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O Supremo resiste, mas a que preço? Golpismo, sumiço da acusação e destruição do processo penal acusatório

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Atualizado às 08:44

"Será que vão dar uma sentença? Fazer uma busca e apreensão no Alvorada? Como fazem com o povo comum. Será que vão fazer isso? Vão mandar quem aqui? A PF ou as Forças Armadas?" Assim o atual ocupante da presidência da República repetiu, como farsa, a ameaça de Floriano Peixoto contra os ministros do Supremo Tribunal Federal.

O ditador do final do século XIX, desdenhando do tribunal, sugeriu que, se contrariado fosse, os próprios ministros precisariam de quem lhes garantisse a liberdade; o arremedo do começo do século XXI, por sua vez, insinua que o Supremo não tem poder nem meios para forçar o cumprimento das suas decisões.

A semelhança entre os dois episódios, contudo, não passa de um embuste. Há, na atual composição do Supremo Tribunal, quem manifeste evidente resistência à pretensão de submeter o colegiado aos caprichos da chefia do Executivo. É certo que a docilidade que marca indelevelmente toda a trajetória do tribunal ainda ecoa com força entre alguns dos seus integrantes, mas o Supremo, hoje, ainda que dividido, é importante freio para parcela considerável dos absurdos anunciados e praticados dentro do Palácio do Planalto e dos edifícios que ladeiam a Esplanada dos Ministérios.

E, se de um lado é bom ver o tribunal ensaiando um papel novo, distinto daquele em que representa a linha auxiliar do governo de ocasião, papel que tão constantemente desempenhou até agora, preocupa muito a estratégia empregada para a tão esperada virada. O colegiado se vale de arma antiga, nada democrática e, como tal, superada pela atual Constituição. Dirigindo dois inquéritos policiais, formou barricada contra os incessantes ataques à sua existência e à sua autoridade, além das inúmeras ameaças de golpe vindas do presidente, e dos que estão no entorno deste.

A turbulência política experimentada pelo país acabou por legitimar, para a grande mídia e boa parte da opinião pública, a primeira das investigações. O inquérito das fake news abriu o caminho, e a investigação seguinte, o inquérito das milícias digitais, quase não sofreu contestação fora dos estudiosos e interessados no Direito e, claro, por motivo bastante diferente, do bolsonarismo. Mas não há como fingir que, dadas as circunstâncias, está tudo bem, esperando o restabelecimento da opção constitucional pela persecução penal acusatória quando a sanidade voltar orientar a disputa pelo poder.

O risco às garantias fundamentais é inaceitável, ainda mais quando se tem em conta a notória dificuldade do judiciário, da acusação e da polícia em entenderem suas funções no quadro já contaminado por acirradas disputas de espaço institucional. A larga tradição inquisitorial construída no país, a dificuldade de concretizar o controle externo da atividade policial, a incompreensão sobre lugar do Ministério Público como parte do processo penal e a já bem documentada proximidade perniciosa entre julgador e acusação, tudo isso pontuado por uma indisfarçável inclinação autoritária, eram já problemas muito graves a demandar enfrentamento.

A ressurreição da dobradinha entre polícia e juiz na investigação criminal, fora de moda e à margem do direito, tumultua ainda mais a prática e, principalmente, porque oportuna da perspectiva política, complica muito a abordagem propriamente jurídica ao tema. O esforço argumentativo do Supremo Tribunal para afirmar a validade do inquérito das fake news bem o demonstra.

O acórdão na arguição de descumprimento 572 reafirma que a acusação cabe exclusivamente à promotoria, mas que o mesmo não se passa em relação à direção da investigação que serve para a coleta dos elementos que embasam a denúncia. A atividade investigativa, diz o acórdão, escapa à exclusividade da acusação. Entregue que é a autoridades policiais e administrativas diversas do Ministério Público, no entender da maioria dos ministros, a direção do inquérito poderia ser igual e perfeitamente confiada ao próprio tribunal nas situações excepcionais postas no seu regimento interno.

Em outras palavras, o Supremo Tribunal acredita ser possível sustentar, na distinção entre investigação e acusação, a constitucionalidade da interpretação que consolida a inovação, trazida pela resolução 564/2015, que transformou o contempt of court (poder de polícia na condução da sessão) em atribuição investigativa (polícia judiciária).

A volta argumentativa dada pelo acórdão tem o óbvio propósito de levar o problema da direção do inquérito para tão longe do princípio acusatório quanto possível, até que este imperativo constitucional sumisse no horizonte, deixando de fazer sombra à leitura das disposições regimentais levada a efeito. Mas, por maior que fosse a distância percorrida pelo tribunal, a ideia de investigação criminal sempre arrasta consigo a de acusação, posto que uma está amarrada à outra.

O juízo livre e independente é aquele que não tem compromisso com a validade de qualquer providência probatória, o que só tem como ser garantido quando nenhuma ligação  possa ser identificada entre o julgador e o ato que produz evidência. Isso porque é razoável presumir que ninguém determinaria medida instrutória que antevisse como contrária ao ordenamento jurídico. O julgador que traz prova aos autos para fundar sua decisão assume, por natural, a admissibilidade da prova, e arrisca sua imparcialidade. O processo penal acusatório elimina esse risco ao estabelecer a absoluta separação entre as partes, notadamente a acusação, mas também a defesa, e quem, ao fim e ao cabo, decide.

Incumbidas as partes da produção probatória, mais facilmente o julgador perceberá a eventual desconformidade de algum dos elementos de convicção sobre os quais deverá se debruçar para resolver a controvérsia. E, se está claro que a participação do juízo no processo - em que há contraditório - fragiliza o postulado da imparcialidade, permitir que julgador dirija a investigação e, como tal, a formação inquisitorial do lastro probatório que servirá de justa causa para a acusação, é ferir de morte o distanciamento sem o qual sequer se pode cogitar do devido processo.

O princípio acusatório exige que as partes convençam o juiz obedecendo as regras do Direito, e que o juiz seja convencido pelas partes que se portaram conforme a lei. Quando o juiz convence a si mesmo ou dirige o seu próprio convencimento, confunde-se com parte, e o processo em que funciona poderá ser nomeado de qualquer outra coisa, menos de acusatório.

Ao dizer que nada há de errado no judiciário dirigir a apuração que justificará persecução penal, cuja legalidade deve controlar, o Supremo Tribunal ajudou a apagar linhas já borradas pela prática errática, originada, como dito, na dificuldade de posicionar julgador, acusador e investigador no cenário acusatório imposto pelo texto constitucional.

Até aqui a crítica não é inovadora. Mas é preciso ir além, afinal, o papel interpretado pelo Supremo Tribunal agrada boa parte do público que acompanha a trama política. É imperioso entender que o tribunal prestou um desserviço sem tamanho à dogmática processual penal brasileira, pois suas razões, por mais nobres que se mostrem diante da desgraça sem fim que o país está experimentando, não têm grandeza suficiente para justificar o desvirtuamento da função jurisdicional, quanto mais o juízo encarregado do derradeiro controle de constitucionalidade.

Uma boa forma para compreender o sentimento preenchido pelo Supremo Tribunal é rememorar as reações aos inquéritos das fake news e das milícias digitais. Enquanto o primeiro encontrou um público hostil, mesmo entre os que se contrapõem ao bolsonarismo, o segundo foi recebido com maior docilidade. O inquérito das milícias digitais apareceu no momento em que a mídia e o público estavam mais receptivos, porque cansados das barbaridades ditas e cometidas pelo ocupante do Alvorada.

As investigações dirigidas pelo Supremo Tribunal parecem remediar a paralisia institucional que permite a Bolsonaro seguir destruindo "tudo isso que está aí", justamente porque contornam a inércia da Procuradoria Geral da República. Com os inquéritos, o tribunal ocupou o vazio deixado por uma acusação que as notícias retratam e parcela da sociedade percebe como omissa e, pior, cooptada pelo poder.

Há uma inegável aspiração social que põe o Supremo Tribunal como a última instituição funcionando e, por isso mesmo, a última barreira contra o golpismo. Portanto, a censura à postura do Supremo Tribunal - que vem ao custo da demolição do princípio acusatório no processo penal - há de ser complementada pela crítica à inutilização, pelo procurador-Geral da República, da persecução penal como salvaguarda constitucional disposta para reprimir e punir um golpismo materializado em crimes comuns.

Em regra, a inércia do Ministério Público pode ser suprida com o exercício da acusação por algum legitimado para a ação penal privada subsidiária da pública. A dificuldade surge quando falta quem possa substituir a promotoria. Dada a distribuição das atribuições entre os Ministérios Públicos Federal e Estaduais e entre os órgãos do Ministério Público Federal, é exatamente o que se passa no caso de condutas típicas que se traduzem como ataques à democracia.

Apesar de todo o país sofrer as consequências das constantes ameaças de golpe pelo presidente da República, e das recorrentes sugestões de que impedirá a realização das próximas eleições, a ninguém, além do procurador-Geral, foram dados meios para pôr freio às repetidas investidas autoritárias e antidemocráticas de Bolsonaro, tipificadas como crimes comuns pela legislação. Quando se trata de proteger o império do direito e a ordem jurídica pelo exercício da repressão penal, assegurando reflexamente as instituições político-constitucionais e a soberania popular com respeito às minorias contra condutas do chefe do Executivo federal, a tarefa cabe exclusivamente ao Procurador-Geral da República, pois só a ele foi atribuído a possibilidade de denunciar ao Supremo Tribunal os crimes cometidos pelo presidente.

A falha, a omissão ou seja lá o motivo do procurador-Geral que deixa de enquadrar penalmente o golpista, expõe sério defeito na arquitetura constitucional, que não estabelece nenhuma forma alternativa de repor o direito e, com ele, a ordem democrática e institucional. Falta algum tipo de atribuição subsidiária ou mesmo um alargamento de atribuição para denunciar o presidente da República ao Supremo Tribunal, o que devolveria à corte a possibilidade de permanecer inerte e, como tal, imune à inclinação de defender suas próprias decisões no controle da legalidade durante as investigações.

Sugestões que serviriam para corrigir o problema identificado existem aos montes. Há vários artigos que abordam a ideia de ações penais públicas subsidiárias para outros temas, e tantas outras soluções legislativas já em vigor que poderiam inspirar o Congresso Nacional. Não é minha intenção nem subscrever qualquer delas, nem propor eu mesmo uma solução. Aqui quero apenas sublinhar a gravidade do tema. No mais, encerro lembrando que no passado, antes de 1988, quando o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade foi emperrado por obra do - adivinhe - Procurador-Geral da República, a frustração experimentada serviu para a Assembleia Constituinte ampliar a legitimidade para a proposição de ações diretas.

Para o Ministério Público Federal, ficou o gosto amargo de perder o papel solo por conta da pequenez de um dos seus chefes, incapaz de compreender a grandeza que se exige dos protagonistas. Nunca recuperou o centro do palco, ofuscado pelo dinamismo dos partidos políticos e pelo viés corporativo que muitas vezes imprime aos seus pedidos de aferição da constitucionalidade de normas. É muito triste ver que hoje, como ontem, repete o erro no que toca à persecução penal, correndo o risco de se apequenar, mais uma vez, por não ter aprendido nada com a chamada que tomou no texto da Constituição.