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Facebook deve fornecer dados de autores de postagens degradantes a políticos, diz Tribunal Constitucional alemão.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Atualizado às 07:33

No início deste mês, o Tribunal Constitucional alemão - Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - publicou decisão afirmando que as plataformas digitais devem fornecer os dados de seus usuários em casos de postagens de cunho degradante e odioso na internet. O caso envolvia a parlamentar Renate Künast, do Partido Verde da Alemanha.

O caso

Renate Künast teve sua honra e imagem denegrida por diversas postagens de usuários da rede social Facebook. O imbróglio começou com uma publicação no site do jornal Welt.de, em 2015, que conclamava a parlamentar a dar explicações acerca de um comentário que ela supostamente teria feito afirmando que sexo com crianças seria legítimo, desde que sem violência.

Renate Künast, porém, nunca disse isso. Nada obstante, esse foi o estopim para que internautas postassem comentários injuriosos e degradantes sobre ela na página da matéria no Facebook.

Os comentários, longe de constituírem ácidas críticas normalmente dirigidas a políticos, beiravam o mais baixo calão, como - com o perdão da tradução, feita apenas para fins didáticos e comparatísticos - "pedaço de merda", "lixo", "loura pedófila", "buceta imunda", dentre outros impronunciáveis.

Por isso, a parlamentar, uma das representantes femininas do Partido Verde no Parlamento (Bundestag), solicitou ao conglomerado digital os dados identificadores dos autores das postagens chulas, sexistas e desabonadoras de sua honra e dignidade. O objetivo era processar civil e criminalmente os responsáveis pelos comentários ofensivos.

Mas a empresa de Mark Zuckerberg recusou-se a informar os dados solicitados alegando que isso constituiria ofensa ao regulamento europeu de proteção de dados pessoais. Segundo a empresa, ela só estaria autorizada a fornecer tais informações quando o requerente tivesse uma pretensão às informações reconhecida judicialmente. Trocando em miúdos: sob ordem judicial.

A ação judicial

Diante disso, Renate Künast moveu ação judicial contra o conglomerado norte-americano pleiteando o fornecimento dos dados para poder acionar judicialmente os responsáveis.

Em primeiro grau, o tribunal (LG - Landgericht) de Berlim julgou improcedente a ação, em decisão exarada em 9/9/19, por entender que as reações dos usuários na página do Facebook, embora exageradas, polêmicas e sexistas, possuíam relação direta com o contexto factual (Sachdebatte) em torno de um comentário feito por ela no parlamento sobre pedofilia e, portanto, não constituíam crítica degradante, nem crime de injúria.

O julgado do LG Berlim afirmava ainda que a autora, enquanto agente político, precisava suportar críticas contundentes no debate público e que esse nível tolerância é mais elevado do que o exigido de pessoas comuns.

Em 21/1/20, após manifestação da autora, o LG Berlim modificou parcialmente sua decisão, classificando partes das postagens como degradantes e injuriosas, e ordenando o Facebook a fornecer os dados dos usuários, autores das comentários. Porém, em relação aos demais comentários, o tribunal negou a entrega de dados.

A sentença virou manchete, pondo mais lenha na discussão, porque o LG Berlim entendeu que alguns dos comentários chulos acima mencionados não denegriam a parlamentar enquanto pessoa, nem configurariam crime de injúria (Beleidigung), tipo penal previsto no § 185 do StGB - Strafgesetzbuch, o Código Penal alemão1.

Em grau de recurso, o KG - Kammergericht Berlim qualificou outras postagens como "manifestações inadmissíveis". No total, doze das vinte e duas postagens foram consideradas injuriosas e, portanto, criminalmente puníveis, não estando acobertadas pelo direito fundamental da liberdade de expressão e manifestação do pensamento.

Mas em relação a dez outros comentários, dentre os quais "loura pedófila", "mulher doente" e "cérebro amputado", o Tribunal de Apelação entendeu que não fora ultrapassado o limiar para o tipo penal da injúria, nem configurava crítica degradante. Trata-se do processo KG Berlim 10 W 13/20, julgado em 6/4/20.

A decisão do Tribunal Constitucional

O BVerfG, porém, julgou procedente a queixa constitucional interposta pela parlamentar, suspendendo as decisões inferiores e ordenando a devolução dos autos ao Tribunal de origem para reapreciação dos fatos. Trata-se do processo BVerfG 1 BvR 1.073/20, julgado em 19/12/21.

No acórdão, a Corte afirmou que as decisões inferiores feriram o direito geral de personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht) da reclamante, consagrado no art. 2, inc. 1 c/c art. 1, inc. 1 da Lei Fundamental (Grundgesetz), por não ordenar a plataforma de mídia social a fornecer informações sobre dados em seu poder, como prevê o § 14, inc. 3 da Lei das Telecomunicações.

De acordo com a mencionada norma, um prestador de serviços pode, em casos individuais, prestar informações sobre dados existentes em seus arquivos quando isso for necessário para pleitear em juízo pretensões de natureza civil oriundas de violação de direitos absolutos por meio de conteúdos ilegais.

Para o Tribunal Constitucional, a decisão do KG Berlim merece reparos ainda por não ter ponderado todos os aspectos do caso concreto e não ter levado adequadamente em conta a proteção dos direitos de personalidade de políticos e agentes públicos.

Crítica degradante é sempre ilegítima

Inicialmente o BVerfG afirmou que uma crítica degradante, que só visa denegrir alguém, é sempre inadmissível. A crítica degradante (Schmähkritik) é aquela manifestação ignominiosa, feita por vezes em termos vulgares, que está absolutamente desconectada do contexto factual, i.e., de uma discussão objetiva dos fatos, servindo exclusivamente para ofender a pessoa.

Nela, o autor vale-se do contexto de um debate apenas como pretexto para denegrir a vítima. Em outras palavras: é uma crítica que não tem base em qualquer dado objetivo posto em debate, servindo apenas para atacar a dignidade, a imagem e/ou a honra do criticado.

Ainda que não reste configurada uma crítica ultrajante, isso não significa que o comentário seja sempre legítimo, sublinhou o BVerfG. Nesse caso, é necessário uma ampla ponderação entre a liberdade de expressão do declarante e o direito geral de personalidade da pessoa afetada para avaliar a admissibilidade do comentário.

Quando se trata de crítica ao poder (Machtkritik), presume-se, em princípio, a prevalência da liberdade de expressão, pois é essencial na democracia que os cidadãos possam criticar o exercício do poder sem temer ações judiciais, disse o Tribunal de Karlsruhe.

Critica degradante e crime de injúria

Segundo a Corte, ao reconhecer que algumas críticas feitas a Renate Künast tinham relação com um contexto factual (um comentário da parlamentar), não configurando, portanto, a figura da crítica degradante, o Tribunal a quo concluiu pari passu não ter havido também injúria, equiparando, ao fim e ao cabo, ambas as figuras.

Essa equiparação, porém, é equivocada, afirmou o Bundesverfassungsgericht, pois ainda quando ausente uma crítica ultrajante, pode restar configurado o crime de injúria se, na ponderação do caso concreto, o direito de personalidade do indivíduo ganhar peso maior que a liberdade de expressão.

Segundo o BVerfG, para a configuração da injúria do § 185 StGB é necessário, em princípio, um sopesamento das restrições que ameaçam os bens jurídicos e os interesses afetados, nesse caso: a honra pessoal e a liberdade de expressão.

Essa ponderação, em casos excepcionais, pode ser desnecessária se a declaração litigiosa constituir uma Schmähung, i.e., uma depreciação, que se configura no caso concreto, como dito, sempre que a opinião não tiver qualquer relação com o debate factual, visando apenas a degradação da pessoa.

Declarações ofensivas à integridade pessoal do sujeito, ou seja, ofensas pessoais divulgadas na internet podem afetar tanto desconhecidos, quanto figuras públicas, que são denegridas - sob o manto protetor do anonimato da internet - sem qualquer referência compreensível a uma crítica factual, mas simplesmente por motivos condenáveis, como sentimentos de ódio ou raiva.

Esse tipo de manifestação, com a qual se deprecia a honra de alguém, não serve de indício para a prevalência da liberdade de expressão, disse o BVerfG.

Pressupostos para a sanção penal é uma ponderação orientada pelos direitos fundamentais, baseada nos elementos do suporte fático e nas condições de punibilidade do Código Penal, em particular nas noções de "injúria" e de "proteção de interesses legítimos", afirmou a Corte.

Critérios de ponderação

O Tribunal Constitucional aproveitou o ensejo para reafirmar alguns critérios importantes a serem observados pelo julgador no momento da ponderação desse grupo de casos.

Em primeiro lugar, é necessário uma análise ampla das circunstâncias concretas do caso e da situação em que a manifestação de opinião foi emitida, além do conteúdo, motivo, forma da manifestação (verbal/escrita, espontânea/planejada), meio de divulgação, o número dos manifestantes e os efeitos da declaração.

Para manifestações escritas espera-se, em regra, uma medida maior de cautela e discrição, principalmente quando feitas em redes sociais e perpetuadas na internet. Já para declarações verbais há maior tolerância, pois seria particularmente prejudicial para a liberdade de expressão se cada palavra tivesse de ser pesada na balança antes de uma declaração, afirmou o BVerfG.

Além disso, quanto mais a declaração tiver por fim contribuir para a formação da opinião pública, maior peso deve o juiz conferir à liberdade de expressão. O peso será proporcionalmente menor quando se tratar da propagação emocional de sentimentos contra pessoas individuais.

Crítica ao poder e proteção da personalidade de políticos

Também é importante examinar se o caso diz respeito à uma critica ao poder, pois nesses casos a liberdade de expressão é especialmente digna de proteção.

O Tribunal Constitucional reafirmou que, de fato, as fronteiras da crítica legítima a agentes políticos são muito mais amplas que os limites exigidos para pessoas privadas, entendimento que não destoa da posição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos2.

Na categoria dos agentes estatais devem ser feitas diferenciações. A posição dos agentes políticos difere, por exemplo, da posição de outros agentes públicos que, através do exercício de suas funções, entram em contato com os cidadãos. Aqueles têm o dever de suportar críticas mais intensas devido à sua função na sociedade.

No entanto, a crítica ao poder não permite qualquer tipo de insulto e xingamento pessoal a funcionários públicos ou políticos. A Lei Fundamental impõe a todos limites legais para a manifestação de suas opiniões, principalmente quando essas se traduzem em desprezo público ou incitamento ao ódio. E dessa proteção, a Grundgesetz não exclui as pessoas públicas ou funcionários públicos, disse o Tribunal.

Quais declarações as figuras públicas têm de suportar e quais não, depende não só do tipo e das circunstâncias da declaração, mas também da posição que ocupam e da atenção pública que reclamam para si, ponderou a Corte, deixando claro que não há uma fórmula pronta.

A exigência de condições para a divulgação de informações nas redes sociais e na internet constitui uma efetiva proteção dos direitos da personalidade dos funcionários públicos e dos agentes políticos e isso - para além do significado individual para a pessoa afetada - é uma questão de interesse público.

Essa circunstância pode aumentar o peso desses direitos no processo de ponderação, pois só se pode esperar uma disposição de colaborar para o Estado e a sociedade quando se garante a essas pessoas uma proteção adequada de seus direitos de personalidade, afirmou o Tribunal de Karlsruhe.

Falta de ponderação nas decisões inferiores

Para o Tribunal Constitucional, o KG Berlim não ponderou todos os aspectos do caso concreto, violando, assim, sua decisão os direitos de personalidade de Renate Künast.

A mera afirmação de que a parlamentar precisa suportar críticas no debate público de ideias não substitui a ponderação dos bens jurídicos em colisão: liberdade de expressão dos usuários versus direito da personalidade da parlamentar.

Segundo o BVerfG, o Tribunal de segundo grau também não levou adequadamente em conta que a efetiva proteção dos direitos de personalidade de agentes públicos e políticos se dá não só no interesse privado da pessoa atingida, mas também no interesse público3. Por essas razões, o caso foi reenviado ao Tribunal a quo para novo julgamento.

A relevância do caso

O caso de Renate Künast é rico e interessante para análises comparativas, pois nele o Tribunal Constitucional abordou a espinhosa questão dos limites da liberdade de expressão no contexto da crítica ao poder, especialmente ao poder político, tão importante para o aperfeiçoamento da democracia e para a evolução de uma sociedade livre e democrática.

Em síntese, pode-se dizer que a Corte reafirmou a regra de que agentes políticos e funcionários públicos possuem uma esfera de proteção menor que as pessoas comuns, devendo suportar críticas duras e ácidas à sua atuação.

Mas, ao mesmo tempo, impôs limites a essas manifestações, afirmando que a crítica degradante constitui o limite intransponível para uma manifestação legítima sobre determinada pessoa. Esse limite é ultrapassado a partir do momento em que a declaração ou postagem tem por fim apenas denegrir e ofender a pessoa, atingindo sua dignidade, sem estar embasada em um contexto fático.

Em outras palavras: toda crítica que visa exclusivamente denegrir a honra, imagem ou dignidade humana é inadmissível.

Importante frisar, para evitar mal entendidos, que essa decisão não pode ser interpretada como se a Corte Suprema tivesse proibido críticas ácidas a políticos.

Como coloca Michael Kubiciel, Professor de Direito Penal na Universidade de Augsburg, o Tribunal Constitucional alemão tem inúmeros precedentes nos quais afirma que os agentes políticos são obrigados a suportar até mesmo críticas e manifestações difamantes, desde que feitas em conexão com sua atuação pública4.

Afinal, como mostra a história, a democracia não vive sem liberdade de expressão e de crítica. E quando se trata de crítica ao poder, a liberdade de expressão dos cidadãos tem prioridade. Principalmente em momentos de autoritarismos e retrocessos civilizatórios.

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1 Beleidungen bei Facebook: Renate Künast siegt beim Bundesverfassungsgericht. LTO, 2/2/22. Agradeço aos colegas Leonardo Martins, Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e "Ambassador Scientist" da Alexander von Humboldt Foundation, e Alaor Leite, Docente-Assistente junto à cátedra de Direito Penal na Humboldt Universidade de Berlim, pela troca de ideias em relação ao caso em comento.

2 BVerfG 1 BvR 1.073/20, Rn. 33, p. 10.

3 No mesmo sentido: ZIMMERMANN, Felix W. BVerfG zu Facebook-Beleidigung: Nur ein Zwischenerfolg für Renate Künast. In: LTO, 2/2/22, p. 2.

4 Wie stoppt man den Hass auf Politiker? In: LTO, 19/6/19.