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Calha à fiveleta - O que é isso?

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Atualizado às 09:22

A leitora Maraísa Ferreira envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

"Em mais de uma oportunidade já me deparei com a expressão 'calha à fiveleta' em peças jurídicas, a qual nunca antes havia lido em outro lugar. Não consegui descobrir o que quer dizer. Acredito que, pelo contexto, consegui extrair o seu significado, mas é apenas palpite. A expressão realmente existe, tem sentido?"

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1) Uma leitora indaga, em síntese, se existe a expressão "calha à fiveleta" e, em caso positivo, o que ela quer significar.

2) Ora, fiveleta é uma pequena fivela, e calhar significa ajustar-se, motivo por que calhar à fiveleta acaba por ter o conteúdo semântico de vir a propósito, de cair bem, de caber com precisão, de amoldar-se com exatidão a uma dada circunstância, assim como um pino da fivela se prende com justeza ao furo do cinto.

3) Além de pouco usada, há quem encarte tal circunlóquio no rol daquelas expressões forenses extravagantes, ao lado de outras que consideram esdrúxulas, como acórdão guerreado, decisão hostilizada ou sentença vergastada (verga é uma vara com que se bate em algo).1

4) Outros a fazem integrar o rol dos vícios do juridiquês, podendo este "ser considerado um subproduto, uma espécie de detrito léxico cuja função prática é contaminar a clareza dos textos jurídicos, com uma aparência", além de reunir em si características como "a desnecessidade, o artificialismo, a empolação, o esnobismo, a obscuridade", mas que, apesar de tudo, "resiste e se fortalece como uma tradição". Afinal, "para atestar o seu caráter degenerado, nem é preciso fazer exercícios gramaticais, basta perceber que ninguém se expressa oralmente dessa forma: 'o autor afirmou na peça pórtica'; qualquer pessoa razoável fala: 'ele afirmou na inicial'. Ninguém diz: 'interpus uma irresignação ao nosso Areópago'; todo mundo fala: 'apelei'".2

5) O certo, entretanto, é que, não importando o pouco uso ou mesmo a dificuldade de compreensão para a maioria das pessoas, tais circunstâncias não podem bastar para que um determinado modo de dizer, em que se inclui a frase da consulta, venha a ser categorizado como expressão extravagante ou mesmo arrolado entre circunlóquios que, de modo pejorativo, integrem o que se tem tido por juridiquês.

6) Em realidade, da mesma maneira que falar difícil não significa necessariamente expressar-se com técnica e adequação e que não podemos aceitar a fala do poeta latino Horácio - que, aos que reclamavam de seu estilo difícil e elevado de escrever, dizia "não desço até a plebe, mas a plebe, se quiser, que suba até mim") - , o certo é que cada leitor ou ouvinte não pode simplesmente rotular como juridiquês ou expressão extravagante aquilo que não compreende ou de que não gosta.

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1 QUEIROZ, Paulo. Expressões forenses extravagantes. Disponível aqui. Acesso em 10.06.2020.

2 SANTOS, Hélio David Vieira Figueira dos. Lima Barreto e o Juridiquês. Disponível aqui. Acesso em 10.06.2020.