-se arranjos para manutenção dessas estruturas opressivos, garantido a perpetuação dos processos sociais excludentes. É evidente que se reconheça os enormes avanços no enfrentamento desses sistemas de opressões, mas é preciso ir muito além na promoção de políticas públicas e programas que enfrentam a realidade  Em razão desses arranjos que privilegiam os grupos dominantes em detrimento dos grupos dominados é que os sistemas jurídicos modernos criaram diversas normas que procuram proteger indivíduos e grupos submetidos aos mais diversos tipos de tratamentos discriminatórios para que eles possam ter uma vida minimamente digna (MOREIRA, 2020, 51). Assim, pensar o direito numa perspectiva inclusiva e "diversa", considerando especialmente os sujeitos atingidos por determinada norma, implica compreender que Direito Antidiscriminatório, dentre as suas definições, comporta essencialmente a  elaboração de novas perspectivas de interpretação e aplicação do princípio da igualdade, bem como de mecanismos institucionais e políticas públicas destinadas à proteção de minorias e grupos vulneráveis são elementos. Referências MOREIRA,A. José: Pensando como um negro: Ensaio de hermenêutica jurídica, São Paulo: Contracorrente, 2019. MOREIRA, A. José: Tratado de Direito Antidiscriminatório, São Paulo: Contracorrente, 2020
Desde 2002 o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional - TPI conforme internalização do Estatuto de Roma (Convenção promovida pela Organização das Nações Unidas - ONU em 1998), na forma do decreto 4.388. Ao aderir com o acordo transnacional, todos os pactuantes almejavam prevenir e reprimir violações à dignidade, crimes de ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade. Com sede em Haia, a competência do TPI é taxativa em seu artigo 5º, abrangendo: a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) Crimes de guerra e d) O crime de agressão. Interpretando-se o artigo 7º (Dos Crimes Contra a Humanidade: parágrafo 1o - para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque) a alínea  "k" determina: "outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental". O dispositivo supramencionado é compatível com o conceito de ecocídio, qual seja, extermínio deliberado de um ecossistema regional ou comunidade, perfeitamente cabível na conduta praticada pela Rússia em desfavor da Ucrânia, face ao ato de destruição da barragem de Kakhovka em junho de 2023. A análise jurídica aplicada ao caso concreto delimita que a atrocidade praticada veta condições de subsistência das pessoas domiciliadas na região, afetando o direito máximo de proteção à vida. Ainda que se tenha um sistema normativo antropocêntrico, toda a biota planetária é afetada, e esta desconhece limites fronteiriços, ou seja, seu prejuízo vai muito além dos efeitos experimentados pelos ucranianos que resistem por sua soberania. A ciência do Direito Ambiental e a das Mudanças Climáticas encontram-se voltadas para um período de risco nunca visto na história, a iminência de nova Guerra Fria, ou mesmo, eventual Terceira Guerra Mundial. A prática em comento provocou mortes e sujeitou pessoas ao estado de deslocados ambientais, frise-se, não apenas afetou os ucranianos, trata-se de dimensão mundial, eis que todos são difusamente atingidos. Uma das consequências mais preocupantes do rompimento da barragem é o despejo de 600 a 800 toneladas de óleo lubrificante (altamente tóxico para a vida aquática e terrestre), dizimando fauna e flora, patrimônio não exclusivo da nação ucraniana. Desde a emissão da Declaração de Estocolmo em 1972, a soft law determinou a proteção integral do meio ambiente como um todo, logo, inclui os recursos naturais - água, ar, terra, etc - orientando as demais produções positivadas dos regramentos de cada país sob a égide da sustentabilidade do ecossistema e, antes ainda, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, domesticado apenas em 1992 via Decreto nº 591, também prevê "o dever de assegurar o pleno exercício da melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente". Cientes de que o funcionamento perfeito ambiental é cíclico e integrado, qualquer afetação mínima em sua estrutura, proporcionará efeitos de tenro e longo prazo, como se pode perceber o calor extremo do verão europeu, resultado de 6 anos de ingerência do patrimônio amazônico, sim, o desmatamento daqui afeta o outro lado do mundo. Não é mais uma hipótese de prospecção científica, não é cenário de aplicabilidade do princípio de Direito Ambiental da Precaução (evitar aquilo que não se tem dimensão prática/real do efeito), é uma realidade que estarrece negacionistas. Conforme preleciona Eugenio Raúl Zaffaroni e muitos outros juristas brasileiros, a função do Direito Penal é limitar o poder punitivo, mas, se não há um Governo Mundial, passível de intervir na exigência do cumprimento dos deveres ou, a integração de todos os países ao Pacto Penal Internacional, como a proteção integral dos Direitos Humanos poderá ser experimentada? O controle tentado pelas regras criminais são insuficientes para tanto. O grande desafio do antropoceno é lidar com desastres e outras situações desproporcionais, como é o caso de muitas guerras civis, refugiados, escassez econômica e as mudanças climáticas de responsabilidade integral do homem. Caso a Ucrânia de fato acione a Rússia no TPI com base na conduta de ecocídio, o estabelecimento do paradigma não será uma medida salvadora do planeta, em que pese a relevância das sanções (hoje o presidente russo tem limitações de deslocamento onde há jurisdição da Corte de Haia pois já tem contra si pedido de prisão). A destruição de patrimônio da humanidade (formalmente declarado ou não) não encontra tutela perfeita no regramento criminal internacional, conforme declarou a juíza do Tribunal Penal Internacional Dra. Sylvia Steiner em 29 de agosto de 2019: "ao contrário do que dizem diversos artigos publicados, a Procuradoria do Tribunal, em nenhum momento, afirmou que iria "interpretar os crimes contra a humanidade de maneira mais ampla, para incluir também os crimes contra o meio ambiente que destruam as condições de existência de uma população". Em 2021, Édis Milaré1 afirmou não ser possível tipificar o ecocídio no ordenamento penal internacional, atribuindo a tal entendimento fundamento na ausência de aplicação do direito doméstico existente, ou seja, cada país é quem deve exigir punição de violações, de acordo com suas próprias normas ambientais. O debate foi pauta de reunião na ONU, e a medida foi rechaçada por interferir em questões internas de cada país. A título de exemplo, a França implementou naquele ano o crime de ecocídio em sua nação. Houveram esforços na mesma época para integrar o termo ecocídio ao Estatuto de Roma, mas se observou que seria necessária a criação de uma entidade fiscalizadora de autonomia além fronteiras, no mais, a temática permanece no campo das especulações. O Direito Penal não é instrumento adequado para resolver todos os problemas da vida em sociedade, a existência de mais ou menos tipificações criminais são incapazes de resguardar o bem jurídico individual ou coletivo na seara internacional. Não há que se fazer campanha a favor ou contra o estabelecimento do paradigma, a exigência da consciência em prol do patrimônio público se revela questão muito mais complexa que, por derradeiro,  enaltece a hipervulnerabilidade humana. __________ 1 Disponível aqui.
No último dia 17 de agosto, o quilombo Pitanga dos Palmares, localizado em Simões Filhos/BA, sangrou! A execução sádica de mãe Bernadete Pacífico, com pelo menos 20 tiros na cabeça, fez com que, não apenas sua comunidade sangrasse, mas como também toda sociedade brasileira que lamentou e lamenta sua perda. A vilanesca e ousada atuação de seus algozes, além de escancarar as inúmeras feridas abertas pelo racismo no curso da nossa história, denuncia a pífia e imprestável atuação do Estado brasileiro no cumprimento de seu mister na garantia da proteção às vidas de defensores e defensoras de direitos humanos. Mãe Bernadete era mulher de axé, liderança quilombola, diretora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos - CONAQ e dedicou sua vida a luta antirracista na defesa de seu território e dos direitos das comunidades quilombolas, reconhecida liderança no estado da Bahia e no Brasil, foi de secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial por sete anos em Simões Filho/BA. Em decorrência de sua luta, principalmente em relação às disputas fundiárias que circundam a região onde seu quilombo se localiza, passou a viver sob ameaças, mãe Bernadete estava  inserida no Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) do Governo Federal, executado pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia (SJDH), desde 20171, e segundo informações divulgadas na impressa, a Ialorixá estava sob a proteção da polícia militar, por meio da SJDH, há pelo menos dois meses. Contudo, nada disso foi suficiente para impedir que, conforme investigações,  dois homens armados invadissem seu território e entrassem em sua casa no meio da noite para tirar-lhe a vida. A incúria do estado brasileira salta aos olhos. O Estado brasileiro falhou miseravelmente na proteção de mãe Bernadete e sua sórdida execução jogou na cara da sociedade brasileira a lembrança que o Brasil é o país que mais mata defensores e defensoras de direitos humanos. Uma pesquisa realizada pela Global Witness, demonstrou que o Brasil é o país que ocupa o quarto lugar no ranking dos países que mais matam defensores e defensoras de direitos humanos. E a situação se revela ainda mais drástica quando analisamos os dados apresentados pela Organização das Nações Unidas (ONU): entre 2015 e 2019, foram 1.323 vítimas em todo o mundo, das quais 174 no Brasil, nos posicionando em segundo lugar na lista dos países mais perigosos para quem trabalha com a defesa dos direitos humanos. Pode-se dizer que a situação foi agravada na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro que apresentava discursos deliberadamente contrários à atuação dos movimentos, entidades e coletivos defensores de direitos humanos, além de sua retórica, indiretamente, incentivar uma "caça às bruxas" aos defensores e defensoras de todo o país.  Para ilustrar, vale resgatar uma fala do ex-presidente quando ainda era candidato e em um discurso proferido na cidade de Araçatuba (SP), em agosto de 2018, além classificar a atividade como "desserviço ao nosso Brasil", afirmou:  "Conosco não haverá essa politicagem de direitos humanos, essa bandidagem vai morrer porque não enviaremos recursos da União para eles. Em vez de paz, essas ONGs prestam um desserviço ao nosso Brasil. Precisamos de alguém sentado na cadeira presidencial que respeite a tradicional família brasileira, que tenha Deus acima de tudo, como lema nosso". Em 2021, as ONGs Justiça Global e pela Terra de Direitos realizaram levantamento acerca do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), no relatório que recebeu o título "Começo do fim?" concluíram que o baixo investimento do governo federal no programa, aliado à insegurança política na gestão e a inadequação quanto à perspectiva de gênero, raça e classe, o levaria a enfrentar grave crise colocando em risco ativistas em todo o Brasil2. Os dados revelaram a baixa  execução orçamentária do programa que, em 2019, menos de 17% de seu orçamento e, em 2020, de um orçamento de R$9.140.968,00 o governo liberou apenas 10,27%. Além disso, o relatório aponta inúmeras falhas quanto a institucionalização do programa nos estados, vez que em 2021, apenas nove programas estaduais estavam totalmente implementados. Em suma, os dados revelam que o Programa passou por um processo de estrangulamento, fazendo com que a política de proteção às pessoas defensoras de direitos humanos fosse asfixiada lentamente, agonizando até deixar de existir. Contudo, no final de 2022 o estado brasileiro foi à julgamento no Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo assassinato do advogado popular e defensor de direitos humanos  Gabriel Pimenta, assassinado em 1982 em Marabá-PA, culminando na condenação do Brasil a obrigações a serem cumpridas, das quais destacamos: "O Estado criará e implementará um protocolo para a investigação dos crimes cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos e um sistema de indicadores que permita medir a efetividade do protocolo, nos termos dos parágrafos 170 a 172 da presente Sentença." O Poder Executivo Federal, por meio do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e Ministério da Justiça e Segurança Pública, possui papel principal na implementação da sentença cuja centralidade é a garantia da proteção das vidas das pessoas que se empenham na defesa de direitos fundamentais. E o estado brasileiro deve assumir sua responsabilidade na morte da mãe Bernadete, assim como o estado da Bahia, que ao longo dos últimos anos tem apresentado dados assustadores quanto à letalidade por arma de fogo. É urgente que a incompetência  do estado brasileiro seja de uma vez por todas extirpada, a fim de que se evite que mais  "Mães Bernadetes" venham a tombar em razão de sua luta pelo simples direito de existir e viver em paz. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
terça-feira, 15 de agosto de 2023

O voto de Alexandre de Moraes no RE sobre drogas

A retomada do julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário n. 635659 nas semanas passadas, fez retornar ao centro dos debates públicos a descriminalização de drogas para consumo próprio no Brasil, assunto bastante polêmico e que escamoteia a famigerada "guerra às drogas". Nós já publicamos artigo sobre o tema nesta coluna e o retomamos porque o voto do ministro Alexandre de Moraes neste RE dialoga diretamente com outra ação que também aguarda a conclusão do julgamento pelo STF, O HC 208.240-SP sobre perfilamento racial nas abordagens policiais, e que merece nossa análise. A título de memória, lembremos que referido RE sobre drogas está sob o crivo do STF para julgamento desde 2015 e havia sido retirado de pauta com um pedido de vista do falecido  Ministro Teori Zavascki, logo, assim como todos os processos que eram de Teori, a vista ao processo foi herdada pelo Ministro Alexandre de Moraes, escolhido pelo ex-presidente Michel Temer para ocupar a cadeira deixada por Teori. O recurso discute a constitucionalidade do art 28  da lei 11.343 de 2006, "Lei de drogas", no caso concreto o recorrente portava 3 gramas de maconha, que alegou ser para consumo próprio, sendo que, contudo, foi julgado e condenado por tráfico de drogas. O ministro relator, Gilmar Mendes, em seu voto declarou a inconstitucionalidade de todas as medidas penais para o porte para quaisquer drogas, atribuindo, assim, a descriminalização para todas as drogas, mantendo, contudo, a possibilidade de aplicação de sanções com caráter apenas administrativas e não mais penais. O voto do relator foi seguido pelo Ministro Fachin apenas em relação à maconha, assim, como o Ministro Barroso que, por sua vez, trouxe um critério provisório - até que o congresso nacional legisle - semelhante ao critério de Portugal, sendo até 25 gramas de maconha ou 6 plantas fêmeas para caracterizar o usuário. Pois bem! Na leitura de seu voto que durou cerca de 1 hora e 30 minutos, o Ministro Alexandre de Moraes apresentou dados de uma pesquisa que informou ter sido realizada pela Associação Brasileira de Jurimetria sobre todos os flagrantes por tráfico de drogas de 2002 ao 2017 e todas as apreensões por uso, que segundo informou, somam mais de 600 mil. Em seu voto mencionou sobre o "abuso policial seletivo em relação aquele que porta a droga", apontando que, em média, para uma pessoa branca ser considerada traficante  é necessário que esteja portando pelo menos 80% a mais da quantidade que uma pessoas negra porta é enquadrada no crime de tráfico de drogas. Em suma, a pesquisa apresentada pelo Ministro Alexandre de Moraes revelou que pessoas brancas acima de 30 anos e com curso superior precisam portar uma quantidade muito significativa para serem consideradas traficantes, enquanto que, se tratando de pessoas negras semi-analfabetas ou com apenas o ensino fundamental, uma quantidade ínfima, como a do caso concreto analisado neste RE - três gramas de maconha - pode gerar uma condenação por tráfico de drogas. O argumentos lançados no voto do eminente ministro demonstram de forma cabal que o perfilamento racial nas abordagens policiais é uma realidade flagrante que se inicia na abordagem, é referendada pelo Ministério Público e rotineiramente chancelada pelo Poder Judiciário, e no caso do tráfico de drogas as decisões dos magistrados encontram apoio na alargada discricionariedade que lhes é conferida pelo § 2º do art. 28 da Lei de drogas, que dispõe "Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente". Criando, assim, a figura do pequeno traficante, o que culminou num aumento do encarceramento em massa, fazendo com que o usuário seja enquadrado como traficante. O acertado voto do ministro Alexandre de Moraes neste processo, deve impactar o processo sobre perfilamento racial, uma vez que reconhece a existência da seletividade racial em desfavor de pessoas negras pelo sistema de justiça e que essa seletividade culmina necessariamente em prisões injustas, é necessário que se fixe tese para a partir de standares objetivos, já existentes na legislação - art. 244 do CPP - para realização da busca pessoal sem mandado, na forma em que se requer nos autos do HC. Essa é a mais lídima medida de justiça!
Nunca antes o Brasil viu um presidente tão empenhado em desmontar uma estrutura de controle de armas e munições. Nos quatro anos em que governou o país, Jair Bolsonaro editou aproximadamente 40 atos (entre decretos, portarias, resoluções e instruções normativas), criando não só normas frouxas, mas também um emaranhado normativo que o Ministério Público Federal classificou como 'caos normativo'1. O ataque de Bolsonaro se deu em três grandes frentes. A primeira foi a facilitação de acesso às armas e ao porte, com retirada de requisitos para compra e alteração de regras para acessos de adolescentes às atividades com armas. Em segundo lugar, o governo aumentou substancialmente o número de armas e munições que podem ser compradas por cada pessoa (para atiradores esportivos o limite foi de 16 para 60 armas, podendo ser 30 de uso restrito). Além de ter ampliado em quatro vezes a potência das armas acessadas por civis (permitindo, em alguns casos, que  possam ter armas iguais ou mais potentes que as da própria polícia). Por fim, estas medidas foram acompanhadas pela perda da capacidade de fiscalização, já que instrumentos pensados para aperfeiçoar a marcação e rastreabilidade de armas e munições foram revogados, facilitando que se cometam desvios e ampliando a impunidade. Esta facilitação de acesso somada ao incentivo quase diário à compra de armas feito pelo titular da presidência da República, fez a compra de armas explodir entre 2019 e 2022. O número de armas nas mãos de particulares saltou de 1.3 milhão para quase 3 milhões em apenas 4 anos2. Ainda que, felizmente, isso não tenha sido suficiente para reverter a tendência de queda de homicídios (iniciada em 2018, antes de Bolsonaro, com a trégua de guerra de facções, aumento de investimento na segurança pública e redução de jovens no país), a enxurrada de novas armas dificultou esta redução. Estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública3, apontou que só entre 2019 e 2021 ao menos mais seis vidas por dia poderiam ter sido salvas, ou mais de seis mil vidas no período, não fosse o aumento de armas compradas por civis. O efeito das políticas não atinge a todos os grupos igualmente. Ainda que os homicídios tenham caído em geral, os feminicídios aumentaram 6% em 20224. Crime muito impactado pelo aumento de armas registradas em residências. A violência contra a mulher é muito mais frequente dentro de casa do que na rua, e cometida por parceiros íntimos e familiares. Essa não é a única forte injustiça causada pelo processo ocorrido nos últimos quatro anos. Imaginemos que arma fosse uma boa ferramenta de defesa (o que comprovadamente não é), ainda assim a esmagadora maioria da população não tem recursos para comprá-la. Hoje, uma arma simples, ainda que usada, custa o equivalente a no mínimo quatro meses da renda média do Brasileiro (aproximadamente R$ 6 mil). O perfil das pessoas que a acessam é de homens, casados e com alta renda5. Assim, a única parte da arma visível para parte da população mais vulnerável é o cano sendo disparado. Homens negros tem 3,5 vezes mais chances de serem assassinados por armas de fogos do que brancos nas regiões metropolitanas brasileiras segundo Estudo do Instituto Sou da Paz6. Ainda que você não esteja inserido no perfil de quem mais morre no Brasil, estas mudanças também te afetam, e muito. Parte das armas na mão do crime que te assalta no farol ou no ponto de ônibus vem do mercado legal. Antes restrita, a arma campeã de vendas no Brasil na era Bolsonaro, a pistola 9mm, tornou-se a arma mais presente no mercado ilícito. Uma arma mais potente, que dispara mais rápido, carrega mais munição e pode ser recarregada com mais facilidade. No Distrito Federal, a apreensão deste tipo de arma saltou de 3% em 2017 para 23% no último ano de Bolsonaro na presidência. Uma herança que seu governo, com ampla participação de militares do Exército, deixou para as próximas gerações. Nos últimos sete meses ocorreram importantes mudanças para reverter este quadro. O Supremo Tribunal Federal, em julgamentos recentes, apontou diversas inconstitucionalidades nas mudanças feitas na gestão passada7. Por parte do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, já houve dois decretos, o último publicado em julho e que traz boas perspectivas para o futuro. Em linhas gerais, este último decreto: corrige graves descumprimentos de princípios constitucionais e do Estatuto do Desarmamento, com a facilitação, desde 2019, do acesso de cidadãos comuns a grandes quantidades de munições e armas, incluindo algumas antes restritas às Forças Armadas. reduz a potência das armas de uso permitido (acessíveis para defesa pessoal) e das armas de uso restrito (acessíveis para caçadores, atiradores e colecionadores - os CACs); retoma a divisão dos CACs por níveis de senioridade e define limites de armas e munições de acordo com cada categoria; e insere a Polícia Federal de forma gradual na fiscalização de CACs e clubes de caça e tiro. Assim, reorganiza essa política e viabiliza um maior controle sobre os armamentos. permitirá que diferentes agentes de Segurança Pública e da Justiça possam consultar rapidamente os registros antes restritos ao Exército Brasileiro, o que possibilita melhores rastreamentos, fiscalizações e investigações de crimes com armas de fogo. Esse acesso era previsto em decreto desde 2004, mas nunca foi efetivado. avança ao reduzir a potência do armamento aos limites que vigoraram entre 2003-2018 e as quantidades acessíveis a cidadãos comuns, mas mantém a possibilidade de manutenção de armas compradas antes da publicação da nova regulamentação. não proíbe sua compra por civis, mas regula o acesso de forma mais transparente e coerente com a realidade brasileira de altos índices de violência armada. prevê sorteio para indicação de psicólogos e instrutores de tiro, de modo a evitar conflitos de interesse e ampliar a isenção de examinadores. Podemos dizer que hoje o país conta com um regulamento de muito melhor qualidade e que ajuda a fechar algumas brechas que estavam sendo ampliamento utilizadas por facções criminosas e milícias urbanas e rurais8 para acessar especialmente armas de alto poder de fogo, como fuzis e pistolas. Os desafios ainda são imensos. Para começar, ainda há muita incerteza sobre como, quando e em que extensão se dará a transferência de competências de fiscalização de CACs do Exército para a Polícia Federal. Em segundo lugar, a atualização dos programas de entrega voluntária de armas e de recompra, este último direcionado a armas de calibre restrito, ainda não foi divulgada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os programas são decisivos para a retirada de armas de circulação. Por fim, ainda que tenha sido uma recomendação explícita do Tribunal de Contas da União, não há indicativo de reforço por parte da Polícia Federal em sua estrutura de combate ao tráfico e comércio ilegal de armas de fogo. Nem de criação de estruturas de delegacias especializadas nas polícias civis estaduais, atualmente existentes apenas nos estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro. No Brasil, é impossível falar em qualquer política para redução de violência que não passe pelo aperfeiçoamento das estratégias de controle de armas de fogo e munições. É fundamental que sociedade e imprensa sigam pressionando por uma política pública que ajude a retirar armas de circulação e salvar vidas. __________ 1 Decretos das armas são caos normativo e devem ser derrubados, diz MPF. 2 Brasil se aproxima de 3 milhões de armas em acervos particulares. 3 Sem liberação de armas, Brasil teria quase seis mortes a menos por dia, cerca de 6 mil por ano, revela estudo. 4 Casos de feminicídio aumentaram 6,6% no Brasil em 2022. 5 Homens, casados e escolarizados: veja o perfil de quem se armou no governo Bolsonaro. 6 Homens negros tem 3,5 vezes mais chances de serem assassinados do que brancos, revela pesquisa. 7 STF estabelece parâmetros para política de controle de armas no país. 8 Como armas compradas legalmente por CACs foram parar nas mãos da milícia no Rio.
O censo ou recenseamento demográfico é a principal fonte de dados sobre a população em todo território nacional, ele serve para identificar características e modo de vida dos brasileiros e pessoas de outras nacionalidades que vivem no Brasil. Essa política é deveras importante porque é capaz de produzir  informações imprescindíveis que deverão subsidiar as políticas públicas e a tomada de decisões do poder público em qualquer nível de governo (municipal, estadual ou federal). E segundo o próprio IBGE, é também a única fonte de referência sobre a situação de vida da população nos municípios1. No último dia 28, o governo federal divulgou os dados do recenseamento de 20222 e embora o censo demográfico exista no Brasil há 150 anos, isto é, há mais de um século que o Brasil registra os dados de sua população, esse foi o primeiro censo em que a população quilombola foi incluída como grupo populacional específico. Curioso não? Por que será que os governos brasileiros demoram tanto para incluir essas comunidades no censo? Pois é! A história nos revela que os quilombos existem no Brasil há pelo menos quatro séculos, e os primeiros que se têm registro datam do século XVI, em meados de 1.575, na Bahia e em Alagoas. Apenas para situar nossos(as, es) leitores(as, es), os quilombos são  comunidades formadas, inicialmente,  por pessoas negras escravizadas fugidas das fazendas e que se rebelaram contra a condição de escravizado e as torturas infligidas pelos senhores de engenho e seus capatazes. Esses lugares se transformaram em centros de resistência negra e atravessaram séculos (re)existindo até hoje onde vivem os remanescentes quilombolas. Voltando a pergunta acima, há quem vá argumentar que "(...) negro não era gente até a assinatura da Lei Aúrea". E a afirmação não está incorreta, o negro era considerado semovente segundo o Código Comercial de 1.8503, mas com a abolição da escravatura ocorrida em 1.888, embora não estivesse explicito na lei, entende-se que passou-se a presumir um certo grau de humanidade aos negros e, consequentemente, aos quilombolas. Bem! A despeito de qualquer discussão mais aprofundada sobre as razões pelas quais, em mais de 100 anos, quilombolas não constavam no censo como tais, fato é que a não categorização desse grupo contemplando suas especificidades resulta indiretamente na negação da sua existência e naquilo que o Prof. Adilson José Moreira classifica como discriminação indireta por omissão.4 Quando o estado aplica conceitos quase que universalistas se furta de observar grupos populacionais minoritários ou minorizados em suas políticas, em especial, na elaboração de políticas públicas e de promoção dos direitos fundamentais, ele está indiretamente dizendo a esses grupos que eles não existem. Afinal, não é possível tratar o que não se conhece ou que simplesmente não existe, pois não incluir os quilombolas na política de recenseamento é o mesmo dizer ao mundo que eles não existem enquanto comunidade com especificidades que merecem políticas específicas, por isso, o Brasil dá mais um passo tardio e lento na inclusão dessas comunidades enquanto grupo populacional e enquanto indivíduos detentores da dignidade humana. E é por isso que esse está sendo considerado pelo IBGE o marco zero das estatísticas em relação aos quilombolas. A partir da autodeclaração, o censo revelou que o Brasil possui hoje 1.327.802 (um milhão trezentos e vinte e sete mil e oitocentos e dois) quilombolas, representando 0,6% da população total de 203 milhões de pessoas. A maioria, 70%, vivem na região nordeste, na Bahia registra-se a maior população, mas o sudeste comporta 12% dos quilombolas, a maioria em quilombos urbanos. O censo também revela que a maior demanda dos quilombolas é em relação a obtenção da titulação de suas terras e as constantes invasões por grileiros e fazendeiros nas áreas rurais, já aqueles que estão localizados em áreas urbanas sofrem com a especulação imobiliária e o assédio de construtoras. Os dados revelam ainda 494 territórios quilombolas com alguma delimitação formal e o levantamento desses dados devem ajudar na política de titulação dos territórios, sabendo que a trajetória que se percorre até chegar o momento da titulação é longa e passa por inúmeras fases. O levantamento demonstra ainda que a educação e saúde também são os grandes problemas que essas comunidades enfrentam, em especial, em relação ao acesso aos equipamentos públicos que distribuem esses serviços públicos. O recenseamento dos quilombolas para além de possibilitar a melhor elaboração e implementação das políticas públicas para essas comunidades, nos revela que o Brasil é um país forjado na base no conflito, nas violências contra pessoas negras e indígenas e, também, na resistência desses grupos, que existem e devem ser considerados para todos os fins. Quilombola é sinônimo de estratégia, sobrevivência, luta, resistência e continuidade. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Artigo 191 da lei 556 de 25 de junho de 1850. 4 MOREIRA, Adilson J. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
Coincidências do destino ou não, hoje, 25 de julho, dia em que celebramos o Dia (Inter)Nacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, é também o dia em que nossa coluna semanal vai ao ar. Contudo, eu, mulher negra amefricana - utilizando aqui o conceito de Lélia Gonzalez - resolvi lhes escrever abordando não os temas comuns aos debates nesta data, quais sejam, as vicissitudes e as subjetividades das mulheres negras, mas abordo um tema que faz parte do meu escopo de trabalho e de estudos na academia e que direta e indiretamente é atravessado pelo racismo, assim como nossa sociedade inteira o é: a segurança pública no Brasil.                Ressalto, contudo, que por óbvio não rechaço de modo algum a necessidade de debatermos sobre nossas vivências e experiências sob ótica subjetiva, porém, nesse momento me furto desse debate porque, por vezes, me cansa o lugar de objeto a ser analisado e escrutinado e que, não incomum, é utilizado para mimetizar os debates para sobrepondo a perspectiva individual inviabilizando as causas estruturais.                 De modo que, escolho essa rota para dizer ao público que embora eu seja forjada pela minha ancestralidade negra que envolve dor e sofrimento, minha retórica e contribuição para uma sociedade mais justa e antirracista não se limita a dor, tampouco a minha individualidade e subjetividade, esses elementos estão presentes no ponto de partida, mas não são um fim em si mesmo me encerrando nesse lugar. Pelo contrário, escrevo de um lugar consciente do passado, capaz de romper as limitações da minha subjetividade e produzir conhecimento e reflexões contributivas para o presente e futuro, e com essa escrita honro as mulheres negras e a ancestralidade que há em mim. Inicio essa breve reflexão sobre segurança pública no Brasil, apoiada no conceito de amefricanidade, cunhado pela grande escritora e pensadora negra, Lélia Gonzalez. Em síntese, amefricanidade se refere à experiência de mulheres e homens negros na diáspora, bem como a experiência de mulheres e homens indígenas contra a dominação colonial, é um processo em continuidade até os dias de hoje. Saindo da primeira pessoa e pensando a partir da coletividade, tem-se que a área da segurança pública é ponto nevrálgico para a efetividade da dignidade humana da população brasileira, vez que o Brasil está localizado na periferia do capitalismo e alguns anos protagoniza a lista dos 10 países mais desiguais do mundo, com seríssimos problemas de distribuição de renda, de moradia, frequentemente territórios com superpopulação, baixa renda e ausência do bem-estar social figuram nas páginas dos jornais como "territórios mais violentos".                A despeito desse termo, "território violento", fazemos um parênteses para jogar luzes sobre um debate que tem sido travado nos âmbitos da academia e da política sobre essa nomenclatura, observa-se o assentamento da ideia do uso da correta terminologia "territórios violentados" ao invés da acima citado. Visto que o uso da primeira coloca o morador desse território como agente principal da violência e exclui implicitamente a responsabilidade do estado em sua ausência para promoção do bem-estar social, da mitigação das desigualdades e a consequente diminuição das violências que, ao fim e ao cabo são perpetradas contra os próprios moradores dessas localidades. Reconhecer esses locais como territórios violentados, significa reconhecer que a ausência de acesso à boa educação, lazer, saúde de qualidade, moradia em condições dignas também representam uma série de violências, perpetradas pela via da negligência e ausência estatal, contra quem vive nessas áreas, bem como reconhecer as violências que se instalam a partir dessas ausências, dentre elas lembremos, a falaciosa guerra às drogas, as instalações de milícias, o surgimento de facções e etc. Assim, quando se pensa em política de segurança pública no Brasil, usualmente se pensa na vertente repressiva com aparelhamento das polícias e  estratégias de atuações que, na maioria das vezes, implicam em incursões armadas nesses territórios para desbaratinar biqueiras e pontos de drogas. A nossa ver, a política de segurança pública está também intimamente ligada à política sobre drogas e as necessárias reformas que ela merece, colocando-se à mesa um debate difícil e que se coloca cada vez mais como necessário quando voltamos nossos olhos para os números de jovens negros mortos anualmente vítimas da violência. Na última semana, o Fórum brasileiro de segurança pública, publicou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, apresentando pela primeira vez em 12 anos (período de mapeamento desses dados), uma redução nas mortes violentas intencionais em 2,4%. Apesar disso, os índices no Brasil continuam elevadíssimos, com 47.508 vítimas de homicídios em 2022, continuamos no ranking mundial entre os 10 países mais violentos do mundo. Desse número, 76,5% dos assassinatos cometidos com arma de fogo, 76,9% das vítimas eram negras, 50,2% entre 12 e 29 anos e 91,4% do sexo masculino. "Entre 12 e 29 anos", esse dado é abissal! Não é possível que a sociedade brasileira, continue naturalizando esse número de jovens negros sistematicamente dizimados da população e absurdamente sintomática da eliminação de pessoas negras e daquilo que já se classificou como genocídio da juventude negra. Registra-se ainda, que o número de pessoas mortas em intervenções policiais continua elevado: 6.429 vítimas. A violência contra mulheres e meninas cresceu de forma absurda, o crime de feminicídio no Brasil registrou um aumento de 7%, sendo que 61% das vítimas são negras e 71,9% tinham entre 18 e 44 anos. Como se não bastasse, houve um número recorde de estupros no país, com 74.930, registrando um crescimento de 8,2% em relação a 2021, sendo 56,8% negras, 88,7% de vítimas do sexo feminino e, pasmem-se, 61% de crianças de 0 a 13 anos. A crescente violência contra meninas e mulheres no Brasil está na contramão da história (ou deveria estar), contudo, ela é reflexo de um contexto extremista, conservador, racista e machista que ganhou e ampliou vozes ecoante de discursos de ódio contra mulheres que, por vezes, tentam se naturalizar sob a pecha da falaciosa liberdade de expressão sem limites. A tomada dos corpos de meninas e mulheres como se fossem públicos, as violações e violências a eles infligidas, sobretudo de crianças, demonstram a concreta consequência das palavras ditas por lideranças nacionais, a exemplo do ex-presidente da república, Jair Bolsonaro, que tentam se valer da dita "jocosidade do brasileiro", como subterfúgio para disfarçar a política de violência que autorizam por meio de seus discursos. Ademais, essa política é adensada pelo baixíssimo investimento em políticas de prevenção e enfrentamento da violência contra mulheres que se teve notícia no governo anterior. Amefricanidade é sobre isso, sobre resistir enquanto sujeito e enquanto coletivo a um estado que deliberadamente não só chancela, mas também elabora e implementa políticas que se inserem no contexto da discriminação indireta, por ação ou omissão, que sabidamente culminarão na eliminação de um determinado contingente populacional. No  inicio do século passado, a politica que se adotou para eliminação do contingente negro no Brasil foi a do branqueamento da população por meio da imigração européia, hoje a política adotada é a do extermínio consentido pelo estado. Nós, pessoas negras sobreviventes da diáspora e em processo diaspórico como um trem descarrilado que segue em movimento fora dos trilhos seguiremos utilizando nossas tecnologias ancestrais, adensadas pelo conhecimento e desenvolvimento alcançados da experiência coletiva das fissuras nos espaços institucionais que elaboram políticas de segurança pública, de proteção e cuidado de meninas e mulher e do bem-estar social. Os dados do fórum foram publicados um dia antes de o Governo federal anunciar o novo Plano nacional de segurança pública, que também será objeto de análise dessa coluna.
terça-feira, 18 de julho de 2023

Imóvel fechado é direito não realizado

Os números não mentem: imóveis residenciais vagos são superiores ao déficit habitacional no Brasil: 11.397.889 x 5.876.000. E a distância está aumentando. Dados do IBGE e Fundação João Pinheiro. Muitas leituras podem ser feitas e trago aqui algumas delas que, se não esgotam a matéria, com certeza fazem parte desta realidade distorcida e injusta. A distorção é visível pelos próprios números. É injusta porque os imóveis fechados são inacessíveis por quem precisa de uma moradia. É um sintoma de muitas causas. A reflexão parte de um tripé: mercado imobiliário, contingente populacional sem acesso à moradia e Poder Público. O mercado persegue lucro. Os imóveis urbanos se tornaram extremamente atrativos financeiramente, pois há diversos instrumentos que os tornam um "ativo", por exemplo, os fundos imobiliários negociados em bolsa de valores, os bônus recebidos pelos agentes privados que "emplacam" lançamentos considerados atrativos pelos investidores e uma vida financeira dos imóveis que passa muito longe da concretização das necessidades da população. Na outra ponta, há um número crescente de pessoas com retração de suas capacidades econômicas. No quesito moradia significa dizer que estão mudando para imóveis menores, ou mais distantes e com menos infraestrutura, ou voltam a morar com familiares, ou se instalam precariamente em áreas de absoluta vulnerabilidade chegando, enfim, à condição de moradores em situação de rua. As duas situações são crescentes. Quanto ao Poder Público, se formos voltar à Constituição Federal (de onde nunca devemos sair), todo o Estado deve prover moradia, é assunto de Estado e não de governo (art. 6º, art. 23). Também é fundamental a elaboração e efetividade de planejamento urbano, em geral por meio do Plano Diretor, art. 182. Não é possível dizer que o Estado, principalmente os Municípios, não estão elaborando seus Planos Diretores, mas é possível afirmar que estão sendo, no mínimo, ineficientes. O Estado precisa assumir sua função de gestor, elencar prioridades e efetivá-las para além da norma abstratamente considerada nos planos. Seus decretos, mudanças normativas pontuais, licenciamento, distribuição de uso dos instrumentos urbanísticos (como outorga onerosa, transferência do direito de construir, compensações urbanísticas, entre muitos outros) devem estar alinhados com a efetiva realização do previsto na máxima da gestão do território urbano brasileiro (art. 182, CF - bem estar dos habitantes). Se o mercado quer lucro, o Estado precisa conduzi-lo por onde deve ir, de forma que seus resultados igualmente beneficiem a sociedade como um todo. Normativamente, o combate ao déficit habitacional avançou tremendamente nos últimos vinte anos. A partir do Estatuto da Cidade, lei Federal 10.257/01, foram criados instrumentos até então inéditos. Um exemplo célebre é a CUEM, concessão de uso especial para fins de moradia, que estabeleceu segurança jurídica de posse sobre ocupação em áreas públicas por aqueles que a comprovassem por mais de cinco anos da data da promulgação da lei para uso precipuamente de moradia. Como um "mea culpa" do Estado brasileiro por não cuidar de suas próprias propriedades e não cuidar de sua gente. Cabível no art. 183 da Constituição Federal. Passados dezesseis anos e não vencidas as duas questões, déficit habitacional e exercício da função social da propriedade pública, a lei Federal 13.465/17 trouxe a CUEM repaginada, agora com o nome de legitimação fundiária. Podemos citar ainda consórcio imobiliário, legitimação de posse, demarcação urbanística entre tantos mais como instrumentos inéditos para atuar frente às complexas situações urbanas. Por certo que há muito que analisar nos chocantes números divulgados pelo IBGE, mas não é possível excluir de qualquer análise que o Estado precisa se reposicionar, estruturando-se, capacitando-se, com transparência e efetividade na condução da gestão do território urbano. Inclui-se Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. A área urbana é, cada vez mais, palco de disputas econômicas, políticas e sociais (85% da população vive em áreas urbanas) e não está funcionando como está sendo feito. Não é possível conviver mais com o empobrecimento de nossa população como se fosse apenas um dado estatístico. Se a questão macroeconômica foge para além da gestão do território urbano, a indignidade da fragilidade e violência da vida nas cidades não. Ao Estado compete fornecer condições mínimas e básicas para que sua população tenha condições de ser produtiva e saudável e assim perseguirmos, realmente, os ditames de nossa República, quais sejam, redução das desigualdades sociais e regionais e combate à pobreza.
Na semana que se passou pudemos testemunhar avanços em duas frentes da luta das mulheres por igualdade de direitos, justiça e melhor condição de vida digna. No mesmo dia (3.7), o presidente Lula sancionou duas leis que tratam de temas que há muito anos estão na pauta do movimento feminista.           A primeira, é a lei 14.611/23 que estabelece igualdade salarial de gênero alterando alguns dispositivos da CLT a fim de  determinar, também, critérios remuneratórios entre homens e mulheres. E a segunda, é lei 14.612/23 que alterou o estatuto da advocacia para transformar em infração ética-disciplinar a discriminação e o assédio moral e sexual. A lei que estabelece a igualdade salarial de gênero determina novas bases legais para que trabalhadoras e trabalhadores tenham garantido seu direito à igualdade de salário e de remuneração e entre os pontos que aborda, destacamos: A obrigatoriedade da transparências nas empresas relativo ao quantum salarial pago aos seus funcionários. Essa nova obrigação representa uma alteração legislativa importante e na prática poderá  produzir efeitos bastante significativos, isto porque, empresas do setor privado via de regra não estão submetidas a mesma normativa de transparência que o setor público, dada as distinções de suas naturezas jurídicas, finalidades e as fontes de recursos.  Contudo, as empresas deverão estabelecer mecanismos de transparência salarial e remuneratória próprios, seguindo alguns critérios, por exemplo, as empresas que contem 100 empregados ou mais,  deverão publicar relatórios de transparência salarial semestralmente, proporcionando de forma objetiva meios para que se verifique se a diferenças remuneratórias entre homens e mulheres que exercem atividades de igual valor.  Além disso, os relatórios também deverão informar a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por homens e mulheres, assim como dados sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade.  A nova lei coaduna-se com os objetivos estabelecidos pela Agenda 2030, que apresenta um conjunto de metas globais de desenvolvimento sustentável criadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), dentre elas está "alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas". Além disso, a legislação também está ancorada na Convenção 100 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O documento, intitulado "Igualdade de Remuneração de Homens e Mulheres Trabalhadores por Trabalho de Igual Valor", vigora no país desde 1958.  Deve-se reconhecer de plano a grande importancia da sanção dessa lei no tempo atual e que, em certa medida, responde a uma pauta reivindicada pelo movimento feminista há decadas, lembre-mo-nos que os trabalhos relegados as mulheres históricamente estão na esfera do cuidado e da assistência e, quando mulheres passam a assumir posições profissionais ditas "de homem", recebem salarios menores.  Nessa equação da história das desigualdades das mulheres no Brasil, não apaguemos a situação da mulheres negras que passaram da condição de escravizadas, saindo da senzala diretamente para o quartinho de empregada na condição de empregadas domésticas, que embora seja uma atividade profissional importantíssima, apenas em 2015, por meio da LC 150, foi realmente alçada à categoria de "trabalhado" permitindo à classe acessar a maioria dos direitos trabalhistas previstos na Constituição. De modo que, além de estarem sujeitas ao patriarcalismo, ao machismo, as mulheres negras ainda são atravessadas pelo racismo que, ao contrário do que alguns incautos afirmam, não acabou juntamente com a abolição da escravidão em 1888, pelo contrário, estruturou a sociedade brasileira e se institucionalizou nas instituições públicas e privadas, em especial, na relação patroa e empregada que por vezes reproduz o binomio sinhá e mucama. O contexto histórico do Brasil, portanto, demarca elementos estruturais que atravessam mulheres brancas e não brancas de formas diferentes e na esfera das discriminações, as mulheres negras ainda se distanciam das mulheres brancas em termos de acesso à direitos, ocupando a mais baixa posição na pirâmide econômica. Conforme demonstra a pesquisa publicada pelo IBGE em 2021, a média salarial mensal de uma mulher negra é de R$ 1.471,00. O valor é 57% menor do que homens brancos recebem. Além disso. é 42% menor do que mulheres brancas ganham e 14% a menos do que homens negros recebem. Isto significa dizer que para cada R$ 1,00 que um homem ganha, uma mulher recebe R$ 0,78. E a cada real ganho por um homem branco, uma mulher negra recebe apenas R$ 0,43. A pesquisa revela ainda que 55% das famílias brasileiras são lideradas por mulheres negras, isto é, mulheres negras são o retrato da "chefe" da família brasileira, mas continuam na rabeira da pirâmide econômica. Assim, é preciso dizer que as políticas públicas de promoção de igualdade devem observar tanto gênero quanto raça na mesma medida, pois conforme nos ensina o Prof. Dr. Adilson José Moreira, em seu livro O que é discriminação?, uma norma ou medida pode ser considerada discriminatória, no campo da discriminação indireta, quando deixa de contemplar a especificidade de determinado grupo populacional socialmente vulneravel. Isto significa dizer que, a discriminação indireta pode se caracterizar pela omissão ao não balizar de forma objetiva critérios que contemple esse ou aquele grupo vulneravel. E embora a nova lei representa um avanço ao determinar a publicação de relatório que demonstrem os salários pagos a homens e mulheres, a nosso ver, não torna obrigatório de forma objetiva a publicação de dados relativos à raça, etnia, nacionalidade e idade, o que requer de nós maior vigilância na fiscalização de seu cumprimento pelas empresas. Ademais, para o enfrentamento do racismo refletivo nas desigualdades salariais enfrentadas pelas mulheres negras é necessário que avancemos ainda mais de forma objetiva e escalonada estabelecendo critérios específicos de raça e gênero no objetivo nuclear da lei e não apenas como ferramenta marginal. A segunda conquista obtida na mesma semana e mencionada na abertura deste artigo, diz respeito às mulheres advogadas, trata-se da  lei 14.612/23, que altera o estatudo da advocacia para determinar a pena de a suspensão do exercício da advocacia por profissionais condenados por assédio moral, assédio sexual e discriminação. Atualmente as mulheres representam a maioria nos quadros da advocacia brasileira, dados de 2022, demonstram que somos o 624.285 mulheres  615.989 homens inscritos na OAB1 e sabemos que em qualquer posição, seja de diretora ou de estagiária, uma mulher está sujeita ao assédio moral e sexual. A proposta teve iniciativa na  Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB, liderada por sua presidente, Cristiane Damasceno, após percorrer o país implementando a Campanha Advocacia sem Assédio, a comissão apresentou a proposta de alteração do Estatuto e que teve como relator o Conselheiro Federal Carlos José dos Santos Silva - o Cajé - da bancada de São Paulo. Após discussão a proposta foi aprovada pelo Conselho Pleno da OAB Nacional e levada ao Congresso Nacional. Graças a atuação incansável das conselheiras federais percorrendo os corredores da Câmara dos Deputados e do Senado, com apoio dos conselheiros e da diretoria da OAB, o projeto foi aprovado nas duas casas em tempo recorde. Para além de celebrarmos a atuação da advocacia que corroborou para a aprovação do projeto, devemos celebrar a aprovação de uma política que visa coibir uma conduta que representa um dos maiores dramas vivenciados por mulheres nos seus ambientes de trabalho e que na maioria das vezes permanecem em silêncio em razão do medo da exposição, do declínio profissional e até do desemprego. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão2 e parceria com o Locomotiva ainda há violências cotidianas no trabalho que não são reconhecidas: 36% das trabalhadoras dizem já haver sofrido preconceito ou abuso por serem mulheres; 76% das mulheres afirmam ter passado por um ou mais episódios de violência e assédio no trabalho. Num país onde há violência contra as mulheres batem recordes diários, aprovar uma lei que enfrente o assédio moral e sexual e a discriminação para determinada classe de profissionais, representa um enorme avanço e  mais uma vez torna a OAB paradigama para as demais classes e para a sociedade. ____________ 1 https://www.migalhas.com.br/quentes/358653/mulheres-sao-maioria-na-oab-mas-so-18-presidem-seccionais 2 https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/76-das-brasileiras-ja-sofreram-violencia-e-assedio-no-trabalho/
No mês de junho se deu celebração do orgulho LGBT. Torna-se necessária uma pausa reflexiva acerca das conquistas e dos desafios que essa comunidade deve comemorar e enfrentar, respectivamente. Ao Poder Público - Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público - fica a obrigação e o dever de refrear o ódio e garantir os direitos humanos dessa população historicamente vulnerável. A propósito do discurso de ódio, termo importado do inglês (hate speech), é possível verificar suas abordagens em diversos contextos e recortes de estudos. Em comum, há a intenção de subalternizar e segregar o outro por meio de palavras, imagens depreciativas, expressões discriminatórias e outras formas de expressão do pensamento. O discurso de ódio pode ser direcionado a todos os grupos sociais, étnicos e sexuais não hegemônicos como forma de agredir ou reduzir o status social desses indivíduos (SCHÄFFER; LEIVAS e SANTOS, 2015, p. 147). Em sentido semelhante, Brugger (2007, p. 118) define o discurso de ódio como "palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas". Para Faustino (2020, p. 50), o discurso de ódio busca estigmatizar o alvo a quem é dirigido, tendo como consequências um resultado de intimidação, ofensa, insulto ou até discriminação. No entanto, segundo o autor, para que tenha efeitos jurídicos e sociais, é necessário que esse conteúdo odioso seja conhecido por meio da expressão, tendo em vista que o pensamento não pode ser condenado. Assim, o discurso de ódio poderia ser considerado uma narrativa de segregação sistemática de um grupo historicamente subalternizado como resposta a uma suposta ameaça de fragilização ou perda de hegemonia pelo grupo dominante. A respeito do conceito de hegemonia, este se torna fundamental para entender como os Direitos Humanos se tornaram um obstáculo relativamente simples de serem removidos pela narrativa do discurso de ódio, uma vez que não apresentaram coerência entre o discurso entoado e a prática nos contextos de conflito.     Desempenha o discurso de ódio uma importante função agregadora de indivíduos que se identificam em torno de uma determinada ideologia. Nessa toada, adquire relevo, a práxis do neoconservadorismo, que por meio da exaltação de valores sócio-políticos e culturais tradicionalistas propagados, principalmente por ideologias de extrema-direita, buscam a construção de um inimigo público supostamente responsável pela ruína e corrupção dos valores morais hegemônicos. Esse processo instrumentaliza a estigmatização e o silenciamento de grupos minoritários, como o representado pelas LGBT para diminuir a participação política desses atores sociais em prol da hegemonia de grupos maioritários (MACHADO, VAGGIONE e BIROLI, 2020, p. 190). Inserido nessa dinâmica, o discurso de ódio pode funcionar como uma forma de deslegitimar e segregar aqueles indivíduos considerados desviantes ou que tenham comportamentos e práticas proscritas pelos grupos sociais hegemônicos. Esse processo segue a construção de um inimigo público: "o outro", aquele que não pertence a determinado grupo social maioritário e representa a negação dos valores e princípios tomados como "corretos". A solução apontada nesses casos é a violência aniquiladora, simbólica ou fática, quando não as duas em escala. Segundo Silva: Nesse processo, o discurso de ódio pode funcionar como uma forma de deslegitimar e segregar aqueles indivíduos considerados desviantes ou que tenham comportamentos e práticas proscritas pelos grupos sociais hegemônicos. Esse processo segue a construção de um inimigo público: o outro, aquele que não pertence a determinado grupo social e representa a negação dos valores e princípios tomados como "corretos". A solução apontada nesses casos é a violência aniquiladora, simbólica ou fática, quando não as duas em escala. A época atual é ideal para uma fragilização no nosso sentimento de pertencimento, onde todos nós vivemos uma triste violação de expectativas, desesperança, desalento. É sedutor em discursos assim, reforçarmos a pertinência das pessoas aos seus grupos sociais, gerando ódio ao suposto inimigo, causador de toda essa situação. Foi assim na Alemanha Nazista contra os judeus e na Europa com os imigrantes. Só assim, as pessoas se sentem mais seguras, ou seja, banindo o inimigo (SILVA, 2020, p. 39). Nesse contexto, o discurso do ódio pode ser representado por diversas plataformas e podem encampar diferentes narrativas discriminatórias, com o objetivo de segregar uma parcela da população e de instigar o pânico moral nos indivíduos. Há o apelo à produção e disseminação das chamadas fake news (notícias falsas) e de calúnias que buscam nas representações coletivas preexistentes um gatilho para a expressão de ódio, preconceito e outros medos (JUNQUEIRA; CÁSSIO e PELLANDA, 2020, pp. 195 -196). O apelo de um campo hiperconservador a representações coletivas preexistentes, baseadas em categorias plurissignificativas como família, religião, educação, moral, etc., busca reafirmar uma agenda de promoção de um recorte específico da sociedade, ao qual se busca dar visibilidade e oficialidade. Trata-se da família heterossexual, branca, cristã e de classe média, representação arquetípica de um modelo que subjaz os valores culturais e socioeconômicos a que se busca privilegiar em detrimento de outras conformações sociais existentes e, muito embora minoritárias em termo simbólico, extremamente frequentes na sociedade brasileira (JUNQUEIRA; CÁSSIO e PELLANDA, 2020, p. 200). O reforço de um modelo de vida ligado aos valores e concepções mencionados pôde ser observado no âmbito de políticas do Governo de Bolsonaro, a exemplo das políticas adotadas pelos Ministérios da Mulher, Família e Direitos Humanos e da Educação (JUNQUEIRA; CÁSSIO e PELLANDA, 2020, p. 200). Mas não somente nesse âmbito. É principalmente por meio da cultura e dos valores incutidos nos indivíduos, desde muito cedo, por meio da educação, formal ou não, que ideias tradicionalistas, de cunho machista, LGBTIfóbico, misógino e patriarcal são hegemonizadas na sociedade. A expectativa social em torno de uma heterocisgeneridade1 inata, ou seja, de que um indivíduo viva e/ou desempenhe uma sexualidade e um gênero em consonância com os cânones hegemônicos de forma supostamente "natural" é um dado estrutural da naturalização da violência LGBTIfóbica. Essa expectativa estimula o reforço e a vigilância em torno da expressão sexual e de gênero desde antes dos indivíduos nascerem, delimitando minuciosamente os papéis a serem desempenhados por eles. Na sequência, a pedagogia do gênero e da sexualidade hegemônicas formata os comportamentos de crianças e adolescentes incutindo a normatividade voltada à heterossexualidade, cisgeneridade e aos papeis de gênero convencionais. Os seres desviantes, consequentemente, estarão expostos à toda sorte de violências, de natureza simbólica, física, institucional, etc., nos mais diversos ambientes, como na família, na escola, na faculdade e, futuramente, nos círculos sociais laborais e informais (LEITE, 2020, p. 419). O discurso de ódio contra LGBT é, portanto, alimentado por elementos simbólicos e narrativas que buscam desumanizar e deslegitimar o papel dessa população na sociedade. Tratar do discurso de ódio LGBTfóbico no Brasil é, portanto, tratar de uma violência estrutural que remonta o período colonial brasileiro, em que os comportamentos tidos como "desviantes" eram exemplarmente punidos pelo aparato repressor do Santo Ofício, que trouxe a dimensão inquisitorial da Igreja Católica para o Brasil (PEIXOTO, 2018, P. 12-13). Na última década, muito se caminhou na direção da dignidade humana de LGBTs. Recentemente obteve-se uma vitória judicial no julgamento da ADO 26/DF, que sanou a omissão inconstitucional referente à tipificação do crime de LGBTfobia com a aplicação da Lei Antirracismo (Lei 7.716/89), por identidade de razão e adequação típica, até que o Congresso Nacional legisle sobre a matéria. A fixação da referida tese pelo Supremo Tribunal Federal foi comemorada por ativistas, movimentos sociais e pessoas LGBTs como um avanço no arcabouço jurídico de proteção e garantia da cidadania plena dessa população historicamente vulnerada. Ao lado da união estável entre pessoas do mesmo sexo (ADIn 4277/DF e ADPF 132/RJ) e da possibilidade de retificação de nome de pessoas trans sem necessidade de intervenção cirúrgica ou apresentação de laudos ou de decisão judicial (ADI 4275/DF), o reconhecimento da tipicidade da LGBTfobia foi uma conquista civilizatória no sentido da garantia de direitos constitucionais de igualdade e não discriminação. Em que pese o avanço na proteção jurídicas das LGBTs, os crimes de ódio contra essa população ainda ocorrem com frequência no Brasil. No ano de 2022 foram registradas 273 mortes de LGBTs, correspondendo a uma pessoa LGBT assassinada a cada 32 horas, ou a uma média de duas mortes a cada três dias, sendo que desse total, contabilizam 159 travestis e mulheres trans mortas. Vidas tiradas pela intolerância e pelo ódio.2 No contexto das conquistas de direitos civis das LGBTs, notadamente mais voltada aos gays e lésbicas, no que diz respeito à união civil entre casais do mesmo gênero, observa-se, por meio da análise dos discursos e expressão da ideologia ultraconservadora na política em sentido amplo e no próprio parlamento, que a última trincheira desse segmento radicalizado à direita tornou-se o ataque às pessoas trans e travestis. Por meio da subaltenização da dignidade humana dessa população, a camada ultraconservadora busca canalizar seu discurso pró-família tradicional, por meio de ataques envolvendo notícias falsas e a instrumentalização do ódio, criando pânico moral em torno da suposta desconstrução da heterocisnorma. Inclusive, é de se notar que o uso de elementos da fictícia "ideologia de gênero", espécie de isca para atrair seguidores para a ultradireita, têm sido direcionado para o ambiente escolar, para tentar impedir um debate sério e uma abordagem profissional sobre a diversidade nas escolas. Observa-se, por conseguinte, que a violência estrutural LGBTfóbica pode ser reproduzida simbolicamente, no sentido de uma subalternização sistemática das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, inclusive por meio da educação direcionada às crianças e adolescentes. Outrossim, a violência contra LGBTs pode se materializar em termos de violência real, da forma como se observa, atualmente, no Brasil, com um grau considerável de ocorrências oficiais, ressalvadas as subnotificações. Há que se considerar, portanto, que o discurso de ódio construído em desfavor de grupos minoritários como o recorte da população LGBTI estimula e retroalimenta a violência física e psicológica praticada contra essa população. Os símbolos e significados do ódio LGBTIfóbico, que buscam estigmatizar e segregar, são o sustentáculo ideológico da violência dirigida a esses grupos minoritários, ao passo que mantém uma estrutura social hierarquizada em favor das formas hegemônicas de manifestação da sexualidade (heterossexualidade) e de identidade de gênero (cisgeneridade) (CARMO, 2016, p. 219). O obscurantismo e a discriminação ainda se revelam entremeados em nossa sociedade, manifestando-se desde o preconceito até a violência crua e real, que atinge principalmente os corpos e a subjetividade das mulheres trans e travestis, das mulheres bissexuais e de lésbicas. os direitos dos LGBTs precisam ser garantidos na prática e reforçados pelas políticas públicas em todas as suas dimensões. __________ 1 Segundo Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 10): "Chamamos de cisgênero, ou de "cis", as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento. [...] Denominamos as pessoas não-cisgênero, as que não são identificam com o gênero que lhes foi determinado, como transgênero, ou trans." 2https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-05/dossie-contabiliza-273-mortes-violentas-de-pessoas-lgbti-em-2022#:~:text=O%20relat%C3%B3rio%20de%202022%20identificou,mortas%20e%2097%20gays%20assassinatos. __________ *Álvaro Augusto Cerqueira Mangabeira é advogado militante, mestrando em Direitos Sociais pelo Centro Universitário IESB e ativista em direitos humanos.
No dia 13 de junho, a OAB/SP promoveu em sua sede um potente evento a fim de debater os desafios e perspectivas em torno do PL 2.630/20201, o projeto de lei acabou tornando-se popularmente conhecido como o "PL das Fake News". A iniciativa partiu da Comissão Seccional de Direito Constitucional e reuniu grandes especialistas no tema, para debates sobre liberdade de expressão, democracia e regulação da internet. Partindo da necessidade de ampliação do debate, assim, neste artigo nos debruçamos sobre algumas reflexões quanto a questões ainda não solvidas, bem como seus impactos.  Neste momento atual, caracterizado por tamanha exposição do ser humano às redes sociais e à inteligência artificial generativa, o encontro, que contou com a participação do próprio Relator do Projeto de Lei 2.630/2020, o deputado Federal Orlando Silva, apresenta fundamental importância, na medida em que trouxe relevantes contribuições voltadas à proteção da dignidade da pessoa humana no mundo virtual. Como se sabe, a liberdade de expressão é tema fulcral em matéria de direitos humanos, sendo objeto dos principais tratados internacionais sobre o tema, tais como, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 19; a Convenção Americana de Direitos Humanos, no artigo 13; e a Convenção Europeia de Direitos do Homem, no artigo 10. A bem de ver, os contornos do direito fundamental à liberdade de expressão - e de seu correlato direito de acesso à informação - não podem, de maneira nenhuma, abranger, um suposto direito, seja de manifestar, seja de receber conteúdos, por exemplo, com incitação ao ódio ou à discriminação de qualquer pessoa. Nesse cenário, torna-se indispensável alguma normatização acerca da transparência algorítmica, uma vez que a inteligência artificial, a partir da coleta de dados extraída da própria atividade do usuário na internet, acaba conhecendo mais as profundezas da alma humana do que nós mesmos, o que contribui para o agravamento de um mundo de preconceitos e de desigualdades, sem que haja qualquer perspectiva de horizonte do machine learning. Assim, todo esse vastíssimo conhecimento adquirido pelas big techs, tem deixado o ser humano cada vez mais suscetível a toda sorte de manipulações, colocando em xeque a sua liberdade de escolha, de pensamento e de autodeterminação, e provocando impacto direto sobre as democracias pelo mundo. Fundamental, portanto, o debate público acerca da maneira como as democracias mundo afora, em especial a nossa, devem proteger o indivíduo inserido neste contexto tecnológico atual. Muito se discute, aqui no Brasil, se a regulação da internet deveria ocorrer por meio da criação de uma agência reguladora específica ou se seria possível o aproveitamento de uma agência reguladora já existente, no caso a Anatel. Ou, ainda, se uma autorregulação regulada, realizada pelas próprias plataformas digitais, seria o caminho mais adequado. Naturalmente, todas as alternativas têm seus prós e contras. Não existe uma fórmula pronta e acabada. Porém, o debate está na ordem do dia. Cabe a nós decidirmos que modelo de sociedade nós queremos, sob pena de ficarmos reféns das máquinas. __________ 1 Disponível aqui.
O tema do marco temporal tem gerado intensos debates no âmbito do constitucionalismo brasileiro, e a ausência de uma definição clara tanto no Supremo Tribunal Federal (STF) quanto em relação aos projetos de lei em trâmite tem contribuído para a controvérsia. Um desses projetos em discussão é o PL 2903 que tramita no Congresso Nacional e busca regulamentar o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas. O projeto tem suscitado opiniões divergentes e gerado perplexidades, com alguns defendendo sua aprovação como uma forma de condicionar os processos de demarcação, enquanto outros, a nosso ver corretamente, o criticam como uma ameaça aos direitos dos povos indígenas e uma negação de seu direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Nesse contexto, é importante analisar o tema à luz do constitucionalismo multinível, que rompe com a ideia tradicional de soberania e enfatiza a proteção dos direitos humanos. Destaca-se a importância do diálogo entre diferentes níveis de proteção dos direitos, incluindo o constitucionalismo local e o direito internacional dos direitos humanos para tratar das responsabilidades internacionais relacionadas à demarcação das terras indígenas no brasil. Isto porque o regime constitucional das terras indígenas no Brasil é influenciado por múltiplos níveis de proteção, exigindo o diálogo entre as esferas de proteção local, regional e global, sobretudo, no que toca à efetivação do direito à consulta prévia e consentimento livre e informado dos povos indígenas. No âmbito global, há marcos legais que garantem o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras e à consulta prévia sobre assuntos que os afetem. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelece que os indígenas não podem ser removidos à força de suas terras sem consentimento livre e informado. A Convenção 169 da OIT também estabelece diretrizes para a consulta e participação dos povos indígenas, incluindo o direito de escolher as terras que ocupam. No âmbito regional, o sistema interamericano de direitos humanos reconhece a proteção dos direitos territoriais indígenas. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos interpretaram a Convenção Americana de Direitos Humanos de forma ampla, incluindo a propriedade coletiva, a territorialidade, a ancestralidade e a sacralidade dos povos indígenas. Destaque para a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas que, ilumina a interpretação da Convenção, e reconhece a relação espiritual, cultural e material com as suas terras e o direito dos povos indígenas aos territórios que tenham tradicionalmente ocupado. À luz destes marcos normativos, precedentes importantes foram estabelecidos em casos como o da comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingui contra a Nicarágua e os casos paraguaios Yakye Axa, Xákmok Kásek e Sawhoyamaxa. Caso emblemático que evidencia a complexidade do tema é Xucuru contra o Brasil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 2018. Nesse caso, a comunidade indígena Xucuru, localizada no estado de Pernambuco, questionou a ausência de reconhecimento e proteção de seus direitos como pessoa jurídica coletiva, em conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro violou os direitos da comunidade Xucuru ao não garantir a proteção jurídica e a participação efetiva dessas comunidades como entidades coletivas na tomada de decisões que afetam seus territórios e recursos naturais. Embora a Corte IDH não tenha determinado reparações específicas relacionadas ao marco temporal no caso Xucuru, a decisão da Corte tem sido considerada uma importante referência para o debate sobre o tema, contribuindo para a discussão em curso sobre os direitos dos povos indígenas no Brasil e a necessidade de garantir sua proteção e participação efetiva na tomada de decisões que afetam seus territórios e modos de vida. No âmbito local, a Constituição brasileira protege explicitamente os direitos das populações indígenas, reconhecendo sua livre autodeterminação. No entanto, o processo de demarcação das terras indígenas enfrenta desafios e violações, como evidenciado pelo caso da Comunidade Xucuru, que levou o Estado brasileiro à responsabilidade internacional por atrasos na demarcação e titulação de suas terras. Em suma, a proteção dos direitos indígenas exige um diálogo efetivo entre os diferentes níveis de proteção, incluindo o constitucionalismo local, o direito internacional dos direitos humanos e as responsabilidades internacionais do Estado brasileiro. É fundamental garantir a participação e o consentimento livre e informado dos povos indígenas nas decisões que afetam suas terras, preservando seus direitos originários e autodeterminação.
Resumo: O Plenário físico do STF deverá decidir sobre nulidade de provas obtidas através de revistas vexatórias após o pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes no julgamento do ARE (Recurso Extraordinário com Agravo) nº 959.620 com Repercussão Geral (Tema 998). Quais as teses do julgamento? Quais os corpos são destinatários desta revista? Apesar da expressão aparentemente ser autoexplicativa: "revista vexatória", iniciaremos explicitando no que consiste essa prática. A pessoa que visita o sistema prisional, em sua maioria mulheres, sobretudo negra, para ingressar na unidade precisa entrar em uma sala, na presença de uma policial penal ou militar e tirar toda a sua roupa, ou seja, ficar completamente nua. Agachar até o chão três vezes de frente e três vezes de costa. Depois desses agachamentos, a pessoa precisa deitar em uma maca, como as de hospitais, levantar as pernas como se faz em uma consulta ginecológica e fazer força como se fosse expulsar um bebê de seu ventre ou defecar. Essa parte da revista ocorre durante o tempo que a policial entender necessário, mesmo havendo regulamentações risíveis dessa revista, na prática não há estrutura para que haja fiscalização. Esta revista possui variações ainda mais invasivas, como a introdução de dedos na vagina ou ânus das mulheres, a exigência que se faça força a ponto de defecar na maca, e por fim, é comum a célebre frase após tudo isso: "não estou vendo o seu canal, você não vai poder visitar hoje.". Pode surgir aos leitores a pergunta se o narrado acima de fato é real, nesse sentido, uma das coautoras desse artigo foi Presidente do Conselho da Comunidade na Execução Penal da Comarca de Belo Horizonte, Capital de Minas Gerais e em inspeções realizadas em dia de visitas, para corroborar as incontáveis narrativas das familiares, presenciou a realização da revista vexatória. Além de um dos coautores ser sobrevivente do sistema prisional, e por sua vez suas familiares já passaram por esta violação dos seus corpos centenas de vezes. Para além das experiências vivências pelas autoras e autor deste artigo que atuam na pauta prisional, tem-se os relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - órgão responsável por fiscalizar todo e qualquer ambiente de privação de liberdade, tais como presídios, centros de internação, casas de acolhimento de idosos e hospitais. Os relatórios do Mecanismo Nacional são elaborados por peritos que têm um fundamental papel técnico e institucional de registrarem o pesadelo que são os presídios brasileiros, no que diz respeito à revista vexatória, um trecho do Relatório de Inspeções Regulares nos Sistemas Prisional e Socioeducativo do Estado da Bahia1, sobre inspeções realizadas em 2022 registra que: "Inclusive crianças de 3 anos de idade têm de fazer os agachamentos próprios da revista vexatória e crianças menores têm de tirar a fralda para verificação. Também é requerido das visitas botar o dedo na boca e fazer força. Pessoas nuas são apalpadas por policiais penais quando da revista vexatória. Foi relatado que as mulheres são obrigadas a ficarem nuas na frente de agentes homens." Ultrapassando a explicação do que consiste na prática essa revista vexatória, recuperamos a origem do caso e em seguida a divergência instaurada no Tribunal. O STF está debatendo a revista vexatória na ação denominada como ARE (Recurso Extraordinário com Agravo) nº 959.6202 com Repercussão Geral (Tema 998) tratando da matéria processual sobre a controvérsia relativa à licitude ou ilicitude da prova obtida a partir de revista íntima de visitante em estabelecimento prisional, por ofensa. O caso concreto que deu origem à discussão da revista vexatória no âmbito de sua constitucionalidade ou não é o de uma mulher que, ao visitar o seu irmão no Presídio Central de Porto Alegre, passou por uma revista vexatória conduzida por policiais militares a partir de uma denúncia anônima, e durante a revista, segunda consta no auto de flagrante, foi encontrado 96,09g de maconha no canal vaginal da ré. A mulher em questão é Salete, ela nunca havia sido presa, e, segundo narra nos autos, levava a droga para livrar o seu irmão da morte ao quitar uma dívida que ele, usuário de drogas, havia contraído na cadeia. Este caso é paradigmático não só por se ancorar em prova obtida por meio de revista vexatória, mas também por escancarar qual corpo é tido pelo Estado como violável. A mulher ré neste caso, reside em uma região periférica, que concentra altas taxas de homicídio e baixas taxas de escolaridade infantil. Apesar de a mulher ter 35 anos, nunca chegou ao Ensino Médio. Ela tem dois filhos para criar, trabalha de segunda a sexta de 8h às 17h como faxineira e recebe como remuneração 65% do valor de um salário mínimo. A mulher neste caso é a Salete, mas nas filas dos presídios por todo o Brasil pode ser a Lourdes, Maria das Graças, Tereza, Cristina e tantas outras que, para o Estado, podem ser desnudas à força e obrigadas a abrirem as pernas, agacharem, fazerem força e terem seus corpos invadidos pelo Estado por meio de seus agentes policiais. Importante frisar que a escassez de dados oficiais referente ao perfil de pessoas que visitam o sistema prisional é uma política de Estado, implantada como forma de invisibilização. Os dados mais atuais existentes em relação a esse perfil foram produzidos pela sociedade civil. O relatório "Revista vexatória: uma prática constante"3 aponta que o perfil das pessoas que visitam o sistema prisional, e que são as vítimas das revistas vexatórias são mulheres, em maioria negra. Na mesma linha dos dados de cor/raça de quem visita, e não menos importantes, pois contribuem para a clivagem racial, estão os dados das pessoas que recebem visitas, as pessoas em privação de liberdade. De acordo com o Relatório do Sistema Nacional de Informações Penitenciárias de dezembro de 2022, 452.868 pessoas presas estão declaradas como negras, o que corresponde a 54,51% da população presa, isso significa dizer que são filhas e filhos de pai e ou mãe negras. Passando ao julgamento no STF, o mesmo foi reiniciado no plenário virtual em 12 de maio de 2023 - observamos que uma matéria desta envergadura julgada sem a ampla participação e debate de todos os atores jurisdicionais é o espelhamento da tensão constitutiva permanente dos Direitos Fundamentais -, sendo que estão estabelecidas duas teses: A primeira, expressada no voto do Relator do caso, Min. Edson Fachin - acompanhada pelas Ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia, Ministro Roberto Barroso e Gilmar Mendes-, sustenta ser "inadmissível a prática vexatória, da revista íntima em visitas sociais nos estabelecimentos de segregação compulsória, vedado sob qualquer forma ou modo o desnudamento de visitantes e a abominável inspeção de suas cavidades corporais, e a prova obtida a partir dela obtida é ilícita, não cabendo como escusa a ausência de equipamentos eletrônicos ou radioscopias.". A segunda tese, manifestada no voto do Min. Alexandre de Moraes - acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Nunes Marques e André Mendonça - sustenta que "a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional, devidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com os protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos na hipótese de exame invasivos. O excesso de responsabilidade do agente público ou médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização de visitas". O centro da divergência é o termo excepcional, pois ela expressa uma incompreensão acerca do estado de coisas inconstitucional que configura o sistema prisional brasileiro, como sustentou o próprio STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347. A divergência expressa o abismo existente entre a realidade nua e crua e a visão de mundo dos nossos tribunais. Expressa o racismo e a misoginia estrutural e estruturante do nosso Poder Judiciário, em sua face mais perversa, a negativa de sua existência, e também o impacto das decisões em sua manutenção ou contestação. Por fim, traduz também que a ideia de "segurança" que consiste em defesa da "sociedade", só uma parte dela, suplanta qualquer direito e garantia fundamental quando se refere a "não sociedade", por exemplo quem habita e frequenta o sistema prisional. Existem tecnologias que permitem identificar, sem a realização de revista vexatória, a presença de objetos e materiais que estejam sendo carregados fora ou dentro do corpo de alguém, através de equipamentos de Body Scanner. Essas tecnologias estão presentes hoje em parte do sistema prisional brasileiro, que recebe recursos do Fundo Penitenciário Nacional para a compra desses equipamentos, bem como outros equipamentos de revista como os detectores de metais e os bancos eletromagnéticos que detectam celulares também. Mas ainda não cobre todas as unidades prisionais do país, necessitando de mais investimento de recursos. A revista vexatória tem o propósito de punir, com uma falsa justificativa de combater as drogas. Mesmo o impacto da revista vexatória em termos da suposta guerra às drogas é baixíssimo. Dados4 da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo à Defensoria Pública, publicados na pesquisa da Rede Justiça Criminal indicam que em 2012, um ano depois do fato que gerou o caso paradigmático do qual se originou o ARE em questão, das quase 3,5 milhões de pessoas que foram submetidas a revistas vexatórias em São Paulo, apenas 0,02% foram flagradas com alguma quantidade de droga ou componente eletrônico. Neste contexto, não se trata de um conflito entre os princípios da dignidade e da intimidade, e os princípios da segurança e ordem pública, não é razoável admitir que o Estado viole os corpos de milhões de mulheres em nome de uma suposta Segurança Pública que sequer se demonstra na prática. A questão atualmente colocada ao Supremo Tribunal Federal mobiliza movimentos sociais de familiares, amigos e sobreviventes do cárcere há mais de 15 anos5, durante esse tempo houveram avanços, com a proibição da revista vexatória em diversos estados, inclusive a resolução nº 286 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) de 06/10/2022 veda a revista vexatória, e mesmo em casos de fundada suspeita, é vedado o desnudamento, conduta que implique o toque ou a introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada, uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim agachamento ou salto. Estes avanços são conquistas dos movimentos sociais, fruto de muitas manifestações nas ruas e portas de presídios, e mesmo tais avanços estão ameaçados pela tese sustentada pelo Ministro Alexandre de Moraes. O descompasso entre a interpretação dos Ministros do STF que sustentam a segunda tese com a realidade social prisional é impactante. Hoje, o centro do debate da sociedade civil organizada é a utilização adequada dos equipamentos eletrônicos de revista e também que todas as unidades prisionais tenham esses equipamentos, e não o estabelecimento das excepcionalidades que permitam a revista vexatória que desconsidera a vulnerabilidade do público que será alcançado, e principalmente se escora em uma visão "ingênua" do agente de segurança pública, de que sua atuação não é orientada pela estrutura social racista e misógina. No decorrer da retomada do julgamento no plenário virtual do STF, em 19 de maio, havia estabelecido uma maioria de votos no sentido de prevalecer a primeira tese sustentada pelo Ministro Relator Edson Fachin. No entanto o voto do Ministro André Mendonça foi lançado incorretamente. Com isso, o Ministro Gilmar Mendes fez um pedido de destaque, implicando no recomeço do julgamento no plenário físico do STF e o debate recomeça do zero, segundo previsão dos procedimentos internos do Tribunal. Uma possibilidade processual - fundamental - em recomeçar o debate amplo de uma matéria que atinge milhões de corpos de mulheres negras e periféricas nas visitas semanais aos presídios no país. Portanto, estamos diante de um julgamento no  STF que pode estabelecer a vedação da revista vexatória em visitantes do sistema prisional em tese de repercussão geral, promovendo a garantia da dignidade humana de milhões de mulheres brasileiras, seguindo a tese sustentada pelo Relator Edson Fachin; ou, caso prevaleça o entendimento da excepcionalidade arguida pelo Ministro Alexandre de Moraes, sem dúvidas será um retrocesso nos avanços da promoção da dignidade à essas mulheres, que tem sido empreendido pela administração pública e pelas lutas dos movimentos sociais antiprisionais. Oxalá que a Presidência do Supremo coloque em pauta a retomada deste julgamento o mais breve e que o debate constitucional também se alicerce no horizonte de quem será alcançada por esta decisão. O STF, mais uma vez, tem a oportunidade de posicionar diante de uma das tantas facetas do racismo e da misoginia. Defendemos que seja um posicionamento constitucional em defesa dos corpos das mulheres, sobretudo negras e periféricas, em defesa do direito a não violação de corpos e da saúde mental. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Exemplo é a cartilha de campanha contra a revista vexatória construída pelo Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em privação de Liberdade de Minas Gerais em 2008 e publicada em 2009, disponível aqui. 6 Disponível aqui.
Que a China é uma mega potência econômica mundial em franca expansão todo mundo sabe, afinal, segundo a Austin Rating, desde 2010 a China se firmou como a 2 maior economia do mundo1, chegando a crescer num média anual de 8,7% no PIB (produto interno bruto) e a escala de crescimento vertical prevê ainda, um crescimento de 5,3% para o ano de 2023. No entanto, o que pouco se comenta é sobre as graves violações de direitos humanos nesse país que é potência que está se tornando ponta de lança da economia mundial, mas em contrapartida, segundo inúmeras entidades denunciantes, ainda utilizam métodos de dominação e perseguição arcaicos e desumanos, como campos de concentração, contra grupos populacionais que não se enquadram em suas normas, como é o caso dos Uigures da região de Xinjiang, no noroeste da China e também, de ativistas pró-democracia em Hong Kong. Na última semana, a Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB2, recebeu na sede do CFOAB, os ativistas Dolkun Isa, presidente do Congresso Uirgur Mundial, Zumretay Arkin, que dirige o comitê de mulheres do Congresso Uigur Mundial, Omer Kanat, diretor do Projeto de Direitos Humanos Uigur e Alex Chow, ativista pro-democracia de Hong Kong, que apresentaram seus relatos e compartilharam informações e impressões sobre a situação aterradora dos Direitos Humanos na China, em específico, nessas duas regiões. Antes de adentrarmos no campo das violações se faz necessário explicar ao(a) leitor(a), afinal, quem são os uigures? Os uigures são um povo asiático que habitam região de Xinjiang no noroeste da China, oficialmente, Região Autônoma Uigur de Xinjiang. Essa população está nesse local há séculos e são, aproximadamente, doze milhões de pessoas e são de maioria mulçumana. Além disso, os uigures têm modo de vida étnico, religioso e cultural e dialeto próprios. Contudo, segundo estudiosos, a região é considerada extremamente estratégica para a China, desde os primórdios do comércio mundial com a Rota da Seda até a atualidade, com presença de petróleo, gás natural, produção de micondutores, agricultura e a indústria têxtil, que produz a cerca de um quinto do algodão mundial3. Embora pouco comentada, as violações dos direitos dos uigures foi alvo da atuação da Alta Comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, que em 2018, solicitou acesso irrestrito a todas as regiões da China, após "relatos extremamente perturbadores de detenções em larga escala de uigures e membros de outras comunidades muçulmanas, na Xinjiang em campos de concentração e, em agosto de 2021, Bachelet finalmente publica seu relatório. Em resumo, as graves violações dos direitos dos uigures e a forte repressão a qual são sistematicamente sujeitados, são justificadas pelo governo chinês como uma forma de combater o terrorismo e para coibir ligação dos uigures com o grupo terrorista Al-Qaeda. De acordo com o governo chinês, os uigures teriam sido doutrinados por extremistas do Estado Islâmico e com intuito de provocar revoltas do iugures a fim de obter a independência da região. Além disso, o governo chinês também tenta inibir as práticas religiosas muçulmanas, diálogos no dialeto próprio e aplica punições para quem as segue. Chama a atenção o fato de que essas séries de violações graves ainda persistem, e nos últimos anos a China tem sido acusada de crimes contra a humanidade pelos atos cometidos contra a população uigur.  O relatório "OHCHR Assessment of human rights concerns in the Xinjiang Uyghur Autonomous Region, People's Republic of China", publicado por Bachelet apenas 03 minutos antes de encerrar seu mandato no Alto Comissariado, trouxe à luz os crimes cometidos pela China contra povos muçulmanos do Noroeste, ressaltando os locais de detenção forçada, os campos de reeducação (chamados de Centros de Educação e Formação Profissional, Vetcs), registra-se que, segundo os ativistas uigures, tratam-se de campos de concentração, além de cerceamentos em relação aos direitos reprodutivos e direitos trabalhistas. O relatório aponta ""Graves violações dos direitos humanos" foram cometidas na região uigur. A ONU observa "padrões de restrições graves e indevidas em uma ampla gama de direitos humanos" que são "caracterizados por um componente discriminatório", uma vez que muitas vezes "afetam direta ou indiretamente os uigures e outras comunidades predominantemente muçulmana"4. Chama a atenção no relatório a expressiva diminuição da população uigur, enquanto em 1953, 75% se identificavam como uigures; em 2021 esse número caiu para apenas 45%, o relatório atribui essa diminuição drástica da população as políticas de promoção da imigração do leste da China O relatório também é contundente ao constatar um possível crime contra a humanidade, frisa-se que as conclusões baseou-se em documentos enviados, leis e práticas do governo chinês e entrevistas com cerca de 40 pessoas - 24 mulheres e 16 homens; mais da metade dos entrevistados eram uigures e os demais, de outras etnias muçulmanas do noroeste da China - que estão ligados à região de Xinjiang. A elaboração do documento segue a metodologia padrão da ONU para veracidade das informações. Um dos pontos nefrálgicos da situação dos uigures e que causa comoção e repulsa a todos nós, é o fato do governo chinês manter iugures detidos forçadamente e sem justificativa legal em campos de concentração, travestidos de campo educacional. O relatório da ONU aponta as principais violações dos direitos das pessoas detidas nesses locais: 1) Ausência de base legal, fundamentação legal ou garantias processuais para internamento no "CFPE"; 2) Tortura e maus-tratos, incluindo espancamentos, uso de algemas e "silla delgre" durante interrogatórios e uso de bastões elétricos; 3) Desnutrição forçada causando severa perda de peso e outros efeitos na saúde; 4) Privação do sono, vigilância e falta de privacidade; 5) Tratamento médico forçado/sem consentimento; 6) Violência sexual e de gênero; Além dos trabalhos forçados nos campos de concentração, onde estima-se que o governo chinês mantenha cerca de 1 milhão de iugures nessa situação Os tratamentos acima relatados assemelham-se aos infligidos aos judeus nos campos de concentração alemães e que, anos depois, levou alguns dos responsáveis pelas atrocidades do nazismo ao Tribunal Militar Internacional, no julgamento de Nuremberg, e que mais tarde deu base para a criação do Tribunal Penal Internacional. Contudo, as ações que se podem tomar no campo internacional dos Direitos Humanos são bastantes limitadas, a China não ratificou o Estatuto de Roma e, portanto, não está sujeita a jurisdição do Tribunal Penal Internacional que julga crimes contra humanidade e crimes de genocídio. Ademais, a China é um dos 5 membros permanente do Conselho de Segurança da ONU. O relatório do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU foi fundamental para iniciar os debates internacionais e por meio de sua divulgação pressionar a China no campo internacional, afinal, não é razoável que uma potência econômica e comercial como é a China mantenha métodos de controle sociais, inclusive quanto a possível eliminação de um povo, calcado naquilo que a humanidade já repudiou desde o fim da segunda guerra mundial e que trouxe consequências nefastas e irreparáveis para todo o mundo. Nesse sentido, o Conselho de Direitos Humanos da ONU tem papel fundamental para, a partir do relatório aprovar resolução que trata sobre o acompanhamento da situação do Uigures na China, esperamos que o Brasil, que deverá retornar a composição do Conselho, apoie essa medida. __________ 1 Disponível aqui. Acessado em 28.05.2023 2 Participaram desse encontro representando a CNDH, Silvia Souza (presidenta), Roberto Serra (Vice-presidente) e Núbia de Paula (membra da CNDH). 3 Disponível em: BBC. Apple e Nike são acusadas de usar 'trabalho forçado' de minoria muçulmana na China. BBC, [S. l.], p. 1-1, 24 jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 28.05.2023 4 Disponível aqui. Acessado em 28.05.2023.
"O álcool mata bancado pelo código penalOnde quem fuma maconha é que é o marginalE por que não legalizar? E por que não legalizar?Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar" Música: Legalize já!Compositores: Marcelo Peixoto / Peter Tosh / Rafael Lopes (1995)Interprete: Planet Hemp  O trecho da música que inicia o título deste é tema central da música Legalize Já! do grupo de rock Planet Hemp lançada em 1995, a música tornou-se um grande sucesso no país, principalmente no sudeste brasileiro, embalando matinês, baladas e shows onde um público de jovens e adultos que reclamavam o direito de "queimar um até a última ponta", sem que houvesse a criminalização de sua conduta. De certa forma, a música que causou frisson colocou em pauta o complexo debate sobre a descriminalização de drogas para consumo pessoal. Pois bem, essa semana o tema volta ao debate público, vez que a ministra Rosa Weber colocou em pauta o Recurso Extraordinário 635659, e o pleno do STF deve decidir sobre a possível descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. No RE em questão, está em debate a constitucionalidade do art. 28 da famigerada Lei de Drogas 11.343 de 2006, o tipo penal apresenta a seguinte condutas: "adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal" O artigo 28, desdobra-se em sete parágrafos, chamando atenção para o fato de que o parágrafo segundo, deixa a cargo do juiz, que atendendo "à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente", determinará se a quantidade apreendida com o indivíduo é para consumo ou destina-se ao tráfico de drogas. Atribuindo, a nosso ver, demasiada discricionariedade ao magistrado dando ampla margem a criminalização do usuário. Ação interposta pela entidade Viva Rio busca a declaração de inconstitucionalidade do artigo na íntegra, sob o argumento de que a proibição do porte para consumo próprio é medida atentatória à autonomia, liberdade e privacidade do indivíduo, direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. Ressaltando que, conforme ilustra a música O esperado julgamento teve em 2015 com voto do relator, Ministro Gilmar Mendes, que entendeu pela inconstitucionalidade do artigo, mantendo apenas aplicação das sanções administrativas, acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso apenas para a descriminalização da maconha, houve vista do Ministro Alexandre de Moraes que assumiu a cadeira do Ministro Toeri Zavasck, após seu falecimento. Ocorre que o processo está liberado para julgamento desde 2018 e apenas agora retorna ao plenário. Importante relembrar que quando a Lei de Drogas foi sancionada, ela foi apresentada como uma medida inovadora que estabelecia distinção de tratamento jurídico aos usuários e a traficantes de entorpecentes. No que diz respeito aos usuários o objetivo era a prescrição de medidas preventivas, além da necessária reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Doutro lado, manteve-se a criminalização ao porte de entorpecentes para uso próprio (artigo 28), extirpando-se, contudo, a pena privativa de liberdade. Dos inúmeros debates que essa temática suscita, destaca-se o vertiginoso impacto da Lei de Drogas no encarceramento no Brasil, quando o grupo Planet Hemp gravou a música Legalize Já!, certamente não imaginaram que 11 anos depois sobreviria norma ainda mais rígida, que criaria a mazela do "crime de usuário". Recentes pesquisas1 elaboradas com a finalidade de analisar o impacto da Lei de drogas apresentam conclusões bastante contundentes com relação à criminalização do porte de entorpecentes para uso pessoal: A primeira conclusão que se pode extrair é que a distinção entre os crimes de porte para uso (artigo 28) e porte para tráfico (artigo 33) é extremamente frágil e insuficiente, culminando em ampla discricionariedade e arbítrio à autoridade policial responsável pela abordagem, culminando no vulgo "crime de usuário". Em segundo lugar se observa que a maioria dos casos que envolvem porte de entorpecentes deriva de prisão em flagrante, ou seja, não há um trabalho de investigação por parte da polícia para combater os esquemas de tráfico de drogas. Elenca-se como terceiro ponto no sentido de que há uma nítida seletividade no modus operandi da aplicação da lei, nesse caso o perfil é de jovens, pobres, negros e, em regra, primários. E por fim, outra constatação é de que a maior parte das pessoas detidas por envolvimento com entorpecentes estava sozinha na hora do flagrante, tendo apenas a palavra do policial como prova da conduta criminalizada. Não é demais lembrar que atualmente o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking das nações que mais encarceram no mundo, sendo o tráfico de entorpecentes o crime que mais encarcera. Em 2005, antes da Lei de Drogas, os dados revelam que 14% dos presos haviam sido condenados por crimes relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Já no ano de 2019, o delito representava 27,4% e entre as mulheres, esse índice chega a 54,9% do total. Enquanto em 2005, havia nossa população carcerária era de 296.919 pessoas. Em 2019, eram 773.151 detentos, apontando para uma elevação retumbante e desordenada de 160%. Os últimos dados do Infopen são de 2019, mas o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que no ano passado havia 820 mil pessoas presas. O debate sobre a descriminalização das drogas frequentemente é deturpado por um viés punitivista que não trata o uso de drogas e a dependência química como um problema de saúde pública que requer políticas de saúde públicas efetivas para prevenção e controle. E ao fim e ao cabo esse é o debate que o STF terá de enfrentar. __________ 1 "Tráfico de Drogas e Constituição" (Série Pensando o Direito - nº. 1/2009 - Secretaria de Assuntos Jurídicos do Ministério da justiça (SAL), Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e Faculdade de Direito da UNB); "Impacto da assistência jurídica a presos provisórios: um experimento da cidade do Rio de Janeiro" (Associação pela Reforma Prisional, CESEC/UCAM e Open Society Institute, 2011); e "Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo" (Núcleo de Estudos da Violência - USP e Open Society Institute, 2011).
É tema comum que a representatividade política da mulher no Brasil tem estatísticas frustrantes, sendo ainda muito distante do mínimo necessário para que os contextos parlamentar e executivo reflitam, de fato, os traços do eleitorado. De acordo com o ranking do Inter-Parliamentrary Union, organização sediada na Suíça cujo principal objetivo é mediar o contato entre os parlamentos de Estados soberanos, o Brasil ocupa a triste posição de 131º lugar dentre 193 quadros parlamentares observados, no recorte latino-americano, está na frente apenas de Belize e Haiti1. Para que os números fiquem mais evidentes é possível especificar o recorte trazendo-o para as últimas eleições municipais, quando o resultado mostrou que apenas 12% das prefeituras seriam comandadas por mulheres e o número de vereadoras, em que pese tenha aumentado, significava apenas 16% da vereança total no país2. Tais números ganham uma conotação ainda mais problemática quando se considera que o eleitorado brasileiro é composto majoritariamente por mulheres, que correspondem a 52,65% do total de votantes nacionais3. São múltiplos os fatores que lastreiam essa desconcertante matemática, desde a violência política de gênero, até a sobrecarga da jornada feminina que deve cumular quase sem ajuda as tarefas domésticas e a vida profissional, passando pela falta de suporte que deveria ser dada pelos partidos políticos. Em razão disso os mecanismos para garantir ferramentas mínimas de estrutura partidária para as candidaturas femininas vêm sendo implementados há algum tempo, não se podendo desconsiderar, contudo, as dificuldades impostas para instrumentalizá-las, originadas da estrutura social dominante hoje, ostensivamente calcada em protocolos masculinos. Um dos marcos atuais mais importantes nesse sentido, é a decisão do Supremo Tribunal Federal que, em 2018, estabeleceu que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinado ao financiamento de campanhas eleitorais deve ser efetivada na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos, respeitada, contudo, a base mínima de 30%. Tal busca por proporcionalidade se destina, como se sabe, a blindagem de um patamar mínimo necessário para que se comece a garantir o básico no tocante a pluralidade e representatividade política. Note-se que a Lei dos Partidos Políticos desde 2009 passou a contar com dispositivo que determina a aplicação de no mínimo 5% do Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres o que, obviamente, não é suficiente a julgar pelos números e resultados eleitorais que enfrentamos. Apesar da crescente presença feminina nos espaços de poder ainda não estar alcançando os índices esperados, em 2021 foi proposta Emenda à Constituição que previa anistiar partidos (i) que não tivesse cumprido a cota de mínima de 30% das candidaturas femininas nas últimas eleições, conforme prevê o art. 10º, §3º da lei 9.504/1997; (ii) que não tivessem utilizado os percentuais mínimos de 30% de financiamento de campanhas de candidaturas femininas; (iii) ou de 5% do fundo partidário para promoção e difusão da participação política de mulheres. A principal justificativa para esses largos passos para trás foi a dificuldade de aplicação dos percentuais mínimos voltados às candidaturas femininas e, não obstante o texto não tenha sido aprovado com a tripla anistia acima descrita, a relatoria da PEC na Câmara, elaborou parecer para que a não obediência ao piso de 30% de candidaturas femininas implicasse sim em punição, mas concordando com a liberação da punição no tocante à aplicação do mínimo de 30% no financiamento de campanha de mulheres, e do mínimo de 5% do fundo partidário para estímulo à participação política de mulheres, considerando o reconhecimento das dificuldades pelas quais passaram os partidos políticos no período pandêmica, que teriam obstado o gasto regular dos percentuais mencionados. Com esses ajustes a Emenda 117 de abril de 2022 nasceu como a conhecemos, com a expressa previsão de temporalidade de sua aplicação, isto é, só incidiria sobre as eleições ocorridas antes da sua promulgação. Assim, a Emenda anistiava as siglas que não conseguiram cumprir as exigências de percentuais mínimos de financiamento em relação às candidaturas de mulheres nas eleições anteriores à promulgação, ou seja, até o pleito de 2020. Ocorre que em 22 de março de 2023, foi protocolada na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que contava com 184 assinaturas, objetivando estender o prazo de incidência da EC 117/2022 para alcançar também as últimas eleições gerais. Alguns signatários da proposta aduzem que pode ter havido um desrespeito ao princípio da anualidade, que define que quaisquer mudanças nas regras eleitorais devem ser aprovadas um ano antes das eleições, contudo, no presente caso a regra da anualidade está respeitada e expressa no lapso temporal definido na Emenda para sua vigência4. Melhor dizendo, o próprio texto legal diz que a sua incidência só alcança os pleitos eleitorais que ocorreram antes da promulgação em 2022, isto é, as eleições alcançadas mais próximas seriam as de 2020, que ocorreram dois anos antes da aprovação da norma discutida. E, denunciando a manobra argumentativa, percebe-se que é justamente o contrário, se a Emenda fosse aplicável às eleições de 2022, aí sim precisaria ter sido aprovada um ano antes, pois traria mudanças para um pleito futuro, e exigiria o tempo de conhecimento. De modo que a interpretação nesse sentido, ao que parece, se apega pouco a técnica. Do mesmo modo o argumento de que há uma dificuldade dos partidos políticos em se ajustarem à necessidade de aplicação e repasse dos valores mínimos também é bastante precário, já que são regras vigentes há pelo menos 05 anos, e qualquer desoneração em relação a sua incidência foi claramente delimitada na EC 117/2022, que levou em conta dificuldades reais dos partidos políticos, entretanto, parece ter minimizado os obstáculos ainda maiores enfrentados pelas candidatas mulheres que, pela falta de estrutura financeira mínima saem das campanhas endividadas e sobrecarregadas5, o que gera um legítimo desestímulo de imersão na vida política, e nos mantem muito distantes do quadro de representação que precisamos para uma sociedade mais igualitária. Sob essa perspectiva há uma facilitação para os partidos de prometerem recursos que não chegam às destinatárias e como resultado temos mulheres endividadas no processo de campanha, e exaustas pelo processo extenuante de captação de doações e recursos para manterem sua candidatura, processo este que não deveria ser a via crucis que se evidencia. Mais uma vez, as ONGs e coletivos são protagonistas na discussão, gritando para que se faça ouvir o óbvio: falamos de milhões de reais de dinheiro público cujo uso não seguiu regras legais basilares que visam unicamente garantir um mínimo de representatividade e pluralidade em nossos quadros políticos. Agora, a Proposta de Emenda Constitucional 9/2023 para alterar a EC 117/2022 está pendente de deliberação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), estruturada em um argumentação que, ao fim e ao cabo, valida os alicerces sexistas sobre os quais vivemos, e prioriza supostas dificuldades de quem tem envergadura de sobra para se adequar às exigências legais sem sofrimento, no caso, os partidos políticos, ao tempo que negligencia às demandas vitais de quem carece de suporte mínimo: as candidaturas femininas e de pessoas negras, também atingidas pela PEC. Dez das maiores legendas se encontram em estado de irregularidade quanto à aplicação dos recursos destinados às candidaturas femininas6, observa-se um movimento ativo do Tribunal Superior Eleitoral para reforçar a normatização das cotas, o que gera uma aplicação razoável das sanções aos candidatos, mas em relação aos partidos tudo se torna mais "escorregadio" em razão dos frequentes "pulos" legislativos que os favorecem. Não é cansativo lembrar que tudo é político quando se é mulher, e que a "dificuldade em se ajustar ao novo comando constitucional" trazida na justificativa da PEC 9/20237 em verdade parece esbarrar em um único conceito: a manutenção do status quo e nítida fragilização de políticas públicas criadas com esforço para incentivarem mulheres.     [1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-03/brasil-esta-em-153o-posicao-em-presenca-de-mulheres-no-legislativo [2] tse.jus.br/comunicacao/noticias/2020/Novembro/mulheres-representam-apenas-12-dos-prefeitos-eleitos-no-1o-turno-das-eleicoes-2020 [3] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-a-maioria-do-eleitorado-brasileiro#:~:text=A%20maior%20parte%20das%20eleitoras,com%20100%20anos%20ou%20mais.&text=O%20n%C3%BAmero%20de%20eleitoras%20tamb%C3%A9m%20%C3%A9%20maioria%20no%20exterior. [4] https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/03/25/deputados-tentam-prorrogar-anistia-para-partidos-que-descumpriram-cotas-de-mulheres-e-negros-nas-eleicoes.ghtml [5] https://www.camara.leg.br/radio/programas/546762-cresce-numero-de-denuncias-de-candidatas-insatisfeitas-com-os-partidos-durante-o-primeiro-turno-das-eleicoes/ [6] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/05/prestes-a-votar-mais-uma-anistia-partidos-descumprem-cotas-para-negros-e-mulheres-em-repasses.ghtml [7] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2247263&filename=Tramitacao-PEC%209/2023
Há pelo três meses o governo federal iniciou uma ação estratégica para  a retirada de ordas de garimpeiros das Terras Yanomami situadas em grande parte no Estado de Roraima, na ocasião o Brasil e o mundo havia sido impactados pelas imagens chocantes retratando uma comunidade Yanomami, do estado de Roraima, com aspecto físico cadavérico decorrente da desnutrição agudizada1. Importa lembrar que a eleição do presidente Lula, a criação do Ministério dos Povos Indígenas que está sob a direção de uma mulher indígena, a Ministra Sônia Guajajara, a retomada da FUNAI2 por esses povos, simbolizada na presidência da instituição por outra mulher indígena, a ex-deputada e advogada, Joênia Wapichana, representou não só para os Yanomami, mas como para todos os povos originários, comunidades tradicionais do Brasil, a sinalização de uma mudança radical nas política públicas de toda ordem para essas comunidades. Desde políticas que garantam o direito essencial à vida e à existência - na mais ampla acepção do termo - a políticas que garantam o seu direito à terra, à alimentação humana nutricional e à propriedade. O referido anúncio do plano estratégico para retirada de garimpeiros repercutiu nacionalmente e fez com que grupos de garimpeiros se retirassem da terra voluntariamente3, contudo, recentes notícias demonstram que ainda há inúmeros grupos de garimpeiros nos territórios Yanomami fortemente armados e que não só resistem às ordens de saída, como estão atacando comunidades e assassinando indígenas desarmados e desprotegidos. No último dia 29, uma indígena Yanomami, de 36 anos, morreu e outros dois, de 24 e 31 anos, foram baleados por garimpeiros ilegais na comunidade Uxiu, dentro da Terra Indígena Yanomami4. É demasiadamente importante que àquela crise - deflagrada pelas imagens que citamos acima - não caia no esquecimento e que a sociedade exerça seu poder de fiscalização para acompanhar e exigir a continuidade do processo de retomada das terras indígenas por quem lhe é de direito: o próprio povo indígena. Faz-se necessário rememorar que as citadas imagens deflagraram formalmente a Crise Humanitária dos Povos Yanomami e que chegou ao conhecimento do mundo por meio de denúncias de associações indígenas como a Urihi Associação Yanomami, presida Junior Hekurari Yanomami. Porém, após visita no território, podemos verificar que essa crise já estava instalada há um bom tempo e vinha sendo sistematicamente denunciada por organizações como o CIR - Conselho Indígena de Roraima, o ISA - Instituto Socioambiental, entre outras organizações e associações de indígenas e indigenistas. As imagens dão conta de adultos em grave estado desnutricional, e, também, inúmeras crianças e adolescentes na mesma situação terrível. Frisa-se que os corpos esqueléticos denunciavam um quadro de desnutrição agudizada - fase da desnutrição crônica em que um indivíduo pode chegar a pesar menos de 25% do peso ideal para sua estatura e idade e que leva-se meses para ser atingida, de modo que o abandono daqueles povos por meio ação ou omissão, em especial as políticas de saúde pública, assistência e nutrição era patente e decorrente de um processo de anos. As denúncias das organizações indígenas associam o grave quadro de fome e sede ao abandono estatal das políticas de saúde e nutrição da população indígena, de preservação do meio ambiente, bem como a facilitação e incentivo ao garimpo ilegal e armado em suas terras, tanto por parte do governo federal, do então presidente, Jair Bolsonaro, quanto do governo do estado de Roraima, cujo o governador Antonio Denário foi reeleito. A Urihi Associação Yanomami afirma que a degradação contínua ao meio ambiente, envenenamento, aumento da violência dentre outras atrocidades  que os povos indígenas têm vivenciado são consequências das atividades do garimpo naquela região. As denúncias mobilizaram a OAB Nacional e da seccional de Roraima, e a pedido de seu presidente, Dr. Ednaldo Vidal, estive em visita especial, durante o período de 30.01 a 02.02.2023, para diagnóstico e relatoria em nome da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, no mesmo período estiveram também, membros do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. E durante essa visita foi possível conhecer o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Yanomami), a sede da FUNAI de Boa Vista,  Casa de Apoio à Saúde Indígena -CASA, a equipe de secretários e secretárias do Governo do estado relacionadas a alguma política indígena, além do CIR - Conselho Indígena de Roraima, bem como participar de um processo de escuta ativa organizado pelo MDHC reunindo aproximadamente 20 lideranças indígenas que se comunicavam em diferentes línguas. Os Yanomami ocupam, juntamente com 7 (sete) outros povos (Isolados da Serra da Estrutura, Isolados do Amajari, Isolados do Auaris/Fronteira, Isolados do Baixo Rio Cauaburis, Isolados Parawa'u, Isolados Surucucu/Kataroa, e Ye'kwana), um território de 9.665 hectares de terras, entre os Estados do Amazonas e Roraima "5, além da fronteira Brasil-Venezuela na região do interflúvio Orinoco - Amazonas (afluentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro) cuja homologação da Terra Indígena Yanomami ocorrera em 25 de maio de 1992. Conforme os dados do SESAI/DSEI Yanomami em 2019, o território é habitado por 26.780 (vinte seis mil setecentos e oitenta) indígenas, vivendo em cerca de 200 a 250 aldeias. Destaca-se que não há dados atualizados da política de saúde pública indígena desde 2019 e que, segundo a coordenação do COE- Yanomami (Centro de Operações Emergências criado pelo Ministério da Saúde), com quem dialoguei na ocasião da visita, notou-se determinada inconsistência  por parte do poder público na guarda de documentos e atualização dos dados.  De modo que, são necessárias providências urgentes por parte do governo federal para atualização dos dados, visto sua fundamental utilização para elaboração de novas políticas para saúde pública indígena. Além do abandono as políticas de saúde pública para indígenas nos anos anteriores, as a Terra Indígena Yanomami possui 453 (quatrocentos e cinquenta e três) processos minerários na região6, que além da exploração ilegal não somente de garimpeiros, também é vítima de caçadores, pescadores e fazendeiros.7 Por fim, ao término da visita especial e da análise de todas as informações que foram possíveis de serem coletados  o relatório da CNDDH-CFOAB apresentou inúmeras conclusões, dentre as quais destacamos: A flagrante negligência do Governo Federal anterior e do Governo do Estado de Roraima em relação à assistência de saúde pública para os indígenas Yanomami, vez que houve inúmeras denúncias realizadas  Ministério Público Federal em Roraima. E a meu ver, o momento que mais ilustra e sintetiza tal negligência, negação e omissão ocorreu na reunião com o governador do Estado, Antonio Denarium, no dia 30.01, onde ele afirmou categoricamente que "Roraima tem o melhor e maior programa de segurança alimentar indígena já visto", além de juntamente com todo seu corpo de secretariado afirmar desconhecer qualquer situação de desnutrição dos povos Yanomami anterior às imagens divulgadas. Ainda que Roraima tenha um programa alimentar que alcance os indígenas cadastros e residentes em áreas urbanizadas, a fala do governador diante das imagens de corpos esqueléticos, há meses, quiçá, anos sem alimentação nutricional adequada soou como  deboche e menosprezo às inúmeras vidas de indígenas que foram perdidas e outros que estavam em vias de morrer por desnutrição acarretada de doenças evitáveis. Causa-nos profunda tristeza e sentimento de desolação coletiva constatar que em verdade havia um projeto de mortalidade dos povos Yanomami em curso, pelas vias implícitas do governo do estado e do governo federal.  Além disso, destacou-se o incentivo descarado ao garimpo em terras indígenas, inclusive, por vias legais (edição de leis posteriormente reconhecidas inconstitucionais), e que discursivamente facilitaram a entrada de invasores armados. Faz-se também, oportuno relembrar o cunho da política armamentista  implantada pelo governo federal de Jair Bolsonaro a partir de 2019. De acordo com o Instituto Sou da Paz, nos últimos quatro anos foram aprovadas mais de 40 novas regras que facilitaram o acesso à armas no Brasil8, somente em 2019 cerca de 994 milhões de munição foram vendidas. Além disso, os limites foram alargados de forma exacerbada permitindo a aquisição de até 06 armas por pessoa e 1.200 munições por ano e todos os dias mais de 1.300 armas são compradas por civis. De modo que, é inegável que a política armamentista municiou os garimpeiros para as invasões nas Terras Yanomami. Concluímos que as graves e generalizadas violações de direitos humanos deflagradas contra os povos indígenas, violam direitos fundamentais, insertos na Carta Magna e representam afrontas gravosas a princípios e direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF/88), os direitos à vida (art. 5º, caput), à  alimentação humana adequada (art. 6º caput), à saúde (art. 6º e 196), e o direito dos povos indígenas a viverem em seu território, de acordo com suas cultura e tradições (art. 231). Não obstante, se confirmadas as omissões e a responsabilidade do chefe do Poder Executivo federal anterior, nos processos investigatórios instaurado, poder-se-á caracterizar o crime de genocídio disposto na Lei n. 2.889/1956, na "intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso", por meio de atos como: "matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo".   E ainda, em consonância  com a dogmática do Direito Penal Internacional vislumbra-se a possibilidade de subsunção dos fatos aos crimes contra a humanidade. A categoria está abarcada no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (art. 7º), internalizado pelo Decreto 4.388/2002, e que ainda não foi tipificada em nosso ordenamento jurídico brasileiro. Uma das recomendações da Comissão Nacional de Direitos Humanos foi o pedido de ingresso, na qualidade de amicus curiae, na ADPF n. 709, ajuizada pela Articulação dos povos indígenas do Brasil - APIB e outros buscando a adoção de providências relacionadas ao combate à pandemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros, como a instalação de barreiras sanitárias para a proteção das terras indígenas dos povos de Yanomami, a retirada dos invasores nas referidas terras, a prestação de serviços do Subsistema de Saúde Indígena do SUS aos indígenas, inclusive aos não aldeados, a elaboração de plano de enfrentamento do COVID-19 e o cumprimento integral deste. É fato que para os centros urbanos o contexto da Covid-19 está superado, no entanto, os povos Yanomami vinham sucumbido até a morte por doenças menos graves e evitáveis como a malária, verminose, pneumonia e a desnutrição, fazendo com que a referida ação, que é de relatoria do Ministro Roberto Barroso, não perdesse o objeto. Embora no curso da referida ação, seu relator tenha concedido parcialmente medida liminar para a instalação de barreiras sanitárias no território e o governo federal atual tenha tomado determinadas providências para restabelecer a prestação de serviços da saúde pública aos indígenas, a resistência de grupos de garimpeiros invasores e seus ataques assassinos as inúmeras comunidades indígenas, para além de gerar enorme preocupação e demandar ações por parte do Ministério da Justiça e das forças de segurança competentes, simboliza um  acinte afrontoso e de extremo desrespeito ao estado democrático de direito e profundo menosprezo à vida dos povos indígenas, sua cultura e forma de se relacionar com a terra e com o mundo. De modo algum, um ideário de morte com raízes fascistas pode subsistir aos alicerces do estado democrático de direito, na defesa da vida humana, do meio ambiente, dos direitos humanos e da justiça social. Este texto possui dados extraído do relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos sobre a Crise nas Terras Yanomami, razão pela qual homenageamos os(as) membros(as) da Comissão que contribuíram para sua elaboração, são eles: Thais Nogueira Lopes, Adriano Braz Caldeira, Roberto Serra Silva Maia e José Araújo de Brito Neto. Estendo as homenagens a toda diretoria e membros da seccional da OAB Roraima. __________ 1 Disponível aqui. Acessado em 03.02.2023. 2 A FUNAI promoveu importante alteração em seu nome passando de Fundação Nacional do índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, renunciando ao termo atribuído aos povos originários pelo colonizador e louvando o pertencimento e origens desses povos. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL - ISA. Terras Indígenas do Brasil. Terra Indígena Yanomami. Disponível aqui. Acesso em 1 fev. 2023. 6 Idem 5. 7 Vale ressaltar que há três Unidades de Conservação sobrepostas na Terra Indígena Yanomami: Parque Nacional (PARNA) do Pico da Neblina (AM), Floresta Nacional (FLONA) do Amazonas (AM) e Parque Estadual Serra do Acará (AM), cujas competências são do ICMBio e SEMA/AM, respectivamente. (Fonte: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL - ISA. Terras Indígenas do Brasil. Terra Indígena Yanomami. Disponível em < https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/4016> . Acesso em 1 fev. 2023.).  8 Disponível aqui.
Na semana passada o artigo de autoria de Dandara Pinho, jogou luzes sobre as violações dos direitos à moradia e de acesso à terra sob a perspectiva dos impactos do racismo estrutural e, em que pese o fato de buscarmos não repetir tema nesta coluna, a recente decisão liminar emanada pelo ministro André Mendonça nos autos da ADPF 342 - que gerou um certo frenesi -,  nos convida a pautar novamente o acesso à terra, só que dessa vez, sob a perspectiva do fenômeno da estrangeirização das terras rurais no Brasil. A ADPF n. 342 foi ajuizada pela Sociedade Rural Brasileira - SRB requerendo a declaração de não recepção pela Constituição Federal, do artigo 1º, § 1º, da lei 5.709, de 7 de outubro de 1971, que institui restrição à aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica brasileira com a maior parte do capital social pertencente a estrangeiros. Vejamos que se trata de uma restrição e não de vedação. A centralidade da discussão é o risco de o Brasil renunciar a qualquer controle sobre o processo de estrangeirização de terras no país e suas consequências no aprofundamento de uma das maiores e mais antigas desigualdades instaladas no Brasil, o acesso à terra, assentindo, assim, com uma nova forma de neocolonialismo, conforme classificam alguns estudiosos. O afrouxamento ou liberação total nesse processo de aquisição de terra,  significa a consolidação da marginalização de grupos populacionais, como os povos originários, os quilombolas e os sem terra, onde sempre vence o mais forte, o mais rico, em detrimento dessa população que historicamente tem seus direitos vilipendiados. O pedido de ingresso do Conselho Federal da OAB na ADPF 342, na condição de amicus curiae, foi aprovado à unanimidade por seu pleno e baseou-se em parecer elaborado pela Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a qual tenho a honra de presidir. O pedido foi deferido pelo relator, Ministro André Mendonça, que na oportunidade concedeu medida liminar pela suspensão de todos os processos jurídicos e administrativos cujo o objeto da demanda se baseie na Lei 5.709/19711. Compreendemos que o dispositivo em questão da Lei 5.709/1971, em aspectos algum conflitua com a Constituição Federal de 1988, pelo contrário,  sua recepção pela Carta magna se dá a medida em que a imposição de restrições vela pela soberania nacional, pela proteção do meio ambiente, das populações rurais, da soberania alimentar, valores estes constitucionalmente assegurados. Necessário destacar que o fenômeno da estrangeirização de terras não é novo e não se concentra apenas no Brasil, mas também, em países cujos fartos recursos naturais chamam a atenção do capital para a exploração predatória desses locais. Em pesquisa minuciosa sobre a estrangeirização de terras no Brasil, o pesquisador e professor Geraldo Neto registrou que2: A partir do ano de 2008, em decorrência da crise financeira (e de alimentos) e do aumento da produção de agrocombustíveis (SAUER, 2010), um fenômeno foi inserido nas discussões da questão agrária: a estrangeirização de terras (FERNANDES, 2011), pois tornou a disputa pela terra um fenômeno global (SAUER, 2010). Desde então, a temática propicia discussões na mídia, na academia, nas funções estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e em atores e sujeitos sociais, como os movimentos sociais e sindicais do campo, o Banco Mundial, as organizações patronais, dentre outros. A professora e geógrafa Lorena Izá Pereira, elaborou conceito adotado na literatura brasileira acerca do tema3: Compreendemos a estrangeirização da terra como um processo de apropriação de terras e de seus benefícios (recursos naturais, água, qualidade do solo, biodiversidade, recursos minerais, entre outros). Tal apropriação pode ser realizada através da compra do imóvel rural, do arrendamento, do contrato de parceria, do contrato de gaveta, das estratégias das corporações em constituírem empresas em nome de terceiros e que possuam uma identidade nacional, das táticas de fusões e joint-venture entre empresas nacionais e transnacionais, das empresas de capital aberto e com ações Free Float1, da concessão pública para a exploração, do uso de superfície, como caso do Brasil que, inclusive, está presente no Código Civil, no Artigo 1.369.  Ainda em sua pesquisa, Geraldo Neto apresenta os conceitos desenvolvido por Sérgio Sauer e Sérgio Pereira Leite (SAUER, LEITE, 2011a; SAUER, LEITE, 2011b) quanto ao termo estrangeirização de terras como um fenômeno associado ao aumento de investimentos estrangeiros na agricultura feitos em articulação com o agronegócio e que vem adquirindo muitas terras na América Latina. Os estudos apontam que a estrangeirização de terras é um fenômeno global e o Brasil tem papel central neste processo, pois atua nas transações globais por terras e seus derivados enquanto alvo do interesse de países e suas multinacionais e na promoção da apropriação destes recursos em outros países (SAUER, BORRAS, 2016:25), como no Paraguai (FERNANDES, 2011) e em Moçambique (PEREIRA, 2014). As consequências negativas do fenômeno, sobretudo para os sujeitos coletivos de direito, quais sejam, os movimentos sociais e sindicais, comunidades indígenas, comunidades remanescentes de quilombo, comunidades rurais e povos tradicionais. Geraldo Neto ainda destaca que o fenômeno da estrangeirização de terras "reforça o neocolonialismo e aumenta a dependência brasileira em relação à economia internacional",  afeta a soberania alimentar e o domínio sobre a produção de alimentos necessários para a sobrevivência da população, isso porque "As transações econômicas que marcam a estrangeirização operam para a produção de poucas commodities", precariza as relações de trabalho no campo, amplia o desemprego com a automação dos processos agroindustriais. E afirma, ainda, que: "O interesse global pelas terras brasileiras causa o aumento no preço das terras gerando impactos na política de reforma agrária, tendo em vista, que as indenizações para ressarcir as desapropriações para fins sociais ficam mais caras, o que provoca o acirramento das disputas territoriais." Como consequência, temos a elevação do preço da terra que provoca o aumento da concentração fundiária, contribuindo, ademais, para a ampliação do monopólio na produção de agroenergias e alimentos. A expansão das fronteiras agrícolas afeta as comunidades rurais e seus territórios, contribuindo, muitas vezes, para a expropriação das populações do campo. É preciso lembrar que o desenvolvimento do Brasil no pós-abolição é marcado por conflitos agrários e pelas disputas de terras envolvendo trabalhadores rurais, pequenos agricultores e o latifundiário. Até os dias atuais o governo brasileiro foi incapaz de fazer uma reforma agrária que diminuísse as desigualdades no acesso à terra. Noutro giro, na busca pela efetivação do direito à terra, estão os povos originários e as comunidades quilombolas, que por décadas permanecem à margem da história no que tange ao acesso a esse direito. Em breve digressão histórica, cita-se a Lei de Terras 601 de 18 de setembro de 1850, aprovada apenas duas semanas após a Lei Eusébio de Queirós4 no período do Império, que instituiu no país a regulamentação do direito de propriedade por meio da compra e venda ou concessão pela Coroa. A lei impedia que os escravizados pudessem adquirir a posse da terra através do trabalho e, em contrapartida, previa subsídios do governo à vinda de colonos do exterior para trabalhar no país. Eis aí um dos fundamentos das desigualdades social e racial brasileira que perpetuou a propriedade nas mãos de quem já possuía quantidade expressiva de recursos econômicos, elevou o preço da terra e impediu que fosse adquirida por meio do trabalho, prejudicando de maneira incalculável os trabalhadores rurais. O processo de não reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas e da negação do direito à propriedade a esses grupos é classificado pela Prof. da UFBA, Tatiana Emília Gomes de racismo fundiário5. Registra-se que nos debates da Constituição de 1946, chegou-se a aventar o reconhecimento dos territórios quilombolas e indígenas, contudo, sob o fajuto argumento da onerosidade que tal política geraria aos cofres públicos, a medida não constou do texto constitucional aprovado. Apenas com a Constituição de 1988, por meio da inserção do Art. 68, nos Atos das Disposições Transitórias (ADCTs) é que se reconheceu o direito à propriedade da terra para as comunidades quilombolas: "Art. 68 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos" Porém, o dispositivo foi regulamentado apenas em 2003, por meio do Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003, que estabeleceu o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. E como se não bastasse a incrível lentidão do Estado brasileiro na promoção e efetivação dos direitos das comunidades quilombolas, o referido Decreto foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo partido Democratas6. A morosidade secular e proposital do Estado na promoção de políticas públicas que viabilizassem às comunidades quilombolas o direito à propriedade de suas terras chega a ser um escárnio de tão aviltante que é, e produz efeitos deletérios materiais e imateriais incalculáveis que subjugam a condição humana e, de vida desses povos que, por vezes, estão a mercê da grilagem de terra e do poderio econômico dos grandes latifúndios.  O Estado tem o dever de zelar pelos direitos e princípios basilares do estado democrático de direito, tais como, a igualdade, a dignidade humana, a construção de uma sociedade livre e solidária e a autodeterminação dos povos conforme disposto nos Arts.1º, 2º e 3º da Carta Maior. E em que pese já haver transcorrido vinte anos da regulamentação desse direito, em 2019, a Coordenação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombola-CONAQ registrou que só cerca de 5% das 3,2 mil comunidades quilombolas reconhecidos no Brasil são demarcados7, verificando-se que a demora para demarcação de terra extrapola o razoável. Já no levantamento da Funai de 2019, haviam 118 territórios no país em diferentes fases do processo demarcatório. Desse total, 74 estão em estágio mais avançado e estão autorizados para serem demarcados, aguardando apenas homologação por meio de decreto presidencial. Registra-se que no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro não houve demarcação de terras indígenas ou quilombolas. Dessa forma, as desigualdades em relação aos povos originários e às comunidades quilombolas precisam ser equacionadas urgentemente e flexibilizar a restrição de aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica brasileira com a maior parte do capital social pertencente a estrangeiros, contida no do artigo 1º, § 1º, da lei 5.709, de 7 de outubro de 1971, seguramente vai na contramão dessa necessidade premente, além de reforçar a marginalização desses povos, acentuando ainda mais desigualdades estruturais. Para além das questões jurídico-processuais e de soberania, há ainda os notórios efeitos prejudiciais da ausência de controle sobre aquisição de terras por empresas de capital majoritariamente estrangeiro, para o Estado e para a sociedade brasileira, conforme pleiteado na ADPF 342, que vão desde soberania alimentar e do domínio sobre a produção de alimentos necessários para a sobrevivência da população, além de ser considerada mais uma forma de neocolonização, em que o país, sem controle sobre essas áreas, delegaria a empresas e Estados estrangeiros a decisão por priorizar atividades agrícolas em detrimento de outras. Por fim, há que se pontuar que a ausência de restrições teria como efeito prático a constituição de empresa brasileira por estrangeiro interessado em adquirir propriedade rural no Brasil, com seu controle acionário, para que, desta forma, pudesse adquirir terras de forma irrestrita, fugindo das limitações legais que lhe seriam impostas caso pretendesse realizar a compra diretamente, sem a intermediação de empresa brasileira equiparada à estrangeira, em evidente burla ao Artigo 190 da Constituição Federal. A OAB tem inscrita em seu DNA (art. 44 do EOAB) a defesa intransigente do estado democrático de direito, da justiça social e dos direitos humanos e, a nosso ver, a estrangeirização ilimitada de terras afronta a garantia da soberania nacional, da ordem econômica, da distribuição de terras, da função social da propriedade, da soberania alimentar e etc. São por essas razões que nossa atuação na ADPF 342 é de fundamental importância. __________ 1 Disponível aqui. 2 NETO, Geraldo Miranda. Estrangeirização de Terras: um estudo da atuação das entidades representativas do agronegócio na disputa normativa sobre a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros. Geraldo Miranda Neto. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, disponível aqui. 3 Idem 1. 4 A Lei Eusébio de Queirós n. 581, de 4 de setembro de 1850, proibiu o tráfico de africanos para trabalho escravo. 5 Disponível aqui. Acessado em 04.03.2023 6 Em 2018,  ADIn 3239 foi julgada improcedente pela maioria de votos (8) e declarou a validade do Decreto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas, porém estabeleceu-se o marco temporal de CF de 1988. Disponível aqui. 7 Disponível aqui.
O direito a moradia no Brasil é tutelado constitucionalmente, devendo ser efetivado pelo Estado através de políticas públicas voltadas para a habitação e para a redução das desigualdades. Na contramão desse direito está o racismo estrutural no Brasil, como engrenagem do sistema gerando segregações e violação de direitos de toda ordem, tais como, a moradia e a dignidade humana. Neste sentido, é de total pertinência analisar tais questões à luz da realidade brasileira, partindo do entendido que a moradia é um direito humano básico. O diálogo, tem origem no fato de que o direito à propriedade é vinculado ao instituto da função social da propriedade a medida em que se limita esse direito à restritas camadas sociais mais abastadas, também gera impacto no desenvolvimento e progresso social e econômico do país, corroborando para o alargamento dos abismos sociais. Segundo Gonzaga; Cunha (2020), para entender o mundo atual, em especial na perspectiva do racismo, se revela necessário olhar para a colonização das Américas e a escravização dos povos originários e negros, pois foram tais processos históricos e políticos que construíram as estruturas das sociedades modernas e seus valores. No caso do racismo e inferiorização de raças, tem-se que, a partir da colonização do país se produziu a racialização dos corpos, estabelecendo-se hierarquias raciais, que até hoje determinam quem pode viver e quem deve morrer (MBEMBE, 2011). Neste contexto, a pseudociência eugenista do determinismo biológico, oferece as bases do "direito de matar", na desumanização dos corpos o negro, na promoção violência racial-colonial e intersecciona-se à violência de gênero atingindo objetivamente as mulheres negras em inúmeras dimensões da vida. No Brasil, assim como em outros países de colonização europeia, houve a subjugação de determinadas raças, para fins capitalistas, tais como, econômicos e políticos. Assim, desde a história de sua colonização o Brasil traz consigo uma herança de escravismo e objetivação de raças. Gonzaga; Cunha (2020) advertem ainda que essa herança se projeta fortemente no presente, em que o racismo estrutural e institucional faz parte da sociedade brasileira, através da ideologia do branqueamento. Entre os anos de 1845 e 1850, duas leis importantes para compreensão das desigualdades atuais foram implementadas no Brasil, Lei Bill Aberdeen (1845) e Lei Eusébio de Queirós (Lei n. 581, de 4 de setembro de 1850), essa última proibindo o tráfico de escravos. No entanto, preocupados com o acesso dos povos até então escravizados aos direitos de todos os cidadãos, após duas semanas da instauração da Lei Eusébio de Queirós foi criada a Lei de Terras (lei n. 601, de 18 de setembro de 1850), como uma resposta da elite agrária do país para que os escravos acreditassem serem detentores de direitos. A aludida lei dispôs normas sobre a venda, a posse e a utilização de terras a partir do Segundo Reinado, tendo sido criada como forma da manutenção da concentração agrária nas mãos de poucas pessoas privilegiadas, favorecendo os grandes proprietários rurais, tendo em vista que tornou a compra/venda como única maneira de acesso à propriedade de terra, passando a assumir o status de propriedade privada. A problemática apresentada, revela que o acesso a moradia para a população negra não é problema atual, sendo que Costa e Azevedo (2016) afirmam que essa falta de acesso a moradia e propriedade pelos escravizados negro, desde a época colonial, são os marcos fundante da situação atual, que lança à condição de invisibilidade toda população negra na sociedade brasileira. Fazendo com que essa população migrasse das senzalas para as favelas e comunidades. Santos e Silva (2018) apontam que até os dias atuais a escravidão é a grande questão do Brasil, apontada por uns como uma instituição arcaica que atrapalhava o desenvolvimento econômico e social do país, sendo ainda um empecilho à imigração europeia. Com o fim do sistema escravista e a abolição inconclusa, o problema passou a ser o destino da população negra e seus descendentes, herdeiros apenas do espólio da escravidão e das teorias racistas eugenista que até hoje fustigam a existência negra nesse país. Para os autores, isso demonstra a necessidade ações que visem mudanças concretas na realidade, ainda de negação de direitos a negros e indígenas. Importante neste contexto ressaltar que os povos indígenas também são vítimas desse preconceito que ainda vigora na sociedade brasileira contemporânea:  Cor, raça e preconceito no Brasil compõem o plexo de concepções para o enfrentamento das questões raciais e de seus desdobramentos nocivos na formação de crianças e adolescentes, por meio da construção de uma nova forma de se pensar a formação da nação e da nacionalidade. Em todo plexo, é notória a interpretação do fato de o Brasil ser constituído da maior população negra fora do continente africano e isso não dar uma visibilidade - positiva - à cultura afro-brasileira, e, por conseguinte, ao negro. Muito frequentemente, este aparece como um problema social: sua condição, o lugar que ocupa na escala social seria resultado de problemas estruturais do país, e não do preconceito, ou somente de seu passado escravista - como defendiam as teses dos autores da escola paulista desde a década de 1950, conforme apontaremos no decorrer do texto. (SANTOS; SILVA, 2018). Antes de se explanar acerca do racismo estrutural, se revela importante entender alguns conceitos correlacionados, assim como se deve distingui-los. Batista (2018) traz a definição de racismo como uma forma dentro de um sistema de discriminação que se fundamenta na raça e se manifesta por meio de determinadas práticas, que muitas vezes pode ser inclusive inconscientes, e que trazem como consequência desvantagens ou privilégios, de acordo com o grupo racial na qual se esta inserido. Com relação ao conceito de propriedade, Sá (2019) pontua que a propriedade pode ter vários conceitos, dependendo do enfoque, e no presente caso como o que interessa é o aspecto jurídico o conceito de propriedade vai ser discorrido sobre o enfoque jurídico, legal e constitucional, e em seus aspectos contemporâneos e atrelado a função social. Ainda com relação ao conceito de propriedade, pode se refletir em variados conteúdo ou estatutos que exercem influência na relação entre os diversos objetos e sujeitos sobre os quais podem recair o domínio e a titularidade dos direitos, tal como a propriedade material, que abrange e a propriedade dos bens móveis e a propriedade dos bens imóveis, ou a propriedade imaterial, que abrange a propriedade literária e artística, a propriedade industrial, entre outros. Assim, para o autor, verifica-se que a propriedade não possui um conceito único, porém nos tempos contemporâneos o conceito de propriedade abrange sempre usar, gozar e dispor e deve ser exercido através de sua função social. Portanto, o conceito de propriedade esta intrinsecamente ligada à sua função social. A propriedade, bem como sua função, sofreu modificações ao longo da história, e assim o foi também com o seu conceito, que sofreu modificações, principalmente após ser atrelado ao conceito de função social. Até então o direito a propriedade era absoluto, e isso se refletia em seu conceito, no entanto, com as modificações trazidas ao direito de propriedade privada, inclusive com sua relativização, o seu conceito também passou a ser relativizado. Não é exagero afirmarmos que a propriedade nasce junto com o indivíduo, quase como algo inato do ser humano. Mais do que como um fenômeno jurídico, podemos caracterizá-la como um fenômeno social, por sua vez abraçado pelo Direito. O conceito de propriedade desenvolve-se quase que conjuntamente com a transição da fase do homem selvagem para a do homem sedentário, quando a civilização assenta-se sobre determinados espaços físicos, retirando da terra seu sustento e valores (ASSIS, 2008). Ao se falar em direito a propriedade, Sá (2019) faz referência aos diversos direitos que formam o patrimônio de um indivíduo, ou seja, todas as situações jurídicas que envolva uma ingerência socioeconômica, sendo, portanto, a propriedade uma ideia ampla, não se limitando a titularidade do indivíduo sobre um bem mas sim a todas relações jurídicas advindas dessa propriedade. Para Cruz (2015), a propriedade é um dos temas mais representativos da história do Direito, sendo ela um pilar de identificação do indivíduo moderno por compreender em si um indicador de poder econômico e político do homem. Portanto, sua importância esta ligada intimamente ao poder de um homem, pelo menos em uma sociedade capitalista. Para Sahd (2007, p. 220), se a humanidade tem o poder de amealhar os recursos naturais para a sua sobrevivência, esse poder só se converterá num verdadeiro direito quando for capaz de criar um efeito moral sobre o resto dos homens sem que com isso venha a causar danos irreparáveis e disputas sem fim. A propriedade privada é fruto de um longo processo histórico, e é intimamente ligada ao capitalismo, porém reconhecida como direito natural e fundamental do homem. O status quo ao qual é lançado o homem que é proprietário de um bem, aliados a outros fatos que agregam valor, faz com que a propriedade privada passe a se revestir de relevante significado, passando a ser um direito e uma necessidade de toda a humanidade, ou pelo menos naquelas capitalistas. A Constituição Federal de 1988 cristalizou avanços no conceito de propriedade privada e do cumprimento de sua função social, assegurando a propriedade privada (art. 5º, XXII), mas condicionando-na a garantia do bem-estar social, dispondo que a propriedade rural atenderá à sua função social (art. 5º, XXIII), dirigida à justiça social, quando atender aos requisitos do artigo 186 da Constituição Federal. (MATIAS; SANTOS, 2009, p. 03). O direito a moradia no Brasil pode se traduzir como o direito de ter um lar, uma moradia, seja ela própria ou alugada. Matias; Santos (2009) esclarecem que a Declaração Universal dos Direitos Humanos ocorrida em 1948 trouxe o direito a moradia como um direito fundamental, e sendo o Brasil um país signatário de tal instrumento internacional, assina embaixo do que diz a Declaração dos Direitos Humanos e em consequência o direito à habitação. Importante ainda ressaltar que o Brasil participou de outras declarações e Pactos, como o pacto internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado em 1996 e que orienta e reconhece o direito de toda pessoa ter acesso a direitos como alimentação, vestimenta e moradia adequados. No Brasil direito como propriedade, moradia e dignidade fazem parte dos direitos fundamentais, previstos em Constituição. Tais direitos, mais que um fenômeno legal é um fenômeno social e político. Com isso passou tais direitos a ser chancelados pelo ordenamento jurídico do Brasil, que desde a sua primeira Constituição Federativa já contemplava a propriedade privada e o direito à propriedade, porém nos moldes da época. Importante esclarecer que o direito a moradia esta atrelado fortemente a outros direitos do homem garantidos constitucionalmente, como o da dignidade humana. Realizado os principais esclarecimentos a respeito da propriedade e do direito do homem à mesma, passar-se-á no capítulo seguinte a discorrer-se sobre o racismo institucional no Brasil. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tornou-se impossível falar em direito à propriedade sem falar na função social da propriedade, tendo inclusive o próprio conceito de propriedade sofrido alterações após o advento da referida Carta Magna. Isso porque o conceito de propriedade foi atrelado à sua função social, sendo desta indissociável. Com o advento da referida Lei Maior o direito à propriedade restou relativizado de forma normativa e efetiva. O artigo 173 da Carta Magna traz diversas limitações ao direito de propriedade, demonstrando com isso que tal direito não é absoluto, devendo em tempos contemporâneos estar de acordo com a função social, ou seja, com os interesses da coletividade, além de estar de acordo também com os interesses do Estado. Importante ressaltar ainda que a Constituição Federal de 1988 serviu como parâmetro para a confecção do novo Código Civil (CC) ao também determinar que a propriedade deve voltar-se para o bem comum. O instituto da função social, cuja previsão é constitucional, veio a limitar e relativizar o direito à propriedade, atrelando este direito a função social da propriedade. Não que anteriormente não existisse uma relativização, mas não nos moldes propostos pela atual Carta Magna, que trouxe a previsão expressa em seu art. 5º, XXIII. O argumento para tal previsão expressa foi o baseado na nova noção de sociedade e coletividade, em que os direitos e interesses coletivos devem sempre prevalecer sobre os individuais. A função social acaba por reforçar a tese da dignidade da pessoa humana na medida em que só se obterá a plenitude da dignidade com a efetividade da justiça social, e esta só será alcançada, entre outros, com o instituto da função social da propriedade. A função social deve ser buscada pelo Estado, e só gozará com sua proteção aquele que respeitar esses fundamentos dando a sua propriedade uma função social, ou seja, no interesse da coletividade. Tem-se então que a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade são institutos intrinsecamente interligados. Em conclusões transitórias, consegue-se perceber que não há estruturalmente, discussão no que tange a política pública que dialogue na lacuna criada entre a abolição da escravidão no Brasil e a inserção das pessoas recém libertas formalmente com a democratização da terra.
Em janeiro de 2017, após supostamente um conflito faccional, 27 (vinte e sete) sobreviventes do cárcere vieram a óbito, tal episódio ficou conhecido como Massacre de Alcaçuz, um morticínio em massa provocado em uma unidade prisional do Rio Grande do Norte. Este episódio reverberou em uma missão de retorno do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura - MNPCT que entre outros pontos rememorou o fato de que no ano de 2015 - 60 (sessenta) sobreviventes do cárcere vieram a óbito na unidade de Alcaçuz e que em 2017, ano do massacre, estava mantido e agravada a situação de superlotação, a omissão deliberada do Estado, sobretudo na garantia ao direito à vida e demais direitos das pessoas presas, além da prática de tortura, de transferências irregulares, mortes e desaparecimento forçado de presos. Cabe rememorar que da inspeção e das recomendações feitas no ano de 2017 pelo MNPCT apenas 1 (uma) foi cumprida de 73 propostas, e desde aquele momento questões como visita e fornecimento de água apenas três vezes ao dia durante 30 (trinta) minutos já estavam patentes. No entanto, o que se percebe é o não atendimento da plataforma de direitos humanos seja em 2015, 2017 ou este ano, e em contrapartida o fomento de uma plataforma que criminaliza a luta pela afirmação histórica dos direitos mínimos das pessoas privadas de liberdade e tem por função a neutralização dos corpos negros e pobres que habitam o sistema carcerário potiguar. Ocorre que recentemente um suposto grupo criminoso veio a público através de vídeo apresentar uma agenda, requerendo do Estado direitos mínimos para a sobrevivência no cárcere, dentre eles: visita íntima de 15 em 15 dias, 4 visitas por mês, banho de sol pelo menos de 2 em 2 dias, televisão nas celas, luz dentro das celas, combate a tortura, aumento de horário de visitas para 4h e vedação de superlotação nas celas. Estes pleitos possivelmente motivaram mais de 300 ataques promovidos pelo crime organizado no estado do Rio Grande do Norte, contudo a pergunta que insiste em ecoar pelos ouvidos dos que ainda pulsam humanidade é: mas será que estes pleitos já não deveriam ter sido atendidos desde 2014, evitando-se mortes e sofrimento? A pergunta subjacente seria: insistir em mais securitização e neutralização destes sujeitos racializados, não promovendo condições dignas para a vida humana, violando diversos preceitos e garantias fundamentais, precipuamente a Lei de Execução Penal - LEP e as Regras de Mandela, está funcionando? Se sim, para quê? E para quem? Se a função da execução penal, conforme prevê o art. 1º da LEP é a integração harmônica social do recluso, qual seria a função da execução penal potiguar? Estas perguntas ensurdecedoras demonstram um completo fracasso, ou sucesso nos termos foucaultianos de eficácia invertida do sistema penal, pois se a única solução apontada para o Massacre de 2017 foi indiciar 74 presos por homicídios, mantendo e consequentemente aumentando a população carcerária, este ano a solução apresentada pelo governo federal foi a entrega de mais fuzis, pistolas, coletes, drones, viaturas e R$ 135 milhões para a compra de mais viaturas e armamento. Vale destacar outros dados do relatório do MNPCT, que foi publicado este ano e possui presunção de veracidade. O documento informa que em Alcaçuz de 1.846 custodiados - 83% são negros e 64% possui ensino fundamental incompleto, que em todas as celas havia ao menos um recluso com marcas de tortura e que o fornecimento de água que antes era 3 (três) vezes ao dia durante 30 minutos, agora padece de apenas 3 (três) vezes ao dia durante 20 minutos. Além disto desde o início dos ataques 150 prisões foram feitas, aumentando ainda mais a malha carcerária. Almejando ir para além da paralisia de um estado de coisas, faz-se importante suscitar quais soluções poderiam de fato enfrentar os problemas estruturais e institucionais que o sistema carcerário do Rio Grande do Norte suporta. Neste sentido se faz fundamental ter a implementação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura do estado do Rio Grande do Norte, proposta suscitada desde 2015 e que até o presente momento não teve implementação. Outrossim, parafraseando Alessandro Baratta e Vera Malaguti, deve-se endossar mais a segurança dos direitos e menos direito à segurança, do contrário se está fomentando uma guerra do nós contra eles, que ao fim ao cabo se trata de criminalização da pobreza e dos corpos pretos, instante em que para este determinado grupo é preferível punir ainda que ilegalmente do que fomentar políticas públicas de promoção à saúde, ao trabalho e educação Cabe mencionar que outras propostas foram apresentadas pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, contudo o epicentro do debate permanece: até quando a categoria facção criminosa, crime organizado, PCC e Sindicato do Crime podem servir pelo poder pública para construção de um estado de exceção que em nome do combate a estes espantalhos promove tortura, maus-tratos e morte?
Cidades não aparecem de repente. Bairros, comércios, escolas e as pessoas que os ocupam, não aparecem de repente. Nem hábitos, tão pouco vícios, qualquer um. Se assim é, também não desaparecem de repente. Sociedades, por pior que sejam, carregam sua história e dela nunca conseguirão se livrar, seja boa ou ruim.  A violência, como um sintoma distorcido da realidade urbana, atinge os cidadãos de forma a alterar-lhes o comportamento. O medo produz alterações físicas, emocionais e psíquicas que se revelam socialmente em entender o outro como possível agressor. O medo decai a qualidade de vida e agrava-se se for transformado em raiva, pois esta se manifesta em (re)ações agressivas. Portanto, não é demais concluir que uma cidade violenta produz mais violência. Certa parcela de homicídios, lesões corporais, corrupção, depredações furtos, entre outros tipos penais, pode ser creditada ao estado caótico das cidades. Assim, se parte significativa da violência existente nas cidades tem como causa ou consequência questões ligadas diretamente à dinâmica da gestão urbana é de fundamental importância trazer esse recorte a qualquer projeto (político, jurídico, econômico, ambiental, social, etc.). Considerando que 85% da população brasileira vive em cidades (PNAD, 2.015), ao menos esse percentual vive uma rotina de violências generalizadas, sejam concretas (físicas, materiais), sejam abstratas (olhares, silêncios, faces franzidas, negativas de empatia). O empobrecimento da população brasileira, com agravamento da condição econômica face o cenário trazido pela pandemia de covid-19, levou novos contingentes da sociedade a viverem em situação de rua.  Morar na cidade é algo cada vez mais dispendioso, o que tem ocasionado uma retração significativa na qualidade de vida de uma parcela da sociedade. Moradores em situação de rua hoje compõe um coletivo complexo cujas origens vão de famílias despejadas, trabalhadores empobrecidos que não conseguem custear seus transportes e retornar as seus lares cotidianamente, pessoas que fogem da violência de seu núcleo familiar e social, pessoas com problemas de distúrbios mentais e também dependentes químicos, não excluindo outras possibilidades. São pessoas que perambulam pela cidade procurando lugares para estar. Aqui está presente o direito de estar, somado aos direitos de ir e vir. Dependendo de sua origem, estão em grupo, maior ou menor, ou isolados. Procuram abrigo do tempo. Os três "A" também podem ser trazidos aqui: água, abrigo e alimento que explicam sua concentração em determinados lugares da área urbana, como os centros. Com o aumento de uma população em situação de rua nesses últimos anos assistiu-se a uma crescente tendência à instalação de elementos rijos e pontiagudos embaixo de pontes, marquises, praças e seus bancos, áreas limítrofes entre calçadas e prédios que obstruem e impossibilitam que haja acesso e permanência a esses espaços. Ficam ocupados por tais elementos e não mais por pessoas. Uma forma de afastá-las desses locais. Uma mensagem direta demonstrando que são indesejadas. Nesse recorte, foi promulgada recentemente a lei 14.489, de 2022,  proibindo a chamada "arquitetura hostil", que emprega estruturas, equipamentos e materiais com o objetivo de afastar as pessoas - sejam moradores de rua, jovens ou idosos, por exemplo - de praças, viadutos, calçadas e jardins.  Essa técnica, segundo o texto, é caracterizada, justamente, pela instalação de equipamentos urbanos como pinos metálicos pontudos e cilindros de concreto nas calçadas com objetivo de afastar pessoas, principalmente aquelas em situação de rua (Fonte: Agência Câmara de Notícias). Referido texto alterou a lei federal nº 10.257/01, Estatuto da Cidade, com a inclusão de um inciso no artigo 2º, conforme texto abaixo: Art. 1º Esta Lei, denominada Lei Padre Júlio Lancelotti, veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público. Art. 2º O art. 2º da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 2º .................................................................................................. .......................................................................................................................... XX - promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de arquitetura hostil que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população." (NR) Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.  Apesar de parecer uma alteração diminuta, muito há que se refletir a respeito, de maneira que o disposto acrescido seja plenamente efetivo. Inicialmente, é fundamental trazer o foco para o locus, qual seja, os espaços livres de uso público, incluindo suas interfaces com os espaços de uso privado. Nestes termos, estão excluídas construções das edificações per si, públicas ou privadas, nos seus usos próprios e particulares. Se por um lado há argumentos que tais locais que passam por essa intervenção têm o intuito de evitar sujeira, detritos, distúrbios em geral, por outro não é possível afastar o elemento fulcral constitucional, disposto no artigo 3º, III, que traz como objetivo fundamental da República a erradicação da pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Também vale lembrar que o objetivo de toda a política urbana é o bem-estar dos habitantes (art. 182) e que todos têm direito ao meio ambiente (urbano) ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225). Diante do cenário aqui relatado e bem sabido por todos nós, a população em situação de rua procura lugares urbanos que possam proporcionar satisfação às suas necessidades mínimas (longe afirmar que conseguem ou que sejam dignas). Nesse ponto, importante frisar que os municípios não ofertam abrigos ou politicas públicas suficientes ou adequadas para que não permaneçam em situação de rua mesmo que emergencialmente. Quanto às políticas públicas que eliminem a necessidade de permanecer nas ruas, estão muito longe da eficiência e efetividade.  Os programas habitacionais historicamente correm atrás de números e dificilmente efetivam o direito maior, o direito à moradia. Importante frisar que moradia é competência comum da União, Estados e Municípios, está inserido no art. 6º como direito social e deve ser lastreado em políticas de Estado e públicas. Não se prestam à discricionariedade estatal quanto ao motivo. Quanto às outras formas de acolhimento, o que tem sido noticiado nos últimos tempos são as internações forçadas aos usuários de drogas, em um retrocesso dos marcos atingidos a esse segmento deixando claro que a exclusão desses cidadãos do cenário urbano é o ponto central. Quanto às políticas de combate à violência domestica, o suporte aos vulneráveis economicamente, o suporte aos portadores de doenças mentais, praticamente inexistem, dependendo de organizações e iniciativas sociais que se voluntariam e tentam formar uma rede de apoio aos necessitados. O que se mostra muito claro é que a política urbana aplicada não tem sido adequada à população que mais necessita dela, com estado de vulnerabilidade de toda a ordem. Sem dúvida, o aumento da pobreza da população e os desajustes familiares e sociais não são o objeto de um Plano Diretor e demais planos e leis que o complementam, mas também não há dúvida que as consequências recaem imediatamente sobre os (des)ajustes que um plano urbanístico traz à urbe. Não à toa, a ONU declarou que o direito à cidade é direito humano e deve ser compreendido como um contexto complexo e particular à cada localidade de maneira a trazer a garantia da satisfação das necessidades básicas de sobrevivência da população. Na sociedade urbana brasileira há um estado de colapso das políticas sociais somado aos argumentos de uma lógica liberal de menos valia que a presença dessas pessoas traz ao local onde estão. Uma equação perversa que subtrai eventuais possibilidades de redução das vulnerabilidades pela propagação da sociedade do medo. É fundamental lembrar que uma sociedade não é divisível na prática, apenas na teoria. A redução das diferenças indesejadas e indignas que recaiu sobre a população brasileira beneficia a toda a sociedade, reduz a violência, insere um contingente enorme no tecido social, legal e econômico. Gera cidadãos produtivos e, por isso, combater a arquitetura hostil é parte de um projeto maior, de um Brasil melhor. Não só. Segundo o Relatório Brasileiro para o Habitat III ( Brasília: ConCidades, IPEA 2016, p.77) é necessária a construção de políticas públicas universais, mas com focalização nos territórios intraurbanos, como estratégia significativa contra a violência. Iniciativas nesse cenário, em particular, já existiram em nossa história recente, como a resolução nº 110 de 6/4/2010 do CNJ que institucionalizava o Fórum de Assuntos Fundiários, de caráter nacional e permanente, destinado ao monitoramento dos assuntos pertinentes a essa matéria e à resolução de conflitos oriundos de questões fundiárias, agrárias ou urbanas (revogada em 26/03/21, pela resolução nº 384). É urgente redirecionarmos os esforços dos Poderes Estatais, assim como de toda a sociedade, para um discurso de pacificação social, de integração, de auxílio, de compartilhamento de ideias, ações, programas e orçamentos. Decifrar a logica de ocupação do território, palco permanente dos mais terríveis conflitos, urbanos e rurais, dar voz à população e ter coragem para decidir na contramão dos mecanismos consagradores de perpetuação das diferenças abissais é caminho inafastável para o país estruturar um alinhamento de crescimento de seu PIB Humano. Urge voltarmos à Constituição Federal para retomarmos o caminho da edificação de uma nação voltada para toda a sua população, enfim.