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Agentes públicos precisam respeitar a compostura do cargo

terça-feira, 31 de maio de 2022

Atualizado em 30 de maio de 2022 10:53

Reacendeu recentemente na Alemanha a discussão em torno da necessária compostura de agentes públicos que ocupam - ou ocuparam - cargo público. Uma das polêmicas envolve Gerhard Schröder, Chanceler da Alemanha no período de 1998 a 2005, que perdeu benefícios decorrentes do cargo devido à amizade pessoal com Wladimir Putin e à atuação lobista em favor de empresas estatais russas. A outra envolve a postura de soldada trans na rede de relacionamento Tinder.

Os dois casos distinguem-se em substrato e fundamento, mas têm em comum a discussão acerca da (com)postura exigida pelo cargo a certos agentes do estado, bem como o fato de que ambos os imbróglios devem provavelmente parar no Bundesverfassungsgericht, o Tribunal Constitucional alemão, devido às controvérsias constitucionais que envolvem.

O caso Gerhard Schröder

Não é de hoje que a proximidade de Gerhard Schröder com o Kremlin vem causando desconforto e sendo objeto de duras críticas na Alemanha1. Pouco depois de deixar a chancelaria em 2005, Schröder passou a ocupar cargos na petrolífera estatal russa Rosneft, na estatal energética Gazprom e no comitê de acionistas da empresa Nord Stream AG, responsável pelo gasoduto submarino Nord Stream 2, que levaria gás da Rússia para a Alemanha através do Mar Báltico se o processo de aprovação da obra não tivesse sido suspenso em fevereiro deste ano.

As críticas escalaram com a tensões provocadas pela Guerra na Ucrânia. A resistência do ex-Chanceler em criticar a invasão imperialista e os crimes de guerra praticados sob o comando de Putin2, revela a incompatibilidade das atividades privadas de Schröder com a honorabilidade inerente ao alto cargo público ocupado no passado.

Por essa perniciosa relação com o Kremlin, o Parlamento alemão (Bundestag) decidiu, no último dia 19 de maio, cortar alguns privilégios do político de 78 anos3. O requerimento fora protocolado pelos partidos de coalisão (SPD, Grünen e FDP), base de sustentação do governo do atual Kanzler, Olaf Scholz, dentre os quais o Partido Social-Democrata (SPD), do qual fazem parte Schröder e Scholz.

Foram cortadas as verbas destinadas à manutenção do escritório, funcionários e demais gastos relacionados ao gabinete, como motoristas e viagens, dispêndios que alcançaram a significativa quantia de 419.000 euros ano passado4. Segundo o jornal alemão Deutsche Welle, a decisão ocorreu no mesmo dia em que o Parlamento Europeu encaminhou resolução pedindo que Schröder seja alvo de sanções caso não rompa seus laços com a Rússia.

Outros partidos, porém, exigem ainda a suspensão do pagamento da aposentadoria e de benefícios assistenciais. Mas, no momento, esses direitos continuam mantidos, bem como a proteção pessoal ao antigo chefe de governo, feita pela polícia federal alemã (Bundeskriminalamt).

Na justificativa, o Parlamento afirmou que Schröder não exerce mais deveres ou atividades decorrentes do cargo, como a defesa dos interesses do país. Mas não foi mencionada a ligação do ex-Chanceler com Putin e o estado russo, motivo pela qual alguns receiam que a justificativa adotada possa dar margem a que se discuta a constitucionalidade e a real razão da medida5.

Há, porém, consenso no Bundestag sobre a necessidade de se reformular os privilégios concedidos a antigos chanceleres e presidentes. É relativamente unânime, da mesma forma, a ideia de que a concessão de tais benefícios deve estar condicionada à continuidade do exercício de deveres decorrentes do cargo e não vinculada ao mero status de antigo dirigente da nação.

Em regra, pela lei alemã, chanceler e presidente têm direito a pensão vitalícia, benefícios assistenciais e proteção pessoal, mas é o Parlamento que define as verbas destinadas à manutenção do escritório, funcionários e demais despesas, custeadas com os impostos pagos pelos contribuintes.

Por isso, apenas as verbas referentes ao gabinete foram suspensas.  A decisão do Parlamento foi facilitada pelo fato de que o Schröder não conta no momento com nenhum funcionário em seu escritório, vez que todos os assessores pediram demissão após a escalada dos conflitos na Ucrânia.

Segundo os jornais, depois de perder parte de seus privilégios, Schröder abriu mão do cargo no conselho da Rosnef e contratou um constitucionalista para examinar a legalidade da decisão do Parlamento6. Mas seus problemas estão longe de acabar, pois ele ainda ocupa postos em estatais russas, a cúpula de seu partido pede sua expulsão e o Parlamento Europeu quer a inclusão de seu nome na lista de sanções aos amigos de Putin.

Como sintetizou ironicamente Moritz Körner, membro do diretório nacional do SPD, Schröder não pertence mais ao crème de la crème da política interna alemã, mas ao "crème de la Kremlin"7. Diante disso, se não houver nenhuma reviravolta política, o caso tem grande chance de ser submetido à apreciação do Bundesverfassungsgericht em Karlsruhe, da mesma forma que o caso da soldada trans Anastasia Biefang.

O caso Anastasia Biefang

O caso envolve uma alta oficial trans do Exército, Anastasia Biefang, conhecida por seu engajamento em prol da diversidade sexual. O imbróglio começou, porque a soldada apresentava-se no Tinder com seu verdadeiro nome e com uma foto sentada, na qual era possível reconhecer perfeitamente seu rosto. Abaixo da imagem do perfil constava: "Espontâneo, prazeroso, trans*, relação aberta à procura de sexo. Todos os gêneros bem-vindos".

O perfil não fazia, porém, qualquer referência às Forças Armadas (Bundeswehr). O fato, contudo, chegou ao conhecimento de seu superior hierárquico, que lhe impôs a mais branda medida disciplinar: simples advertência.

Inconformada, a oficial de 47 anos acionou a jurisdição administrativa, que em primeira instância entendeu que ela, com seu perfil no Tinder, violara o chamado außerdienstliche Wohlverhaltenspflicht, um dever de boa conduta fora do serviço, imposto pelo § 17, inc. 2 da Lei dos Soldados (Soldatengesetz).

Além disso, ela abalava consideravelmente a reputação das Forças Armadas ao despertar a impressão de que reduzia a si própria - e seus parceiros - a mero objeto sexual, afirmou o Truppendienstgericht, tribunal militar de primeira instância.

O Tribunal afirmou que, segundo o mencionado § 17 II da lei de regência, um soldado(a) não pode, através de sua conduta fora do serviço, ou seja, nos períodos de folga, manchar a imagem das Forças Armadas e/ou o respeito e confiança exigidos de sua posição.

Em sua esfera privada, tutelada jusfundamentalmente, a comandante pode até levar uma vida sexual promíscua, disse o Truppendienstgericht, mas a formulação de seu perfil lança sérias dúvidas quanto à sua integridade moral e gera efeitos negativos sobre a instituição.

Em grau de recurso, o caso subiu à câmara militar do Tribunal Federal Administrativo - Bundesverwaltungsgericht (BVerwG). Trata-se do processo BVerwG 2 WRB 2.21, julgado semana passada, em 25.5.20228.

Em apertada síntese, o BVerwG considerou a decisão acertada, mas questionável em seus fundamentos. A Corte divergiu, inicialmente, da alegação de dano à reputação institucional, pois as manifestações privadas da comandante, emitidas em seu perfil na rede de relacionamento, não seriam imputadas pela opinião pública ao Exército, enquanto instituição.

Além disso, o Truppengericht não teria valorado suficientemente o significado dos direitos fundamentais da oficial trans. Segundo o BVerwG, o direito geral de personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht), consagrado no art. 1, inc. 1 c/c art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental alemã, abrange o direito à autodeterminação sexual que, por sua vez, confere ao indivíduo o poder de determinar livremente suas relações sexuais e, inclusive, decidir-se por um comportamento sexual promíscuo.

E a tutela desse direito fundamental estende-se não apenas à esfera íntima e privada, mas inclui também o direito de procurar na esfera social, inclusive na internet, contatos com pessoas que partilhem os mesmos anseios.

Nada obstante, disse o Tribunal, a decisão a quo mostra-se correta em seu resultado, pois o dever de comportamento exige que uma soldada, que ocupa a posição particularmente proeminente de comandante de batalhão, com responsabilidade pessoal por cerca de 1.000 subordinados, leve em conta sua posição profissional na escolha das palavras e imagens utilizadas na internet.

Ela deve, portanto, evitar formulações que despertem a falsa impressão de uma vida sexual desregrada e/ou de uma falta de integridade de carácter, afirmou a Corte.

As expressões constantes do perfil, especialmente a formulação "relação aberta em busca de sexo. Todos os gêneros bem-vindos", levantam dúvidas - mesmo sob o ponto de vista de um observador razoável - quanto à sua integridade moral, razão pela qual tal menção pode ser punível com advertência, concluiu o Bundesverwaltungsgericht. 

As críticas à decisão foram imediatas. A envolvida, indignada com o resultado, lamentou que agora todo soldado(a) deva submeter seus perfis em redes sociais à aprovação do superior hierárquico9.

O administrativista Patrick Heinemann acha curioso que, conquanto a decisão se aplique a todos, justo uma oficial trans, conhecida por seu engajamento na causa, tenha recebido medida disciplinar por procurar aventuras sexuais em portal fechado, acessível apenas por usuários cadastrados, já que não se tem notícia de que soldados e soldadas com orientação cis-heteronormativa tenham sido apenados por motivos semelhantes10.

Segundo ele, o suporte fático da infração disciplinar decorrente da violação culposa dos deveres do ofício ou de conduta adotados fora do serviço, é muito aberto e, no caso concreto, fora preenchido com ideias de moralidade em desuso.

Além disso, a decisão não se deixa harmonizar com a atual orientação das Forças Armadas de tratar os soldados de forma mais humanizada ao considera-los como "cidadãos de uniforme" (Staatsbürger in Uniform), integrados na sociedade e para quem os direitos fundamentais valem, em principio, da mesma forma que para os demais.  

Em última análise, concluiu, a decisão do Tribunal Federal Administrativo proíbe que soldados e soldadas, em pleno século 21, possam procurar contatos sexuais nas plataformas, mesmo que em seus perfis falte qualquer referência às Forças Armadas11. E o efeito inibidor (chilling effect) do julgado, segundo Heinemann, foi imediato: inúmeros soldados e soldadas começaram a anonimizar seus perfis, apagando postagens e quaisquer referências à instituição por temor do denuncismo e de punições disciplinares12.

Cenas dos próximos capítulos

Como se percebe, os casos de Gerhard Schröder e de Anastasia Biefang trazem à tona a antiga discussão em torno da hombridade que os cargos públicos exigem e impõem a seus ocupantes.

A situação da comandante trans revela-se mais delicada, pois envolve a restrição de um direito fundamental nuclear do indivíduo, qual seja, o direito à autodeterminação sexual, sendo difícil, no caso concreto, perante um direito de personalidade tão relevante, delimitar de até onde vai o dever de portar-se com hombridade fora do serviço, em sua esfera privada.

Já o caso de Gerhard Schröder, conquanto igualmente espinhoso, traz, pelo menos, uma certeza: chefes de governo e de estado precisam se portar com integridade dentro e fora do cargo, lógica que se aplica, evidentemente, aos demais poderes. É o preço que se paga por ocupar os postos mais altos da nação.

O resultado de ambos aguarda o desenrolar dos acontecimentos, as cenas dos próximos capítulos. Ótima novela a ser seguida, com atenção, em terras tupiniquins, onde, infelizmente, constata-se a falta compostura e moralidade dentro e fora do cargo. O próprio conceito de moralidade, imposto aos agentes públicos pelo art. 37 CF1988, carece até hoje de densidade jurídica13, tamanha a dificuldade em lhe dar concretude prática, principalmente em casos envolvendo o alto escalão do estado. Motivos suficientes para acompanhar de perto a discussão no direito alemão.

__________

1 Schluss mit den Privilegien: Bundestag will Ex-Kanzler Gerhard Schröder den Geldhahn zudrehen. Businnes Insider Deutschland, 18/5/2022.

2 O primeiro processo envolvendo crime de guerra na invasão da Ucrânia foi sentenciado dia 23/5/2022, em Kiev, com a condenação de um soldado russo a prisão perpétua por ter disparado de um tanque contra um civil desarmado, de 62 anos de idade, que veio a óbito. Veja-se: Russe im ersten Kriegsverbrecherprozess verurteilt. LTO, 23/5/2022.

3 Schröder verliert Privilegien. Tagesschau, 19/5/2022.

4 Schröder verliert Privilegien. Tagesschau, 19/5/2022.

5 Haushaltsausschuss beschließt Abwicklung des Büros: Bundestag entzieht Schröder Sonderrechte. LTO, 19/5/2022.

6 Confira-se: Gerhard Schröder vai deixar o cargo em petrolífera russa. DW, 20/5/2002 e Schröder lässt offenbar Streichung seiner Privilegien prüfen. Zeit Online, 20/5/2022.

7 "Auf Sanktionsliste der Putin-Profiteure". Tagesschau, 27/4/2022.

8 Pressemitteilung Nr. 34/2022 vom 25.5.2022.

9 Soldatin muss zurückhaltender tindern. LTO, 25.5.2022.

10 BVwerG verlangt von Kommandeurin Zurückhaltung beim Tindern: Prüde und gefährlich. LTO, 26/5/2022, p. 2.

11 HEINEMANN, Patrick. BVwerG verlangt von Kommandeurin Zurückhaltung beim Tindern: Prüde und gefährlich. LTO, 26/5/2022, p. 3.

12 BVwerG verlangt von Kommandeurin Zurückhaltung beim Tindern: Prüde und gefährlich. LTO, 26/5/2022, p. 2.

13 Acerca da dificuldade de concretização do princípio da moralidade, confira-se, dentre outros: FERREIRA MENDES, Gilmar; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 860.