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Vocabulário Ortográfico - Critérios para novas palavras

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Atualizado às 09:08

Um ilustre leitor, Dr. Aristides Junqueira Alvarenga - Procurador-Geral da República do Brasil entre 1989 e 1995 - , envia uma segunda mensagem ao Gramatigalhas:

"... é preciso anglicizar nosso idioma e inserir, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, compliance, coworking, lockdown, podcast, sem tradução, com presunção absoluta de que 'a gente' fala inglês!!!

Essa mesma publicação oficial continua a ignorar termos usuais como 'viralizar', 'hacker', 'hackeamento' e outros muito encontradiços em peças jurídicas e até mesmo em decisões judiciais, como 'oportunizar', 'dinamicidade', 'colidência' (de defesa)...

Estas reflexões personalíssimas sobre a língua portuguesa foram inspiradas nas lições migalheiras de toda quarta-feira do eminente jurista José Maria da Costa, autor do Manual de Redação Jurídica, e dele gostaria de saber qual o critério utilizado pela Academia Brasileira de Letras para optar pela inserção de termos no Vocabulário Ortográfico".

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1) Um ilustre leitor faz os seguintes e importantes registros: (i) é preciso inserir no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa palavras como compliance, coworking, lockdown, poadcast, além de hacker e hackeamento; (ii) o VOLP, ademais, ignora palavras encontradiças em peças jurídicas, como viralizar, oportunizar, dinamicidade e colidência; (iii) nesse quadro, qual o critério utilizado pela Academia Brasileira de Letras para incluir termos na mencionada obra.

2) Anote-se, de início, que a Academia Brasileira de Letras detém autoridade para definir a existência, a grafia, o gênero e outras circunstâncias das palavras em nosso idioma, e ela se desincumbe desse mister pela edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, uma espécie de dicionário que lista as palavras oficialmente reconhecidas e lhes fornece a grafia oficial e outros aspectos, muito embora normalmente não aponte seu significado.

3) E essa autoridade lhe advém de delegação ao longo dos tempos, como se pode constatar pelos seguintes dados históricos: (i) a introdução do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1943 registrava que "a Academia Brasileira de Letras recebeu de Sua Excelência o Senhor Presidente da República a incumbência de elaborar o vocabulário ortográfico de que tratam os decretos-leis 292, de 23 de fevereiro de 1938, e 5.186, de 13 de janeiro de 1943"; (ii) décadas mais tarde, quando houve alterações na acentuação gráfica, a Lei 5.765/1971, em seu art. 2º, incumbiu a ABL de promover "a atualização do Vocabulário Comum, a organização do Vocabulário Onomástico e a republicação do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa"; (iii) pelo Acordo de 1990, a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras foram incumbidas de publicar um vocabulário ortográfico comum; (iv) por fim, quando da edição dos Decretos federais 6.583, 6.584 e 6.585, todos de 2008, com os quais que se aprovou o Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico daquele ano, o art. 2º deste último determinava que os Estados signatários tomariam as providências necessárias à elaboração de um vocabulário ortográfico por intermédio das instituições e órgãos competentes, o que, no que tange ao Brasil, significava a ABL.

4) Com essas informações como premissas, listam-se as seguintes datas em que foram editadas as versões do VOLP: 1981, 1998, 1999, 2004, 2009 e 2021 (esta disponível exclusivamente em versão on-line no site da ABL ou em aplicativo oficial).

5) Cingindo as presentes observações apenas às três últimas, anota-se que sua quarta edição (2004) removeu arcaísmos e termos dialetais em total desuso (como dereito, despois, frauta, frecha e treição, usados por Camões), aperfeiçoou o sistema de registro dos plurais de muitas palavras, principalmente dos substantivos compostos, e enriqueceu significativamente o rol dos vocábulos. Buscava, com isso, atender "a determinadas necessidades, cotidianas e práticas, dos usuários de um idioma vivo [...], tal como dele se servem, contemporaneamente, as pessoas instruídas no Brasil".

6) Sua quinta edição (2009), por um lado, incorporou as Bases do Acordo Ortográfico de 2008 e registrou as palavras do idioma já com as modificações atinentes à acentuação gráfica, ao trema e ao hífen; por outro lado, também acrescentou novos vocábulos.

7) Por fim, a sexta edição (2021), conforme registra sua Nota editorial, "conta com 382 mil entradas, mil palavras novas, incluindo os estrangeirismos, além de correções e informações complementares nos verbetes, como acréscimos de ortoépia (com indicação dos casos de metafonia), plural e, apenas em alguns casos, para desfazer dúvidas e ambiguidades, a indicação de homonímia, paronímia e significado".

8) Como se vê, num lapso temporal de pouco mais de dez anos, a mais recente edição inseriu oficialmente em nosso léxico nada menos do que mil vocábulos novos, tecnicamente denominados neologismos. Nesse passo, procurando acompanhar de perto o uso e a evolução do idioma, acrescentou termos originados do desenvolvimento científico e tecnológico e até mesmo incluiu palavras que surgiram no contexto da pandemia do novo coronavírus, além de adicionar vocábulos de uso comum, muito divulgados na mídia impressa e em textos acadêmicos, como biopsiar, bucomaxilofacial, ciberataque, cibersegurança, ciclofaixa, covid-19, feminicídio, gerontofobia, homoparental, judicialização, laudar, negacionismo, sororidade, telemedicina e viralizar.

9) Com essas anotações quanto aos fatos e às ocorrências, que mostram um pouco os passos normalmente seguidos para confecção e atualização do VOLP, conforme deixa entrever a Apresentação da edição  de 2021, a intenção dos responsáveis é ampliar, de acordo com o uso diário do idioma, o número dos termos oficialmente reconhecidos; e, nessa tarefa, por um lado, as "antenas da Academia Brasileira de Letras seguem abertas, sensíveis, aos apelos e às vozes de nossa língua", enquanto, por outro lado, nesse trabalho, "a oportuna sabedoria do corte, o estudo da frequência contribuem claramente para a fixação vocabular".

10) Esclarece a ABL, também na referida Apresentação de sua sexta edição, que, no interregno entre esta e a anterior, "a equipe de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras [reuniu] novas palavras colhidas em textos literários, científicos e jornalísticos ou recebidas como sugestão por consulentes do Volp", sempre atenta ao "grande volume de palavras que passaram a fazer parte do cotidiano da língua".

11) Nesse quadro, apesar de não escritos, podem-se registrar os seguintes aspectos e condutas seguidos pela ABL para a expansão do rol das palavras oficialmente reconhecidas: (i) cuidadosos estudos de vocábulos novos em corrente uso no idioma são feitos por uma Comissão de Lexicologia e Lexicografia da entidade, antes que seja tomada uma posição para sua inserção oficial na Língua Portuguesa; (ii) e a Academia mostra-se receptiva a sugestões, atenta que está à expansão da lista de vocábulos em uso corrente, as quais possam pertencer oficialmente ao idioma.

12) Importa realçar, todavia, que, embora precedido o processo de cuidadosa operação e triagem, não está ele, todavia, imune a questionamentos e equívocos: (i) é discutível, assim, o critério que introduziu oficialmente no idioma, na edição de 1998, a palavra imbróglio, mas, mesmo após mais de vinte anos, continua não agindo de mesmo modo com a palavra pizza, que ainda é reputada estrangeirismo; (ii) laborou em erro a ABL durante muito tempo, já que, nas edições anteriores do VOLP, contrariamente à unanimidade dos estudiosos e aos padrões normais de uso da língua, sempre considerou o vocábulo cônjuge como substantivo comum de dois gêneros (de modo que se poderia dizer o cônjuge e a cônjuge, como se dá com pianista, chefe e policial), e apenas veio a corrigir o erro na edição de 2021, para tê-lo como sobrecomum do masculino (isto é, para permitir dizer apenas o cônjuge [como a criança ou a testemunha], sendo a especificação feita por algum outro elemento, como em cônjuge varão ou cônjuge feminino); (iii) por mais ampliativo que seja o critério de inserção de vocábulos no idioma, é discutível a necessidade de um verbo como inicializar, introduzido pela edição de 2004 do VOLP, o qual nada parece acrescentar ao significado do já existente iniciar.

13) Num segundo aspecto, entre os estrangeirismos recentemente inseridos no VOLP estão botox, bullying, compliance, coworking, crossfit, delay, hacker, home office, live-action, lockdown, personal trainer e podcast, entre muitos outros da língua inglesa. Também se incluem vocábulos que atestam a influência de outras línguas, como emoji, shiitaki e shimeji, do japonês, parkour, physique du rôle e sommelier, do francês, cappuccino e paparazzo, do italiano, e chimichurri, do espanhol.

14) Nesse campo, oportuno é observar que o gramático João Ribeiro, no primeiro quartel do século passado, conceituava tecnicamente os estrangeirismos como expressões tiradas de outras línguas e que constituem vício, quando os vocábulos estranhos não são indispensáveis em textos nossos.1 E essas palavras, ainda no plano da técnica e da ciência, são denominadas barbarismos, os quais, para especificação, recebem o nome do país de origem (anglicismo, francesismo ou galicismo, germanismo, helenismo, italianismo, latinismo...).2  É preciso acentuar, porém, que vivemos tempos novos, em que a imbricação entre as línguas é mais intensa, mais tolerada e, às vezes, mais necessária do que em outras épocas, de modo que, observados determinados limites, não se pode viver hoje, nesse aspecto, com postura de um purismo exacerbado e de uma intransigência rígida, motivo por que precisam ser atenuados os respectivos conceitos e suas consequências.

15) Pondere-se, ademais, quanto a essas palavras ou expressões estrangeiras usadas em textos vernáculos, que algumas observações podem ser feitas a seu respeito: (i) a impressão que transparece do VOLP é que o enquadramento de uma palavra estrangeira nessa categoria de emprego expressamente permitido constitui um primeiro passo no caminho rumo a sua integração definitiva e oficial no idioma; (ii) a demora ou recusa em sua inserção nesse sentido, num primeiro aspecto, pode resultar da desnecessidade, quando há vocábulo que corresponda com perfeição a seu significado, o que parece acontecer com expertise (experiência, perícia, preparo) e performance (desempenho); (iii) num segundo aspecto, essa delonga pode também advir das dificuldades em acomodar a grafia aos moldes dos nossos vocábulos, sobretudo para registrar letras cujos sons correspondam a escritas diversas dos caracteres de nossa fonética (como é o caso de imbróglio, que, já acoplado ao idioma a contar da edição de 2009 do VOLP, precisou vir com a explicitação da pronúncia lh entre parênteses); (iv) mesmo nesse campo, entretanto, a ABL já tem suavizado a rigidez de parâmetros, como quando oficializou a palavra internet, com terminação bastante estranha à estrutura da língua.

16) Com essas ponderações como premissas, outras considerações ainda podem ser feitas quanto aos estrangeirismos: (i) se um vocábulo não está oficialmente registrado no VOLP como integrante de nosso léxico, isso não significa a impossibilidade de seu emprego em textos de nosso idioma; (ii) e mesmo o fato de uma palavra não constar como estrangeirismo na lista da ABL também não constitui fator impeditivo de seu uso; (iii) assim, em qualquer dessas hipóteses, quando for necessário escrever um vocábulo estrangeiro em textos vernáculos (o mesmo se diga do aportuguesamento de um vocábulo ainda não feito pela ABL, como se dá com hackeamento, lembrado pelo leitor), basta submeter a palavra a uma formalidade bastante simples, que registrá-la em negrito, em itálico, "entre aspas" ou sublinhada; (iv) desse modo, podemos escrever normalmente compliance, coworking, hacker, lockdown ou podcast, sem que se façam acompanhar de tradução, bastando que se grafe compliance, coworking, hacker, lockdown, podcast, ou compliance, coworking, hacker, lockdown, podcast, ou "compliance", "coworking", "hacker", "lockdown", "podcast", ou mesmo compliance, coworking, hacker, lockdown e podcast.

17) Por fim, aos que se interessam pelo nosso léxico e com ele queiram contribuir, acresce registrar alguns pontos importantes: (i) em explícita demonstração de interesse pela contribuição dos usuários, todas as edições do VOLP têm sido dedicadas "aos que usam da língua portuguesa como bem comum", e eles são "chamados a colaborar no aperfeiçoamento desta coleta, com achegas, sugestões, críticas, correções"; (ii) como demonstração ainda mais clara desse sentimento, na primeira de tais edições, até mesmo consta um agradecimento nominal a diversas pessoas pela "colaboração no oferecimento de verbetes"; (iii) isso, sem dúvida, mostra um canal aberto à participação dos usuários de todos os cantos, de todas as especialidades e de todos os níveis na construção de nosso léxico, de modo que sugestões, críticas e comentários podem ser endereçados diretamente à Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, a qual tem os olhos continuamente voltados para essa tarefa e para essas circunstâncias.

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1 RIBEIRO, João. Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923, 20. ed., p. 245.

2 PEREIRA. Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924, p. 260.