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A possibilidade da Ucrânia provocar o estabelecimento do paradigma do crime internacional de ecocídio

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Atualizado às 08:09

Desde 2002 o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional - TPI conforme internalização do Estatuto de Roma (Convenção promovida pela Organização das Nações Unidas - ONU em 1998), na forma do decreto 4.388. Ao aderir com o acordo transnacional, todos os pactuantes almejavam prevenir e reprimir violações à dignidade, crimes de ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade.

Com sede em Haia, a competência do TPI é taxativa em seu artigo 5º, abrangendo: a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) Crimes de guerra e d) O crime de agressão. Interpretando-se o artigo 7º (Dos Crimes Contra a Humanidade: parágrafo 1o - para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque) a alínea  "k" determina: "outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental".

O dispositivo supramencionado é compatível com o conceito de ecocídio, qual seja, extermínio deliberado de um ecossistema regional ou comunidade, perfeitamente cabível na conduta praticada pela Rússia em desfavor da Ucrânia, face ao ato de destruição da barragem de Kakhovka em junho de 2023.

A análise jurídica aplicada ao caso concreto delimita que a atrocidade praticada veta condições de subsistência das pessoas domiciliadas na região, afetando o direito máximo de proteção à vida. Ainda que se tenha um sistema normativo antropocêntrico, toda a biota planetária é afetada, e esta desconhece limites fronteiriços, ou seja, seu prejuízo vai muito além dos efeitos experimentados pelos ucranianos que resistem por sua soberania.

A ciência do Direito Ambiental e a das Mudanças Climáticas encontram-se voltadas para um período de risco nunca visto na história, a iminência de nova Guerra Fria, ou mesmo, eventual Terceira Guerra Mundial. A prática em comento provocou mortes e sujeitou pessoas ao estado de deslocados ambientais, frise-se, não apenas afetou os ucranianos, trata-se de dimensão mundial, eis que todos são difusamente atingidos.

Uma das consequências mais preocupantes do rompimento da barragem é o despejo de 600 a 800 toneladas de óleo lubrificante (altamente tóxico para a vida aquática e terrestre), dizimando fauna e flora, patrimônio não exclusivo da nação ucraniana. Desde a emissão da Declaração de Estocolmo em 1972, a soft law determinou a proteção integral do meio ambiente como um todo, logo, inclui os recursos naturais - água, ar, terra, etc - orientando as demais produções positivadas dos regramentos de cada país sob a égide da sustentabilidade do ecossistema e, antes ainda, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, domesticado apenas em 1992 via Decreto nº 591, também prevê "o dever de assegurar o pleno exercício da melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente".

Cientes de que o funcionamento perfeito ambiental é cíclico e integrado, qualquer afetação mínima em sua estrutura, proporcionará efeitos de tenro e longo prazo, como se pode perceber o calor extremo do verão europeu, resultado de 6 anos de ingerência do patrimônio amazônico, sim, o desmatamento daqui afeta o outro lado do mundo. Não é mais uma hipótese de prospecção científica, não é cenário de aplicabilidade do princípio de Direito Ambiental da Precaução (evitar aquilo que não se tem dimensão prática/real do efeito), é uma realidade que estarrece negacionistas.

Conforme preleciona Eugenio Raúl Zaffaroni e muitos outros juristas brasileiros, a função do Direito Penal é limitar o poder punitivo, mas, se não há um Governo Mundial, passível de intervir na exigência do cumprimento dos deveres ou, a integração de todos os países ao Pacto Penal Internacional, como a proteção integral dos Direitos Humanos poderá ser experimentada? O controle tentado pelas regras criminais são insuficientes para tanto.

O grande desafio do antropoceno é lidar com desastres e outras situações desproporcionais, como é o caso de muitas guerras civis, refugiados, escassez econômica e as mudanças climáticas de responsabilidade integral do homem. Caso a Ucrânia de fato acione a Rússia no TPI com base na conduta de ecocídio, o estabelecimento do paradigma não será uma medida salvadora do planeta, em que pese a relevância das sanções (hoje o presidente russo tem limitações de deslocamento onde há jurisdição da Corte de Haia pois já tem contra si pedido de prisão).

A destruição de patrimônio da humanidade (formalmente declarado ou não) não encontra tutela perfeita no regramento criminal internacional, conforme declarou a juíza do Tribunal Penal Internacional Dra. Sylvia Steiner em 29 de agosto de 2019: "ao contrário do que dizem diversos artigos publicados, a Procuradoria do Tribunal, em nenhum momento, afirmou que iria "interpretar os crimes contra a humanidade de maneira mais ampla, para incluir também os crimes contra o meio ambiente que destruam as condições de existência de uma população".

Em 2021, Édis Milaré1 afirmou não ser possível tipificar o ecocídio no ordenamento penal internacional, atribuindo a tal entendimento fundamento na ausência de aplicação do direito doméstico existente, ou seja, cada país é quem deve exigir punição de violações, de acordo com suas próprias normas ambientais. O debate foi pauta de reunião na ONU, e a medida foi rechaçada por interferir em questões internas de cada país. A título de exemplo, a França implementou naquele ano o crime de ecocídio em sua nação. Houveram esforços na mesma época para integrar o termo ecocídio ao Estatuto de Roma, mas se observou que seria necessária a criação de uma entidade fiscalizadora de autonomia além fronteiras, no mais, a temática permanece no campo das especulações.

O Direito Penal não é instrumento adequado para resolver todos os problemas da vida em sociedade, a existência de mais ou menos tipificações criminais são incapazes de resguardar o bem jurídico individual ou coletivo na seara internacional. Não há que se fazer campanha a favor ou contra o estabelecimento do paradigma, a exigência da consciência em prol do patrimônio público se revela questão muito mais complexa que, por derradeiro,  enaltece a hipervulnerabilidade humana.

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1 Disponível aqui.