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Teoria de Precedentes e as teses do STF - O caso do perfilamento racial

terça-feira, 21 de março de 2023

Atualizado em 22 de março de 2023 14:18

Pende no STF importante julgamento que pode gerar precedente relevante contra o perfilamento racial de abordagens policiais a pessoas negras por "fundada suspeita" de crimes (CPP, 244) no Habeas Corpus (HC) 208.240/SP. O placar está 4x1 contra a concessão do HC, por ora vencido o Relator, Min. Fachin, que o concede de ofício. Em síntese, o Relator reconhece o perfilamento racial no caso e propõe Tese contra ele, enquanto a divergência não o reconhece no caso, mas se dispõe a criar Tese sobre o tema.

Tal posição da divergência gerou crítica de Lenio Streck, Marcelo Cattoni de Oliveira e Diogo Bacha e Silva.1 Reconhecendo a existência de perfilamento racial no caso e a óbvia inconstitucionalidade de abordagens baseadas nisso para, assim, defenderem a concessão do HC, criticaram o STF entender que pode não reconhecer o perfilamento racial mas criar Tese contra ele. Entendem "paradoxal" criar-se Tese sem aplicá-la ao caso que a originou; afirmam que, se isso ocorrer, "o STF não terá julgado o caso, ou seja, não levará o caso concreto a sério, mas sim terá utilizado o caso como pretexto para a formulação de uma 'tese', subvertendo de modo severo o próprio sentido da garantia constitucional do Habeas Corpus" (sic), que é o de "levar os elementos e as circunstâncias do caso a sério para, enfim, realizar o julgamento" para a "tutela de direitos fundamentais". Afirmam que não reconhecer o perfilamento racial no caso ao mesmo tempo em que se cria uma tese sobre a inconstitucionalidade dele tornaria liberdade do paciente uma "questão secundária para que o STF edite uma lei geral" (sic), algo que afirmam incompatível com a função do HC enquanto remédio heroico para garantia da liberdade. Entendem que não pode o STF criar Tese como fruto do julgamento de um HC, embora o possa em Recurso Extraordinário com Repercussão Geral (RE/RG), ante a previsão legal neste último. Temem um futuro em que "todo o direito seja transformado em teses. E súmulas", em prejuízo de pessoas que "sofrem diuturnamente violações de seus direitos, mas cujas violações não são reconhecidas pelo Poder Judiciário" Em outro artigo, Streck renovou a crítica sem contribuições novas, só citando "obstáculos epistemológicos" (sic) à criação de Tese em HC não concedido, embora falando que "Levar o caso concreto a sério é conhecê-lo nas suas mínimas circunstâncias e o examinar. Porém, o ministro Fachin não conheceu(d)o caso" (sic).2

Entendemos que a crítica não se sustenta quando aduz que o caso não estaria sendo levado a sério (o teor dos votos prova que está) e que a oposição à criação de Teses fora de RE/RG é equivocada ou, ao menos, não é conclusão obrigatória da teoria de precedentes (no Brasil e nos EUA). Ademais, incorporando a máxima de Sobral Pinto de que a Advocacia não é lugar para Covardia, atuamos no processo representando amici curiae (IDAFRO e GADvS) e não temos temor nenhum em criticar o STF - tanto que enviamos memorial a todos(as) Ministros(as) criticando a divergência (atualmente, majoritária), o qual foi ratificado por João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem  em artigo sobre o julgamento.3 Apenas não aderimos à crítica pela crítica (e não estamos dizendo que os autores o fizeram), simplesmente discordamos da crítica aqui respondida - embora concordemos com os autores quando bem dizem que esse caso "revela o fracasso institucional" de nosso Judiciário. A nosso ver, por representativo do punitivismo que impõe (com perfilamento racial!) uma pena superior do que a do homicídio simples pela posse de 1,53 gramas de entorpecente - no mínimo, o princípio da proporcionalidade manda lembranças.

Analisemos, assim, o atual estado da arte do julgamento.

O Min. Fachin está concedendo o HC de ofício, por entender que o testemunho dos policiais que abordaram o Paciente (Sr. Francisco) comprova o perfilamento racial, ao afirmarem que o abordaram por terem visto "indivíduo negro/de cor negra" em situação que acham típica de venda de drogas, em dinâmica que o Relator bem entende que não gera justa causa de abordagem policial por fundada suspeita. Pois o fato relativo a carro parado na calçada, com vidro abaixado, em diálogo do motorista com pedestre em ponto conhecido pela polícia como "boca de fumo" é dinâmica idêntica à de bairros nobres, onde notoriamente a polícia não aborda pessoas brancas em tal. Destacou que perfilamento racial não gera necessariamente crime de racismo, por este exigir dolo, enquanto aquele usualmente ocorre por vieses que furam/traem a racionalidade, por partirem de estereótipos racistas que presumem pessoas negras como criminosas em situações que não se presume as brancas como tais.

Já os votos divergentes até agora (Mins. Mendonça, Moraes, Toffoli e N. Marques) também estão julgando o caso e negam a ordem por sua interpretação dos testemunhos policiais e outros elementos - interpretação equivocada, mas a partir das provas do caso. Aduziram que este seria um "caso ruim" para discutir perfilamento racial porque, embora o racismo estrutural seja notório e gere perfilamentos raciais, ele não teria ocorrido no caso por ter havido abordagem policial ao Paciente por estar em conhecida "boca de fumo", em dinâmica considerada "típica" do crime de venda de drogas, com o Paciente mudando sua feição ao ver a polícia e tentando evadir-se do local (o Min. Fachin, sem resposta, bem explicou que o racismo estrutural torna notório que pessoas negras se assustem quando veem a polícia, já que vítimas de estereótipos racistas). Por isso, negam a ordem, embora abertos a discutir Tese contra o perfilamento racial.

Partimos à crítica da crítica.

Pelo teor concreto dos votos (que assistimos ao vivo, donde podemos falar mesmo dos ainda não disponibilizados por escrito), o fato de o HC não ter sido conhecido pelo Min. Fachin não tem relevância quanto à sua apreciação do caso, porque ele concedeu a ordem de ofício (CPP, 654, §2º) a partir de sua análise da concretude do caso concreto (as provas nele produzidas), examinando-o em suas "mínimas circunstâncias". Por isso, com todo respeito, indefensável a crítica de que estaria tratando o caso como "questão secundária" (sic), pois seu voto prova que o julgou. O mesmo vale à crítica à equivocada divergência, pois está julgando o caso a partir de sua concretude, à luz das provas produzidas - ainda que equivocadamente.

A grande crítica dos autores se refere tanto ao STF criar Teses em processos sem expressa autorização constitucional ou legal quanto que isso ocorra em HC não concedido.

A Constituição não fala em "tese de repercussão geral", mas apenas de inconstitucionalidade "em tese" (art. 103, §3º), sem disso falar ao tratar do RE/RG (art. 102, §3º). Já o CPC fala em tal "tese" várias vezes: não só sobre acórdão de RE ou REsp dever abranger "a análise dos fundamentos relevantes da tese jurídica discutida" (art. 1.038, §3º), cuja decisão será aplicada pelos demais Tribunais a processos sobrestados que versem sobre "aplica[ção d]a tese firmada" (arts. 1.039 e 1.040, III), vinculando a Administração Pública em tema relativo ao serviço público (art. 1.040, IV) quando de decisão de recursos repetitivos e súmula vinculante - DRR e SV (arts. 311, II, e 955, II). Princípio fundamental do CPC adota lógica geral de "aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos" (art. 12, §2º, II), exceto se, ao "reexaminar a causa" (art. 1.040, II), o Tribunal a quo explicar que, a despeito da Tese, sua decisão anterior não a afronta, por "distinção" (art. 489, VI).4 Fala, ainda, em "tese jurídica" firmada em DRR e SV, cuja alteração pode ser precedida de audiências públicas e participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a "rediscussão da tese" (art. 927, §2º), e fala em "tese" que vincula Juízos e órgãos fracionários após julgamento de incidente de assunção de competência (IAC) (art. 947, §3º). Atesta que alteração de jurisprudência consolidada ou "tese adotada no julgamento de casos repetitivos" deve contar com a fundamentação adequada do art. 489, §1º e 2º (art. 927, §4º) e que não poderá haver incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) em Tribunais de 2º Grau se já houver sido afetado em Tribunal Superior recurso para "definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva" (art. 976, §4º). Atesta, ainda, que tal incidente deve "fixar a tese jurídica" para que, com ela, sejam julgados recursos de casos (art. 978, par. único), cuja decisão deve analisar "todos os fundamentos suscitados concernentes à tese jurídica discutida, favoráveis e contrários" (art. 984, §2º). Julgamento que só pode ocorrer após consulta no "registro eletrônico de teses jurídicas", que "conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados" (art. 979, §2º), para que tal "ese jurídica" seja aplicada aos processos que "versem sobre idêntica questão de direito", sob pena de reclamação (art. 985, I e II e §1º), prevendo RE ou REsp contra a "tese" em questão (art. 987, §2º). Afirma caber reclamação quando da "aplicação indevida da tese jurídica" firmada em súmula vinculante, decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade, IRDR e de IAC (art. 988, §4º). Bem como de embargos de declaração quando a decisão "deixe de se manifestar sobre tese firmada" em julgamento de IRDR e IAC (art. 1.022, par. único, I). Fala de confrontação de "teses jurídicas" em julgamento de embargos de divergência (art. 1.043, §1º) e, por fim, trata da "súmula da decisão sobre a repercussão geral [que] constará da ata de julgamento" (art. 1.035, §11).5

O princípio oriundo da interpretação sistemática de todos esses textos normativos parece ser o de que todo caso que tenha transcendência, por ultrapassar interesses individuais do caso por versar sobre tema que se repete ou tem aptidão de se repetir em infinidade de processos futuros admite a criação de Tese.6 Dogmaticamente, não há razão para que o STF não possa criar Teses fruto de julgamentos, desde que sejam a exteriorização de seus fundamentos determinantes, ou, na gramática dos precedentes, de suas ratione decidendi (holdings). Pois tais fundamentos determinantes correspondem àquilo que vinculará casos futuros análogos (CPP, 315, §1º, V, CPC, e CPC, 489, §1º, V) à luz do suporte fático (das particularidades) de tais casos, para que recebam o mesmo tratamento jurídico, por isonomia. Isso no exato sentido de Streck, Cattoni de Oliveira e Bacha e Silva, de "aplicar o julgado (o princípio ou a ratio que dele se extrai) toda vez que um caso desse tipo se repetir".

Os autores adotam compreensão clássica da teoria de precedentes, pela qual a decisão "não nasce" como precedente, mas é assim reconhecida por decisões futuras, que identificam os fundamentos determinantes da anterior e os aplicam, salvo fundadas razões que justifiquem a distinção do caso, enquanto não houver sua superação (overruling). Mas desconsideram questão relevante: no contexto da Common Law, Testes abstratos são criados pela Suprema Corte dos EUA na fundamentação da Opinião da Corte quando do julgamento de casos.

A prática da Suprema Corte dos EUA na decisão de casos e interpretação de precedentes pode ajudar. Precedentes da Corte estabelecem princípios que guiam a decisão do caso e que servem guia a julgamentos futuros. Já decisões de novos casos (gerando novos precedentes) o fazem não só aplicando, mas, quando necessário, especificando consequências não-expressas nos precedentes interpretados, ora refinando, restringindo, ampliando ou explicando consequências dos princípios afirmados pelos precedentes analisados.

Exemplo. A Constituição dos EUA não estabelece textualmente a proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Por isso, a Suprema Corte já decidiu que "a Constituição nem proíbe nem requer o efeito retroativo" (Linkletter v. Walter, 1965) e, por isso, "a Constituição Federal não tem voz nesse assunto" (Great Northern Ry v. Sunburst Oil & Refining Co, 1932 - Justice Cardozo). Por isso, tratou da (ir)retroatividade de novas normas (fruto de novas decisões judiciais ou leis) como "questão de política, a ser decidida novamente a cada novo caso".7 Daí, no precedente Chevron Oil Co v. Hudson (1971), a Suprema Corte estabeleceu teste de retroatividade sintetizado em fórmula de três critérios: "Primeiro, a decisão a ser aplicada não-retroativamente deve estabelecer um novo princípio de Direito, seja pela superação de precedente passado no qual litigantes podem ter confiado, ou por decidir um tema pela primeira vez cuja resolução não foi claramente prevista. Segundo..., nós devemos... pesar os méritos e deméritos em cada caso pela análise da prévia história da regra em questão, seu propósito e efeito, e se a aplicação retrospectiva irá avançar ou retardar essa operação. Finalmente, nós (devemos) pesar a iniquidade imposta pela aplicação retroativa, porque há uma ampla base nos nossos precedentes em prol da não-retroatividade de novas decisões para evitar a injustiça ou dificuldade geradora de uma iniquidade substancial que pode resultar da aplicação retroativa de uma decisão desta Corte".8

Outro exemplo. Desde a famosa nota de rodapé n.º 4 do caso Carolene Products (1938), em que se estabeleceu que discrete and insular minorities precisam de maior proteção que grupos não-estigmatizados, a interpretação do princípio da não-discriminação (igual proteção das leis), é aplicado distintos testes. Em Cleburn v. Cleburn Living Ctr. (1985), a Corte explicou sua doutrina de três testes: para classes suspeitas, que normalmente aplica para raça-fenotípica e nacionalidade, há fortíssima presunção de inconstitucionalidade de leis que usam tais critérios suspeitos, declarando sua constitucionalidade só se o Estado provar que há um altamente persuasivo (compelling) interesse estatal estritamente vinculado ao objetivo pretendido (escrutínio estrito). Para as classes semissuspeitas, aplicado a questões de sexo/gênero, há forte presunção de inconstitucionalidade que será superada só se o Estado provar que há importante fim estatal fortemente direcionado a promovê-lo (escrutínio intermediário). Por fim, às classes não-suspeitas, relativas a temas econômicos e grupos que não reconhece como classes suspeitas e semissuspeitas, há fortíssima presunção de constitucionalidade da lei, que só será superada se a Parte provar que ela não promove nenhum "legítimo fim estatal". Aqui, tradicionalmente a Corte não fazia sequer o teste de adequação (aptidão em tese de a discriminação promover tal fim), algo que ela parece ter superado em decisões de proteção de direitos de casais do mesmo sexo, ao declarar a inconstitucionalidade de discriminações à luz deste teste básico (Romer v. Evans, 1996; Lawrence v. Texas, 2003; United States v. Windsor, 2012; e Obergefell v. Hodges, 2015). É o teste da relação racional, algumas pessoas falando em relação racional de segunda ordem pelas decisões da última frase exigirem tal adequação mínima, o que consideramos equivocado, por entendermos que houve evolução da Corte para exigir uma correlação mínima de adequação entre a discriminação e o legítimo interesse estatal pretendido.

Esses "testes" da jurisprudência dos EUA são usados de forma geral e abstrata na análise de casos futuros. Em geral, novas decisões não reconstroem a nota 4 de Carolene Products e nem os casos posteriores, exceto por eventual citação de tema ou grupo que já foi ou não tratado de acordo com um dos testes. Concordamos que seria necessária tal reconstrução porque certamente evitaria a equivocada jurisprudência da Suprema Corte contra as ações afirmativas, pois como pontua Evan Gerstmann, a Corte varia de maneira inconsistente e não-fundamentada o uso da expressão classe suspeita (cf. Carolene Products) e classificação suspeita, para, de forma surreal, usar um teste fruto do Direito Antidiscriminatório não permitir o combate ao racismo estrutural negrofóbico por cotas raciais universitárias12. Gerstmann pontua que isso gera o paradoxo teratológico de pessoas LGBTI+ não receberem a proteção do escrutínio elevado das classes (ou classificações) suspeitas ou semissuspeitas, a pretexto de supostamente terem poder político suficiente para representação no Parlamento democrático (uma teoria da conspiração procedimentalista incoerente com a jurisprudência substancialista da Corte), mas pessoas brancas (grupo social hegemônico) receberem a proteção do escrutínio estrito quando pedem a inconstitucionalidade de ações afirmativas por critério racial-fenotípico. Isso gera perpetuação de discriminações estruturais, institucionais, sistemáticas e históricas, donde incoerente com a própria razão de ser destes testes (aqui descritos, não defendidos).

Essa explicação dos "Testes" fruto dos precedentes da Suprema Corte dos EUA tem a seguinte relevância para nossa crítica à crítica contrária a Teses no Brasil: qual é a diferença substancial de uma Corte explicitar uma Tese fruto duas razões de decidir relativamente à postura de criar um Teste que conste do inteiro teor do acórdão? A crítica não se aplicaria a tais Testes? Os críticos podem dizer que se opõem também a esse procedimento (de Testes) da Suprema Corte dos EUA, que não estamos defendendo. O ponto é que a crítica contra o STF criar Teses enquanto concretização dos fundamentos determinantes da decisão do caso não pode tratar o STF como se estivesse criando algo incompreensível. Pois embora entendamos que as Teses são uma tentativa de criação de uma teoria brasileira de vinculação a precedentes, elas são análogas aos Testes da Suprema Corte dos EUA, notoriamente estudada enquanto representante do common law e de Corte de precedentes (princípio do stare decisis).

Sobre o STF criar uma Tese que não será aplicada no processo em que criada, a uma, isso pode ocorrer em RE/RG e outros processos que a admitem (cf. supra) e, a outra, não há incoerência dogmática ou "obstáculo epistemológico" a isto em outros julgamentos. Destaque-se que não se trata de tema de competência, tradicionalmente compreendido como exigindo interpretação estrita para só permitir algo por expressa previsão legal no Direito Processual em matéria de competência, que, com todo respeito, se refere a qual órgão do Judiciário tem a atribuição de julgar determinado tema, sem abranger o tema de se tal órgão (Corte) pode ou não criar Teses.9

O ponto principal é que não há impedimento de qualquer natureza a que se crie Tese em julgamento que rejeita a pretensão da parte autora ou recorrente, seja em HC ou qualquer recurso ou ação originária. Expliquemos isso no contexto do julgamento do perfilamento racial (HC 208.240/SP). O que é necessário para que ele seja reconhecido? É preciso que a Corte explique o que é o perfilamento racial (os votos o fizeram), se ele é um problema social ou fato isolado (todos concordaram ser um problema social generalizado), se ele é ou não compatível com a Constituição (todos afirmaram sua evidente inconstitucionalidade) para, por fim, verificar se no caso ele ocorreu. Portanto, um julgamento que rejeite haver o perfilamento racial no caso concreto não está impedido de afirmar que o perfilamento racial é inconstitucional nas hipóteses conhecidas do mesmo, que a Corte pode descrever exemplificativamente (como casos de discriminação direta e indireta). No mínimo, obter dicta da Corte pode fazê-lo e fazê-la constar de sua ementa - e, embora as obter dicta não vinculem por não serem objeto do caso, sabe-se bem que julgamentos futuros as considerarão.

Isso é rotineiramente feito em ementas, sendo o STJ exemplo paradigmático, pois nelas, inclusive a que declara a ilicitude do perfilamento racial (RHC 158.580/BA, DJe 25.04.2022), ele estabelece as premissas normativas e sua compreensão sobre princípios e regras prima facie relevantes ao caso para, após isso, decidi-lo. Em julgamento conjunto famoso sobre o direito ao esquecimento, primeiro o STJ definiu o que entende por "direito ao esquecimento" (não por solipsismo, mas pela interpretação do Direito à luz de nossa história institucional legal e jurisprudencial) para, depois, decidir o caso sobre isso. No "caso Aida Curi", não o aplicou o direito ao esquecimento que entendeu existente (REsp 1.335.153/RJ, DJe 10.09.2013). Concordamos que o correto seria primeiro julgar-se o caso e dele extrair os fundamentos determinantes geradores da Tese (entendemos que STF e STJ erram ao primeiro desenvolver abstratamente uma Tese e depois subsumi-la ao caso), mas essa é a praxe das Cortes Superiores, que pode ser criticada já que o Direito obviamente não se limita ao que os Tribunais dizem que ele é, mas que precisa ser bem compreendida e descrita com justiça.

Aliás, esse caso do direito ao esquecimento prova que a crítica se equivoca quando presume que a fixação de uma Tese geraria sempre um "juízo-boca-das-Teses-do-STF" (sic). Pois ao decidir o RE 1.010.686/RJ (Tese 786), interposto contra tal decisão do STJ, o STF entendeu que não haveria tal "direito ao esquecimento" de forma apriorística e que a decisão sobre se uma publicação fere ou não direitos fundamentais depende da "ponderação" dos direitos envolvidos. Sem entrar no tema da ponderação10 e abstraído que o "direito ao esquecimento" havia sido reconhecido pelo STJ por tal ponderação, o STJ reapreciou o tema (cf. CPC, 1.040, II) e manteve sua decisão anterior, por explicar que ela não afrontou a Tese do STF.

Temos então duas provas de que a aplicação de Teses nunca foi pensada numa lógica de silogismo perfeito de juízo-boca-de-Tese (sic). Primeiro, a Tese contra o "direito ao esquecimento" não disse para o restante do Judiciário nunca reconhecer determinada publicação não-autorizada como ilícita: disse que o tema tem que ser decidido à luz da ponderação dos direitos fundamentais à luz das peculiaridades do caso concreto. Segundo, o STJ decidiu novamente o caso que gerou a decisão do STF no RE 1.010.686/RJ a pedido de provedores com base na afirmação do STF de inexistência de um "direito ao esquecimento". Fosse um "juízo-que-não-interpreta-e-é-mera-boca-da-Tese-do-STF" (sic), teria o STJ dito só que o direito ao esquecimento não existe e teria dado razão aos provedores, mas houve labor hermenêutico pelo STJ na nova decisão para manter a anterior. Pois "Ao reapreciar (em junho de 2022) a decisão de 2018, a (3ª) Turma do STJ manteve o entendimento anterior e, mesmo diante da existência de tese da Suprema Corte com repercussão geral afastando o esquecimento, entendeu inexistir afronta àquela tese, na medida em que o STJ não determinara a exclusão das notícias desabonadoras, mas apenas a "desvinculação do nome da autora" da matéria sobre a suposta fraude no concurso público, mantendo íntegro o conteúdo da publicação".11 Eis trabalho hermenêutico-concretizador ao apreciar Tese que afasta o temor de que as Teses "repristinariam" alguma espécie de "positivismo boca-da-lei".

Citemos outra Tese, agora no RE 898.060 (Tema 622), pela qual "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". Embora proferida em processo que os críticos o admitem, o STF negou provimento ao recurso e criou Tese aplicável a casos futuros. E não há risco de "juízo-boca-da-Tese" porque a mesma tem como pressuposto lógico que se analise o caso concreto em suas mínimas circunstâncias para ver se há a concomitância da paternidade socioafetiva concomitante à paternidade biológica. Tudo que a decisão proíbe como "questão puramente de Direito" é que se desconsidere as circunstâncias do caso quanto à posse de estado de filho(a) (nome, trato e fama) por mais de um pai e se negue que esse posse de estado de filho(a) gere direitos e deveres de filiação e parentalidade.12 Não há nada mais longínquo de um "juízo-boca-de-Teses" que isso.

Em suma, admitir a criação de Teses pelo STF não significa que Juízos e Tribunais inferiores seriam meras "bocas-que-pronunciam-Teses", pois deverão continuar (e continuam) interpretando o precedente (ou provimento vinculante) que gerou a Tese para ver se ela se aplica ao caso e, mais do que isso, podem concluir que haveria outros fundamentos determinantes que não apenas os citados na Tese. Então, não nos pode ser direcionada a correta crítica pela qual Súmulas (persuasivas ou vinculantes) e Teses não podem ser interpretadas como textos normativos gerais e abstratos, independentes dos casos concretos que os geraram (nossa posição é intermediária entre a dos críticos e àquela que criticam com esse argumento). Daí a relevância da nossa posição, de Teses terem que explicitar os fundamentos determinantes da decisão que as gerou, porque isso as vincula ao suporte fático da concretude do caso concreto que as originou, como determinante para se saber se há razões para distinção do novo caso que justifique a não-aplicação do precedente (cf. CPC, 489, §1º, V e VI, e CPP, 315, §2º, V e VI).

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1 STRECK, Lenio Luiz. OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. BACHA E SILVA, Diogo. Perfilamento racial: o STF fará um precedente sem caso concreto? Conjur, 13.3.23. Acesso: 15.03. 23.

2 STRECK, Lenio Luiz. Obstáculos epistemológicos e o caso do racismo na abordagem policial. Conjur, 16.03.23. Acesso: 16.3.23.

3 MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. STF qual precisa reconhecer racismo estrutural nas abordagens policiais. Migalhas de Peso, 7.3.23. Acesso: 16.2.23

4 NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre. PEDRON, Flávio. Teoria Geral do Processo, BH: JusPodivm, 2020, p. 722-3.

5 Com tantos dispositivos falando de teses para aplicação em processos sobrestados ou futuros sobre questão idêntica, soa aguilhão semântico entende-los como "rol taxativo", algo incoerente com a bela doutrina dos críticos.

6 Isso não só pelo paradigma positivista de obter, por indução, princípios gerais a partir do conjunto de regras, mas também no paradigma pós-positivista dworkiano que compreende o Direito como conceito interpretativo e um conjunto de princípios e não de meras regras (positivismo primevo) ou de regras e princípios (cf. Alexy).

7 TRIBE, Lawrence H. American Constitutional Law, 3rd Ed, V. 1, NY: Foundation Press, 2000, p. 218-9.

8 TRIBE, Op. Cit., p. 219. Tradução livre. G.n.

9 Desenvolveremos isso em outro texto se os críticos protestarem, à luz da história institucional do conceito doutrinário e jurisprudencial de competência, mediante fusão de horizontes da hermenêutica filosófica gadameriana (que também adotamos).

10 Técnica que os críticos julgam arbitrária - equivocam-se, pois visar racionalidade da decisão não significa que se traz certeza matemática por método capaz de garantir um resultado seguro (sic). A má-aplicação de uma técnica sem respeitar os seus requisitos dogmáticos (cf. Alexy) não torna a técnica arbitrária aprioristicamente. E mesmo sem adesão ao realismo jurídico, é preciso entender que o STF adota a ponderação de princípios e saber aplicá-la até que a Corte seja convencida a deixar de fazê-lo. Inclusive por sua positivação no art. 489, §2º, do CPC, em tentativa de dar parâmetros normativos para aplicação adequada à luz do aspecto deontológico do Direito, à luz da teoria de Alexy (levada a sério), pela qual da ponderação deve surgir uma lei da colisão, a ser aplicada por silogismo em situações futuras equivalentes. Mas esse tema transcende muito os limites deste texto.

11 GUARIENTO, Daniel Bittencourt. MARTINS, Ricardo Malfeis. Decisão do STJ dá novo fôlego a direito ao esquecimento. Migalhas: Impressões Digitais, 05.08.22 (atualizado: 08.08.22). Acesso: 16.03.22. G.n.

12 GERSTMANN, Evan. The Constitucional Underclass. Gays, Lesbians, and the Failure of Class-Based Equal Protection, Chicago: University of Chicago Press, 1999, p. 9: "A Corte tem oscilado entre dois termos que são similarmente enganosos: 'classe suspeita' e 'classificação suspeita'. Toda classe suspeita implica uma correspondente classificação suspeita. Se as minorias raciais são uma classe suspeita, então a raça é uma classificação suspeita. Mulheres são uma classe semissuspeita [porque] gênero é uma classificação semissuspeita. Quando gays procuram subir na hierarquia da igual proteção, as cortes dizem-lhes que eles não são uma classe suspeita porque eles não são politicamente  impotentes. Mas quando brancos procuram proteção contra programas de ação afirmativa, as cortes não pedem a eles para provarem que eles são politicamente impotentes (obviamente eles não são). Ao invés disso, as cortes sutilmente trocam a terminologia: elas afirmam que a raça é uma classificação suspeita e por isso protegem os brancos de preferências racionais. Similarmente, as cortes protegem homens de discriminações afirmando que o gênero é uma classificação semissuspeita. Ao transitar entre os termos classe suspeita e classificação suspeita, a Suprema Corte pode requisitar que alguns grupos mostrem que são politicamente impotentes, mas permitir que outros, muito mais poderosos politicamente, se beneficiem de uma forte proteção constitucional. A Corte nunca explicitamente reconheceu que faz isso, e nunca tentou justificar isso.  Na verdade, todos os critérios que as cortes usam para decidir onde grupos diferentes se encaixam na hierarquia da igual proteção são tão carregados de contradições, dois pesos e duas medidas e ambiguidades insolúiveis que uma decisão baseada em princípios nesta área é virtualmente impossível". Tradução livre.

13 Isso ante o fundamento determinante pelo qual "A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos", em termos de "pluriparentalidade".