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Concessão comercial e venda direta: o caso dos produtos japoneses

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Atualizado às 08:58

Aproveitando a temática comercialista iniciada na coluna anterior com a entrevista do renomado Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Erasmo Valadão, comenta-se hoje julgado paradigmático do Bundesgerichtshof (BGH) acerca do contrato de concessão comercial. 

A concessão comercial entrou para a pauta do dia desde que a gigante norte-americana Ford Motors anunciou, em janeiro desse ano, o fechamento de suas fábricas de produção de veículos automotores no Brasil, provocando um cataclismo no mercado automobilístico brasileiro.

Desde então, o negócio de concessão comercial voltou a atrair os holofotes e a atenção dos juristas. Para facilitar a compreensão do julgado alemão, faz-se necessário, inicialmente, relembrar algumas noções acerca desse importante tipo contratual.

Noções gerais sobre o contrato de concessão

O contrato de concessão comercial é uma das modalidade da categoria geral dos contratos de distribuição, os quais têm por fim precípuo viabilizar o escoamento da produção1. Desde cedo os comerciantes perceberam que não basta produzir, sendo necessário fazer os produtos chegarem até o consumidor (adquirente) final.

Se isso era feito, desde os primórdios, pelo próprio fabricante, que vendia suas mercadorias diretamente aos consumidores, com a produção em série propiciada pela revolução industrial surgiu a necessidade de distribuir os bens excedentes em mercados longínquos.

Como manter filiais ou deslocar funcionários para locais distantes envolve muitos riscos e custos para o produtor, logo surgiu a ideia de lançar mão de pessoas já instaladas nessas zonas e aproveitar sua organização, capacidade e credibilidade junto ao público local.

Separou-se, assim, a fase da produção e da distribuição, surgindo a figura do distribuidor, uma pessoa (física ou jurídica) que se interpõem como elo de ligação entre o fabricante e o consumidor final.

Inicialmente, desenvolveu-se o contrato de comissão por meio do qual o produtor (comitente) permite que outrem (comissário) - contratando em nome próprio, mas por conta do comitente - venda seus bens a terceiros, tornando-se garante das obrigações assumidas pelo adquirente em troca de uma comissão sobre os contratos realizados2.

Em seguida, veio a figura do representante comercial que, de forma independente, obriga-se a promover a celebração de contratos para a empresa, recebendo comissão pelos negócios intermediados que a empresa que celebra diretamente com os clientes. Essa figura possui papel tão central no direito da distribuição que até hoje o contrato de agência é considerado o modelo padrão dos contratos de distribuição, muitos dos quais são negócios atípicos, carentes de regulamentação legal3.

Com o decorrer do tempo, desenvolveram-se outras formas de distribuição como a concessão comercial e a franquia, nas quais o distribuidor (concessionário e franqueado) - ao contrário do representante comercial e do comissário - é um comerciante que compra para revenda e atua por conta e em nome próprio, assumindo sozinho todo o risco do negócio.

Embora os contratos de concessão tenham surgido para atender uma necessidade do setor automobilístico, vários produtos de marca e de alta tecnologia são distribuídos no mercado por meio desse tipo contratual, como bebidas, eletrodomésticos, maquinaria, produtos de informática e de elevada tecnologia, além de artigos de luxo como roupas, perfumes, etc. No julgado alemão, objeto contratual era a revenda, na Alemanha, de produtos de informática, principalmente monitores e impressoras.

Pelo contrato de concessão comercial, um comerciante (concessionário) se obriga a adquirir produtos de outrem (produtor) para revendê-los em determinada área por conta própria e risco. No caso da concessão de veículos, o concessionário adquire a propriedade dos veículos para revenda no mercado, o que significa que ele assume - e, sob outro ângulo, que a montadora lhe transfere - todos os riscos da comercialização.

Conquanto a aquisição para revenda seja a alma do negócio, o objeto do contrato não se esgota nisso. O concessionário obriga-se ainda a desbravar e/ou ampliar o mercado para a marca e a promover a comercialização dos bens em conformidade com as instruções do fabricante.

A concessão é um contrato complexo - em regra, duradouro, de adesão, celebrado num contexto de assimetria informativa - por meio do qual os distribuidores assumem diversas obrigações, tais como adquirir uma quota mínima mensal/anual de produtos, comprar e manter estoque de bens e peças de reposição e prestar assistência técnica e garantia aos adquirentes. Mas não só. Os contratos de concessão de veículos contém inúmeras outras obrigações.

Assim, o revendedor é obrigado a se organizar empresarialmente de forma a atender os rígidos padrões exigidos pelo concedente, que vão desde o treinamento regular de pessoal, à observância de exigências mínimas em suas instalações (v.g., padrão arquitetônico, tipos de móveis, disposição do layout da loja, número de funcionários, etc.), adoção de sistemas específicos de contabilidade, envio de minuciosos relatórios, balancetes e informações detalhadas sobre as operações, o mercado e dados pessoais dos clientes, até a permissão para que a montadora examine, audite e copie todos os registros, contratos, contas, livros contábeis e documentos pertinentes às vendas e serviços realizados.

Isso mostra o grau de interferência - e integração - do revendedor na estrutura de vendas do fabricante. Mas, sobretudo, põe em relevo que a concessão requer do revendedor a realização de vultosos investimentos para atender todas as obrigações e exigências impostas pela montadora. Com efeito, o concessionário investe capital, pessoal e trabalho na construção dos canais de venda para os produtos da marca e, em troca das pesadas obrigações, recebe o direito de comercializar os produtos no mercado, com exclusividade ou não.

O concedente, por seu turno, obriga-se a vender ao concessionário os veículos de sua fabricação, de acordo com as condições acordadas; a permitir o uso gratuito da marca pelo concessionário; a respeitar a área operacional de cada distribuidor e a não vender diretamente seus veículos na zona demarcada para atuação do concessionário, salvo nas estritas hipóteses de venda direta previstas no contrato ou na lei4.

No Brasil, a lei 6.729/79, mais conhecida como Lei Ferrari, regula a distribuição de veículos automotores terrestres, a qual deve ser feita, nos termos do art. 1º, por meio de concessão comercial. Isso significa que, em regra, cabe ao distribuidor a tarefa de revender os veículos no mercado. Excepcionalmente, nas hipóteses previstas no art. 15, pode a montadora praticar a chamada venda direta.

Essa modalidade de venda recebe o nome de venda indireta, porque o fabricante não vende diretamente ao consumidor final, mas sim ao distribuidor, que adquire a propriedade do bem e o revende no mercado. O negócio de concessão comercial, como toda distribuição, baseia-se num sistema de venda indireta, com a participação do distribuidor. 

O caso dos produtos japoneses 

O caso julgado pelo BGH girava em torno de contrato de concessão de produtos de informática, dentre os quais monitores e impressoras de fabricação japonesa, distribuídos por uma pequena rede de concessionários na década de 1980 na Alemanha Ocidental.

Pelo contrato, firmado em 1984, o distribuidor obrigava-se a adquirir uma quota mínima de produtos, a manter um estoque de produtos e acessórios, adquirir produtos suficientes para exposição e demonstração, bem como prestar garantia e assistência técnica aos consumidores.

Sobre ele recaia ainda a obrigação de instruir e treinar permanentemente seus funcionários; destacar um vendedor exclusivo para os produtos da marca; promover as vendas por meio de diversas medidas, dentre as quais campanhas publicitárias em jornais e revistas; criar uma linha (hotline) de atendimento aos clientes e instrui-los através de treinamentos, auxiliando-os em caso de problemas técnicos.

O concessionário deveria também enviar relatórios frequentes sobre as vendas, a clientela e o desenvolvimento do mercado em sua área de atuação, além de prognósticos de fornecimentos para os próximos meses. Segundo o contrato, o distribuidor comprava e revendia os produtos em nome e conta própria, atuando como um comerciante autônomo perante o público.

Embora o concessionário possuísse uma zona de atuação delimitada, o contrato ressaltava que disso não resultava qualquer direito de exclusividade para o revendedor. Este, porém, era proibido de vender produtos concorrentes do fabricante, salvo concordância expressa deste.

Em 1990, contudo, o concedente passou a vender diretamente no território de vendas do distribuidor que, ao tomar conhecimento do fato, primeiro pleiteou - sem sucesso - o pagamento de uma margem de comercialização de 15% sobre o faturamento, mas depois resolveu o contrato, requerendo indenização por perdas e danos. 

A ação indenizatória

Na ação, o concessionário requereu que o concedente prestasse informações acerca das vendas diretas por ele - ou por empresas do grupo, com seu consentimento - realizadas no período indicado, bem como indenização dos danos daí decorrentes e dos resultantes do fim prematuro do contrato de concessão.

Em contestação, o fabricante se defendeu alegando, em síntese, que, devido à inexistência de exclusividade na revenda, a venda direta seria regular. Além disso, alegou que a extinção do contrato fora irregular, pois o direito de desfazer o vínculo havia sido fulminado pela supressio, já que o revendedor, ao invés de impugnar imediatamente a conduta, solicitou apenas o pagamento de margem de comercialização. Com isso, o autor teria criado no réu a confiança legítima de que não mais exerceria seu direito de denúncia.

A ação foi julgada parcialmente procedente em primeira instância, mas em apelação (Berufung), o Oberlandesgericht (OLG) München deferiu todos os pleitos do autor.

A decisão do OLG München

O OLG München entendeu, em suma, que a venda direta configurou descumprimento do dever de lealdade, anexo ao contrato por força do § 242 BGB, base legal do princípio da boa-fé objetiva, que exige do contratante agir com retidão e ter consideração pelos interesses - aqui: patrimoniais - legítimos da contraparte.

Segundo a Corte, o modelo de organização de vendas adotado no contrato, o dever de aquisição quota mínima e de manutenção de estoque exigiam do revendedor um investimento patrimonial difícil de ser recuperado e redirecionado para outra atividade.

Isso seria suficiente para impedir, no caso concreto, o fabricante de realizar venda direta sem qualquer aviso prévio e, dessa forma, surrupiar parte considerável da clientela do distribuidor. Afinal, segundo o Tribunal, o concessionário teria feito pelo menos uma parte do faturamento das vendas que o concedente obteve com a atuação indevida na zona demarcada no contrato.

O fabricante deveria, portanto, ter avisado previamente que pretendia comercializar diretamente seus produtos na área de atuação do distribuidor, como impõe o dever de informação decorrente do § 242 BGB. Ao não fazê-lo, configurado restou o descumprimento contratual.

Tendo em vista que o dever jurídico violado fora um dever lateral de conduta e não um dever de prestação, o OLG München qualificou a conduta do réu como violação positiva do contrato (positive Vertragsverletzung), que se configura sempre quando deveres laterais de conduta são violados durante o desenrolar contratual. O réu, então, inconformado, interpôs recurso de Revision perante o BGH.

A decisão do BGH

A Corte de Karlsruhe julgou improcedente o recurso, reconhecendo o direito do distribuidor às informações solicitadas, bem como à indenização por lucro cessante e perdas e danos decorrentes da resolução contratual, mas discordou, ao menos parcialmente, quanto aos fundamentos adotados pelo Tribunal a quo. Trata-se do processo BGH VIII ZR 48/92, julgado em 10/2/1993.

Segundo o Bundesgerichtshof, todo fabricante é livre, em princípio, para organizar a venda de seus produtos da forma que melhor lhe aprouver. Contudo, quando decide delegar a distribuição de suas mercadorias a uma empresa autônoma, ele precisa levar em consideração - ao lado de seus próprios interesses - também os interesses legítimos do outro contratante e, dessa forma, abster-se de tudo quanto restrinja, sem motivo justificável, a posição de mercado do revendedor.

O grau da consideração devida no caso concreto só pode ser definido casuisticamente, pois depende do arranjo contratual acordado entre as partes, principalmente do quanto o concessionário está integrado na organização de vendas do concedente e, logo, subordinado aos interesses do fabricante.

Aqui vale a regra: quanto mais o distribuidor estiver integrado na organização de vendas do fabricante e o apoiar através do investimento de capital e pessoal, maior grau de consideração o concedente precisa ter pelos interesses econômicos e mercadológicos de seu parceiro contratual.

O contrato de concessão, disse o BGH, pressupõe uma estreita colaboração econômica entre fabricante e revendedor, estando, portanto, submetido - em medida mais elevada que em outros tipos contratuais - a um dever de lealdade recíproco (gegenseitigen Treuepflicht).

Esse dever obriga as partes a colaborar mutuamente durante a execução do contrato e, na busca pela satisfação de seus interesses pessoais, levar em consideração os interesses legítimos da contraparte, para quem o contrato também precisa fazer sentido enquanto operação econômica. Por isso, o dever de lealdade obriga ambos os contratantes a abster-se de condutas que possam frustrar o fim último (função econômica) do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações5. 

O fato do distribuidor subordinar sua atividade e o capital investido aos interesses do fabricante, obriga este a ter consideração pelos interesses legítimos daquele e a abster-se de contrariar seus interesses sem um motivo justificável.

Quando o contrato assegura ao distribuidor um direito exclusivo de revenda ou uma posição equivalente, apenas motivos graves justificam intervenções - v.g., através da colocação de outros distribuidores, da redução da zona de atuação, etc. - na área de responsabilidade do distribuidor, disse a Corte de Karlsruhe.

O Tribunal frisou, porém, que o concedente tem dever de lealdade mesmo face a revendedores sem direito de exclusividade, donde se conclui que a exclusividade de revenda, per si, não é fator determinante para o surgimento do dever de lealdade, mas sim o grau de integração e de subordinação do distribuidor ao fabricante.

Para o Bundesgerichtshof, a interpretação do contrato celebrado entre as partes permitia a conclusão de que o fabricante violara culposamente o dever de lealdade ao vender diretamente produtos na área de atuação do distribuidor, que investiu capital, pessoal e trabalho na conquista de mercado para a marca, subordinando-se às ordens e aos interesses do concedente através, por exemplo, da obrigação de aquisição de quota mínima, de manutenção de estoque, do fornecimento de inúmeros relatórios, do emprego de pessoal especializado na venda dos produtos japoneses e, não menos importante, da proibição de concorrência aos produtos da marca.

Na medida em que o fabricante vincula e amarra de tal forma o revendedor em sua organização de vendas, é evidente que ele não pode fazer concorrência direta ao contratante, disse a Corte. E isso por uma razão muito simples: sob a ótica concorrencial, a venda direta configura uma concorrência desleal do fabricante face ao próprio revendedor, pois aquele sempre pode oferecer mais barato seus produtos no mercado.

Por isso, o BGH afirmou que a venda direta pelo concedente prejudica muito mais as oportunidades de venda do concessionário do que a colocação de outros revendedores em sua zona de atuação, pois esses adquirem os produtos nas mesmas condições que o distribuidor, concorrendo com ele em pé de igualdade. O fabricante, ao contrário, pode oferecer seus produtos no mercado por preços mais baixos e, assim, surrupiar a clientela do revendedor.

São necessárias razões de peso (ex: grave ineficiência do revendedor) para justificar uma gravosa interferência na posição de mercado do concessionário, não demonstradas pelo réu no caso sub judicie. Dessa forma, o fabricante pôs-se em concorrência desleal, i.e., sem igualdade de condições com o distribuidor, roubando-lhe a clientela e prejudicando suas chances de venda e de lucro.

O Tribunal afastou ainda a alegação de que o réu havia se reservado o direito de realizar vendas diretas no mercado ao não conceder o direito de exclusividade ao distribuidor. Para o BGH, em razão das condições contratuais acordadas, vale dizer, da carga obrigacional suportada pelo revendedor e da cláusula de reserva de área de atuação, o fabricante só poderia, quando muito, reservar-se o direito de inserir outros distribuidores na área, mas não de atuar diretamente, em concorrência desleal com o autor.

Dessa forma, o Bundesgerichtshof concluiu que a prática de venda direta pelo fornecedor configurou grave descumprimento contratual (violação do dever de lealdade) e, portanto, justa causa para a resolução do contrato, condenando o réu a indenizar os prejuízos causados ao autor. O justo motivo consistiu na prática de venda direta em si e não na falta de aviso prévio, como entendeu o OLG München.

Os juízes de Karlsruhe afastaram, por fim, a alegação de Verwirkung, isto é, de perda do exercício do direito de desfazimento do vínculo em razão da confiança legítima despertada na contraparte de que não exerceria tal direito. A Verwirkung, conhecida no mundo latino como supressio, é um subgrupo do exercício inadmissível do direito por contrariedade à boa-fé, afirmou o BGH.

Ela ocorre quando o titular, embora em condições de fazê-lo, queda inerte durante longo tempo despertando na contraparte a confiança legítima de que o direito não será exercido, fazendo com que o outro contratante guie seu comportamento de acordo com tal crença. Nesse caso, o exercício posterior do direito torna-se inadmissível, nos termos do § 242 BGB.

No caso concreto, porém, o BGH entendeu que o fabricante não tinha motivos objetivos para confiar legitimamente que o distribuidor não exerceria seu direito extintivo, já que ele manifestou claramente sua discordância com a prática encetada pelo fornecedor de vender diretamente produtos na zona delimitada no contrato, que restringia suas oportunidades de venda e lucro. 

A importância da decisão

Essa decisão do BGH tornou-se referência quando se discute o conteúdo e a extensão do dever de lealdade no âmbito dos contratos de concessão comercial e a prática canibalesca de vendas diretas no mercado pelo produtor, pondo-se em concorrência com o próprio distribuidor.

No contexto da concessão comercial, o dever de lealdade impõe ao distribuidor o dever de zelar pelos interesses patrimoniais do concedente, o que implica tudo fazer, dentro do razoável, para promover as vendas e proteger a reputação e imagem da marca, mas, por outro lado, exige do concedente ter consideração pelos interesses legítimos do concessionário durante suas decisões empresariais e não contrariar, sem motivo justificável, os interesses do distribuidor, o que ocorre sempre que o fabricante faz venda direta irregular no mercado6.

A prática da venda direta inverte - e subverte - a lógica jurídica e econômica do contrato de concessão, que pressupõe a adoção do sistema indireto de vendas no qual o distribuidor compra o produto do fabricante para revender no mercado. A aquisição para revenda forma o núcleo duro da concessão, pois é a revenda dos bens que permite ao distribuidor recuperar os investimentos realizados e auferir lucro.

O fim último, vale dizer, a função econômica do contrato, que a doutrina italiana chama inadequadamente de causa, consiste justamente na possibilidade de revenda e, portanto, de obtenção do lucro para ambos: concedente e concessionário.

Evidentemente, o distribuidor - agente racional que age de forma a maximizar sua eficiência econômica - só assume a obrigação de adquirir os produtos do fabricante em troca em troca do privilégio de comercializar esses bens diretamente no mercado7. É em troca da oportunidade de venda que ele aceita fazer os robustos investimentos exigidos pelo concedente e se sujeita à sua orientação, controle e fiscalização.

Porém, no momento em que o concedente vai ao mercado vender diretamente seus produtos, o contrato perde  todo o sentido para o distribuidor, pois vira uma operação em que apenas aquele ganha, já que o revendedor é obrigado a comprar determinada quantia (quota) de produtos, mas não consegue escoá-la no mercado devido à concorrência desleal do próprio fabricante.

Nesse caso, o fabricante lucra em duas frentes: vendendo diretamente no mercado e desovando sua produção nas costas do revendedor, que adquire a propriedade dos bens para revender por própria conta e risco. O concedente, entretanto, não sofre prejuízo algum quando os produtos do concessionário ficam sem comprador. Isso configura, à toda evidência, claro oportunismo, i.e., a prossecução egoística dos interesses individuais ou, na precisa definição de Oliver Williamson, a busca do interesse próprio com perfídia e astúcia8.

Por isso, conquanto a venda direta possa ser acordada entre as partes no contrato, ela não pode esvaziar o sentido (Sinn) e o fim (Zweck) do contrato de concessão, cujo núcleo essencial consiste na aquisição de produtos para revenda, como atentamente alertam doutrina e jurisprudência alemãs.

Percebe-se, em síntese, que a venda direta irregular pelo concedente tem impactos brutais na operação da concessão comercial. Sob a ótica do direito contratual, representa grave violação ao dever de lealdade, pois frustra o fim último (causa ou função econômica) do contrato ao subtrair a oportunidade de venda do distribuidor.

Sob a ótica da racionalidade econômica, inerente aos contratos, a venda direta impede o revendedor de obter o lucro esperado como contraprestação pelos vultuosos investimentos realizados no negócio. E, por fim, sob a ótica do direito concorrencial, o concedente coloca-se em concorrência desleal direta com o próprio concessionário, pois vende mais barato no mercado. Ou seja: verdadeira canibalismo econômico.

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1 FORGIONI, Paula. Contratos de distribuição. São Paulo: RT, 2005, p. 56.

2 PINTO MONTEIRO, António. Contratos de distribuição comercial. Coimbra: Almedina, 2018, p. 39.

3 PINTO MONTEIRO, António. Op. cit., p. 38.

4 Dentre outros: ULHOA COELHO, Fábio. Novo manual de direito comercial. 31ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 411.

5 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 606. Esse é o entendimento pacífico no direito alemão, como atesta, dentre outros: HUBER, Peter. Der Inhalt des Schuldverhältnisses. In: Staudinger BGB - Eckpfeiler des Zivilrechts. Michael Martinek (coord.). Berlin: de Gruyter, 2015, p. 328.

6 SCHMIDT, Karsten. Handelsrecht. 5a ed. Köln: Carl Heymanns, 1999, p. 755 s. A doutrina lusitana segue a mesma linha, como depreende-se de: PINTO MONTEIRO, António. Op. cit., p. 73.

7 CANARIS, Claus-Wilhelm. Handelsrecht. 24 ed. München: Beck, 2006, p. 284.

Markets and Hierarchies: Analysis and Antitrust Implications - A Study in the Economics of Internal Organization. New York: The Free Press, 1975, p. 26.