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Direitos Humanos em pauta

Pontos de vistas plurais sobre temas pujantes e atuais no campo dos direitos humanos no Brasil e no mundo.

Silvia Souza
Há pelo três meses o governo federal iniciou uma ação estratégica para  a retirada de ordas de garimpeiros das Terras Yanomami situadas em grande parte no Estado de Roraima, na ocasião o Brasil e o mundo havia sido impactados pelas imagens chocantes retratando uma comunidade Yanomami, do estado de Roraima, com aspecto físico cadavérico decorrente da desnutrição agudizada1. Importa lembrar que a eleição do presidente Lula, a criação do Ministério dos Povos Indígenas que está sob a direção de uma mulher indígena, a Ministra Sônia Guajajara, a retomada da FUNAI2 por esses povos, simbolizada na presidência da instituição por outra mulher indígena, a ex-deputada e advogada, Joênia Wapichana, representou não só para os Yanomami, mas como para todos os povos originários, comunidades tradicionais do Brasil, a sinalização de uma mudança radical nas política públicas de toda ordem para essas comunidades. Desde políticas que garantam o direito essencial à vida e à existência - na mais ampla acepção do termo - a políticas que garantam o seu direito à terra, à alimentação humana nutricional e à propriedade. O referido anúncio do plano estratégico para retirada de garimpeiros repercutiu nacionalmente e fez com que grupos de garimpeiros se retirassem da terra voluntariamente3, contudo, recentes notícias demonstram que ainda há inúmeros grupos de garimpeiros nos territórios Yanomami fortemente armados e que não só resistem às ordens de saída, como estão atacando comunidades e assassinando indígenas desarmados e desprotegidos. No último dia 29, uma indígena Yanomami, de 36 anos, morreu e outros dois, de 24 e 31 anos, foram baleados por garimpeiros ilegais na comunidade Uxiu, dentro da Terra Indígena Yanomami4. É demasiadamente importante que àquela crise - deflagrada pelas imagens que citamos acima - não caia no esquecimento e que a sociedade exerça seu poder de fiscalização para acompanhar e exigir a continuidade do processo de retomada das terras indígenas por quem lhe é de direito: o próprio povo indígena. Faz-se necessário rememorar que as citadas imagens deflagraram formalmente a Crise Humanitária dos Povos Yanomami e que chegou ao conhecimento do mundo por meio de denúncias de associações indígenas como a Urihi Associação Yanomami, presida Junior Hekurari Yanomami. Porém, após visita no território, podemos verificar que essa crise já estava instalada há um bom tempo e vinha sendo sistematicamente denunciada por organizações como o CIR - Conselho Indígena de Roraima, o ISA - Instituto Socioambiental, entre outras organizações e associações de indígenas e indigenistas. As imagens dão conta de adultos em grave estado desnutricional, e, também, inúmeras crianças e adolescentes na mesma situação terrível. Frisa-se que os corpos esqueléticos denunciavam um quadro de desnutrição agudizada - fase da desnutrição crônica em que um indivíduo pode chegar a pesar menos de 25% do peso ideal para sua estatura e idade e que leva-se meses para ser atingida, de modo que o abandono daqueles povos por meio ação ou omissão, em especial as políticas de saúde pública, assistência e nutrição era patente e decorrente de um processo de anos. As denúncias das organizações indígenas associam o grave quadro de fome e sede ao abandono estatal das políticas de saúde e nutrição da população indígena, de preservação do meio ambiente, bem como a facilitação e incentivo ao garimpo ilegal e armado em suas terras, tanto por parte do governo federal, do então presidente, Jair Bolsonaro, quanto do governo do estado de Roraima, cujo o governador Antonio Denário foi reeleito. A Urihi Associação Yanomami afirma que a degradação contínua ao meio ambiente, envenenamento, aumento da violência dentre outras atrocidades  que os povos indígenas têm vivenciado são consequências das atividades do garimpo naquela região. As denúncias mobilizaram a OAB Nacional e da seccional de Roraima, e a pedido de seu presidente, Dr. Ednaldo Vidal, estive em visita especial, durante o período de 30.01 a 02.02.2023, para diagnóstico e relatoria em nome da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, no mesmo período estiveram também, membros do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. E durante essa visita foi possível conhecer o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Yanomami), a sede da FUNAI de Boa Vista,  Casa de Apoio à Saúde Indígena -CASA, a equipe de secretários e secretárias do Governo do estado relacionadas a alguma política indígena, além do CIR - Conselho Indígena de Roraima, bem como participar de um processo de escuta ativa organizado pelo MDHC reunindo aproximadamente 20 lideranças indígenas que se comunicavam em diferentes línguas. Os Yanomami ocupam, juntamente com 7 (sete) outros povos (Isolados da Serra da Estrutura, Isolados do Amajari, Isolados do Auaris/Fronteira, Isolados do Baixo Rio Cauaburis, Isolados Parawa'u, Isolados Surucucu/Kataroa, e Ye'kwana), um território de 9.665 hectares de terras, entre os Estados do Amazonas e Roraima "5, além da fronteira Brasil-Venezuela na região do interflúvio Orinoco - Amazonas (afluentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro) cuja homologação da Terra Indígena Yanomami ocorrera em 25 de maio de 1992. Conforme os dados do SESAI/DSEI Yanomami em 2019, o território é habitado por 26.780 (vinte seis mil setecentos e oitenta) indígenas, vivendo em cerca de 200 a 250 aldeias. Destaca-se que não há dados atualizados da política de saúde pública indígena desde 2019 e que, segundo a coordenação do COE- Yanomami (Centro de Operações Emergências criado pelo Ministério da Saúde), com quem dialoguei na ocasião da visita, notou-se determinada inconsistência  por parte do poder público na guarda de documentos e atualização dos dados.  De modo que, são necessárias providências urgentes por parte do governo federal para atualização dos dados, visto sua fundamental utilização para elaboração de novas políticas para saúde pública indígena. Além do abandono as políticas de saúde pública para indígenas nos anos anteriores, as a Terra Indígena Yanomami possui 453 (quatrocentos e cinquenta e três) processos minerários na região6, que além da exploração ilegal não somente de garimpeiros, também é vítima de caçadores, pescadores e fazendeiros.7 Por fim, ao término da visita especial e da análise de todas as informações que foram possíveis de serem coletados  o relatório da CNDDH-CFOAB apresentou inúmeras conclusões, dentre as quais destacamos: A flagrante negligência do Governo Federal anterior e do Governo do Estado de Roraima em relação à assistência de saúde pública para os indígenas Yanomami, vez que houve inúmeras denúncias realizadas  Ministério Público Federal em Roraima. E a meu ver, o momento que mais ilustra e sintetiza tal negligência, negação e omissão ocorreu na reunião com o governador do Estado, Antonio Denarium, no dia 30.01, onde ele afirmou categoricamente que "Roraima tem o melhor e maior programa de segurança alimentar indígena já visto", além de juntamente com todo seu corpo de secretariado afirmar desconhecer qualquer situação de desnutrição dos povos Yanomami anterior às imagens divulgadas. Ainda que Roraima tenha um programa alimentar que alcance os indígenas cadastros e residentes em áreas urbanizadas, a fala do governador diante das imagens de corpos esqueléticos, há meses, quiçá, anos sem alimentação nutricional adequada soou como  deboche e menosprezo às inúmeras vidas de indígenas que foram perdidas e outros que estavam em vias de morrer por desnutrição acarretada de doenças evitáveis. Causa-nos profunda tristeza e sentimento de desolação coletiva constatar que em verdade havia um projeto de mortalidade dos povos Yanomami em curso, pelas vias implícitas do governo do estado e do governo federal.  Além disso, destacou-se o incentivo descarado ao garimpo em terras indígenas, inclusive, por vias legais (edição de leis posteriormente reconhecidas inconstitucionais), e que discursivamente facilitaram a entrada de invasores armados. Faz-se também, oportuno relembrar o cunho da política armamentista  implantada pelo governo federal de Jair Bolsonaro a partir de 2019. De acordo com o Instituto Sou da Paz, nos últimos quatro anos foram aprovadas mais de 40 novas regras que facilitaram o acesso à armas no Brasil8, somente em 2019 cerca de 994 milhões de munição foram vendidas. Além disso, os limites foram alargados de forma exacerbada permitindo a aquisição de até 06 armas por pessoa e 1.200 munições por ano e todos os dias mais de 1.300 armas são compradas por civis. De modo que, é inegável que a política armamentista municiou os garimpeiros para as invasões nas Terras Yanomami. Concluímos que as graves e generalizadas violações de direitos humanos deflagradas contra os povos indígenas, violam direitos fundamentais, insertos na Carta Magna e representam afrontas gravosas a princípios e direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF/88), os direitos à vida (art. 5º, caput), à  alimentação humana adequada (art. 6º caput), à saúde (art. 6º e 196), e o direito dos povos indígenas a viverem em seu território, de acordo com suas cultura e tradições (art. 231). Não obstante, se confirmadas as omissões e a responsabilidade do chefe do Poder Executivo federal anterior, nos processos investigatórios instaurado, poder-se-á caracterizar o crime de genocídio disposto na Lei n. 2.889/1956, na "intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso", por meio de atos como: "matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo".   E ainda, em consonância  com a dogmática do Direito Penal Internacional vislumbra-se a possibilidade de subsunção dos fatos aos crimes contra a humanidade. A categoria está abarcada no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (art. 7º), internalizado pelo Decreto 4.388/2002, e que ainda não foi tipificada em nosso ordenamento jurídico brasileiro. Uma das recomendações da Comissão Nacional de Direitos Humanos foi o pedido de ingresso, na qualidade de amicus curiae, na ADPF n. 709, ajuizada pela Articulação dos povos indígenas do Brasil - APIB e outros buscando a adoção de providências relacionadas ao combate à pandemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros, como a instalação de barreiras sanitárias para a proteção das terras indígenas dos povos de Yanomami, a retirada dos invasores nas referidas terras, a prestação de serviços do Subsistema de Saúde Indígena do SUS aos indígenas, inclusive aos não aldeados, a elaboração de plano de enfrentamento do COVID-19 e o cumprimento integral deste. É fato que para os centros urbanos o contexto da Covid-19 está superado, no entanto, os povos Yanomami vinham sucumbido até a morte por doenças menos graves e evitáveis como a malária, verminose, pneumonia e a desnutrição, fazendo com que a referida ação, que é de relatoria do Ministro Roberto Barroso, não perdesse o objeto. Embora no curso da referida ação, seu relator tenha concedido parcialmente medida liminar para a instalação de barreiras sanitárias no território e o governo federal atual tenha tomado determinadas providências para restabelecer a prestação de serviços da saúde pública aos indígenas, a resistência de grupos de garimpeiros invasores e seus ataques assassinos as inúmeras comunidades indígenas, para além de gerar enorme preocupação e demandar ações por parte do Ministério da Justiça e das forças de segurança competentes, simboliza um  acinte afrontoso e de extremo desrespeito ao estado democrático de direito e profundo menosprezo à vida dos povos indígenas, sua cultura e forma de se relacionar com a terra e com o mundo. De modo algum, um ideário de morte com raízes fascistas pode subsistir aos alicerces do estado democrático de direito, na defesa da vida humana, do meio ambiente, dos direitos humanos e da justiça social. Este texto possui dados extraído do relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos sobre a Crise nas Terras Yanomami, razão pela qual homenageamos os(as) membros(as) da Comissão que contribuíram para sua elaboração, são eles: Thais Nogueira Lopes, Adriano Braz Caldeira, Roberto Serra Silva Maia e José Araújo de Brito Neto. Estendo as homenagens a toda diretoria e membros da seccional da OAB Roraima. __________ 1 Disponível aqui. Acessado em 03.02.2023. 2 A FUNAI promoveu importante alteração em seu nome passando de Fundação Nacional do índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, renunciando ao termo atribuído aos povos originários pelo colonizador e louvando o pertencimento e origens desses povos. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL - ISA. Terras Indígenas do Brasil. Terra Indígena Yanomami. Disponível aqui. Acesso em 1 fev. 2023. 6 Idem 5. 7 Vale ressaltar que há três Unidades de Conservação sobrepostas na Terra Indígena Yanomami: Parque Nacional (PARNA) do Pico da Neblina (AM), Floresta Nacional (FLONA) do Amazonas (AM) e Parque Estadual Serra do Acará (AM), cujas competências são do ICMBio e SEMA/AM, respectivamente. (Fonte: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL - ISA. Terras Indígenas do Brasil. Terra Indígena Yanomami. Disponível em < https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/4016> . Acesso em 1 fev. 2023.).  8 Disponível aqui.
Na semana passada o artigo de autoria de Dandara Pinho, jogou luzes sobre as violações dos direitos à moradia e de acesso à terra sob a perspectiva dos impactos do racismo estrutural e, em que pese o fato de buscarmos não repetir tema nesta coluna, a recente decisão liminar emanada pelo ministro André Mendonça nos autos da ADPF 342 - que gerou um certo frenesi -,  nos convida a pautar novamente o acesso à terra, só que dessa vez, sob a perspectiva do fenômeno da estrangeirização das terras rurais no Brasil. A ADPF n. 342 foi ajuizada pela Sociedade Rural Brasileira - SRB requerendo a declaração de não recepção pela Constituição Federal, do artigo 1º, § 1º, da lei 5.709, de 7 de outubro de 1971, que institui restrição à aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica brasileira com a maior parte do capital social pertencente a estrangeiros. Vejamos que se trata de uma restrição e não de vedação. A centralidade da discussão é o risco de o Brasil renunciar a qualquer controle sobre o processo de estrangeirização de terras no país e suas consequências no aprofundamento de uma das maiores e mais antigas desigualdades instaladas no Brasil, o acesso à terra, assentindo, assim, com uma nova forma de neocolonialismo, conforme classificam alguns estudiosos. O afrouxamento ou liberação total nesse processo de aquisição de terra,  significa a consolidação da marginalização de grupos populacionais, como os povos originários, os quilombolas e os sem terra, onde sempre vence o mais forte, o mais rico, em detrimento dessa população que historicamente tem seus direitos vilipendiados. O pedido de ingresso do Conselho Federal da OAB na ADPF 342, na condição de amicus curiae, foi aprovado à unanimidade por seu pleno e baseou-se em parecer elaborado pela Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a qual tenho a honra de presidir. O pedido foi deferido pelo relator, Ministro André Mendonça, que na oportunidade concedeu medida liminar pela suspensão de todos os processos jurídicos e administrativos cujo o objeto da demanda se baseie na Lei 5.709/19711. Compreendemos que o dispositivo em questão da Lei 5.709/1971, em aspectos algum conflitua com a Constituição Federal de 1988, pelo contrário,  sua recepção pela Carta magna se dá a medida em que a imposição de restrições vela pela soberania nacional, pela proteção do meio ambiente, das populações rurais, da soberania alimentar, valores estes constitucionalmente assegurados. Necessário destacar que o fenômeno da estrangeirização de terras não é novo e não se concentra apenas no Brasil, mas também, em países cujos fartos recursos naturais chamam a atenção do capital para a exploração predatória desses locais. Em pesquisa minuciosa sobre a estrangeirização de terras no Brasil, o pesquisador e professor Geraldo Neto registrou que2: A partir do ano de 2008, em decorrência da crise financeira (e de alimentos) e do aumento da produção de agrocombustíveis (SAUER, 2010), um fenômeno foi inserido nas discussões da questão agrária: a estrangeirização de terras (FERNANDES, 2011), pois tornou a disputa pela terra um fenômeno global (SAUER, 2010). Desde então, a temática propicia discussões na mídia, na academia, nas funções estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e em atores e sujeitos sociais, como os movimentos sociais e sindicais do campo, o Banco Mundial, as organizações patronais, dentre outros. A professora e geógrafa Lorena Izá Pereira, elaborou conceito adotado na literatura brasileira acerca do tema3: Compreendemos a estrangeirização da terra como um processo de apropriação de terras e de seus benefícios (recursos naturais, água, qualidade do solo, biodiversidade, recursos minerais, entre outros). Tal apropriação pode ser realizada através da compra do imóvel rural, do arrendamento, do contrato de parceria, do contrato de gaveta, das estratégias das corporações em constituírem empresas em nome de terceiros e que possuam uma identidade nacional, das táticas de fusões e joint-venture entre empresas nacionais e transnacionais, das empresas de capital aberto e com ações Free Float1, da concessão pública para a exploração, do uso de superfície, como caso do Brasil que, inclusive, está presente no Código Civil, no Artigo 1.369.  Ainda em sua pesquisa, Geraldo Neto apresenta os conceitos desenvolvido por Sérgio Sauer e Sérgio Pereira Leite (SAUER, LEITE, 2011a; SAUER, LEITE, 2011b) quanto ao termo estrangeirização de terras como um fenômeno associado ao aumento de investimentos estrangeiros na agricultura feitos em articulação com o agronegócio e que vem adquirindo muitas terras na América Latina. Os estudos apontam que a estrangeirização de terras é um fenômeno global e o Brasil tem papel central neste processo, pois atua nas transações globais por terras e seus derivados enquanto alvo do interesse de países e suas multinacionais e na promoção da apropriação destes recursos em outros países (SAUER, BORRAS, 2016:25), como no Paraguai (FERNANDES, 2011) e em Moçambique (PEREIRA, 2014). As consequências negativas do fenômeno, sobretudo para os sujeitos coletivos de direito, quais sejam, os movimentos sociais e sindicais, comunidades indígenas, comunidades remanescentes de quilombo, comunidades rurais e povos tradicionais. Geraldo Neto ainda destaca que o fenômeno da estrangeirização de terras "reforça o neocolonialismo e aumenta a dependência brasileira em relação à economia internacional",  afeta a soberania alimentar e o domínio sobre a produção de alimentos necessários para a sobrevivência da população, isso porque "As transações econômicas que marcam a estrangeirização operam para a produção de poucas commodities", precariza as relações de trabalho no campo, amplia o desemprego com a automação dos processos agroindustriais. E afirma, ainda, que: "O interesse global pelas terras brasileiras causa o aumento no preço das terras gerando impactos na política de reforma agrária, tendo em vista, que as indenizações para ressarcir as desapropriações para fins sociais ficam mais caras, o que provoca o acirramento das disputas territoriais." Como consequência, temos a elevação do preço da terra que provoca o aumento da concentração fundiária, contribuindo, ademais, para a ampliação do monopólio na produção de agroenergias e alimentos. A expansão das fronteiras agrícolas afeta as comunidades rurais e seus territórios, contribuindo, muitas vezes, para a expropriação das populações do campo. É preciso lembrar que o desenvolvimento do Brasil no pós-abolição é marcado por conflitos agrários e pelas disputas de terras envolvendo trabalhadores rurais, pequenos agricultores e o latifundiário. Até os dias atuais o governo brasileiro foi incapaz de fazer uma reforma agrária que diminuísse as desigualdades no acesso à terra. Noutro giro, na busca pela efetivação do direito à terra, estão os povos originários e as comunidades quilombolas, que por décadas permanecem à margem da história no que tange ao acesso a esse direito. Em breve digressão histórica, cita-se a Lei de Terras 601 de 18 de setembro de 1850, aprovada apenas duas semanas após a Lei Eusébio de Queirós4 no período do Império, que instituiu no país a regulamentação do direito de propriedade por meio da compra e venda ou concessão pela Coroa. A lei impedia que os escravizados pudessem adquirir a posse da terra através do trabalho e, em contrapartida, previa subsídios do governo à vinda de colonos do exterior para trabalhar no país. Eis aí um dos fundamentos das desigualdades social e racial brasileira que perpetuou a propriedade nas mãos de quem já possuía quantidade expressiva de recursos econômicos, elevou o preço da terra e impediu que fosse adquirida por meio do trabalho, prejudicando de maneira incalculável os trabalhadores rurais. O processo de não reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas e da negação do direito à propriedade a esses grupos é classificado pela Prof. da UFBA, Tatiana Emília Gomes de racismo fundiário5. Registra-se que nos debates da Constituição de 1946, chegou-se a aventar o reconhecimento dos territórios quilombolas e indígenas, contudo, sob o fajuto argumento da onerosidade que tal política geraria aos cofres públicos, a medida não constou do texto constitucional aprovado. Apenas com a Constituição de 1988, por meio da inserção do Art. 68, nos Atos das Disposições Transitórias (ADCTs) é que se reconheceu o direito à propriedade da terra para as comunidades quilombolas: "Art. 68 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos" Porém, o dispositivo foi regulamentado apenas em 2003, por meio do Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003, que estabeleceu o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. E como se não bastasse a incrível lentidão do Estado brasileiro na promoção e efetivação dos direitos das comunidades quilombolas, o referido Decreto foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo partido Democratas6. A morosidade secular e proposital do Estado na promoção de políticas públicas que viabilizassem às comunidades quilombolas o direito à propriedade de suas terras chega a ser um escárnio de tão aviltante que é, e produz efeitos deletérios materiais e imateriais incalculáveis que subjugam a condição humana e, de vida desses povos que, por vezes, estão a mercê da grilagem de terra e do poderio econômico dos grandes latifúndios.  O Estado tem o dever de zelar pelos direitos e princípios basilares do estado democrático de direito, tais como, a igualdade, a dignidade humana, a construção de uma sociedade livre e solidária e a autodeterminação dos povos conforme disposto nos Arts.1º, 2º e 3º da Carta Maior. E em que pese já haver transcorrido vinte anos da regulamentação desse direito, em 2019, a Coordenação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombola-CONAQ registrou que só cerca de 5% das 3,2 mil comunidades quilombolas reconhecidos no Brasil são demarcados7, verificando-se que a demora para demarcação de terra extrapola o razoável. Já no levantamento da Funai de 2019, haviam 118 territórios no país em diferentes fases do processo demarcatório. Desse total, 74 estão em estágio mais avançado e estão autorizados para serem demarcados, aguardando apenas homologação por meio de decreto presidencial. Registra-se que no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro não houve demarcação de terras indígenas ou quilombolas. Dessa forma, as desigualdades em relação aos povos originários e às comunidades quilombolas precisam ser equacionadas urgentemente e flexibilizar a restrição de aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica brasileira com a maior parte do capital social pertencente a estrangeiros, contida no do artigo 1º, § 1º, da lei 5.709, de 7 de outubro de 1971, seguramente vai na contramão dessa necessidade premente, além de reforçar a marginalização desses povos, acentuando ainda mais desigualdades estruturais. Para além das questões jurídico-processuais e de soberania, há ainda os notórios efeitos prejudiciais da ausência de controle sobre aquisição de terras por empresas de capital majoritariamente estrangeiro, para o Estado e para a sociedade brasileira, conforme pleiteado na ADPF 342, que vão desde soberania alimentar e do domínio sobre a produção de alimentos necessários para a sobrevivência da população, além de ser considerada mais uma forma de neocolonização, em que o país, sem controle sobre essas áreas, delegaria a empresas e Estados estrangeiros a decisão por priorizar atividades agrícolas em detrimento de outras. Por fim, há que se pontuar que a ausência de restrições teria como efeito prático a constituição de empresa brasileira por estrangeiro interessado em adquirir propriedade rural no Brasil, com seu controle acionário, para que, desta forma, pudesse adquirir terras de forma irrestrita, fugindo das limitações legais que lhe seriam impostas caso pretendesse realizar a compra diretamente, sem a intermediação de empresa brasileira equiparada à estrangeira, em evidente burla ao Artigo 190 da Constituição Federal. A OAB tem inscrita em seu DNA (art. 44 do EOAB) a defesa intransigente do estado democrático de direito, da justiça social e dos direitos humanos e, a nosso ver, a estrangeirização ilimitada de terras afronta a garantia da soberania nacional, da ordem econômica, da distribuição de terras, da função social da propriedade, da soberania alimentar e etc. São por essas razões que nossa atuação na ADPF 342 é de fundamental importância. __________ 1 Disponível aqui. 2 NETO, Geraldo Miranda. Estrangeirização de Terras: um estudo da atuação das entidades representativas do agronegócio na disputa normativa sobre a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros. Geraldo Miranda Neto. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, disponível aqui. 3 Idem 1. 4 A Lei Eusébio de Queirós n. 581, de 4 de setembro de 1850, proibiu o tráfico de africanos para trabalho escravo. 5 Disponível aqui. Acessado em 04.03.2023 6 Em 2018,  ADIn 3239 foi julgada improcedente pela maioria de votos (8) e declarou a validade do Decreto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas, porém estabeleceu-se o marco temporal de CF de 1988. Disponível aqui. 7 Disponível aqui.
O direito a moradia no Brasil é tutelado constitucionalmente, devendo ser efetivado pelo Estado através de políticas públicas voltadas para a habitação e para a redução das desigualdades. Na contramão desse direito está o racismo estrutural no Brasil, como engrenagem do sistema gerando segregações e violação de direitos de toda ordem, tais como, a moradia e a dignidade humana. Neste sentido, é de total pertinência analisar tais questões à luz da realidade brasileira, partindo do entendido que a moradia é um direito humano básico. O diálogo, tem origem no fato de que o direito à propriedade é vinculado ao instituto da função social da propriedade a medida em que se limita esse direito à restritas camadas sociais mais abastadas, também gera impacto no desenvolvimento e progresso social e econômico do país, corroborando para o alargamento dos abismos sociais. Segundo Gonzaga; Cunha (2020), para entender o mundo atual, em especial na perspectiva do racismo, se revela necessário olhar para a colonização das Américas e a escravização dos povos originários e negros, pois foram tais processos históricos e políticos que construíram as estruturas das sociedades modernas e seus valores. No caso do racismo e inferiorização de raças, tem-se que, a partir da colonização do país se produziu a racialização dos corpos, estabelecendo-se hierarquias raciais, que até hoje determinam quem pode viver e quem deve morrer (MBEMBE, 2011). Neste contexto, a pseudociência eugenista do determinismo biológico, oferece as bases do "direito de matar", na desumanização dos corpos o negro, na promoção violência racial-colonial e intersecciona-se à violência de gênero atingindo objetivamente as mulheres negras em inúmeras dimensões da vida. No Brasil, assim como em outros países de colonização europeia, houve a subjugação de determinadas raças, para fins capitalistas, tais como, econômicos e políticos. Assim, desde a história de sua colonização o Brasil traz consigo uma herança de escravismo e objetivação de raças. Gonzaga; Cunha (2020) advertem ainda que essa herança se projeta fortemente no presente, em que o racismo estrutural e institucional faz parte da sociedade brasileira, através da ideologia do branqueamento. Entre os anos de 1845 e 1850, duas leis importantes para compreensão das desigualdades atuais foram implementadas no Brasil, Lei Bill Aberdeen (1845) e Lei Eusébio de Queirós (Lei n. 581, de 4 de setembro de 1850), essa última proibindo o tráfico de escravos. No entanto, preocupados com o acesso dos povos até então escravizados aos direitos de todos os cidadãos, após duas semanas da instauração da Lei Eusébio de Queirós foi criada a Lei de Terras (lei n. 601, de 18 de setembro de 1850), como uma resposta da elite agrária do país para que os escravos acreditassem serem detentores de direitos. A aludida lei dispôs normas sobre a venda, a posse e a utilização de terras a partir do Segundo Reinado, tendo sido criada como forma da manutenção da concentração agrária nas mãos de poucas pessoas privilegiadas, favorecendo os grandes proprietários rurais, tendo em vista que tornou a compra/venda como única maneira de acesso à propriedade de terra, passando a assumir o status de propriedade privada. A problemática apresentada, revela que o acesso a moradia para a população negra não é problema atual, sendo que Costa e Azevedo (2016) afirmam que essa falta de acesso a moradia e propriedade pelos escravizados negro, desde a época colonial, são os marcos fundante da situação atual, que lança à condição de invisibilidade toda população negra na sociedade brasileira. Fazendo com que essa população migrasse das senzalas para as favelas e comunidades. Santos e Silva (2018) apontam que até os dias atuais a escravidão é a grande questão do Brasil, apontada por uns como uma instituição arcaica que atrapalhava o desenvolvimento econômico e social do país, sendo ainda um empecilho à imigração europeia. Com o fim do sistema escravista e a abolição inconclusa, o problema passou a ser o destino da população negra e seus descendentes, herdeiros apenas do espólio da escravidão e das teorias racistas eugenista que até hoje fustigam a existência negra nesse país. Para os autores, isso demonstra a necessidade ações que visem mudanças concretas na realidade, ainda de negação de direitos a negros e indígenas. Importante neste contexto ressaltar que os povos indígenas também são vítimas desse preconceito que ainda vigora na sociedade brasileira contemporânea:  Cor, raça e preconceito no Brasil compõem o plexo de concepções para o enfrentamento das questões raciais e de seus desdobramentos nocivos na formação de crianças e adolescentes, por meio da construção de uma nova forma de se pensar a formação da nação e da nacionalidade. Em todo plexo, é notória a interpretação do fato de o Brasil ser constituído da maior população negra fora do continente africano e isso não dar uma visibilidade - positiva - à cultura afro-brasileira, e, por conseguinte, ao negro. Muito frequentemente, este aparece como um problema social: sua condição, o lugar que ocupa na escala social seria resultado de problemas estruturais do país, e não do preconceito, ou somente de seu passado escravista - como defendiam as teses dos autores da escola paulista desde a década de 1950, conforme apontaremos no decorrer do texto. (SANTOS; SILVA, 2018). Antes de se explanar acerca do racismo estrutural, se revela importante entender alguns conceitos correlacionados, assim como se deve distingui-los. Batista (2018) traz a definição de racismo como uma forma dentro de um sistema de discriminação que se fundamenta na raça e se manifesta por meio de determinadas práticas, que muitas vezes pode ser inclusive inconscientes, e que trazem como consequência desvantagens ou privilégios, de acordo com o grupo racial na qual se esta inserido. Com relação ao conceito de propriedade, Sá (2019) pontua que a propriedade pode ter vários conceitos, dependendo do enfoque, e no presente caso como o que interessa é o aspecto jurídico o conceito de propriedade vai ser discorrido sobre o enfoque jurídico, legal e constitucional, e em seus aspectos contemporâneos e atrelado a função social. Ainda com relação ao conceito de propriedade, pode se refletir em variados conteúdo ou estatutos que exercem influência na relação entre os diversos objetos e sujeitos sobre os quais podem recair o domínio e a titularidade dos direitos, tal como a propriedade material, que abrange e a propriedade dos bens móveis e a propriedade dos bens imóveis, ou a propriedade imaterial, que abrange a propriedade literária e artística, a propriedade industrial, entre outros. Assim, para o autor, verifica-se que a propriedade não possui um conceito único, porém nos tempos contemporâneos o conceito de propriedade abrange sempre usar, gozar e dispor e deve ser exercido através de sua função social. Portanto, o conceito de propriedade esta intrinsecamente ligada à sua função social. A propriedade, bem como sua função, sofreu modificações ao longo da história, e assim o foi também com o seu conceito, que sofreu modificações, principalmente após ser atrelado ao conceito de função social. Até então o direito a propriedade era absoluto, e isso se refletia em seu conceito, no entanto, com as modificações trazidas ao direito de propriedade privada, inclusive com sua relativização, o seu conceito também passou a ser relativizado. Não é exagero afirmarmos que a propriedade nasce junto com o indivíduo, quase como algo inato do ser humano. Mais do que como um fenômeno jurídico, podemos caracterizá-la como um fenômeno social, por sua vez abraçado pelo Direito. O conceito de propriedade desenvolve-se quase que conjuntamente com a transição da fase do homem selvagem para a do homem sedentário, quando a civilização assenta-se sobre determinados espaços físicos, retirando da terra seu sustento e valores (ASSIS, 2008). Ao se falar em direito a propriedade, Sá (2019) faz referência aos diversos direitos que formam o patrimônio de um indivíduo, ou seja, todas as situações jurídicas que envolva uma ingerência socioeconômica, sendo, portanto, a propriedade uma ideia ampla, não se limitando a titularidade do indivíduo sobre um bem mas sim a todas relações jurídicas advindas dessa propriedade. Para Cruz (2015), a propriedade é um dos temas mais representativos da história do Direito, sendo ela um pilar de identificação do indivíduo moderno por compreender em si um indicador de poder econômico e político do homem. Portanto, sua importância esta ligada intimamente ao poder de um homem, pelo menos em uma sociedade capitalista. Para Sahd (2007, p. 220), se a humanidade tem o poder de amealhar os recursos naturais para a sua sobrevivência, esse poder só se converterá num verdadeiro direito quando for capaz de criar um efeito moral sobre o resto dos homens sem que com isso venha a causar danos irreparáveis e disputas sem fim. A propriedade privada é fruto de um longo processo histórico, e é intimamente ligada ao capitalismo, porém reconhecida como direito natural e fundamental do homem. O status quo ao qual é lançado o homem que é proprietário de um bem, aliados a outros fatos que agregam valor, faz com que a propriedade privada passe a se revestir de relevante significado, passando a ser um direito e uma necessidade de toda a humanidade, ou pelo menos naquelas capitalistas. A Constituição Federal de 1988 cristalizou avanços no conceito de propriedade privada e do cumprimento de sua função social, assegurando a propriedade privada (art. 5º, XXII), mas condicionando-na a garantia do bem-estar social, dispondo que a propriedade rural atenderá à sua função social (art. 5º, XXIII), dirigida à justiça social, quando atender aos requisitos do artigo 186 da Constituição Federal. (MATIAS; SANTOS, 2009, p. 03). O direito a moradia no Brasil pode se traduzir como o direito de ter um lar, uma moradia, seja ela própria ou alugada. Matias; Santos (2009) esclarecem que a Declaração Universal dos Direitos Humanos ocorrida em 1948 trouxe o direito a moradia como um direito fundamental, e sendo o Brasil um país signatário de tal instrumento internacional, assina embaixo do que diz a Declaração dos Direitos Humanos e em consequência o direito à habitação. Importante ainda ressaltar que o Brasil participou de outras declarações e Pactos, como o pacto internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado em 1996 e que orienta e reconhece o direito de toda pessoa ter acesso a direitos como alimentação, vestimenta e moradia adequados. No Brasil direito como propriedade, moradia e dignidade fazem parte dos direitos fundamentais, previstos em Constituição. Tais direitos, mais que um fenômeno legal é um fenômeno social e político. Com isso passou tais direitos a ser chancelados pelo ordenamento jurídico do Brasil, que desde a sua primeira Constituição Federativa já contemplava a propriedade privada e o direito à propriedade, porém nos moldes da época. Importante esclarecer que o direito a moradia esta atrelado fortemente a outros direitos do homem garantidos constitucionalmente, como o da dignidade humana. Realizado os principais esclarecimentos a respeito da propriedade e do direito do homem à mesma, passar-se-á no capítulo seguinte a discorrer-se sobre o racismo institucional no Brasil. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tornou-se impossível falar em direito à propriedade sem falar na função social da propriedade, tendo inclusive o próprio conceito de propriedade sofrido alterações após o advento da referida Carta Magna. Isso porque o conceito de propriedade foi atrelado à sua função social, sendo desta indissociável. Com o advento da referida Lei Maior o direito à propriedade restou relativizado de forma normativa e efetiva. O artigo 173 da Carta Magna traz diversas limitações ao direito de propriedade, demonstrando com isso que tal direito não é absoluto, devendo em tempos contemporâneos estar de acordo com a função social, ou seja, com os interesses da coletividade, além de estar de acordo também com os interesses do Estado. Importante ressaltar ainda que a Constituição Federal de 1988 serviu como parâmetro para a confecção do novo Código Civil (CC) ao também determinar que a propriedade deve voltar-se para o bem comum. O instituto da função social, cuja previsão é constitucional, veio a limitar e relativizar o direito à propriedade, atrelando este direito a função social da propriedade. Não que anteriormente não existisse uma relativização, mas não nos moldes propostos pela atual Carta Magna, que trouxe a previsão expressa em seu art. 5º, XXIII. O argumento para tal previsão expressa foi o baseado na nova noção de sociedade e coletividade, em que os direitos e interesses coletivos devem sempre prevalecer sobre os individuais. A função social acaba por reforçar a tese da dignidade da pessoa humana na medida em que só se obterá a plenitude da dignidade com a efetividade da justiça social, e esta só será alcançada, entre outros, com o instituto da função social da propriedade. A função social deve ser buscada pelo Estado, e só gozará com sua proteção aquele que respeitar esses fundamentos dando a sua propriedade uma função social, ou seja, no interesse da coletividade. Tem-se então que a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade são institutos intrinsecamente interligados. Em conclusões transitórias, consegue-se perceber que não há estruturalmente, discussão no que tange a política pública que dialogue na lacuna criada entre a abolição da escravidão no Brasil e a inserção das pessoas recém libertas formalmente com a democratização da terra.
Em janeiro de 2017, após supostamente um conflito faccional, 27 (vinte e sete) sobreviventes do cárcere vieram a óbito, tal episódio ficou conhecido como Massacre de Alcaçuz, um morticínio em massa provocado em uma unidade prisional do Rio Grande do Norte. Este episódio reverberou em uma missão de retorno do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura - MNPCT que entre outros pontos rememorou o fato de que no ano de 2015 - 60 (sessenta) sobreviventes do cárcere vieram a óbito na unidade de Alcaçuz e que em 2017, ano do massacre, estava mantido e agravada a situação de superlotação, a omissão deliberada do Estado, sobretudo na garantia ao direito à vida e demais direitos das pessoas presas, além da prática de tortura, de transferências irregulares, mortes e desaparecimento forçado de presos. Cabe rememorar que da inspeção e das recomendações feitas no ano de 2017 pelo MNPCT apenas 1 (uma) foi cumprida de 73 propostas, e desde aquele momento questões como visita e fornecimento de água apenas três vezes ao dia durante 30 (trinta) minutos já estavam patentes. No entanto, o que se percebe é o não atendimento da plataforma de direitos humanos seja em 2015, 2017 ou este ano, e em contrapartida o fomento de uma plataforma que criminaliza a luta pela afirmação histórica dos direitos mínimos das pessoas privadas de liberdade e tem por função a neutralização dos corpos negros e pobres que habitam o sistema carcerário potiguar. Ocorre que recentemente um suposto grupo criminoso veio a público através de vídeo apresentar uma agenda, requerendo do Estado direitos mínimos para a sobrevivência no cárcere, dentre eles: visita íntima de 15 em 15 dias, 4 visitas por mês, banho de sol pelo menos de 2 em 2 dias, televisão nas celas, luz dentro das celas, combate a tortura, aumento de horário de visitas para 4h e vedação de superlotação nas celas. Estes pleitos possivelmente motivaram mais de 300 ataques promovidos pelo crime organizado no estado do Rio Grande do Norte, contudo a pergunta que insiste em ecoar pelos ouvidos dos que ainda pulsam humanidade é: mas será que estes pleitos já não deveriam ter sido atendidos desde 2014, evitando-se mortes e sofrimento? A pergunta subjacente seria: insistir em mais securitização e neutralização destes sujeitos racializados, não promovendo condições dignas para a vida humana, violando diversos preceitos e garantias fundamentais, precipuamente a Lei de Execução Penal - LEP e as Regras de Mandela, está funcionando? Se sim, para quê? E para quem? Se a função da execução penal, conforme prevê o art. 1º da LEP é a integração harmônica social do recluso, qual seria a função da execução penal potiguar? Estas perguntas ensurdecedoras demonstram um completo fracasso, ou sucesso nos termos foucaultianos de eficácia invertida do sistema penal, pois se a única solução apontada para o Massacre de 2017 foi indiciar 74 presos por homicídios, mantendo e consequentemente aumentando a população carcerária, este ano a solução apresentada pelo governo federal foi a entrega de mais fuzis, pistolas, coletes, drones, viaturas e R$ 135 milhões para a compra de mais viaturas e armamento. Vale destacar outros dados do relatório do MNPCT, que foi publicado este ano e possui presunção de veracidade. O documento informa que em Alcaçuz de 1.846 custodiados - 83% são negros e 64% possui ensino fundamental incompleto, que em todas as celas havia ao menos um recluso com marcas de tortura e que o fornecimento de água que antes era 3 (três) vezes ao dia durante 30 minutos, agora padece de apenas 3 (três) vezes ao dia durante 20 minutos. Além disto desde o início dos ataques 150 prisões foram feitas, aumentando ainda mais a malha carcerária. Almejando ir para além da paralisia de um estado de coisas, faz-se importante suscitar quais soluções poderiam de fato enfrentar os problemas estruturais e institucionais que o sistema carcerário do Rio Grande do Norte suporta. Neste sentido se faz fundamental ter a implementação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura do estado do Rio Grande do Norte, proposta suscitada desde 2015 e que até o presente momento não teve implementação. Outrossim, parafraseando Alessandro Baratta e Vera Malaguti, deve-se endossar mais a segurança dos direitos e menos direito à segurança, do contrário se está fomentando uma guerra do nós contra eles, que ao fim ao cabo se trata de criminalização da pobreza e dos corpos pretos, instante em que para este determinado grupo é preferível punir ainda que ilegalmente do que fomentar políticas públicas de promoção à saúde, ao trabalho e educação Cabe mencionar que outras propostas foram apresentadas pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, contudo o epicentro do debate permanece: até quando a categoria facção criminosa, crime organizado, PCC e Sindicato do Crime podem servir pelo poder pública para construção de um estado de exceção que em nome do combate a estes espantalhos promove tortura, maus-tratos e morte?
Cidades não aparecem de repente. Bairros, comércios, escolas e as pessoas que os ocupam, não aparecem de repente. Nem hábitos, tão pouco vícios, qualquer um. Se assim é, também não desaparecem de repente. Sociedades, por pior que sejam, carregam sua história e dela nunca conseguirão se livrar, seja boa ou ruim.  A violência, como um sintoma distorcido da realidade urbana, atinge os cidadãos de forma a alterar-lhes o comportamento. O medo produz alterações físicas, emocionais e psíquicas que se revelam socialmente em entender o outro como possível agressor. O medo decai a qualidade de vida e agrava-se se for transformado em raiva, pois esta se manifesta em (re)ações agressivas. Portanto, não é demais concluir que uma cidade violenta produz mais violência. Certa parcela de homicídios, lesões corporais, corrupção, depredações furtos, entre outros tipos penais, pode ser creditada ao estado caótico das cidades. Assim, se parte significativa da violência existente nas cidades tem como causa ou consequência questões ligadas diretamente à dinâmica da gestão urbana é de fundamental importância trazer esse recorte a qualquer projeto (político, jurídico, econômico, ambiental, social, etc.). Considerando que 85% da população brasileira vive em cidades (PNAD, 2.015), ao menos esse percentual vive uma rotina de violências generalizadas, sejam concretas (físicas, materiais), sejam abstratas (olhares, silêncios, faces franzidas, negativas de empatia). O empobrecimento da população brasileira, com agravamento da condição econômica face o cenário trazido pela pandemia de covid-19, levou novos contingentes da sociedade a viverem em situação de rua.  Morar na cidade é algo cada vez mais dispendioso, o que tem ocasionado uma retração significativa na qualidade de vida de uma parcela da sociedade. Moradores em situação de rua hoje compõe um coletivo complexo cujas origens vão de famílias despejadas, trabalhadores empobrecidos que não conseguem custear seus transportes e retornar as seus lares cotidianamente, pessoas que fogem da violência de seu núcleo familiar e social, pessoas com problemas de distúrbios mentais e também dependentes químicos, não excluindo outras possibilidades. São pessoas que perambulam pela cidade procurando lugares para estar. Aqui está presente o direito de estar, somado aos direitos de ir e vir. Dependendo de sua origem, estão em grupo, maior ou menor, ou isolados. Procuram abrigo do tempo. Os três "A" também podem ser trazidos aqui: água, abrigo e alimento que explicam sua concentração em determinados lugares da área urbana, como os centros. Com o aumento de uma população em situação de rua nesses últimos anos assistiu-se a uma crescente tendência à instalação de elementos rijos e pontiagudos embaixo de pontes, marquises, praças e seus bancos, áreas limítrofes entre calçadas e prédios que obstruem e impossibilitam que haja acesso e permanência a esses espaços. Ficam ocupados por tais elementos e não mais por pessoas. Uma forma de afastá-las desses locais. Uma mensagem direta demonstrando que são indesejadas. Nesse recorte, foi promulgada recentemente a lei 14.489, de 2022,  proibindo a chamada "arquitetura hostil", que emprega estruturas, equipamentos e materiais com o objetivo de afastar as pessoas - sejam moradores de rua, jovens ou idosos, por exemplo - de praças, viadutos, calçadas e jardins.  Essa técnica, segundo o texto, é caracterizada, justamente, pela instalação de equipamentos urbanos como pinos metálicos pontudos e cilindros de concreto nas calçadas com objetivo de afastar pessoas, principalmente aquelas em situação de rua (Fonte: Agência Câmara de Notícias). Referido texto alterou a lei federal nº 10.257/01, Estatuto da Cidade, com a inclusão de um inciso no artigo 2º, conforme texto abaixo: Art. 1º Esta Lei, denominada Lei Padre Júlio Lancelotti, veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público. Art. 2º O art. 2º da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 2º .................................................................................................. .......................................................................................................................... XX - promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de arquitetura hostil que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população." (NR) Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.  Apesar de parecer uma alteração diminuta, muito há que se refletir a respeito, de maneira que o disposto acrescido seja plenamente efetivo. Inicialmente, é fundamental trazer o foco para o locus, qual seja, os espaços livres de uso público, incluindo suas interfaces com os espaços de uso privado. Nestes termos, estão excluídas construções das edificações per si, públicas ou privadas, nos seus usos próprios e particulares. Se por um lado há argumentos que tais locais que passam por essa intervenção têm o intuito de evitar sujeira, detritos, distúrbios em geral, por outro não é possível afastar o elemento fulcral constitucional, disposto no artigo 3º, III, que traz como objetivo fundamental da República a erradicação da pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Também vale lembrar que o objetivo de toda a política urbana é o bem-estar dos habitantes (art. 182) e que todos têm direito ao meio ambiente (urbano) ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225). Diante do cenário aqui relatado e bem sabido por todos nós, a população em situação de rua procura lugares urbanos que possam proporcionar satisfação às suas necessidades mínimas (longe afirmar que conseguem ou que sejam dignas). Nesse ponto, importante frisar que os municípios não ofertam abrigos ou politicas públicas suficientes ou adequadas para que não permaneçam em situação de rua mesmo que emergencialmente. Quanto às políticas públicas que eliminem a necessidade de permanecer nas ruas, estão muito longe da eficiência e efetividade.  Os programas habitacionais historicamente correm atrás de números e dificilmente efetivam o direito maior, o direito à moradia. Importante frisar que moradia é competência comum da União, Estados e Municípios, está inserido no art. 6º como direito social e deve ser lastreado em políticas de Estado e públicas. Não se prestam à discricionariedade estatal quanto ao motivo. Quanto às outras formas de acolhimento, o que tem sido noticiado nos últimos tempos são as internações forçadas aos usuários de drogas, em um retrocesso dos marcos atingidos a esse segmento deixando claro que a exclusão desses cidadãos do cenário urbano é o ponto central. Quanto às políticas de combate à violência domestica, o suporte aos vulneráveis economicamente, o suporte aos portadores de doenças mentais, praticamente inexistem, dependendo de organizações e iniciativas sociais que se voluntariam e tentam formar uma rede de apoio aos necessitados. O que se mostra muito claro é que a política urbana aplicada não tem sido adequada à população que mais necessita dela, com estado de vulnerabilidade de toda a ordem. Sem dúvida, o aumento da pobreza da população e os desajustes familiares e sociais não são o objeto de um Plano Diretor e demais planos e leis que o complementam, mas também não há dúvida que as consequências recaem imediatamente sobre os (des)ajustes que um plano urbanístico traz à urbe. Não à toa, a ONU declarou que o direito à cidade é direito humano e deve ser compreendido como um contexto complexo e particular à cada localidade de maneira a trazer a garantia da satisfação das necessidades básicas de sobrevivência da população. Na sociedade urbana brasileira há um estado de colapso das políticas sociais somado aos argumentos de uma lógica liberal de menos valia que a presença dessas pessoas traz ao local onde estão. Uma equação perversa que subtrai eventuais possibilidades de redução das vulnerabilidades pela propagação da sociedade do medo. É fundamental lembrar que uma sociedade não é divisível na prática, apenas na teoria. A redução das diferenças indesejadas e indignas que recaiu sobre a população brasileira beneficia a toda a sociedade, reduz a violência, insere um contingente enorme no tecido social, legal e econômico. Gera cidadãos produtivos e, por isso, combater a arquitetura hostil é parte de um projeto maior, de um Brasil melhor. Não só. Segundo o Relatório Brasileiro para o Habitat III ( Brasília: ConCidades, IPEA 2016, p.77) é necessária a construção de políticas públicas universais, mas com focalização nos territórios intraurbanos, como estratégia significativa contra a violência. Iniciativas nesse cenário, em particular, já existiram em nossa história recente, como a resolução nº 110 de 6/4/2010 do CNJ que institucionalizava o Fórum de Assuntos Fundiários, de caráter nacional e permanente, destinado ao monitoramento dos assuntos pertinentes a essa matéria e à resolução de conflitos oriundos de questões fundiárias, agrárias ou urbanas (revogada em 26/03/21, pela resolução nº 384). É urgente redirecionarmos os esforços dos Poderes Estatais, assim como de toda a sociedade, para um discurso de pacificação social, de integração, de auxílio, de compartilhamento de ideias, ações, programas e orçamentos. Decifrar a logica de ocupação do território, palco permanente dos mais terríveis conflitos, urbanos e rurais, dar voz à população e ter coragem para decidir na contramão dos mecanismos consagradores de perpetuação das diferenças abissais é caminho inafastável para o país estruturar um alinhamento de crescimento de seu PIB Humano. Urge voltarmos à Constituição Federal para retomarmos o caminho da edificação de uma nação voltada para toda a sua população, enfim.
terça-feira, 4 de abril de 2023

Quando a quilombagem enquadra o Direito

No início da década de noventa, a cadência certeira de Jorge Aragão marcava, sem tropeços, um protesto direto contra a utilização do "elevador de serviço", afinal "somos herança da memória"1. Na década de setenta, Jorge Ben brincava com os medos presentes na memória da branquitude brasileira do mesmo como brincava com o seu violão. Trazia o ganzá para a batida do instrumento de cordas enquanto cantava "eu quero ver quando Zumbi chegar"2. Em 2023, Leci Brandão abre as alas do samba para o rap, grito sagrado e sangrento da favela, resgata a memória das vidas e dos projetos interrompidos à base de pura violência e lança a nota: "Quem mandou matar Marielle? São quatro anos sem respostas. O sistema sorri, favela chora, querem apagar nossa história"3. Entre a cadência e o grito, o molejo e o enfretamento, percebemos diversas e sofisticadas formas de denúncia contra o racismo pelo povo negro. Formas que quase sempre apontam a fragilidade da linearidade temporal moderna, eurocêntrica, colonial. Entre uma batida e outra do surdo, entre um beat e outro, as possibilidades temporais e melódicas são múltiplas. O presente pode ser lançado ao futuro, assim como a Mulher negra que canta até o Fim do Mundo ou pode ser arrastado ao passado, por meio das páginas gastas de um Diário de Detento. Se a racionalidade eurocêntrica, com destaque para o pensamento jurídico, assentou a separação, a dualidade mente-corpo como elementos estanques, o som que transparece do vibrar do couro no atabaque4, movimenta o corpo e fornece um substrato dinâmico, incapturável, seja nas análises sobre a formação sócio-política brasileira, seja na criação de projetos políticos que nascem e caminham a partir de um outro lugar. A quilombagem documentalmente apresentada por Clóvis Moura5, o pretuguês sarcástico e sem rodeios transmitido por Lélia, o quilombismo aguerrido e ativo lançado por Abdias, o sagaz niger sum irradiado por Guerreiro Ramos, as lutas transatlânticas navegadas por Beatriz Nascimento, põem sobre a mesa da história brasileira um outro retrato, constituído por diversas culturas, anseios, racionalidades, formas de organização e de produção. Daquela narrativa tradicional dos livros jurídicos, após as interpretações, os métodos, as ferramentas manejadas por esse(a)s intelectuais negro(a)s brasileiro(a)s, sobra tão pouco. Ainda mais "um pouco" tão repartido, tão cheio de lacunas e de contradições. Como diríamos no Nordeste, "um pouco" que vira "fogo de palha", algo diminuto, cheio de promessas, vazio nas realizações. Assim como quem escorrega na história após um repique inesperado do pandeiro de Jackson, lembremos como que o Direito, com as suas categorias e vestimentas tentou capturar a abolição e a quilombagem. Calma, ainda não desista do texto, leitores. Esse pulo no passado não fará parte daquela velha retórica jurídica, daquela longa viagem com dupla-escala, primeiro na Grécia Antiga, depois no Império Romano. A qualquer momento, mediante outro repique do pandeiro de Jackson, chegaremos ao atual momento político do Brasil e às recentes expectativas depositadas no controle jurídico e nas alterações legais. Joaquim Nabuco, político, advogado, jurista, participante ativo do movimento abolicionista, escreveu, em 1883, uma conhecida obra sobre esse momento: "O abolicionismo"6. Em Londres, já que também foi embaixador, por volta das 17h, entre um gole e outro de seu black tea, o bondoso Nabuco de terno bem recortado, abre a sua maleta de couro, toma algumas folhas em branco e passa a discorrer sobre como o fim da escravidão deveria se dar no Brasil. Anota algumas premissas. Primeira, não se deveria suprimir os braços negros, o Brasil seria um deserto, pobre, sem a rica matéria-prima capaz de gerar riqueza7. Segunda, era importante demarcar bem para quem a abolição se direcionava: "a propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos"8. Era salvar o Brasil, o seu desenvolvimento econômico e a cultura eurocêntrica que se buscava. Ponto. Terceira, carecer da existência e da presença laboriosa dos ex-escravizados não deveria significar participação ativa destes na transição para o trabalho livre e, muito menos, no simulacro de sociedade republicava que começa a aparecer9. Quarta, como a participação destes deveria ser profundamente estreita e controlada, seria a lei, defendida por advogados que possuíam uma procuração tácita10, a responsável por garantir a tranquilidade, a segurança, que o momento exigia. Embora em Londres, não poderia se esquecer jamais que os juristas, os médicos, os engenheiros e a burguesia industrial crescente necessitava de segurança, de "estabilidade institucional e econômica". Assim, a partir do aparelho jurídico-legal, Nabuco tentou enquadrar a quilombagem. Tentou. Se Nabuco acreditava fielmente que a liberdade era dada e se materializava no interior dos contornos legais, o povo negro sabia da falácia dessa proposição. Se sempre foi preciso garantir a sobrevivência cotidiana enquanto passos e conquistas adiante eram disputadas, historicamente, a refinada luta negra, com ginga, saberes ancestrais e maturadas cotidianas formas de resistência, jogou o jogo, dançou com o tempo, talhou e esculpiu estratégias. Se o crime de vadiagem e os diversos "Códigos de Posturas" tentaram capturar o samba, a capoeira, a racionalidade e as festividades negras, gerando choro e sangue (fato que não podemos ignorar e esquecer), a captura por completo nunca conseguiu se concretizar. O movimento negro desordenava a estrutura. O controle social, legitimado juridicamente, que expulsava, no pós-abolição, o contingente negro para os morros, esbarrava-se na voz destemida de Zé Kéti: "se não tem água, eu furo um poço, se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa, e deixo andar, deixo andar"11. Se realmente for verdade que a Assembleia Constituinte de 1987 foi o primeiro momento em que o estado brasileiro, ainda que em conflituoso diálogo, permitiu que o povo negro pautasse as suas demandas e as tivessem parcialmente ouvidas, ele, com a desconfiança sempre presente no balançar de corpos da ginga da capoeira, alçou e conquistou garantias, proteções no interior da democracia liberal. Sim, as garantias legais, materiais, processuais são historicamente negadas ao povo negro por um Judiciário majoritariamente e historicamente branco. A resistência negra conhece literalmente "na pele" esse cenário, não segue inerte na denúncia. De Esperança García a Luiz Gama12, passando pelos crescentes coletivos de estudantes negros que surgem nas graduações em Direito, até atual Ministro da Justiça, Silvio Almeida, o grito permanece. Na verdade, já em 1983, o Deputado Federal Abdias Nascimento, denunciava esse painel e propunha, por meio do Projeto de Lei n. 1331/1983, uma série de políticas públicas contra esse retrato de discriminação ampla que atravessava o Judiciário, como também os outros poderes, a Administração Pública, a educação, o mercado de trabalho. O projeto foi negado e arquivado, porém nesse mesmo ano, através do swing salpicado do reggae diaspórico, Gilberto Gil lançava "Extra". Dois anúncios se destacavam: "resta uma ilusão" e "racha os muros da prisão". Sim, quarenta anos após, nos debates sobre genocídio, sobre o encarceramento em massa e, mais recentemente, sobre o perfilamento racial, seguimos na luta para acelerar essas rachaduras, para desmoronar essa prisão. Quarenta anos após o Projeto de Abdias, o curso de direito da Universidade de São Paulo, com quase duzentos anos de história, teve a sua primeira turma com cotistas pretos, pardos e indígenas, formados. De outro lado, em 2023, temos vinte anos de cotas na Universidade de Brasília e na Universidade Estadual da Bahia. Novas perspectivas, denúncias, experiências, demandas passaram a ser pautadas, exigidas pelos discentes nas universidades públicas após a Lei de Cotas. Esse diploma normativo, inclusive, é um excelente exemplo sobre a sofisticação do movimento negro no Brasil. Se para Nabuco, em 1883, seria necessária uma legislação para frear a radicalidade da quilombagem com o fim do trabalho escravo, o movimento negro sempre esteve atento às particularidades históricas, ao cenário político e às suas alternâncias. De forma mais organizada, a partir das escadarias do Teatro Municipal em 1978, com o Movimento Negro Unificado (MNU), passou a tensionar a forma-jurídica, a pressionar o legislativo, a compreender a importância de também se corroer o sistema por dentro. É a rasteira de Mestre Bimba em Nabuco. Após a Lei de Cotas, aqui com um particular olhar para o curso de direito, enxergamos não só pesquisadores negros nos bancos da graduação, do mestrado e do doutorado, mas já uma crescente geração de docentes negro(a)s de direito, com pesquisas consolidadas sobre quilombos, lutas diaspóricas, genocídio, letalidade policial, eugenia13. Ainda assim, o movimento negro segue atento as diversas estratégias da branquitude para frear o ingresso desse novo corpo de docentes nas universidades públicas. Em cursos tradicionalmente ocupados pela elite branca e seus arranjos familiares/afetivos, como o direito, essa dinâmica é ainda mais evidente.  Editais que não guardam em suas vagas o percentual para cotistas negros, a não-convocação destes quando aprovados, lembremos do Caso Ilvzer Matos14, por exemplo, são apenas duas recorrentes amostras. Apenas uma diferença de dois anos separam a Lei de Cotas para o acesso às Universidades e Institutos Públicos Federais (n. 12.711/2012) da Lei de Cotas nos Concursos Públicos Federais (n. 12.990/2014), porém a resposta para aquela pergunta "quantos professore(a)s negro(a)s de Direito você teve", segue previsível - "nenhum(a) ou acho que um(a)". Dentro e fora da academia, dentro e fora dos espaços institucionais/ministeriais, dentro e fora do controle jurídico-legal, o movimento negro segue firme. Na denúncia cotidiana sobre a violência policial, na luta por moradias regulares que não desabem com as chuvas, na luta pelo resgate dos direitos trabalhistas, na luta por reforma agrária, por alimentação de qualidade. No fortalecimento das universidades públicas e do Sistema Único de Saúde (SUS), o movimento negro segue presente. A resistência negra contornou o gatilho do revólver policial, escorreu pelas luvas dos cientistas higienistas, moveu peças com sagacidade no tabuleiro constituinte, ocupou as universidades, até mesmo os seus cursos em direito. É a luta negra contra um sistema jurídico que sustenta os ciclos de produção e distribuição da riqueza, que legitima a branquitude. É a luta negra contra o sistema jurídico quando esse nos mata, nos exclui, nos encarcera. É a luta negra com o sistema jurídico, quando este, ainda que cambaleante e limitadamente, nos assegura alguma possibilidade de sobrevivência e de inserção. A memória ensina, inspira e atormenta. Não necessariamente a todos. Não necessariamente nessa ordem. É a quilombagem enquadrando o Direito. __________ 1 Referência à música "Identidade", de Jorge Aragão, do álbum "Chorando Estrelas", de 1992. 2 Canção "Zumbi", de Jorge Bem, álbum "A Tábua de Esmeralda", de 1974. 3 Single "Favela Vive 5", cantada por Dk-47, Lord, MC Marechal, MC Hariel, Major RD e Leci Brandrão. 4 Lembremos, por exemplo, do sagrado canto dos Tincoãs: "atabaque chora, chora também o amor em mim". Canção "Atabaque Chora", álbum: "Os Tincoãs", 1982. 5 A quilombagem para Clóvis Moura seria um movimento de permanente irresignação do povo negro, uma força de desgaste significativa ao sistema escravista e às suas continuidades nas esferas políticas, econômicas, militares, jurídicas. Na sua constância e em suas ferramentas de luta estão a sua radicalidade. MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 21. 6 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Brasília: Senado Federal, 2003. 7 "Suprima-se mentalmente essa raça e o seu trabalho, e o Brasil não será, na sua maior parte, senão um território deserto, quando muito um segundo Paraguai, guarani e jesuítico". Ibid., p. 40. 8 "A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma covardia, inepta e criminosa, e, além disso um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de Lynch, ou a justiça pública, imediatamente haveria de esmagar". Ibid., p. 44. 9 "A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade". Ibid., p. 44. 10 Ibid., p. 37. 11 Música "Opinião", composta por Zé Keti e interpretada originalmente por Nara Leão. 12 Por exemplo, há uma cantiga do samba de umbigada que diz assim: "Se o Luiz Gama fosse vivo, ele chorava com muita razão, porque foi ele que voltou com a liberdade e tem negro na cidade que ainda chora escravidão". Essa cantiga e outras memórias sobre o samba de umbigada podem ser encontradas na série "Percursos da Tradição - Batuque de Umbigada", do Sesc São Paulo. Disponível aqui. 13 Cito aqui, como sugestão, apenas quatro potentes obras desse(a)s juristas negro(a)s. "Corpo Negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro", de Ana Flauzina; "Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social sobre os negros", de Thula Pires; "Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro", de Marcos Queiroz; "Constitucionalismo e Quilombos", de Rodrigo Portela. 14 Ilzver Matos é um jurista negro, intenso pesquisador da luta antirracista, estudioso dos terreiros. Foi aprovado, em 2019, em 1º lugar nas cotas para professor efetivo de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Em 04 anos de luta, uma série de estratagemas, políticos e institucionais, foram utilizados para a sua não convocação e ganharam repercussão nacional. As cantoras Leci Brandão e Daniela Mercury, o ator Helio de la Peña, o teólogo e filósofo Frei Davi e o Ministro Silvio Almeida, manifestaram publicamente a sua indignação e o seu apoio à convocação de Ilzver. Recentemente, em março de 2023, Ilzver foi convocado.
O silêncio é um grito de socorro escondidoPela alma, pelo corpoPelo que nunca foi dito Ana Cañas Chegamos na coluna Direitos Humanos em Pauta com espaço de voz para trazer à tona uma ponderação introdutória, mas necessária, acerca de uma das faces mais desumanas da violência contra a mulher, a perspectiva da violência vicária. A violência vicária é aquela tida por substituição, ou seja, quando o ato violento é praticado contra uma pessoa, com a intenção real de atingir a vítima mulher. Dentre as formas da violência contra mulher, a violência vicária reflete o caráter desumano, pois para atingir a vítima, é comumente praticada contra crianças, filhos e filhas, mas possível também que alcance familiares, ou integrantes da rede de apoio da mulher, geralmente, outras mulheres: mães, irmãs, amigas. O ano de 2023, no seu primeiro bimestre, apresenta sinais de que o combate à violência contra mulher retorna à pauta da estruturação de Políticas Públicas no Brasil, fato que nos leva como sociedade ao enfrentamento de velhos e novos desafios. Precisaremos avaliar os danos dos retrocessos vivenciados como resultado das estratégias dos últimos governos, ao mesmo passo que se torna imprescindível estabelecer espaços concretos para o real exercício do direito à igualdade de gênero e isso implica, sobretudo, no questionamento das nossas estruturas, sejam elas institucionais, públicas ou privadas, como também sociais, econômicas e jurídicas. A igualdade de gênero se apresenta, em especial, no momento da (re)construção democrática do país, como instrumento social potente e capaz de encarar os desconfortos das mudanças que são urgentes e essenciais para o combate à violência e ao discurso de ódio, ao mesmo tempo que desenvolve o exercício da cultura da paz. Assim, conhecer a expressão real da violência vicária se torna imperativo no processo de descortinar aspectos velados da violência contra mulher e promover reflexões que nos façam avançar na promoção e consolidação do direito a igualdade de gênero.   A violência vicária se enquadra dentro das perspectivas de violência de gênero, pois a sua prática tem o objetivo de atingir a mulher. A substituição do direcionamento do ato violento, seja ele físico ou psicológico, à outra pessoa tem a intenção precípua de causar danos mais profundos e permanentes às mulheres. Assim, a violência vicária é sempre exercida por homens contra mulheres, usando como meio terceiros que mantém vínculos afetivos com a vítima principal, sejam esses vínculos de filiação, parentesco e/ou amizade. Importa destacar, ainda, que a violência vicária se desenvolve no âmbito da vida privada, mas carrega em si um caráter público, quando nela se retrata a expressão social da tolerância à prática de abusos e atos violentos contra as mulheres, que aqui se estendem às outras pessoas, que, por sua vez, passam também a experimentar e sofrer diversos aspectos da mesma violência. A defesa do direito das mulheres, então, se interessa pela discussão da separação entre as esferas da vida pública e privada, como afirma Carole Pateman1. O questionamento dessa estrutura social rompe o silêncio daquela tolerância, quando põe em xeque uma sociedade construída sob a divisão rígida entre o público e o privado, na qual uma esfera quase não interfere na vida diária da outra e, portanto, por ela não é responsável. A quem interessa a permanência desse sistema social? Assim, cria-se uma falsa sensação de que a sociedade e o Estado, quase nada podem fazer quando se trata de violência praticada no âmbito doméstico e/ou familiar, em especial, nos episódios da violência contra mulher, nos quais estão incluídos os casos de violência vicária. Esta espécie de violência, portanto, torna-se uma representação cruel, pois ao atingir indivíduos com as quais a vítima se relaciona, o resultado do ato violento é, na maioria das vezes, o completo silenciamento pelo medo sofrido pela mulher de pôr em risco a vida de um ente querido, normalmente, seus filhos e filhas, pais, parentes e amigos. O extremo da violência vicária pode chegar à morte dessas pessoas. O Brasil tem casos notórios de homicídios de crianças praticados pelo pai, quando, na verdade, o que estava em disputa era o poder e o controle sobre a vida da ex-mulher ou ex-companheira. O retrato da violência vicária se torna mais perceptível quando se analisa os casos judicializados que envolvem a disputa pela guarda dos filhos e das filhas. Muitas vezes, ao longo dos processos, as crianças e os adolescentes apresentam sinais de manipulação pelo pai, que utiliza como principal meio a violação da imagem e da honra da mãe, questionando diversos aspectos do exercício da maternidade. Assim, não são raros os momentos em que homens se utilizam de manobras jurídicas e processuais numa tentativa de obter a custódia dos filhos e das filhas com o principal objetivo de violentar a mulher. Também não menos raros, são os casos em que o Poder Judiciário, concede direitos aos pais, promovendo e legitimando a perpetuação da prática da violência vicária, pois acaba por condenar duplamente a mulher, a vítima da violência e muitas vezes também considerada ré em processos de denunciações caluniosas. A condenação ainda esbarra no afastamento, ainda que temporário, que a mulher sofre do convívio com seus filhos e suas filhas, bem como, nas transformações da sua rotina diária, que resultam no desgaste da sua saúde física e mental. Nesse sentido, a violência vicária se expressa, em razão dos meios utilizados para a sua prática, como uma violência velada, pois os agressores encontram possibilidades legitimadas de continuar com o exercício da demonstração de poder de gênero, qual seja o controle sobre a vida das mulheres2, mesmo após o término das suas relações, alcançando os filhos e as filhas, com o aval do Estado.  Esse cenário também é descrito nas palavras da Alessandra Andrade e Sibele Lemos3: Essa é a principal violência que desestrutura completamente as mulheres dentro dos trâmites processuais, acompanhada da violência institucional que atua conjuntamente, desqualificando a palavra das vítimas, ignorando provas e o pior, transformar processos com "insuficiência de provas" em processos de falsas denúncias ou, ao arquivá-los, processar as vítimas por denunciação caluniosa. Ou seja, o Estado culpabiliza as vítimas nos crimes em que Ele próprio foi omisso e incompetente na produção e condução das provas. Em 2019, reflexões dos efeitos da prática da violência vicária no ordenamento jurídico brasileiro vem à tona quando a Associação das Advogadas pela Igualdade de Gênero e Ração (AAIG) retoma a discussão e ingressa no Supremo Tribunal Federal com a ADI 6273/20194, com a finalidade de discutir a inconstitucionalidade da Lei de Alienação Parental (LAP), Lei n°. 12.318/2010, que figura como um claro exemplo de como o Estado pode negar a existência da violência vicária no Brasil. O processo de aprovação dessa legislação careceu do amadurecimento necessário acerca da violência contra a mulher, bem como, das possibilidades de violências serem cometidas contra mulheres e crianças durante os processos judiciais de disputas familiares. Além disso, a LAP demonstra ser uma resposta negativa aos direitos das mulheres conquistados anos antes pela publicação da Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006), justamente por permitir, na utilização de manobras jurídicas, que a voz de mulheres e das próprias crianças caiam em descrédito perante as autoridades judiciárias, impondo, portanto, o silenciamento.  Por essas razões, a ADI 6273/2019 chamou a atenção para esse problema, que ainda vigora e impele a sociedade brasileira ao seu enfrentamento. Combater a violência vicária nos leva a questionar estruturas sociais e institucionais, bem como, o próprio ordenamento jurídico do país. Desse modo, a AAIG na petição que inaugurou a ADI 6273/2019, ao analisar o emblemático caso de legislação semelhante à LAP que foi considerada inconstitucional pelo México, afirma que:          Ademais, foi defendido o fundamento de que a consequência da aplicação da referida legislação perpetuava a violência de gênero. Isso porque as mulheres passaram se sentir desencorajadas e desestimuladas a denunciar violências sofridas por suas filhas e filhos e por elas mesmas, uma vez que esse pedido de socorro às autoridades públicas era, na maioria das vezes, interpretado como falsa acusação e, por consequência, a elas se aplicavam as regras da alienação parental.           Assim, o tratamento da violência vicária pelo Estado e o seu desconhecimento pela sociedade demonstra o que parece ser uma vitória do homem/agressor, na vida privada, mas não passa sem consequências para a mulher/vítima e para a sociedade, na vida pública. É com esse mesmo entendimento que Isabel Angél e Magdalena Ojeda afirmam que a negação da violência contra a mulher pelo Poder Público questiona os valores democráticos e provocam efeitos nefastos para a convivência social.  Concluem as autoras afirmando que "A negação da violência contra as mulheres deve ser considerada apologia à violência"5 (livre tradução). Então, negar a violência vicária é, em si, violação de direitos humanos das mulheres previstos na Convenção de Belém do Pará, a qual afirma no seu art. 3° que: "Toda mulher tem direito a ser livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada."  Por isso, o combate da violência vicária aporta no lugar onde a defesa dos parâmetros reais de igualdade de gênero, reforça a afirmação da necessidade de um engajamento de responsabilidade social e coletiva na gestão dos sistemas sociais, econômico e jurídico e na defesa dos Direitos Humanos, capazes de interceder e solucionar os conflitos. Ademais, é também tentar compreender se as mudanças da realidade são de fato desejadas pela sociedade, ou, se prestam apenas para servir às mesmas estruturas de poder que ainda refletem o domínio do masculino sobre o feminino. Por isso, essas reflexões são urgentes e necessárias, no contexto em que o silenciamento de mulheres alcança cada vez mais casos evidentes no Brasil. Assim, a condução das políticas públicas de defesa do combate à violência vicária, como também a todas as outras formas de violência contra a mulher, nos levam ao caminho da construção da sociedade que queremos ter, em igualdade de gênero, com possibilidade de pertencimento, de convivência familiar e de desenvolvimento humano saudável.  __________ 1 PATEMAN, Carole. El desorden de las mujeres - Democracia, feminismo y teoria política. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2018.   2 STECANELA, Nilda; FERREIRA, Pedro Moura. Mulheres e Direitos Humanos: desfazendo imagens, (re)construindo identidades. Caxias do Sul, RS: Ed. São Miguel, 2009, pgs. 27 e ss. ______________. Mulheres e narrativas identitárias: mapas de trânsito da violência conjugal. Caxias do Sul, RS: Educs, 2007. 3 ANDRADE, Alessandra; LEMOS, Sibele. Quando o Estado legitima a violência contra as mulheres. (último acesso 03/03/2023)  4 Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6273/2019 - STF  (Não conhecida no mérito em razão de ausência de legitimidade ativa).  5 ÁNGEL, Isabel Tajahuerce; OJEDA, Magdalena Suárez Ojeda. Así es la violencia vicaria, la expresión más cruel de la violencia de género. (último acesso 03/03/2023)
Pende no STF importante julgamento que pode gerar precedente relevante contra o perfilamento racial de abordagens policiais a pessoas negras por "fundada suspeita" de crimes (CPP, 244) no Habeas Corpus (HC) 208.240/SP. O placar está 4x1 contra a concessão do HC, por ora vencido o Relator, Min. Fachin, que o concede de ofício. Em síntese, o Relator reconhece o perfilamento racial no caso e propõe Tese contra ele, enquanto a divergência não o reconhece no caso, mas se dispõe a criar Tese sobre o tema. Tal posição da divergência gerou crítica de Lenio Streck, Marcelo Cattoni de Oliveira e Diogo Bacha e Silva.1 Reconhecendo a existência de perfilamento racial no caso e a óbvia inconstitucionalidade de abordagens baseadas nisso para, assim, defenderem a concessão do HC, criticaram o STF entender que pode não reconhecer o perfilamento racial mas criar Tese contra ele. Entendem "paradoxal" criar-se Tese sem aplicá-la ao caso que a originou; afirmam que, se isso ocorrer, "o STF não terá julgado o caso, ou seja, não levará o caso concreto a sério, mas sim terá utilizado o caso como pretexto para a formulação de uma 'tese', subvertendo de modo severo o próprio sentido da garantia constitucional do Habeas Corpus" (sic), que é o de "levar os elementos e as circunstâncias do caso a sério para, enfim, realizar o julgamento" para a "tutela de direitos fundamentais". Afirmam que não reconhecer o perfilamento racial no caso ao mesmo tempo em que se cria uma tese sobre a inconstitucionalidade dele tornaria liberdade do paciente uma "questão secundária para que o STF edite uma lei geral" (sic), algo que afirmam incompatível com a função do HC enquanto remédio heroico para garantia da liberdade. Entendem que não pode o STF criar Tese como fruto do julgamento de um HC, embora o possa em Recurso Extraordinário com Repercussão Geral (RE/RG), ante a previsão legal neste último. Temem um futuro em que "todo o direito seja transformado em teses. E súmulas", em prejuízo de pessoas que "sofrem diuturnamente violações de seus direitos, mas cujas violações não são reconhecidas pelo Poder Judiciário" Em outro artigo, Streck renovou a crítica sem contribuições novas, só citando "obstáculos epistemológicos" (sic) à criação de Tese em HC não concedido, embora falando que "Levar o caso concreto a sério é conhecê-lo nas suas mínimas circunstâncias e o examinar. Porém, o ministro Fachin não conheceu(d)o caso" (sic).2 Entendemos que a crítica não se sustenta quando aduz que o caso não estaria sendo levado a sério (o teor dos votos prova que está) e que a oposição à criação de Teses fora de RE/RG é equivocada ou, ao menos, não é conclusão obrigatória da teoria de precedentes (no Brasil e nos EUA). Ademais, incorporando a máxima de Sobral Pinto de que a Advocacia não é lugar para Covardia, atuamos no processo representando amici curiae (IDAFRO e GADvS) e não temos temor nenhum em criticar o STF - tanto que enviamos memorial a todos(as) Ministros(as) criticando a divergência (atualmente, majoritária), o qual foi ratificado por João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem  em artigo sobre o julgamento.3 Apenas não aderimos à crítica pela crítica (e não estamos dizendo que os autores o fizeram), simplesmente discordamos da crítica aqui respondida - embora concordemos com os autores quando bem dizem que esse caso "revela o fracasso institucional" de nosso Judiciário. A nosso ver, por representativo do punitivismo que impõe (com perfilamento racial!) uma pena superior do que a do homicídio simples pela posse de 1,53 gramas de entorpecente - no mínimo, o princípio da proporcionalidade manda lembranças. Analisemos, assim, o atual estado da arte do julgamento. O Min. Fachin está concedendo o HC de ofício, por entender que o testemunho dos policiais que abordaram o Paciente (Sr. Francisco) comprova o perfilamento racial, ao afirmarem que o abordaram por terem visto "indivíduo negro/de cor negra" em situação que acham típica de venda de drogas, em dinâmica que o Relator bem entende que não gera justa causa de abordagem policial por fundada suspeita. Pois o fato relativo a carro parado na calçada, com vidro abaixado, em diálogo do motorista com pedestre em ponto conhecido pela polícia como "boca de fumo" é dinâmica idêntica à de bairros nobres, onde notoriamente a polícia não aborda pessoas brancas em tal. Destacou que perfilamento racial não gera necessariamente crime de racismo, por este exigir dolo, enquanto aquele usualmente ocorre por vieses que furam/traem a racionalidade, por partirem de estereótipos racistas que presumem pessoas negras como criminosas em situações que não se presume as brancas como tais. Já os votos divergentes até agora (Mins. Mendonça, Moraes, Toffoli e N. Marques) também estão julgando o caso e negam a ordem por sua interpretação dos testemunhos policiais e outros elementos - interpretação equivocada, mas a partir das provas do caso. Aduziram que este seria um "caso ruim" para discutir perfilamento racial porque, embora o racismo estrutural seja notório e gere perfilamentos raciais, ele não teria ocorrido no caso por ter havido abordagem policial ao Paciente por estar em conhecida "boca de fumo", em dinâmica considerada "típica" do crime de venda de drogas, com o Paciente mudando sua feição ao ver a polícia e tentando evadir-se do local (o Min. Fachin, sem resposta, bem explicou que o racismo estrutural torna notório que pessoas negras se assustem quando veem a polícia, já que vítimas de estereótipos racistas). Por isso, negam a ordem, embora abertos a discutir Tese contra o perfilamento racial. Partimos à crítica da crítica. Pelo teor concreto dos votos (que assistimos ao vivo, donde podemos falar mesmo dos ainda não disponibilizados por escrito), o fato de o HC não ter sido conhecido pelo Min. Fachin não tem relevância quanto à sua apreciação do caso, porque ele concedeu a ordem de ofício (CPP, 654, §2º) a partir de sua análise da concretude do caso concreto (as provas nele produzidas), examinando-o em suas "mínimas circunstâncias". Por isso, com todo respeito, indefensável a crítica de que estaria tratando o caso como "questão secundária" (sic), pois seu voto prova que o julgou. O mesmo vale à crítica à equivocada divergência, pois está julgando o caso a partir de sua concretude, à luz das provas produzidas - ainda que equivocadamente. A grande crítica dos autores se refere tanto ao STF criar Teses em processos sem expressa autorização constitucional ou legal quanto que isso ocorra em HC não concedido. A Constituição não fala em "tese de repercussão geral", mas apenas de inconstitucionalidade "em tese" (art. 103, §3º), sem disso falar ao tratar do RE/RG (art. 102, §3º). Já o CPC fala em tal "tese" várias vezes: não só sobre acórdão de RE ou REsp dever abranger "a análise dos fundamentos relevantes da tese jurídica discutida" (art. 1.038, §3º), cuja decisão será aplicada pelos demais Tribunais a processos sobrestados que versem sobre "aplica[ção d]a tese firmada" (arts. 1.039 e 1.040, III), vinculando a Administração Pública em tema relativo ao serviço público (art. 1.040, IV) quando de decisão de recursos repetitivos e súmula vinculante - DRR e SV (arts. 311, II, e 955, II). Princípio fundamental do CPC adota lógica geral de "aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos" (art. 12, §2º, II), exceto se, ao "reexaminar a causa" (art. 1.040, II), o Tribunal a quo explicar que, a despeito da Tese, sua decisão anterior não a afronta, por "distinção" (art. 489, VI).4 Fala, ainda, em "tese jurídica" firmada em DRR e SV, cuja alteração pode ser precedida de audiências públicas e participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a "rediscussão da tese" (art. 927, §2º), e fala em "tese" que vincula Juízos e órgãos fracionários após julgamento de incidente de assunção de competência (IAC) (art. 947, §3º). Atesta que alteração de jurisprudência consolidada ou "tese adotada no julgamento de casos repetitivos" deve contar com a fundamentação adequada do art. 489, §1º e 2º (art. 927, §4º) e que não poderá haver incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) em Tribunais de 2º Grau se já houver sido afetado em Tribunal Superior recurso para "definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva" (art. 976, §4º). Atesta, ainda, que tal incidente deve "fixar a tese jurídica" para que, com ela, sejam julgados recursos de casos (art. 978, par. único), cuja decisão deve analisar "todos os fundamentos suscitados concernentes à tese jurídica discutida, favoráveis e contrários" (art. 984, §2º). Julgamento que só pode ocorrer após consulta no "registro eletrônico de teses jurídicas", que "conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados" (art. 979, §2º), para que tal "ese jurídica" seja aplicada aos processos que "versem sobre idêntica questão de direito", sob pena de reclamação (art. 985, I e II e §1º), prevendo RE ou REsp contra a "tese" em questão (art. 987, §2º). Afirma caber reclamação quando da "aplicação indevida da tese jurídica" firmada em súmula vinculante, decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade, IRDR e de IAC (art. 988, §4º). Bem como de embargos de declaração quando a decisão "deixe de se manifestar sobre tese firmada" em julgamento de IRDR e IAC (art. 1.022, par. único, I). Fala de confrontação de "teses jurídicas" em julgamento de embargos de divergência (art. 1.043, §1º) e, por fim, trata da "súmula da decisão sobre a repercussão geral [que] constará da ata de julgamento" (art. 1.035, §11).5 O princípio oriundo da interpretação sistemática de todos esses textos normativos parece ser o de que todo caso que tenha transcendência, por ultrapassar interesses individuais do caso por versar sobre tema que se repete ou tem aptidão de se repetir em infinidade de processos futuros admite a criação de Tese.6 Dogmaticamente, não há razão para que o STF não possa criar Teses fruto de julgamentos, desde que sejam a exteriorização de seus fundamentos determinantes, ou, na gramática dos precedentes, de suas ratione decidendi (holdings). Pois tais fundamentos determinantes correspondem àquilo que vinculará casos futuros análogos (CPP, 315, §1º, V, CPC, e CPC, 489, §1º, V) à luz do suporte fático (das particularidades) de tais casos, para que recebam o mesmo tratamento jurídico, por isonomia. Isso no exato sentido de Streck, Cattoni de Oliveira e Bacha e Silva, de "aplicar o julgado (o princípio ou a ratio que dele se extrai) toda vez que um caso desse tipo se repetir". Os autores adotam compreensão clássica da teoria de precedentes, pela qual a decisão "não nasce" como precedente, mas é assim reconhecida por decisões futuras, que identificam os fundamentos determinantes da anterior e os aplicam, salvo fundadas razões que justifiquem a distinção do caso, enquanto não houver sua superação (overruling). Mas desconsideram questão relevante: no contexto da Common Law, Testes abstratos são criados pela Suprema Corte dos EUA na fundamentação da Opinião da Corte quando do julgamento de casos. A prática da Suprema Corte dos EUA na decisão de casos e interpretação de precedentes pode ajudar. Precedentes da Corte estabelecem princípios que guiam a decisão do caso e que servem guia a julgamentos futuros. Já decisões de novos casos (gerando novos precedentes) o fazem não só aplicando, mas, quando necessário, especificando consequências não-expressas nos precedentes interpretados, ora refinando, restringindo, ampliando ou explicando consequências dos princípios afirmados pelos precedentes analisados. Exemplo. A Constituição dos EUA não estabelece textualmente a proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Por isso, a Suprema Corte já decidiu que "a Constituição nem proíbe nem requer o efeito retroativo" (Linkletter v. Walter, 1965) e, por isso, "a Constituição Federal não tem voz nesse assunto" (Great Northern Ry v. Sunburst Oil & Refining Co, 1932 - Justice Cardozo). Por isso, tratou da (ir)retroatividade de novas normas (fruto de novas decisões judiciais ou leis) como "questão de política, a ser decidida novamente a cada novo caso".7 Daí, no precedente Chevron Oil Co v. Hudson (1971), a Suprema Corte estabeleceu teste de retroatividade sintetizado em fórmula de três critérios: "Primeiro, a decisão a ser aplicada não-retroativamente deve estabelecer um novo princípio de Direito, seja pela superação de precedente passado no qual litigantes podem ter confiado, ou por decidir um tema pela primeira vez cuja resolução não foi claramente prevista. Segundo..., nós devemos... pesar os méritos e deméritos em cada caso pela análise da prévia história da regra em questão, seu propósito e efeito, e se a aplicação retrospectiva irá avançar ou retardar essa operação. Finalmente, nós (devemos) pesar a iniquidade imposta pela aplicação retroativa, porque há uma ampla base nos nossos precedentes em prol da não-retroatividade de novas decisões para evitar a injustiça ou dificuldade geradora de uma iniquidade substancial que pode resultar da aplicação retroativa de uma decisão desta Corte".8 Outro exemplo. Desde a famosa nota de rodapé n.º 4 do caso Carolene Products (1938), em que se estabeleceu que discrete and insular minorities precisam de maior proteção que grupos não-estigmatizados, a interpretação do princípio da não-discriminação (igual proteção das leis), é aplicado distintos testes. Em Cleburn v. Cleburn Living Ctr. (1985), a Corte explicou sua doutrina de três testes: para classes suspeitas, que normalmente aplica para raça-fenotípica e nacionalidade, há fortíssima presunção de inconstitucionalidade de leis que usam tais critérios suspeitos, declarando sua constitucionalidade só se o Estado provar que há um altamente persuasivo (compelling) interesse estatal estritamente vinculado ao objetivo pretendido (escrutínio estrito). Para as classes semissuspeitas, aplicado a questões de sexo/gênero, há forte presunção de inconstitucionalidade que será superada só se o Estado provar que há importante fim estatal fortemente direcionado a promovê-lo (escrutínio intermediário). Por fim, às classes não-suspeitas, relativas a temas econômicos e grupos que não reconhece como classes suspeitas e semissuspeitas, há fortíssima presunção de constitucionalidade da lei, que só será superada se a Parte provar que ela não promove nenhum "legítimo fim estatal". Aqui, tradicionalmente a Corte não fazia sequer o teste de adequação (aptidão em tese de a discriminação promover tal fim), algo que ela parece ter superado em decisões de proteção de direitos de casais do mesmo sexo, ao declarar a inconstitucionalidade de discriminações à luz deste teste básico (Romer v. Evans, 1996; Lawrence v. Texas, 2003; United States v. Windsor, 2012; e Obergefell v. Hodges, 2015). É o teste da relação racional, algumas pessoas falando em relação racional de segunda ordem pelas decisões da última frase exigirem tal adequação mínima, o que consideramos equivocado, por entendermos que houve evolução da Corte para exigir uma correlação mínima de adequação entre a discriminação e o legítimo interesse estatal pretendido. Esses "testes" da jurisprudência dos EUA são usados de forma geral e abstrata na análise de casos futuros. Em geral, novas decisões não reconstroem a nota 4 de Carolene Products e nem os casos posteriores, exceto por eventual citação de tema ou grupo que já foi ou não tratado de acordo com um dos testes. Concordamos que seria necessária tal reconstrução porque certamente evitaria a equivocada jurisprudência da Suprema Corte contra as ações afirmativas, pois como pontua Evan Gerstmann, a Corte varia de maneira inconsistente e não-fundamentada o uso da expressão classe suspeita (cf. Carolene Products) e classificação suspeita, para, de forma surreal, usar um teste fruto do Direito Antidiscriminatório não permitir o combate ao racismo estrutural negrofóbico por cotas raciais universitárias12. Gerstmann pontua que isso gera o paradoxo teratológico de pessoas LGBTI+ não receberem a proteção do escrutínio elevado das classes (ou classificações) suspeitas ou semissuspeitas, a pretexto de supostamente terem poder político suficiente para representação no Parlamento democrático (uma teoria da conspiração procedimentalista incoerente com a jurisprudência substancialista da Corte), mas pessoas brancas (grupo social hegemônico) receberem a proteção do escrutínio estrito quando pedem a inconstitucionalidade de ações afirmativas por critério racial-fenotípico. Isso gera perpetuação de discriminações estruturais, institucionais, sistemáticas e históricas, donde incoerente com a própria razão de ser destes testes (aqui descritos, não defendidos). Essa explicação dos "Testes" fruto dos precedentes da Suprema Corte dos EUA tem a seguinte relevância para nossa crítica à crítica contrária a Teses no Brasil: qual é a diferença substancial de uma Corte explicitar uma Tese fruto duas razões de decidir relativamente à postura de criar um Teste que conste do inteiro teor do acórdão? A crítica não se aplicaria a tais Testes? Os críticos podem dizer que se opõem também a esse procedimento (de Testes) da Suprema Corte dos EUA, que não estamos defendendo. O ponto é que a crítica contra o STF criar Teses enquanto concretização dos fundamentos determinantes da decisão do caso não pode tratar o STF como se estivesse criando algo incompreensível. Pois embora entendamos que as Teses são uma tentativa de criação de uma teoria brasileira de vinculação a precedentes, elas são análogas aos Testes da Suprema Corte dos EUA, notoriamente estudada enquanto representante do common law e de Corte de precedentes (princípio do stare decisis). Sobre o STF criar uma Tese que não será aplicada no processo em que criada, a uma, isso pode ocorrer em RE/RG e outros processos que a admitem (cf. supra) e, a outra, não há incoerência dogmática ou "obstáculo epistemológico" a isto em outros julgamentos. Destaque-se que não se trata de tema de competência, tradicionalmente compreendido como exigindo interpretação estrita para só permitir algo por expressa previsão legal no Direito Processual em matéria de competência, que, com todo respeito, se refere a qual órgão do Judiciário tem a atribuição de julgar determinado tema, sem abranger o tema de se tal órgão (Corte) pode ou não criar Teses.9 O ponto principal é que não há impedimento de qualquer natureza a que se crie Tese em julgamento que rejeita a pretensão da parte autora ou recorrente, seja em HC ou qualquer recurso ou ação originária. Expliquemos isso no contexto do julgamento do perfilamento racial (HC 208.240/SP). O que é necessário para que ele seja reconhecido? É preciso que a Corte explique o que é o perfilamento racial (os votos o fizeram), se ele é um problema social ou fato isolado (todos concordaram ser um problema social generalizado), se ele é ou não compatível com a Constituição (todos afirmaram sua evidente inconstitucionalidade) para, por fim, verificar se no caso ele ocorreu. Portanto, um julgamento que rejeite haver o perfilamento racial no caso concreto não está impedido de afirmar que o perfilamento racial é inconstitucional nas hipóteses conhecidas do mesmo, que a Corte pode descrever exemplificativamente (como casos de discriminação direta e indireta). No mínimo, obter dicta da Corte pode fazê-lo e fazê-la constar de sua ementa - e, embora as obter dicta não vinculem por não serem objeto do caso, sabe-se bem que julgamentos futuros as considerarão. Isso é rotineiramente feito em ementas, sendo o STJ exemplo paradigmático, pois nelas, inclusive a que declara a ilicitude do perfilamento racial (RHC 158.580/BA, DJe 25.04.2022), ele estabelece as premissas normativas e sua compreensão sobre princípios e regras prima facie relevantes ao caso para, após isso, decidi-lo. Em julgamento conjunto famoso sobre o direito ao esquecimento, primeiro o STJ definiu o que entende por "direito ao esquecimento" (não por solipsismo, mas pela interpretação do Direito à luz de nossa história institucional legal e jurisprudencial) para, depois, decidir o caso sobre isso. No "caso Aida Curi", não o aplicou o direito ao esquecimento que entendeu existente (REsp 1.335.153/RJ, DJe 10.09.2013). Concordamos que o correto seria primeiro julgar-se o caso e dele extrair os fundamentos determinantes geradores da Tese (entendemos que STF e STJ erram ao primeiro desenvolver abstratamente uma Tese e depois subsumi-la ao caso), mas essa é a praxe das Cortes Superiores, que pode ser criticada já que o Direito obviamente não se limita ao que os Tribunais dizem que ele é, mas que precisa ser bem compreendida e descrita com justiça. Aliás, esse caso do direito ao esquecimento prova que a crítica se equivoca quando presume que a fixação de uma Tese geraria sempre um "juízo-boca-das-Teses-do-STF" (sic). Pois ao decidir o RE 1.010.686/RJ (Tese 786), interposto contra tal decisão do STJ, o STF entendeu que não haveria tal "direito ao esquecimento" de forma apriorística e que a decisão sobre se uma publicação fere ou não direitos fundamentais depende da "ponderação" dos direitos envolvidos. Sem entrar no tema da ponderação10 e abstraído que o "direito ao esquecimento" havia sido reconhecido pelo STJ por tal ponderação, o STJ reapreciou o tema (cf. CPC, 1.040, II) e manteve sua decisão anterior, por explicar que ela não afrontou a Tese do STF. Temos então duas provas de que a aplicação de Teses nunca foi pensada numa lógica de silogismo perfeito de juízo-boca-de-Tese (sic). Primeiro, a Tese contra o "direito ao esquecimento" não disse para o restante do Judiciário nunca reconhecer determinada publicação não-autorizada como ilícita: disse que o tema tem que ser decidido à luz da ponderação dos direitos fundamentais à luz das peculiaridades do caso concreto. Segundo, o STJ decidiu novamente o caso que gerou a decisão do STF no RE 1.010.686/RJ a pedido de provedores com base na afirmação do STF de inexistência de um "direito ao esquecimento". Fosse um "juízo-que-não-interpreta-e-é-mera-boca-da-Tese-do-STF" (sic), teria o STJ dito só que o direito ao esquecimento não existe e teria dado razão aos provedores, mas houve labor hermenêutico pelo STJ na nova decisão para manter a anterior. Pois "Ao reapreciar (em junho de 2022) a decisão de 2018, a (3ª) Turma do STJ manteve o entendimento anterior e, mesmo diante da existência de tese da Suprema Corte com repercussão geral afastando o esquecimento, entendeu inexistir afronta àquela tese, na medida em que o STJ não determinara a exclusão das notícias desabonadoras, mas apenas a "desvinculação do nome da autora" da matéria sobre a suposta fraude no concurso público, mantendo íntegro o conteúdo da publicação".11 Eis trabalho hermenêutico-concretizador ao apreciar Tese que afasta o temor de que as Teses "repristinariam" alguma espécie de "positivismo boca-da-lei". Citemos outra Tese, agora no RE 898.060 (Tema 622), pela qual "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". Embora proferida em processo que os críticos o admitem, o STF negou provimento ao recurso e criou Tese aplicável a casos futuros. E não há risco de "juízo-boca-da-Tese" porque a mesma tem como pressuposto lógico que se analise o caso concreto em suas mínimas circunstâncias para ver se há a concomitância da paternidade socioafetiva concomitante à paternidade biológica. Tudo que a decisão proíbe como "questão puramente de Direito" é que se desconsidere as circunstâncias do caso quanto à posse de estado de filho(a) (nome, trato e fama) por mais de um pai e se negue que esse posse de estado de filho(a) gere direitos e deveres de filiação e parentalidade.12 Não há nada mais longínquo de um "juízo-boca-de-Teses" que isso. Em suma, admitir a criação de Teses pelo STF não significa que Juízos e Tribunais inferiores seriam meras "bocas-que-pronunciam-Teses", pois deverão continuar (e continuam) interpretando o precedente (ou provimento vinculante) que gerou a Tese para ver se ela se aplica ao caso e, mais do que isso, podem concluir que haveria outros fundamentos determinantes que não apenas os citados na Tese. Então, não nos pode ser direcionada a correta crítica pela qual Súmulas (persuasivas ou vinculantes) e Teses não podem ser interpretadas como textos normativos gerais e abstratos, independentes dos casos concretos que os geraram (nossa posição é intermediária entre a dos críticos e àquela que criticam com esse argumento). Daí a relevância da nossa posição, de Teses terem que explicitar os fundamentos determinantes da decisão que as gerou, porque isso as vincula ao suporte fático da concretude do caso concreto que as originou, como determinante para se saber se há razões para distinção do novo caso que justifique a não-aplicação do precedente (cf. CPC, 489, §1º, V e VI, e CPP, 315, §2º, V e VI). ___________ 1 STRECK, Lenio Luiz. OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. BACHA E SILVA, Diogo. Perfilamento racial: o STF fará um precedente sem caso concreto? Conjur, 13.3.23. Acesso: 15.03. 23. 2 STRECK, Lenio Luiz. Obstáculos epistemológicos e o caso do racismo na abordagem policial. Conjur, 16.03.23. Acesso: 16.3.23. 3 MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. STF qual precisa reconhecer racismo estrutural nas abordagens policiais. Migalhas de Peso, 7.3.23. Acesso: 16.2.23 4 NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre. PEDRON, Flávio. Teoria Geral do Processo, BH: JusPodivm, 2020, p. 722-3. 5 Com tantos dispositivos falando de teses para aplicação em processos sobrestados ou futuros sobre questão idêntica, soa aguilhão semântico entende-los como "rol taxativo", algo incoerente com a bela doutrina dos críticos. 6 Isso não só pelo paradigma positivista de obter, por indução, princípios gerais a partir do conjunto de regras, mas também no paradigma pós-positivista dworkiano que compreende o Direito como conceito interpretativo e um conjunto de princípios e não de meras regras (positivismo primevo) ou de regras e princípios (cf. Alexy). 7 TRIBE, Lawrence H. American Constitutional Law, 3rd Ed, V. 1, NY: Foundation Press, 2000, p. 218-9. 8 TRIBE, Op. Cit., p. 219. Tradução livre. G.n. 9 Desenvolveremos isso em outro texto se os críticos protestarem, à luz da história institucional do conceito doutrinário e jurisprudencial de competência, mediante fusão de horizontes da hermenêutica filosófica gadameriana (que também adotamos). 10 Técnica que os críticos julgam arbitrária - equivocam-se, pois visar racionalidade da decisão não significa que se traz certeza matemática por método capaz de garantir um resultado seguro (sic). A má-aplicação de uma técnica sem respeitar os seus requisitos dogmáticos (cf. Alexy) não torna a técnica arbitrária aprioristicamente. E mesmo sem adesão ao realismo jurídico, é preciso entender que o STF adota a ponderação de princípios e saber aplicá-la até que a Corte seja convencida a deixar de fazê-lo. Inclusive por sua positivação no art. 489, §2º, do CPC, em tentativa de dar parâmetros normativos para aplicação adequada à luz do aspecto deontológico do Direito, à luz da teoria de Alexy (levada a sério), pela qual da ponderação deve surgir uma lei da colisão, a ser aplicada por silogismo em situações futuras equivalentes. Mas esse tema transcende muito os limites deste texto. 11 GUARIENTO, Daniel Bittencourt. MARTINS, Ricardo Malfeis. Decisão do STJ dá novo fôlego a direito ao esquecimento. Migalhas: Impressões Digitais, 05.08.22 (atualizado: 08.08.22). Acesso: 16.03.22. G.n. 12 GERSTMANN, Evan. The Constitucional Underclass. Gays, Lesbians, and the Failure of Class-Based Equal Protection, Chicago: University of Chicago Press, 1999, p. 9: "A Corte tem oscilado entre dois termos que são similarmente enganosos: 'classe suspeita' e 'classificação suspeita'. Toda classe suspeita implica uma correspondente classificação suspeita. Se as minorias raciais são uma classe suspeita, então a raça é uma classificação suspeita. Mulheres são uma classe semissuspeita [porque] gênero é uma classificação semissuspeita. Quando gays procuram subir na hierarquia da igual proteção, as cortes dizem-lhes que eles não são uma classe suspeita porque eles não são politicamente  impotentes. Mas quando brancos procuram proteção contra programas de ação afirmativa, as cortes não pedem a eles para provarem que eles são politicamente impotentes (obviamente eles não são). Ao invés disso, as cortes sutilmente trocam a terminologia: elas afirmam que a raça é uma classificação suspeita e por isso protegem os brancos de preferências racionais. Similarmente, as cortes protegem homens de discriminações afirmando que o gênero é uma classificação semissuspeita. Ao transitar entre os termos classe suspeita e classificação suspeita, a Suprema Corte pode requisitar que alguns grupos mostrem que são politicamente impotentes, mas permitir que outros, muito mais poderosos politicamente, se beneficiem de uma forte proteção constitucional. A Corte nunca explicitamente reconheceu que faz isso, e nunca tentou justificar isso.  Na verdade, todos os critérios que as cortes usam para decidir onde grupos diferentes se encaixam na hierarquia da igual proteção são tão carregados de contradições, dois pesos e duas medidas e ambiguidades insolúiveis que uma decisão baseada em princípios nesta área é virtualmente impossível". Tradução livre. 13 Isso ante o fundamento determinante pelo qual "A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos", em termos de "pluriparentalidade".
Voltemos o nosso olhar para o racismo estrutural sob a perspectiva da responsabilidade civil em virtude da perda de uma chance como o tema proposto para esse nosso momento. Nesses poucos mais de 20 anos do nosso código civil é imperioso destacar que há um acolhimento tímido em seu texto acerca da responsabilidade civil. Sobretudo diante tantos casos que precisavam de respostas legislativas, as construções doutrinárias, acadêmicas e jurídicas muito construiu e contribui para a responsabilidade civil no alcance que temos atualmente. É inegável que, temos uma cultura e vivemos em uma sociedade patriarcal, machista, eurocêntrica e heteronormativa, onde o homem branco figura como símbolo de poder, sucesso e controle e, apesar de alguns avanços sociais, esta simbologia é constantemente retroalimentada pela indústria cultural que hegemoniza tal narrativa e pauta o direito. Contudo, convidamos ao(a)s leitores (as) a refletir sobre questão central que suleia este texto: O racismo estrutural tem correlação com a responsabilidade civil, sobretudo com a responsabilização pela perda de uma chance? Partindo desse ponto central para a ampliação do debate, é necessário colocar à mesa outras questões acessórias, porém, de igual relevância para situar os termos nos quais queremos disputar as narrativas emergentes nos últimos anos.  Neste sentido pergunta-se: O que é um ato de racismo para você? Talvez a primeira resposta que venha em sua mente seria de atos explícitos e diretos como os xingamos - macaco, nega fedida, pretos preguiçosos, raça suja e etc. Isto sem dúvida, tanto a legislação que criminaliza o racismo quanto a jurisprudência majoritária é no sentido de verificar a existência do dolo na conduta do agente através da intenção de ofender ou discriminar aplicando-se aí a teoria da discriminação direta, mas quem dera todo racista e toda discriminação fosse explícita, quiçá saberíamos como e de quem nos defendermos. Contudo, a hegemonia eurocêntrica arraigada em nossa cultura acrescida de elementos históricos fundantes da sociedade brasileita, tal como o mito da democracia racial, propiciou o fenômeno do racismo estrutural como uma tecnologia engendrada  e fincada sob pilares como o da discriminação indireta e na dissimulação e que produz repercussão no direito, na existência humana,  produzindo efeitos nefastos para os grupos discriminados e privilégios sociais, morais, econômicos, estéticos e etc., para os grupos hegemônicos. A filósofa Djamila Ribeiro, em seus escritos chama a atenção para um aspecto decisivo e importante do racismo e que é deixado à margem do nosso olhar: "(...)não tem como discutir economia sem discutir racismo, não tem como discutir transporte, habitação sem discutir racismo, sem discutir sexismo". (RIBEIRO, 2018). Dizer que que o racismo é estrutural implica na necessidade de voltarmos aos aspectos econômicos, sociais e existenciais do racismo, voltarmos o olhar para os efeitos indiretos e silenciosos que cada pessoa negra nesse país já sofreu e pior muitas vezes se dar conta, eis que o racismo se apoia na falaciosa narrativa da meritocracia para silenciar as gritantes disparidades raciais e sociais do Brasil. Nesse sentido, o viés da teoria econômica do racismo aponta vários mecanismos de discriminação racial para além da esfera penal ou civil: "(...) a divisão racial do trabalho; o desemprego desigual entre grupos raciais; o diferencial de salários entre trabalhadores negros e brancos; a reprodução - física e intelectual - precária da força de trabalho negra; a violência simbólica dos corpos das mulheres pretas". (ALMEIDA, 2018, p. 133) E a despeito da abolição formal da escravatura, em 1888, as bases da estratificação social já estavam delineadas e associadas à categorização racial. Os projetos políticos que sucederam a esse marco não conduziram a sociedade brasileira em outra direção, e a experiência da vida em comunidade assumiu uma feição própria para a parcela negra da população, acumulando desvantagens seculares de ordem política, econômica e social. Em um teste simples e rápido é possível compreender o alcance do silencioso racismo estrutural, vejamos: i) Quando se diz  que José é porteiro. Você o imagina de pele clara, cabelos loiros, olhos azuis? Mais fácil imaginá-lo preto ? ii) Quando se diz que Lúcia mora em uma comunidade pacificada, uma empregada doméstica, tem 4 filhos que cria sozinha, você consegue de pronto visualizá-la uma mulher branca, cabelos lisos, e traços finos? Com isso, indagamos: Por que algumas profissões foram naturalmente destinadas a pessoas negras? Por que é dada posição de destaque para a mulher negra como passista, mas não lhe é dada a mesma posição de destaque como uma médica, jurista ou desembargadora de um tribunal? Se desde o Projeto Genoma verificou-se a completa ausência de fundamento científico para subdivisão da espécie humana em raças, fazendo elidir toda e qualquer conclusão cientifica anterior acerca das hierarquias biológicas raciais. De modo que, cientificamente falando não existe raça branca, amarela ou negra e a palavra raça atualmente é um termo que emprestamos da sociologia para o mundo jurídico, lembremos que esse entendimento foi assentado pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 82.424-2, conhecido como o caso Ellwanger onde se reconheceu o racismo contra o povo judeu De modo que, numa leitura mais aprofundada dos contextos históricos e do construto sociológico da raça, temos que ela existe e serve ao racismo enquanto uma ideologia. Esse é um dado fundamental à compreensão da estrutura e funcionamento da sociedade brasileira na qual se evidencia a marginalização dos grupos racialmente discriminados e o consequente paralelismo entre desigualdade racial e desigualdade social.   Inúmeros dados estatísticos ilustram tal realidade e, a título de exemplo, conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil e pelo IPEA, em 2021, 70% dos moradores das favelas são negros; os negros tem menores índices de escolaridade, renda e representação política, os maiores índices de desemprego e subocupação laboral e ainda se encontram em piores situações de moradia. A conclusão é que: a pobreza tem cor e quem tem a cor da pobreza tem menos chances nesse país. Diante dos dados e elementos apresentados questiona-se como a perda de uma chance se conecta a falta de acesso à informação no engendramento do racismo estrutual? Sabemos que é dever do Estado assegurar o cumprimento das garantias fundamentais do cidadão independente de sua cor, gênero, orientação sexual, bem como, também é dever do Estado além da criminalização do racismo, lançar mão de políticas públicas para a superação do racismo em todas as suas dimensões. Por fim, é dever do Estado informar, (re)educar uma sociedade racista, machista e sexista a desnaturalizar condutas baseadas em estereótipos que negam acesso a direito a seus cidadãos? Diante das afirmações acima que, registre-se, não são frutos da nossa imaginação, mas dão condão ao estado do bem-estar social, fica facilmente demonstrado que o Estado vem reiteradamente descumprindo o seu dever legal de agir colocando-se inerte na garantia direitos fundamentais à população negra e pobre nesse país. E analisando dever precípuo do Estado à luz da limitação do princípio da reserva do possível estabelecido pelo STF, entendemos que é possível sim o Estado agir, sempre foi e sempre será É possível a ação do Estado Social Civil em medidas de conscientização de direitos e garantias e implementação de medidas que assegure o seu comprimento e gozo. O estado não pode ser apenas punitivo - ele precisa antever o dano. Há que se ter necessárias ações para a superação do racismo sistêmico, estrutural e institucional, pois esse não tem rosto como àquele citado no início e que prática o racismo por meio da discriminação direta. Os efeitos produzidos pela discriminação indireta do estado nas omissões relatadas são perversos, nocivos e silenciosos e cotidianamente arrasta a população negra e pobre para o mais Há uma conduta ilícita tipificada no código penal intitulada Racismo Estrutural? Sabemos que não, mas a atipicidade torna inexistentes condutas estruturalmente racistas que alocam determinado grupo populacional em lugares subalternizados? Não. Então, por que não podemos falar em condenação pela perda de uma chance decorrente racismo estrutural em razão da inércia do Estado que - atentando contra o princípio da reserva do possível e seu dever de agir - sendo possível fazer não o fez? Deixando de tomar providencias para mitigação das desigualdades. Um outro elemento necessário para que o dever de indenizar do Estado é a presença do dano anormal e específico. E podemos então falar em condenação pela perda de uma chance pelo racismo estrutural já que também temos danos que são anormais e são específicos. Mas, o que seriam danos anormais? Segundo estudos realizados por uma ONG Carioca, a cada 10 pessoas negras sob solo brasileiro, ao menos 7 já sofreram episódios de racismo estrutural. E se essa pessoa for Mulher os atos discriminatórios se agravaram: a cada 10 mulheres negras, 09 já sofrem atos de racismo e sexismo ligados à cor da sua pele/ características étnicas. Isso não pode ser considerado normal e permanecer naturalizado na estrutura social. Naturalizar condutas indiretas de racismo é negar sua existência e fechar os olhos aos danos que ele provoca. Danos sem dúvidas existenciais, mas que permeiam a moralidade do sujeito e as suas chances reais de acesso a uma moradia digna, uma educação de qualidade e um cargo de destaque. Ter acesso a informação, ter uma moradia digna, ter acesso a um trabalho digno e notável e não apenas em funções subalternas. Não estamos pedindo um tratamento diferenciado à população preta nesse país. Estamos reivindicando e levando cada leitor(a) a refletir nas chances sérias e reais que o racismo estrutural tira todos os dias das pessoas negras e pobres desse país. Continuamos sendo escravizados, só que em grilhões e troncos invisíveis, que podem não ferir o corpo, mas ferem nossa dignidade e nossa alma. Nesse sentido, é dever do Estado responder por omissão. É dever do Estado reconhecer que não basta APENAS atuar tipificando condutas. É preciso resguardar direitos antes que eles sejam minados. Requeremos o desfocar do óbvio: as pequenas condutas que minam e impedem a aquisição de direitos. Preterição pela cor, questionamentos quanto a competência em razão da cor, erotização em razão da cor. Os ditos "mimis" diários que somos submetidas (os) e que a cada dia furtam um pedaço de nós, da nossa força, da nossa percepção do que realmente somos e podemos ser. Assim, furtam sorrateiramente as chances que poderíamos alcançar. A responsabilidade civil requer atenção nesse contexto, pois as condutas que refletem o racismo estrutural têm grande potencial para gerar danos, notadamente de ordem moral. Isso porque tais condutas quase sempre resultam em prejuízo ou lesão a direitos de conteúdo não pecuniário e impassível de redução a pecúnia, por meio de transação comercial, como são os direitos da personalidade. O racismo, conforme o meio e circunstâncias através dos quais é praticado, pode macular a integridade física, moral e psíquica das vítimas, dando origem a danos indenizáveis. Assim como o bullying, a prática do racismo pode ensejar a configuração de dano existencial, entendido como "dano a um projeto pessoal, que causa 'vazio existencial' (perdas de relações sociais, familiares, etc.) impedindo o sujeito de se comportar ou agir de acordo com os seus sentimentos e expectativas", configurando assim o dano pela perda de uma chance. Com efeito, a construção dos projetos pessoais dos indivíduos negros na sociedade brasileira é continuamente obstruída pelo racismo. Do quanto já exposto, conclui-se que o racismo gera danos e compete ao Direito Civil impor as reparações correspondentes. Diferentemente, entretanto, do que pode parecer à primeira vista pela simplicidade dessa dedução, esta não é uma tarefa fácil. Um olhar sistêmico é essencial à punição da discriminação indireta, caracterizada quando "um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico. Essa forma de discriminação é especialmente nociva, porque oculta o critério racial, quando não o trata como reflexo natural e inevitável, favorecendo discursos que conduzem à impunidade". Condutas racistas ofendem bens jurídicos de elevada importância, por vezes, até mesmo o tão essencial direito à vida. Ante os danos decorrentes disto, a reparação civil se apresenta como caminho para a compensação da vítima e a punição do ofensor, bem como promover o desencorajamento social da conduta lesiva. Nossos agradecimentos pela leitura. Na certeza de que não viemos aqui trazer respostas taxativas a esse problema secular que impacta de maneira inegável as relações de trabalho, o acesso a direitos fundamentais e a percepção das pessoas negras sobre si mesmo. Trazemos aqui questionamentos e desconforto para que juntos possamos garantir um futuro plural e acrômato.
"O estuprador é você. É a polícia. São os Juízes. É o Estado. O Presidente. O Estado opressor é racista e estuprador! O Estado opressor é racista e estuprador!"1 O grito das mulheres chilenas transcendeu fronteiras e, em 2020, chegou às ruas do Brasil sob o Governo Bolsonaro. Àquela época, Trump, Bolsonaro e outros Chefes de Estado lideravam um movimento internacional neoconservador e ultraliberal que retrocedeu nos direitos humanos das mulheres, sejam eles direitos sexuais e reprodutivos, direitos trabalhistas ou direitos aos seus territórios. A palavra de ordem feminista, por sua vez, como nos lembra a cientista política e feminista decolonial Françoise Verges apontou o dedo para os responsáveis estruturais pelos estupros e feminicídios: a polícia e o Estado2. Em território brasileiro, portanto, nossa luta contra as violências de gênero e raça igualmente não pode se abster da crítica às violências promovidas e legitimadas por um Estado fundado no genocídio negro e indígena, onde a violência sexual é uma constante, e se furtar da necessidade de despatriarcalizar e descolonizar os espaços de poder. O Brasil é o quinto país do mundo mais perigoso para se viver enquanto mulheres e meninas. Durante os últimos quatro anos, sob um Governo Federal de extrema direita, esse cenário se agudizou. Especialmente a partir da promoção de uma política estatal onde a manutenção do núcleo familiar se sobrepunha à titularidade de direitos de mulheres, crianças e adolescentes nos casos de violências domésticas e familiares. Tendo em vista que a maior parte das violências contra esses segmentos vulneráveis acontece dentro de casa, a destituição da sua titularidade de direitos foi também um processo de desumanização e de manutenção de uma estrutura patriarcal, racista e adultocêntrica. O fortalecimento dos vínculos familiares precisa caminhar de mãos dadas às políticas de promoção da equidade de gênero, raça e diversidade sexual, com o reconhecimento da multiplicidade de arranjos familiares e a construção de um Sistema Nacional Integrado de Cuidados, a exemplo do Uruguai. No qual não só se garante o direito aos cuidados de idosos, crianças e pessoas com deficiência, como também se equilibram as responsabilidades sobre cuidados entre homens e mulheres.3 Se coube aos neoconservadores colocarem a família no centro da agenda de enfrentamento à violência contra as mulheres, cabe a nós dar novamente centralidade às violências de gênero e raça. Projetos que negam a importância de uma educação promotora dos direitos humanos das mulheres e meninas - como o Escola Sem Partido -, ou falsas promessas de resolver as violências armando a população civil e recrudescendo as penas para os agressores foram parte da agenda ideológica do bolsonarismo. Como decorrência dessa política estatal, 65% das mortes violentas de mulheres e quase 30% dos feminicídios, em 2021, foram cometidos por armas de fogo, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.4 Soma-se a isso um foco exclusivamente centrado na repressão a esses crimes de ódio e no pouco - ou nenhum investimento - nas políticas preventivas, evidenciada pela supressão de 90% do orçamento destinado ao enfrentamento à violência contra as mulheres nos últimos 4 anos.5 É nesse contexto que, enquanto juristas feministas e antirracistas, se impõe que façamos um debate conceitual sobre os feminicídios. Para ir além dos feminicídios íntimos - aqueles que ocorrem nas relações íntimas de afeto, relacionados ao contexto de violência doméstica e familiar - e abranger as mortes de mulheres decorrentes do menosprezo à condição de mulher. Indo além, compreender os feminicídios como crimes de Estado desvela sua natureza política, tarefa que feministas latinoamericanas têm evocado para si. Como é o caso da socióloga mexicana Marcela Lagarde, para quem os feminicídios são genocídios contra as mulheres que decorrem da omissão e da negligência das autoridades que deveriam preveni-los, de modo que o não exercício de suas funções precípuas de proteção às meninas e mulheres resulta na manutenção da estrutura patriarcal da sociedade, fundada na dominação e desumanização das mulheres pelos homens.6 A jurista brasileira Soraia da Rosa Mendes também nomeia Feminicídio de Estado enquanto "todas as condutas dolosas, comissivas e omissivas, de agentes estatais que deem causa a mortes de mulheres em razão de desigualdade histórico-cultural do poder, construída e naturalizada como padrão e menosprezo ou discriminação ao gênero feminino" (MENDES, 2021, p.59).7  Nos deparamos, portanto, com Feminicídios de Estado quando mulheres morrem em contextos de abortamento clandestino ou violência obstétrica, quando mulheres lésbicas e transexuais morrem em razão de discriminações quanto à orientação sexual e identidade de gênero, quando meninas e mulheres indígenas são estupradas e assassinadas em seus territórios originários por agentes do garimpo ilegal, que contavam com a conivência do Governo Federal para invadir e violentar seus corpos-territórios. De outro giro, há terrorismo de gênero do Estado8 quando este opera para a manutenção das ferramentas de dominação e hierarquização que permitem a sobrevivência dos valores patriarcais na sociedade, a exemplo da criação e manutenção de leis que expressam a misoginia interseccionada com o racismo ou quando operadores do sistema de justiça lançam mão de estereótipos machistas e racistas para desqualificar as vítimas de violências contra as mulheres nos julgamentos de seus algozes. No âmbito do terrorismo legislativo de gênero, é digno de nota que diversos textos normativos positivaram e estimularam a violência contra as mulheres no Brasil, a começar pelas Ordenações Filipinas. Até 1830, as Ordenações Filipinas permitiam aos maridos castigarem fisicamente as mulheres (além de "criados", filhos ou escravos) desde que não utilizassem armas e o direito de matar as esposas em caso de infidelidade. Com o Código Civil de 1917, por sua vez, as Ordenações Filipinas são revogadas e as mulheres são declaradas como relativamente incapazes, junto aos "menores", "loucos" e indígenas. Em 1932, quando sobretudo as mulheres brancas de classes abastadas conquistam o direito ao voto, seu direito político era condicionado à autorização dos maridos quando casadas e, quanto às mulheres viúvas e solteiras, apenas as que tivessem renda própria poderiam votar. As mulheres analfabetas, maioria entre as mulheres trabalhadoras e pobres, em sua maioria negras, somente iriam votar a partir de 1985.9 Mudam-se as leis, mas a racionalidade patriarcal é mantida jurídica e culturalmente. Teses jurídicas como a da "legítima defesa da honra" passam a anistiar homens que matassem suas esposas ao surpreendê-las praticando adultério. De igual forma, a caracterização de feminicídios como "crimes passionais" é evocada como atenuante dos assassinatos em contexto de violência de gênero, uma vez que os homens matariam por "amar demais" e em um momento em que estariam supostamente destituídos de sua racionalidade. "E a culpa não era minha, nem onde eu estava, nem o que vestia!" Indo além da positivação da misoginia, do racismo e do classismo no ordenamento jurídico brasileiro, é preciso observar atentamente como o sistema de justiça investiga, processa e julga os casos de violência contra as mulheres e feminicídios. E para isso analisaremos a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 07 de dezembro de 2021, no Caso Barbosa de Souza e seus familiares vs. Brasil.10 Assim como a maioria das vítimas de feminicídio no Brasil, Márcia Barbosa de Souza era uma mulher negra e foi assassinada, em 17 de junho de 1998, em João Pessoa pelo então Deputado Estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima. Ocorre que entre o feminicídio de Márcia Barbosa e a finalização da persecução criminal de seu caso transcorreram 9 anos, em que a imunidade parlamentar e os estereótipos de gênero e raça foram evocados no processo investigatório e penal de forma discriminatória, equiparando Aércio ao "pai de família" e Márcia à "prostituta", de modo a colocá-la no banco dos réus e culpabilizá-la por sua própria morte. Em relação à imunidade parlamentar, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos entendeu que, uma vez aplicada ao caso concreto, constituiu uma violação à proteção judicial, ao princípio da igualdade e da não discriminação: No que se refere à imunidade parlamentar, a Comissão afirmou que, apesar de que desde o início da investigação policial a responsabilidade pela morte de Márcia Barbosa de Souza foi atribuída ao senhor Pereira de Lima, não foi possível iniciar o processo penal porque a Assembleia Legislativa havia rejeitado, sem nenhuma motivação, o pedido de levantamento de sua imunidade parlamentar. Acrescentou que apenas em março de 2003 foi possível iniciar o processo contra o senhor Pereira de Lima, pois não foi reeleito como deputado. Afirmou que a imunidade parlamentar estava prevista na Constituição brasileira em termos muito amplos, motivo pelo qual, ao não cumprir os parâmetros de objetividade e razoabilidade, a norma era desproporcional e discriminatória. Por outra parte, considerou que a falta de fundamentação da Assembleia Legislativa para rejeitar os pedidos de autorização para o início do processo judicial demonstra que foram decisões arbitrárias. Considerou que a nova redação do artigo 53 da Constituição, modificado pela Emenda Constitucional N° 35/2001, continuava permitindo que o processo fosse suspenso e paralisado pela vontade dos deputados, de modo que não teria sido completamente corrigida a deficiência fundamental do caráter amplo e indefinido da imunidade parlamentar, o que perpetuaria a discriminação. Em relação aos estereótipos de gênero no curso do processo penal, as provas testemunhais e documentais foram conduzidas para construir uma imagem de Márcia Barbosa que colocasse em xeque a responsabilidade penal do Deputado pela prática do homicídio. De forma que as perguntas às testemunhas exorbitaram os fatos e perpassaram o comportamento sexual e o suposto uso de álcool e drogas pela vítima: Com efeito, durante toda a investigação e o processo penal, o comportamento e a sexualidade de Márcia Barbosa passaram a ser um tema de atenção especial, provocando a construção de uma imagem de Márcia como geradora ou merecedora do ocorrido, e desviando o foco das investigações através de estereótipos relacionados com aspectos da vida pessoal de Márcia Barbosa, que por sua vez foram utilizados como fatos relevantes para o próprio processo.252 O fato de que era uma mulher representou um fator facilitador de que "o significado do ocorrido se construa com base em estereótipos culturais gerais, ao invés de concentrar-se no contexto do ocorrido e nos resultados objetivos apresentados pela investigação".253 147. Com efeito, nas diversas declarações testemunhais tomadas no curso da investigação policial e no processo penal, nota-se a reiteração de perguntas sobre a sexualidade de Márcia Barbosa. De igual modo, foram identificadas perguntas sobre o consumo de drogas e álcool. Por sua vez, o exame químico toxicológico levado a cabo nos primeiros dias das investigações, paralelamente à autópsia, havia registrado uma quantidade insignificante de substâncias em seu sangue, o que permitiria à senhora Barbosa de Souza manter suas faculdades normais de reflexos.254 Nesse sentido, a perita Soraia Mendes afirmou que, das 12 testemunhas ouvidas, sete conheciam a senhora Barbosa de Souza e a todos lhes foi perguntado sobre o possível uso de drogas por parte de Márcia, e a duas sobre sua sexualidade.25 (grifamos) Essa foi a primeira condenação do Estado brasileiro, pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em um caso de feminicídio. Na sentença, foi reconhecido que o sistema de justiça brasileiro não investigou e julgou a partir de uma perspectiva de gênero. E, de igual forma, que houve violação da integridade psíquica de seus familiares, pois o assassinato decorreu de um ato de violência e as falhas e atrasos na persecução criminal representaram uma denegação da justiça. Como reflexo da condenação do Estado brasileiro no Caso Barbosa de Souza e familiares Vs. Brasil, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 128/2022, de modo a orientar que o processamento e julgamento de mortes de mulheres decorrentes da violência de gênero e raça sejam analisadas pelo sistema de justiça a partir de sua componente estrutural, qual seja, a desigualdade de poderes e direitos entre homens e mulheres na sociedade brasileira.11 É preciso que nós, juristas feministas e antirracistas, endossemos a necessidade de responsabilização do Estado e dos agressores pelos casos de violência contra mulheres e feminicídios. Em um primeiro momento, expondo a permanência colonial de uma estrutura patriarcal racista que, desde as Ordenações Filipinas, legitima no ordenamento brasileiro a dominação masculina e o assassinato de mulheres por razões de gênero e que, ainda hoje, se perpetua em teses jurídicas misóginas. É colocando o Estado no banco dos réus, por fim, que podemos cobrar políticas públicas eficazes para que as mulheres rompam com o ciclo de violência e sigam vivas. E, em casos de óbitos, que seja resguardado o direito das vítimas e de seus familiares a um julgamento não revitimizador. __________ 1 Performance O estuprador é você - el violador eres tú - São Paulo - YouTube. 2 VERGÈS, Françoise. Uma teoria feminista da violência. São Paulo: Ubu Editora, 2021, p. 9. 3 Sistema de Cuidados. Disponível aqui. 4 Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Disponível aqui. 5 Revogaço: reverter a destruição do Governo Bolsonaro. Disponível aqui. 6 Abordagem conceitual e tipológica de Feminicídio.  7 MENDES, Soraia da Rosa. Feminicídio de Estado: a misoginia bolsonarista e as mortes de mulheres por COVID 19. São Paulo: Blimunda, 2021, p.59. 8 Terrorismo de Gênero e Feminicídio: contribuições teóricas para o estudo do assassinato de mulheres em Vitória-ES (2007-2010). Disponível aqui. 9 Na época do Brasil colonial, lei permitia que marido assassinasse a própria mulher. Disponível aqui. 10 Sentença Caso Barbosa de Souza e Outros Vs. Brasil. Disponível aqui. 11 Recomendação CNJ nº 128, de 15 de fevereiro de 2022. Disponível aqui.
Pretensiosamente, estreamos essa coluna com o desejo e o objetivo de trazer para o debate público pontos de vistas plurais e diversos sobre temas pujantes e atuais no campo dos direitos humanos no Brasil e no mundo, sabendo que o desafio que nos impomos será espinhoso, haja visto que a seara dos direitos humanos, frequentemente é submetida a narrativas deturpadas e que intentam fragilizar a hermenêutica jurídica desse campo. E para essa estreia, não por acaso, escolhemos intitular esse primeiro artigo com a frase que dá nome a uma música do grupo "O Rappa", lançada em 1994: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro1, e que apresenta uma narrativa enriquecida de detalhes sobre o cotidiano de pessoas negras, em especial homens negros, diante das abordagens policiais perfiladas na raça, que ocorrem Brasil a fora, e cuja "fundada suspeita" não é outra, se não a raça-cor da pessoa abordada. A necessária e ácida crítica contida na música dialoga diretamente com o julgamento do HC 208.240-SP pautado para esta semana (1/3) pelo Supremo Tribunal Federal, impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de determinado paciente que sofreu abordagem policial baseada com suspeita fundada em sua raça (negra); o HC tem por objetivo enfrentar as sistemáticas e estruturais violações de direitos fundamentais ocorrem  por meio do uso de perfis raciais na abordagem policial e também no encarceramento em massa.  "Tudo começou quando a gente conversavaNaquela esquina ali, de frente àquela praçaVeio os homem e nos pararamDocumento por favor"2 O respectivo julgamento se insere no atual contexto social e político como um momento histórico, em que  oportuniza ao STF manifestar-se acerca do racismo institucional que orienta as políticas criminais de segurança pública e, no caso específico, sobre o instituto legal da "busca pessoal" ocorrida nas abordagens policiais sem a "fundada suspeita" conforme determina o disposto no § 2o  o art. 240 do CP: § 2o  Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior. Percebe-se que o comando legal não abre oportunidade para argumentos tergiversantes ou supérfluos acerca de sua interpretação, nem possibilita agente que fuja à norma, eis que a suspeita deve estar fundada na ocultação de arma proibida ou objetos mencionados no dispositivo legal. Contudo, são incontáveis as abordagens policiais arbitrárias perpetradas por policiais iletrados que subjugam e humilham pessoas negras e de grupos vulnerabilizados.  Não obstante, o art. 243, incisos I e II do mesmo Código, determina que o mandado de busca indique "o mais precisamente possível" (.) "no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifique", e ainda determina que seja mencionado "(...) o motivo e os fins da diligência;".  Cabendo sua dispensa, apenas, nos termos do art. 244 do CP: "A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar." Vejam que a excepcionalidade criada pelo legislador à busca pessoal sem mandado é inequívoca, ao passo que em regra trata-se de diligência que pressupõe a exigência de manifestação do Poder Judiciário, por meio de ordem expressa e fundamentada, inclusive porque submete a pessoa inspecionada à constrangimento público e quando trata-se de pessoa negra, reforça sobre ele(a) a pecha de "bandido", "marginal", "trombadinha" e etc. Registra-se que o poder judiciário sempre adotou a conduta da manutenção das condutas baseadas em perfil racial, assumindo o papel de  é corresponsável na continuidade do racismo institucional no sistema de justiça brasileiro. Neste contexto, importa destacar que as opressões de raça, gênero, orientação sexual, território e etc. se interseccionam, tornando a discriminação sobre  pessoas negras não heterocisnormativa mais acentuada, resultando na maior vulnerabilidade desses grupos ao escrutínio persecutório de uma busca pessoal fundada apenas no perfil, aa exemplo, citamos pessoas travestis negras ou de pessoas gays do gênero masculino e que expressam atributos de feminilidades, além de serem constantes alvos de chacota, sobre esses grupos indesejados se naturalizou a violência e perversidades como forma de elimina-los. Nesta linha, lembramos a memória de Luana Barbosa3, mulher negra e lésbica que não expressava atributos de feminilidade em sua forma de se vestir e foi barbaramente espancada por policiais até a morte numa abordagem policial em que Luana ousou questionar a motivação. No sentido de combater o perfilamento racial, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em relatório recente tratou da existência do racismo institucional e do perfilamento racial em decisão proferida no caso Acosta Martínez e outros versus Argentina4 reconheceu que os elementos constitutivos do caso possuem íntima conexão com o contexto brasileiro. Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em abril de 2022, foi proferiu decisão histórica no HC n. 158580, relatada pelo ministro Rogerio Schietti Cruz, onde reconheceu a existência do perfilamento racial nas abordagens policiais, destacando que a busca pessoal exige elemento objetivos, sólidos e concretos, a fim de evitar  "a repetição - ainda que nem sempre consciente - de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural." A decisão ainda adverte que, "O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como rotina ou praxe do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata", porque "Não satisfazem a exigência legal, por si sós", baseando-se apenas em intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial". "Quem segurava com força a chibata agora usa fardaEngatilha a macacaEscolhe sempre o primeiro negro pra passarEscolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista"5 Em que pese a discursiva mítica da democracia racial, o Brasil é um país segregado racialmente cuja expressão desse fato público e notório está nas avassaladoras e nefastas desigualdades raciais e sociais que atracam pessoas negras ao piores índices de desenvolvimento humanos, cita-se, a exemplo, as estatísticas carcerária. Além de o Brasil ser o terceiro país que mais encarcera no mundo, segundo Infopen, até dezembro de 2020 a população prisional era de 811.707 , sendo que 65,9% eram negras. As buscas pessoais sem fundada suspeita baseada apenas no "tirocínio policial" que por sua vez é forjado no racismo institucional - ainda que inconsciente -  não surgiu de forma aleatória, pelo contrário, ela encontra abrigo nas teorias da raça do final do século XVIII, início do século XIX. Essas teorias apresentam como pano de fundo duas ideias essenciais, as noções de edenização e detração do ser humano, a partir das visões monogenista e poligenista que voltavam seus estudos para a origem do ser humano. Para essa corrente de pensamento, a classificação da humanidade iria de, o mais perfeito sendo aquele que mais se aproximava do Éden  - daí a ideia de edenização do ser humano -, ao menos perfeito, aquele que mais se distanciava do Éden mediante a degeneração e detração da espécie, em decorrência de fatores como a mestiçagem6. O racismo científico que fundou pseudociência da eugenia, fez com que o Brasil fosse enquadrado por cientistas da época, como Sylvio Romero e Tobias Barreto entre outros - como um caso único de degeneração da espécie em decorrência do alto grau de mestiçagem da população entre negros, indígenas e brancos. Aos olhos do mundo, éramos vistos como um povo degenerado, débil, inferior, detraído e "naturalmente" sujeito a prática da violência a depender do grau de mestiçagem. A partir de Nina Rodrigues, os paradigmas da criminologia positivista de Cesere Lombroso passam a ser destrinchados e sedimentam os estudos das ciências criminais no Brasil. O negro que por mais de 400 anos foi submetido a condição de coisa - não humanos - e escravizado, quando livre recebe escrutínio persecutório da legislação penal, que cria tipos penais para criminalizar o modo de vida dos negros, como a vadiagem, a capoeira (art. 402 do CP de 1890) e ainda, o crime de curandeirismo, aludindo às práticas da religiões afro-brasileiras que, pasmem-se, ainda encontra-se previsto no art. 248 do atual Código Penal. Na obra "Raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil"7, escrita em 1890, baseado nos estudos biológicos da raça - calcados no racismo científico - afirma: "Posso iludir-me, mas estou profundamente convencido de que a adoção de um código único para toda a república foi um erro grave que atentou grandemente contra os princípios mais elementares da fisiologia humana  Pela acentuada diferença da sua climatologia, pela conformação e aspecto físico do país, pela diversidade étnica da sua população, já tão pronunciada e que ameaça mais acentuar-se ainda, o Brasil deve ser dividido, para os efeitos da legislação penal, pelo menos nas suas quatro grandes divisões regionais, que, como demonstrei no capítulo quarto, são tão natural e profundamente distintas." Referenciando-se em Tobias Barreto e Sylvio Romero, Nina Rodrigues desenvolve sua teoria da degeneração das raças graduada pela mestiçagem, estabelecendo quatro níveis de selvageria e degeneração de acordo com o grau de mestiçagem e defende a ideia de Códigos Penais distintos baseado nesses quatro níveis. Isto é, aos brancos advindos da civilização europeia compreendidos pela "ciência" da época como "raças superiores" legislação mais branda e aos mestiços, esses compreendidos como "raças inferiores" quanto mais próximo do negro ou do "índio" , fosse, legislação mais severa seria a lei. Nesta obra, Nina ainda defende a redução da maioridade penal para os negros à idade de nove anos, baseado em argumentos igualmente racistas sobre o desenvolvimento psíquico, emocional e a capacidade de discernimento da criança negra, em teoria, nessa idade mais elevada que da criança branca. Esta breve digressão na nossa história ilustra de forma límpida as raízes do racismo institucional nas forças de segurança pública brasileira, que em seu princípio foi criada para "caçar" negros ainda no período de D. João VI com a chegada da família real no Brasil, em 1808. Com o forte arcabouço do racismo científico da época, o racismo institucional foi entranhado não apenas na legislação penal brasileira, mas também na formação acadêmica e militar desses servidores. E com a evolução dos tempos, a pecha do "escravo fujão" se converteu na pecha do "negro ladrão". É por isso que é chegada a hora de o STF se manifestar de uma vez por todas e enfrentar o atroz racismo institucional no oportuno o julgamento do HC. 208240, de modo que venha a assegurar os fundamentos da Constituição brasileira do direito à cidadania, à dignidade humana e  de construção de uma sociedade livre, justa, solidária e sem preconceitos prevista na Carta Magna, bem como os direitos fundamentais à não discriminação e à isonomia, previstos em seu art. 5º. Considerando ainda que o texto constitucional repudia todas as formas de racismo (art. 5º, XLII) e todas as discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) é que concluímos ser pertinente, que o STF aplique interpretação aos arts. 240, §2º, 243, I e II, e 244 do CPP conforme o texto constitucional exigindo que a abordagem policial baseada em fundada suspeita fundada em elementos objetivos que possam ser racionalmente justificadas, descrita com a maior precisão possível em termo escrito aferida de modo objetivo e devidamente justificada por indícios e circunstâncias do caso concreto, para possibilitar responsabilização civil, penal e/ou administrativa de agentes que agirem sem tais elementos objetivos. __________ 1 Compositores: Marcelo Falcão Custodio / Marcelo De Campos Lobato / Alexandre Menezes / Nelson Meirelles De Oliveira Santos / Marcelo Fontes Do Nascimento Viana. 2 Trecho da música: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. 3 Disponível aqui. Acessado em: 27.02.2023. 4 Disponível aqui. Acessado em 26.02.2023. 5 Idem 3. 6 SCHWARZ, Lilia Moritz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.  7 RODRIGUES, RN. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011, 95p. ISBN 978-85-7982-075-5. Available from SciELO Books.