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Estado não responde por perdas patrimoniais de empresa fechada por causa do coronavírus, diz magistrado de Heilbronn

terça-feira, 26 de maio de 2020

Atualizado às 09:49

Dentre as inúmeras questões discutidas no âmbito da responsabilidade civil em tempos de pandemia de Covid-19, uma das mais espinhosas diz respeito a saber se - e em caso positivo, sob quais pressupostos - o Estado pode responder pelas perdas patrimoniais sofridas por empresas em decorrência da adoção das medidas de combate ao novo coronavírus.

O Landgericht (LG) de Heilbronn, município pertencente ao Estado de Baden-Württenberg, no sudoeste da Alemanha, parece ter tomado a primeira decisão sobre o tema no país.

O caso envolveu uma cabelereira, cujo salão de beleza fora fechado em março por conta das medidas governamentais de combate à pandemia de Covid-19.

A proprietária moveu ação indenizatória, com pedido de liminar, contra o Estado de Baden-Württemberg, alegando ter amargado perdas consideráveis em razão do fechamento do estabelecimento comercial, além de estar arcando com altos custos operacionais como aluguel e seguros, requerendo, por fim, a título de antecipação de tutela, a liberação imediata de 1 mil euros.

Ela fundamentou sua pretensão no § 56 da Lei de Proteção contra Infecções - Infektionsschutzgesetz (IfSG) - que regula a prevenção e o combate de doenças infectocontagiosas no país.

Dentre as medidas de prevenção e combate a esse tipo de patologia, na qual se enquadra o novo coronavírus, a lei prevê no § 31 a competência dos agentes públicos para proibir, total ou parcialmente, o exercício de atividade profissional por pessoas doentes, suspeitas de estar doente ou de ser transmissoras da doença (ainda quando já curadas), bem como qualquer pessoa que possa carregar o agente patogênico (no caso: o SARS-CoV-2), de modo que exista, no caso concreto, o risco de propagação da doença.

Em caráter excepcional, o § 56 prevê a concessão de indenização às pessoas afetadas pela medida de suspensão do exercício de atividade econômica.

A decisão de Heilbronn

O LG Heilbronn, contudo, negou a liminar e julgou improcedente o pedido. Trata-se do processo Az. I 4 O 82/20, julgado em 29.4.2020.

De início, a sentença assinalou que a autora já fora contemplada com o auxílio estatal de 9 mil euros, previsto na Lei do Coronavírus como ajuda social destinada a profissionais liberais e pequenas empresas, os mais duramente atingidos pela suspensão temporária do exercício da atividade econômica (veja a lei alemã aqui).

Independentemente disso, contudo, fato é que a autora não tem qualquer pretensão ressarcitória contra o Estado em decorrência das perdas patrimoniais sofridas, disse o juízo de primeiro grau.

De acordo com a sentença, embora os profissionais liberais possam se enquadrar no círculo de pessoas tuteladas na Lei de Proteção contra Infecções, a autora não tem direito a indenização por não se enquadrar na hipótese legal disciplinada pela Lei de Proteção contra Infecções.

Segundo o § 56, inc. 1 da IfSG, as pessoas indicadas no citado § 31 (doentes e suspeitos de ser portadores, transmissores ou hospedeiros), impedidas de exercer sua atividade profissional, podem receber uma compensação em dinheiro pela perda da renda sofrida, desde que preenchidos certos pressupostos.

Dentre eles, é necessário, por exemplo, que a pessoa tenha adotado medidas de proteção - como se vacinado ou observado outras medidas profiláticas legalmente prescritas ou recomendadas pelo Poder Público - que poderiam ter evitado a vedação do exercício das atividades.

O § 56, inc. 2 e 3 da IfSG estabelece os parâmetros para o cálculo da compensação, que, em regra, mede-se pela extensão da renda perdida.

Em casos excepcionais de risco existencial, as pessoas indicadas na norma podem requerer ainda, além da compensação pela paralisação, o ressarcimento de despesas operacionais vencidas e não pagas durante o período de inatividade profissional. Essas, contudo, não são ressarcíveis em sua integralidade, mas apenas em "extensão adequada", ressalta o inciso 4 do § 56 da Lei de Proteção contra Infecções.

Ocorre que - argumentou a sentença - na situação da atual pandemia de Covid-19, a atividade profissional da autora não foi paralisada em decorrência de infecção, suspeita ou ameaça de infecção da autora individualmente considerada, ou seja, de uma ameaça concreta, mas sim em consequência de medida governamental geral e abstrata, válida para toda a população.

Isso distinguiria a atual situação de Covid-19 da hipótese descrita na norma protetiva da Lei de Proteção contra Infecções, não havendo espaço para uma aplicação analógica do § 31 da IfSG ao caso sub judice, pois não há lacuna legal a ser colmatada, concluiu a sentença.

Até porque, ponderou o LG Heilbronn, o auxílio emergencial do coronavírus, concedido pelo Estado a profissionais liberais e pequenas empresas, já seria uma espécie de compensação pelos danos decorrentes do shutdown.

Outro argumento levantado na ação para justificar a pretensão ressarcitória da cabelereira seria o dever de indenizar do Estado mesmo em hipóteses de atos lícitos, como na desapropriação.

Essa analogia também foi afastada na sentença ao argumento de que a indenização por desapropriação se justifica diante da garantia da propriedade, prevista no Art. 14 da Lei Fundamental, mas, no caso concreto, não está em jogo o direito de propriedade, mas apenas uma expectativa de ganhos decorrente do exercício de atividade econômica.

As repercussões da decisão

A decisão do LG de Heilbronn é, certamente, apenas a primeira de muitas que devem ocupar o Judiciário alemão nos próximos anos.

As críticas à decisão não tardaram a surgir. Aduz-se a inaptidão do caso para figurar como precedente judicial.

A uma, porque o Judiciário seria tímido no reconhecimento dessas pretensões ressarcitórias. A duas, porque a autora não conseguira demonstrar, no âmbito da ação cautelar, o risco concreto à sua existência mínima, vez ter recebido há pouco o auxílio social da covid-19.

Dessa forma, afirma-se, muito ainda precisa ser discutido acerca da espinhosa questão da responsabilidade civil do Estado pela perda de rendimento de profissionais liberais e empresas em decorrência das medidas de contenção da pandemia de Covid-19, principalmente quando o particular lesado não receber auxilio social, dizem os críticos.

O assunto já começa a ocupar espaço aqui no Brasil. É bem verdade que a primeira e mais imediata resposta a essa questão é negativa, vez que as medidas governamentais de isolamento social e lockdown visam tutelar no caso concreto bem de maior hierarquia axiológica: a vida e a saúde da população.

Mas o tema dá pano para mangas, pois muitos pretendem justificar a responsabilidade estatal com base na teoria do fato do príncipe, na medida em que os atos estatais adotados para combate à pandemia provocaram repercussão direta e imediata sobre os negócios de muitos administrados.

Em linhas gerais, para a responsabilização do Estado nesses casos, o particular precisaria provar - à par dos demais requisitos da responsabilidade civil - que o ato estatal foi desnecessário, inadequado ou desproporcional, i.e., excessivo no grau de restrição aos direitos (liberdade de iniciativa econômica) do lesado.

O grande obstáculo que, em superficial análise, se opõe aos pedidos indenizatórios é que as medidas governamentais adotadas pela maioria dos estados - no caso brasileiro, pelos governos estaduais e municipais - atendem às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que, com base em estudos técnicos, concluiu que a melhor forma no momento de evitar o alto índice de contágio e mortalidade, bem como o colapso do sistema de saúde público, seria a instituição da quarentena, com a proibição temporária de circulação e do exercício de atividades não essenciais.

Isso se corrobora pela existência de risco concreto (e elevado!) de contágio, pela insuficiência da rede de saúde pública - não só no Brasil, como no mundo - para tratar adequadamente as pessoas contagiadas, pelo caráter temporário das medidas restritivas e pela permissão de funcionamento de estabelecimentos aptos a oferecer seus produtos e serviços por meio online.

Dessa forma, pesado será o ônus argumentativo para quem pretender pleitear o ressarcimento desse tipo de dano.

Interessante notar que o problema da responsabilização não se apresenta apenas diante da decisão de instituir as medidas, mas se põe ainda - e, talvez, com mais intensidade - na decisão de flexibilização das medidas, quando o Poder Público terá que avaliar, ponderar e decidir quais atividades poderão ou não voltar a ser desenvolvidas.

Intensa tem sido a discussão na Alemanha, onde as medidas de flexibilização já se iniciaram, sobre a (in)constitucionalidade da liberação ou não de determinadas atividades e estabelecimentos comerciais.

Assim, tem-se debatido acesamente, porque, por exemplo, partidas de futebol foram autorizadas, mas ensaios de orquestras não; porque cafés e pequenos bares podem reabrir, mas casas de jogos não.

Acalorada tem sido ainda a discussão, inclusive no Judiciário, de só permitir a reabertura de estabelecimentos comerciais com área de até 800 m2, continuando fechados shoppings e lojas de departamentos maiores, que teriam - alega-se - condições de atender as medidas de segurança e de higiene exigidas em lei.

A isso acresça-se o agravante de que alguns estados federados possuem regras mais rígidas que em outros, de modo que alguns estabelecimentos continuam fechados em algumas cidades, enquanto em outras não.

Aqui, abre-se um campo fértil para discutir a necessidade, adequação e proporcionalidade dos critérios utilizados pelo Poder Público para a liberação gradativa da atividade econômica, principalmente considerando o imenso prejuízo que daí pode advir para o particular impedido de exercer sua atividade econômica.

Uma coisa parece certa: na Alemanha, onde o Estado não aproveitou a pandemia para tentar se blindar de quaisquer responsabilidades, como tenta-se aqui com a edição da MP 966/2020, a discussão acerca da responsabilidade civil por atos ou omissões do Poder Público, durante a crise do coronavírus, será acalorada.