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É hora da onça beber água

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Atualizado em 10 de outubro de 2022 11:40

O leitor Edem de Almeida, de Araraquara, Estado de São Paulo, envia-nos a seguinte mensagem:

 

"Prezado Dr. José Maria da Costa, 'o fato DE O jornalista Kennedy Alencar ter veiculado dia 16 de abril a informação de que houve a condenação'. Quando se usa 'de o' e quando se usa 'do'? Grato."

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1) Diga-se, desde logo, que a maneira tradicionalmente considerada correta de se dizer tal frase há de ser: "É hora de a onça beber água", e isso na consonância com a lição tradicional, como se vê do preciso ensino de Vitório Bergo sobre o assunto, que observa dois significativos aspectos:

a) "A preposição de não se contrai com o pronome ele" (a lição, em realidade, vale também para outras palavras) "quando este se acha, antes de um verbo, em função de sujeito";

b) "Com o pronome eu nunca se dá a contração, porque este em nenhum caso funciona como complemento".1

2) De acordo com a doutrina de Laudelino Freire, "costumam escritores menos zelosos do que escrevem unir a preposição ao artigo, ou ao pronome pessoal, em frases como estas - "É tempo do professor publicar seu livro" - "Depois dele partir para Londres..."

3) E continua tal gramático: "Incorreto é assim escrever, porque essa união tem cabimento, uma vez que a preposição não rege o sujeito e sim o verbo, como se vê dando àquelas frases outra ordem - "É tempo de publicar o professor o seu livro" - "Depois de partir ele para Londres..."

4) Encerra assim sua lição, nessa aspecto, o referido autor: "Correto é, pois, escrever, se parando a preposição do artigo ou do pronome - "É tempo de o professor publicar o seu livro" - "Depois de ele partir para Londres...".2

5) E Eduardo Carlos Pereira, lembrando a circunstância de que, nesses casos, "a preposição rege o verbo e não o sujeiro", observa serem condenáveis as seguintes construções:

I) "Em vez dos ladrões levarem os reis ao inferno...";

II) "É tempo dos patriotas erguerem-se".

6) Em continuação, especifica ele quais as formas de correção de tais frases:

a) "Em vez de os ladrões levarem os reis ao inferno...";

b) "É tempo de os patriotas erguerem-se".3

7) Com muita freqüência, ocorre o mencionado equívoco com a expressão apesar de, como se pode ver nos seguintes exemplos, em que se indica sua correção ou erronia:

a) "Apesar do réu ter faltado, não foi decretada sua revelia" (errado);

b) "Apesar de o réu ter faltado, não foi decretada sua revelia" (correto);

c) "Apesar de ter faltado o réu, não foi decretada sua revelia" (correto).

8) Para tais casos, de muita propriedade é a síntese de Arnaldo Niskier: "Quando após a preposição de ou em temos um sujeito, este não pode ser contraído àquela em língua escrita, embora a tendência na oralidade seja a contração. Assim, temos 'antes de ela chegar', 'não há mal em ele sair', etc".4

9) Trabalhando a frase "Chegou a hora de o povo decidir", assim observam José de Nicola e Ernani Terra: "Cuidado com essa construção. Nunca escreva "Chegou a hora do povo decidir". Pense na gramática da frase: o povo é sujeito do verbo decidir; como sabemos, o sujeito nunca é regido de preposição, daí não se justificar a contração da posição de com o artigo que faz parte do sujeito (nesse caso, a preposição rege o verbo e não o sujeito)".5

10) A quem parecer artificial a construção, o melhor é valer-se da inversão entre sujeito e verbo, evitando o referido encontro entre a preposição e o artigo ou pronome:

a) "É tempo de publicar o professor o seu livro";

b) "Depois de partir ele para Londres...";

c) "Apesar de ter o réu faltado..."

11) Sem embargo da integral correção do ensinamento até agora retratado, Luciano Correia da Silva cita dois "exemplos consagradores da forma impuganda" em Machado de Assis:

a) "São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara";

b) "Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele nascer".6

12) Outros exemplos de emprego da forma contraída podem ser encontrados em diversos autores dos mais zelosos pelo culto ao idioma:

a) "Gonçalo pediu a D. João I que lhe legitimasse o filho natural, para que, no caso dele perecer na batalha..." (Camilo Castelo Branco);

b) "No momento do comboio partir..." (Eça de Queirós);

c) "Cedo, antes do sol luzir, a sineta soava a despertar" (Coelho Neto);

d) "... no caso do infinitivo trazer complemento direto que não seja pronome pessoal..." (Epifânio Dias);

e) "Sabia-o, senhor, antes do caso suceder" (Alexandre Herculano).

13) Em posição de discordância do ensino tradicional, também se veja a lição de Silveira Bueno, para quem a frase "No momento das estrelas surgirem" não está errada, sendo, para ele, de igual modo, correto dizer "...das estrelas surgirem" ou "...de as estrelas surgirem", porquanto, para ele, "a simples contração não é causa de regência", já que esta "procede da função sintática e não da posição gráfica".7

14) Também anota Domingos Paschoal Cegalla que, "devido ao seu artificialismo e por conflitar com a oralidade, esta regra nem sempre é respeitada".8

15) Em outra passagem, o mesmo autor - para quem são "desinformados e caturras" os gramáticos que condenam a contração - considera "lícito, em benefício da eufonia, contrair a preposição de com o artigo ou o pronome antes das orações infinitivas", lembrando tal autor que a forma contraída "é mais natural e espontânea, evita os desagradáveis hiatos de o, de a, de ele, de esse, de aquele, etc." e tem "a vantagem de evitar construções artificiais", enquanto "a outra é um gramaticalismo um tanto afetado, em choque com a língua falada".9

16) Após tais arroubos de liberalismo gramatical, todavia, tal autor - a quem não parece censurável contrair, normalmente, a preposição de com o artigo, em frases como "Antes do sol nascer, já estávamos na estrada" - reputa que, "na modalidade culta formal, recomenda-se escrever: Antes de o sol nascer, já estávamos na estrada".10

17) Apesar das apontadas divergências entre os gramáticos e autores, nos textos jurídicos e forenses, a serem escritos com observância do padrão culto, o melhor é seguir essa última parte do ensino de Domingos Paschoal Cegalla e não empregar a forma contraída.

18) Quanto ao emprego na elaboração das leis, assim se expressa Adalberto J. Kaspary em preciosa monografia: "De cem exemplos que anotamos, oitenta e sete são da construção não-combinada, sendo, pois, apenas treze da forma combinada. Curiosamente, dos treze exemplos em que o sujeito aparece combinado ou contraído com a preposição, doze são do Código Comercial de 1850 (em que aparece somente esta construção), sendo o outro do Código Civil de Portugal, assim mesmo não na redação original, mas de modificação posterior. Por outro lado, dos oitenta e sete exemplos com a forma não-combinada do sujeito, oitenta e um são do Código Civil de Portugal". Exs.:

a) "A sentença, que julgar procedente a ação, ordenará o restabelecimento do estado anterior, a suspensão da causa principal e a proibição de o réu falar nos autos até a purgação do atentado" (CPC, art. 881);

b) "A falta ou nulidade da citação, da intimação ou da notificação estará sanada, desde que o interessado compareça, antes de o ato consumar-se, embora declare que o faz para o único fim de argüi-la" (CPP, art. 570);

c) "O sócio que não aprovar a liquidação ou a partilha é obrigado a reclamar dentro de dez dias depois desta lhes ser comunicada..." (C. Com., art. 348);

d) "... mas nunca depois do menor atingir a maioridade ou ser emancipado..." (CC português, art. 125º, 1, a).

19) E continua o mencionado autor, em lição que merece total acolhida: "Em face das considerações acima expendidas e das constatações feitas, recomenda-se o uso da forma não-combinada em textos formais, no que se estará seguindo a melhor tradição da linguagem literária em geral e da linguagem jurídica em particular. Não se trata, no entanto, convém frisar, de uma questão de certo e errado, mas, acima de tudo, é um problema de maior ou menor gabarito da expressão escrita".11

__________________

1Cf. BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1944. vol. II, p. 77.

2Cf. FREIRE, Laudelino. Linguagem e Estilo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora A Noite, sem data. P. 23-24.

3Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 237.

4Cf. NISKIER, Arnaldo. Questões Práticas da Língua Portuguesa: 700 Respostas. Rio de Janeiro: Consultor, Assessoria de Planejamento Ltda., 1992.p. 26.

5Cf. NICOLA, José de; TERRA, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo:Saraiva, 2000. p. 59.

6Cf. SILVA, Luciano Correia da. Manual de Linguagem Forense. 1. ed. São Paulo: EDIPRO, 1991, p. 178.

7Cf. BUENO, Francisco da Silveira. Questões de Português. São Paulo: Saraiva, 1957. 2º v., p. 430-431.

8Cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 110.

9Ibid., p. 101-103.

10Cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 27.

11Cf. KASPARY, Adalberto J. O Verbo na Linguagem Jurídica - Acepções e Regimes. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1996. p. 372.