COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Gramatigalhas >
  4. A gente - Briga? Ficou sozinho?

A gente - Briga? Ficou sozinho?

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Atualizado às 08:53

Um ilustre leitor, Dr. Aristides Junqueira Alvarenga - procurador-Geral da República do Brasil entre 1989 e 1995 - , envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:

"'A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer'... 'um belo dia a gente entende que ficou sozinho', já cantava Adileia Silva da Rocha, a genial Dolores Duran, na década de 50 do século passado, na música 'Castigo'.

'A gente' já estava em lugar de 'nós'. A primeira pessoa do plural mudou-se para a terceira pessoa do singular.

Hoje, no linguajar coloquial, generalizou-se o 'a gente' em substituição a 'nós'!!!

A língua culta ignora essa antiga transformação inserida no cotidiano falar do povo brasileiro. Admiti-la consistiria em subverter a ortodoxia gramatical da nossa língua pátria.

[...]

Estas reflexões personalíssimas sobre a língua portuguesa foram inspiradas nas lições migalheiras de toda quarta-feira do eminente jurista José Maria da Costa, autor do Manual de Redação Jurídica [...]".

Envie sua dúvida


1) Um ilustre leitor indaga, em síntese, qual a posição do circunlóquio a gente perante a estrutura do idioma pátrio, e isso implica analisar a expressão com enfoque em três aspectos: (i) pertence à norma culta ou fica adstrita à linguagem coloquial?; (ii) é pronome pessoal do caso reto?; (iii) em qualquer das hipóteses, como fica sua concordância (verbal e nominal)?

2) Num primeiro aspecto, é de praxe afirmar que a mencionada expressão não pertence à norma culta, razão pela qual se afirma simplesmente que deve ser banida dos escritos que devam submeter-se ao referido padrão.

3) Essa afirmação, todavia, precisa ser tomada com o devido tempero, certo como é que, apenas para exemplificar, já no século XIX, Alexandre Herculano, em seu livro Lendas e Narrativas, assim registrava: "É verdade que a gente, às vezes, tem cá as suas birras...".

4) E Machado de Assis, em mesma época, em sua obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, também escrevia: "Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos...".

5) Essa postura de emprego da mencionada expressão por autores que, como os citados, se serviram do idioma com reconhecido apuro linguístico, faz com que se deva acolher, num primeiro aspecto, a afirmação do gramático Francisco da Silveira Bueno, ainda na longínqua década de 1940: expressões como essa "são correntias na pena dos escritores e na boca do povo".1

6) Anote-se, porém, que, embora encontrada até mesmo em abalizados autores, a referida expressão está longe de ser aceita na linguagem que deva submeter-se aos ditames da norma culta, de onde é sistematicamente banida.

7) E é com este parâmetro que, num primeiro aspecto, deve ela ser tida em nosso idioma: é aceita como existente e até mesmo é estudada e sistematizada pelos gramáticos; não se permite seu uso, todavia, nos escritos que devam pautar-se pela norma culta, mas, como bem lembra Domingos Paschoal Cegalla, "deve restringir-se à comunicação coloquial".2

8. Quanto à categoria gramatical em que deva ser inserida, assim a conceitua Evanildo Bechara: "O substantivo gente, precedido do artigo a e em referência a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa a pronome e se emprega fora da linguagem cerimoniosa".3

9) Ainda quanto à categoria gramatical, Antenor Nascentes afirma que "a locução a gente vale às vezes, em estilo familiar, por um pronome da primeira pessoa do plural"; e, seguindo para o plano da concordância verbal a ser obedecida, tal autor continua sua observação, para fixar que é errado dizer "A gente fomos ao teatro", de modo que o verbo, em tal circunstância, deve ficar na terceira pessoa do singular, ou seja, "A gente foi ao teatro".4

10) Indo um pouco além, agora no que respeita à concordância nominal, Silveira Bueno frisa que tal forma pronominal indefinida "exige a concordância com o gênero da pessoa que ela representa e não com o gênero dessa palavra". Assim, o homem haverá de dizer: "A gente ficou pasmado"; a mulher, porém, dirá: "A gente ficou pasmada".5

11) Cândido Jucá Filho também partilha da opinião de que se deve observar, em casos dessa natureza, a concordância com a ideia, vale dizer, por silepse: "A gente está cansado (se fala um homem)".6

12) O Padre José F. Stringari invoca também ensino do abalizado vernaculista Mário Barreto, para quem, "por silepse, poderia dizer-se corretamente: A gente ficou ofendido ou aborrecido, evidentemente quando se trata dum homem".

13) O mesmo padre gramático, por outro lado, lembra que, nesses casos, a questão da concordância nominal não é tão pacífica, e anota lição de João Ribeiro, para quem "o sujeito indefinido a gente é sempre feminino: A gente ficou ofendida, ou aborrecida, e não ofendido ou aborrecido. Os que não observam essa concordância cometem grosseiro e inexplicável erro".7

14) Em tempos mais recentes, Domingos Paschoal Cegalla repete esse ensinamento: "Recomenda-se a concordância no feminino, ainda quando o falante é pessoa do sexo masculino: 'A gente deve estar prevenida', disse o motorista".8

15) Para evitar polêmicas e focar a questão em um modo de utilização do idioma imune a quaisquer dúvidas ou discussões, o autor eclesiástico acima citado propõe o estratagema do emprego de se em lugar de a gente, e, com isso, a concordância ideológica ou por silepse se faz com facilidade; desse modo, assim se deve falar e escrever em casos dessa natureza: "Fica-se ofendido", "Fica-se calado" (quando quem fala é um homem); "Fica-se ofendida", "Fica-se calada", quando quem fala é uma mulher.9

16) No plano histórico, Pedro A. Pinto traz as seguintes ponderações: (i) tal construção não é um brasileirismo, mas, "antes, lusitanismo ou, talvez, latinismo"; (ii) "na era pré-clássica da língua, em regra, o sujeito gente levava o verbo ao plural"; (iii) "nos quinhentistas, gente ora está com o verbo no singular, ora no plural"; (iv) esse duplo uso de concordância se encontra nos versos de Camões, que ele registra: (a) "Esperam que a guerreira gente saia" (singular); (b) "O grande estrondo a maura gente espanta, / Como se vissem hórrida batalha" (plural); (v) em períodos clássicos posteriores, há exemplos dessa convivência sintática em João de Barros, Camilo e Trindade Coelho.10

17) Objete-se, contudo, que o exemplo de Camões, para comprovar a possibilidade de concordância no plural, não se mostra adequado para ilustrar o pensamento expresso por quem o citou, uma vez que, conforme conhecida regra de Gramática, quando palavras de significação coletiva não venham seguidas de termos especificador, quer quando o verbo se distancia do sujeito, mesmo sendo um só, quer quando há um segundo verbo, pode este, facultativamente, ficar no singular, ou ir para o plural.

18) E se finalize dizendo que, nos dias de hoje, o melhor, nos casos em que se permite o emprego da referida expressão, é proceder do seguinte modo: (i) deixar o verbo na terceira pessoa do singular; (ii) proceder, adicionalmente, à concordância ideológica quanto ao gênero dos adjetivos. Exs.: (a) "A gente está cansado" (se fala um homem); (b) "A gente está cansada" (se fala uma mulher).

__________

1 BUENO, Francisco da Silveira. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. São Paulo, Saraiva, 1968, 7. ed., p. 301.

2 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 180.

3 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa - cursos de 1º e 2º graus. São Paulo, Editora Nacional, 1974, 19 ed., p. 96.

4 NASCENTES, Antenor. O Idioma Nacional. 3. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1942, vol. II, p. 90.

5 BUENO, Francisco da Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva & Cia., 1938, p. 76.

6 JUCÁ FILHO, Cândido. Dicionário Escolar das Dificuldades da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Fename - Fundação Nacional de Material Escolar, 1963, p. 326.

7 STRINGARI, Padre José F. Canhenho de Português. São Paulo: Editorial Dom Bosco, 1961, p. 63-64.

8 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 180.

9 STRINGARI, Padre José F. Canhenho de Português. São Paulo: Editorial Dom Bosco, 1961, p. 63-64.

10 PINTO, Pedro A. Termos e Locuções - Miudezas de Linguagem Luso-Brasileira. Rio de Janeiro: Tipografia Revista dos Tribunais, 1924, p. 300-302.