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Inteligência artificial, Filosofia e Direito - Rediscussão da inter e a transdisciplinaridade em novas bases

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Atualizado às 08:27

A humanidade sempre enfrentou mudanças devido às tecnologias, contudo, a IA traz transformações únicas nas estruturas sociais, econômicas e políticas, transformando nossas subjetividades, nossa percepção, cognição, como sentimos e experimentamos o mundo, logo o que significa continuar sendo humano, e o conceito de humano (cyborgues). "Será que, com isso as últimas trincheiras das velhas dicotomias epistemológicas entre sujeito e objeto irão, por fim, desabar?" (Santaella, 2013). A IA traz alterações no Direito, com a crescente produção de decisões automatizadas, utilização da IA no policiamento predititivo, gerenciamento e recrutamento de trabalhadores, análise e construção de perfis de crédito, amplicando-se o que se pode afirmar como matematização do pensamento jurídico, em busca de uma maior neutralidade, objetividade e eficiência.

O direito está em estado de quantum critic, já que poderá estar sendo comprometida sua humanização e AUTOPOIESI.

Trata-se de uma crítica ao direito, em sua visão predominante na Idade Contemporânea (século XX e XXI), associada às críticas de sua associação ao biopoder, à técnica, e ao formalismo exacerbado, fenômenos que ocorrem desde a época moderna (a partir do século XVII), considerando-se, pois, o direito associado às relações de saber-poder (Foucault). Verifica-se na contemporaneidade a prevalência de uma concepção e compreensão do direito como mera técnica, em uma redução limitadora fundamentada no pensamento meramente científico e formalista, uma concepção tecnoeconômica (do direito), amparando-se em uma linguagem de cálculo, como instrumento do conhecimento por excelência1.  Contudo, o calcular é o oposto do PENSAR REFLEXIVO, CRÍTICO, CRIATIVO, IMAGINATIVO, SENSÍVEL, pois estes lançam-se no aberto, ao contrário de uma prévia determinação de asseguramento (em especial no sentido de uma proposta filosófica, vinculada também à zetética, opondo-se a dogmática neste sentido, por se pautar pelo questionar, pelo duvidar, ao invés de se limitar a uma reprodução de conceitos já postos, sem uma reflexão questionadora acerca dos mesmos).

Tal postulação reconhece e parte da insuficiência de uma visão eurocêntrica e antropocêntrica para se pensar a relação técnica-humanos, tal como se verifica a exemplo das próprias Declarações Universais dos Direitos Humanos construídas sob uma ótica hegemônica ocidental, não sendo levadas em consideração geralmente as construções das Epistemologias do Sul. Há uma crise quanto aos direitos humanos, a exemplo do retrocesso em termos de conquista de direitos e preocupações humanitárias, como se observa da Declaração de Filadélfia e de Marrakesh, sendo que esta última traz uma concepção proprietária e econômica acerca do trabalho, considerando como mercadoria, relegando a um segundo plano os direitos sociais, sendo corroborada pela recente jurisprudência "Viking"da Corte Europeia, em Acórdão proferido de 2007.

Seria um retorno sub-reptício ao sistema feudal, ao reino da personalidade das leis, ocorrendo a pulverizacão dos direitos humanos. A peça de teatro "O Rei da Vela" de Oswald de Andrade, em cartaz em 03.2018 no TreatroOficina, dirigido e atuado por José Celso Martinez Correa, após sua estreia e temporada originárias meio século antes, sendo um divisor de águas na história da dramaturgia no Brasil, em pleno regime ditatorial. A apresentação traz a visão do Brasil como um país feudal, onde o cobrador do ágio vira rei da vela ao explorar a pobreza dos devedores que não possuiriam dinheiro para pagar sequer a conta de luz, aprisionando estes em celas com grades e negociando os juros com um chicote.

É o reflexo da existência de um mercado legislativo planetário, com as tradições jurídicas sendo postas em concorrência umas com as outras, potencializado pela instrumentalização do Direito pelo cálculo, pela estatística, pelo pensamento cartesiano (que entende ser suficiente a matematização do mundo).

Daí se falar da necessidade de uma nova compreensão e da reinvenção dos Direitos Humanos, no sentido de integrar a diversidade cultural e as diversas concepções de justiça e de dignidade humana, a exemplo, das noções de "dharma" Hindu, de "umma" islâmica, de "pachamama" ou o "buen vivir" dos povos indígenas da América Latina, do "ubuntu africano", do "Sumak Kawsay", ou o "Sumak Qamanã", trazendo o respeito aos direitos da natureza, passando do foco dos deveres ao foco aos direitos, e para uma nova concepção de comunidade, a exemplo da Constituição do Equador de 2008, como constitucionalismo transformador.

Tais propostas refletem e são fundamentadas no respeito à diferença, no respeito pela igualdade na diferença, por meio de um processo político participativo, na linha do que se denomina de "constitucionalismo transformador", trazendo a possibilidade de recuperação da cidadania anestesiada ou passiva, transformada em uma cidadania ativa, como exercício de direitos humanos.

Como podemos nos reapropriar da tecnologia moderna, através da re-articulação da essência da técnica, considerando-se os conceitos de tecnodiversidade e de cosmoética (Yuk Hui), e no sentido da técnica como "poiesis", com base nos valores construcionistas do "homo poieticus" (Floridi) e não como dominação, como engrenagem e dispositivo (Gestell - Heidegger) do capitalismo de dados? Como a arte e a ética podem contribuir para repensarmos a relação homem-máquina?

Trata-se de repensarmos a relação entre as diversas disciplinas e saberes, e de rediscutirmos a inter e a transdisciplinaridade em novas bases como aponta Lúcia Santaella na proposta da Cátedra Oscar Sala, diante da dissolução das fronteiras entre as exatas e as humanidades.

Visa-se, neste sentido, desenvolver as bases epistemológicas e hermenêuticas de uma compreensão plural, adiagonal (Foucault), considerando-se as ambivalências, contradições e paradoxos, para se "atiçar a potência do pensamento" (Lúcia Santaella), a fim de pensamos (tais questões) para além de dualismos e de uma visão apenas utópica ou distópica.

Destaca-se a importância das artes e da poética, da lógica não cartesiana, para além da dialética idealista de Hegel, na construção de uma dialética polivante e de uma lógica atonal, relacionadas às artes, com um traço determinante do tempo ligado à experiência, tempo não linear, não causal, tempo das puras intensidades diferenciais.

Para Charles Sanders Peirce é o futuro que influencia o presente e não o passado, isto é, se cultivarmos ideais que são projetados no futuro temos que nos imaginar habitando um mundo com tais ideais, e com tal projeção moldamos nosso presente. As artes (como não representação), ao desafiarem todas as relações objeto a objeto, as relações das formas e seus significados, trazem a possibilidade de uma nova dimensão, ao invés de representação, a re-apresentação, ao invés de mediação, ou contemplação, a interação, afastando-se da lógica generalista, por não alcançar a infinidade de possibilidades latentes (Deleuze, "Foucault"). Uma mudança de uma compreensão do conhecimento representacionalista (mimético) para um construcionista (poiético), de Descartes a Peirce, da mimesis à poiesis, para uma interpretação poiética dos nossos conhecimentos (Luciano Floridi).

A proposta de ética para Peirce aproxima-se do conceito ético de Agamben, inspirado em Foucault (Santaella), aproximando-se também Peirce e Foucault em relação a experiência estética enquanto poética, como presentidade, fugindo da mediação, da contemplação e da representação.

Para Peirce, a resposta estaria na poética, afirmando a experiência estética como relacionada à contemplação, quando todo aparato judicativo da mente se desmobiliza em função da desnecessidade de mediação. Quando o mundo não reage, não se opõe por não aparecer fenomenicamente como alteridade, a linguagem deixa de ser mediadora.

DESENVOLVIMENTO

Como podemos nos reapropriar da tecnologia moderna, através da re-articulação da essência da técnica, considerando-se os conceitos de tecnodiversidade e de cosmoética (Yuk Hui), e no sentido da técnica como "poiesis", com base nos valores construcionistas do "homo poieticus" (Luciano Floridi.

Para Yui-Hui, teríamos que olhar e pensar a tecnologia não apenas como força exclusivamente produtiva e mecanismo capitalista voltado ao aumento da mais-valia, pois isso nos impediria de ver seu potencial decolonizador e de perceber a necessidade do desenvolvimento e da manutenção da tecnodiversidade. O que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, maia e como estas podem recontextualizar a tecnologia moderna? É importante destacar em tal construção epistemológica o conceito de ética digital intercultural, fugindo-se de uma lógica ou viés antropocentrista e eurocêntrico, em atenção, outrossim, às Epistemologia do Sul, considerando-se o sul como categoria epistemológica e não geográfica (Boaventura de Souza Santos).

Ao invés de pensamos acerca da essência da técnica objeto de reflexões por parte de Heidegger, em especial ao seu texto de 1949 "A questão da técnica", não em um sentido apenas distópico, como fazendo parte dos dispositivos do biopoder ou do capitalismo de dados, mas, no sentido de refletir acerca da tecnodiversidade e da cosmotécnica, reconhecendo a existência de um pluralismo tecnológico e ontológico, evitando-se a simples oposição dualista entre natureza e técnica, como aponta Yuk Hui, sugerindo que seja repensada a descolonização a partir da perspectiva da tecnopolítica.

A poética, a poesia, as artes, na medida em que desafiam todas as relações objeto a objeto e as relações das formas e seus significados, trazem uma nova dimensão, onde ao invés de representação, teríamos re-apresentação, ao invés de mediação, ou ao invés de apenas uma contemplação teríamos a interação (DELEUZE, G., 1986, p. 30), afastando-se da lógica generalista predominante, por ela não alcançar a infinidade de possibilidades latentes (Id. ib., p. 13-14).

 A lógica atonal, por exemplo, liga-se à experiência-limite dos sons, que independe de uma estrutura harmônica ou melódica, com o fim de dar algum sentido de totalidade, ou de linearidade à composição (José Miguel Wisnik, "O som e o sentido. Uma outra história das músicas", São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 175). Desta forma, há uma revalorização de elementos como a imaginação, a criatividade e a intuição como essenciais para a construção do próprio pensamento e conhecimento, libertando-se da prisão e enclausuramento em esquemas conceituais rígidos e pré-fixados, ocorrendo assim a alienação em busca de perfeições conceituais.

Emerge assim um pensamento polifônico, do múltiplo, como uma pragmática do múltiplo, um pensamento plural, nos aproximando do que Luciano Floridi ("A Lógica da Informação": A Theory of Philosophy Philosophy as Conceptual Design", Oxford: OUP, 2019) caracteriza como "homo poieticus". Trata-se de uma mudança do entendimento representacionalista (mimético) para um outro, construcionista (poiético), ou seja, indo da mimesis para poiesis, resultando em uma interpretação poiética de nosso conhecimento, assim desenvolvendo uma lógica de desenho dos artefatos semânticos pelos quais somos epistemicamente responsáveis. Chegaríamos com isso a uma filosofia envolvendo necessariamente a crítica, a uma poiética (construtivista) ao invés da epistemologia mimética (representativa), capaz de propor uma ética de IA relacionada aos valores construcionistas do "homo poieticus".

Então, do que se trata é de uma ação não como mera práxis ou de uma "téc(h)n[(ét)]ica", reprodutiva, mas sim voltada a verificar as potencialidades da técnica no sentido grego de práxis, incluindo a "poiesis", e assim assumindo a possibilidade da existência da tecnodiversidade e da cosmoética, logo, de outro destino, que não seja um de domínio e sujeição à economia no capitalismo, com base na forma moderna da técnica, que é a tecnologia como um desafio da exploração.

Uma filosofia da IA com fundamento no postulado de uma tecnoversidade, portanto, é o que nos cabe desenvolver, buscando-se as bases epistemológicas e fundacionais para a técnica enquanto relacionada à "poiesis", logo, com o que é de mais humano, também com o ero'tico, enquanto poe'tico, "poie'tico" (criador e criativo), ao contrário da ordem da fetichista  produção, reprodução, mediação e representação.

Quando há a experiência desinteressada há a mera contemplação, (também presente no caráter 'desinteressado' da experiência estética na "Crítica do Juízo" de Kant e no livro 3 do "Mundo como Vontade e Representação" de Schopenhauer) quanto ao objeto, ocorrendo a pura presentidade, a primeiridade peirceana, e não haveria necessidade das mediações, que irão se tornam necessárias apenas no caso da experiência de secundidade, portanto, diante de alguma forma de alteridade.  Ocorre assim uma semente do hiato no tempo caracterizada pela experiência de presentidade.

Este hiato do tempo é o Acaso, "kairós" para os antigos gregos, o tempo interno, contrapondo-se a "Cronos", o tempo externo. Para Charles Sanders Peirce, ao contrário da lei que produz uniformidade, teríamos o espaço do acaso que produz diversidade, afastando-se das generalizaçõese, consequentemente, das mediações lógicas.

Trata-se de uma espécie de resíduo de mundo que não interessa à razão em seu papel cognitivo, o mundo dos fenômenos sem nome que escapam à linguagem lógica e à ciência positiva, pois envolvem o que é assimétrico e irregular, sendo, pois, avesso a qualquer generalização. É a dimensão dos feno^menos sem nome, ligados ao Acaso, demandando uma linguagem que também não siga leis, sendo este o espaço da poesia e da imaginação artística, da poética expressa nos signos das demais artes.

Portanto, neste sentido a experiência estética ligada à poética foge da mediação e da representação, por não depender da alteridade (do outro como mediação), e se vislumbra como presentidade e imediatidade, com o reconhecimento do acaso e da diferença, no sentido de uma experiência de unidade.

Uma filosofia da IA com base nos valores do "homo poieticus", que entedemos como "erótico-poieticus", iria no sentido de uma filosofia liberta do binômio aprisionador sujeito-objeto, mas comprometida com o múltiplo e o acategórico, apto a libertar a diferença, que é o elemento essencial quando se fala em recuperação de diversas características essencialmente humanas, viria novamente equilibrar a relação humanidades-ciências "duras", naquelas digitais. Uma leitura e compreensão erótico-poéticas, não dialéticas, que levem em conta o não dito, o resto, a heterotopia no sentido foucaultiano, sendo o espaço das artes, na esteira do espaço do teatro, explora um espaço epistêmico de heterotopia, um espaço-outro (Paola Cantarini, tese de doutorado em Filosofia, PUCSP, "Theatrum philosophicum - o teatro filosófico de Foucault e o direito").

Foucault valoriza a fluidez e a "sfumato poética", técnica utilizada para pinturas, criando-se uma zona indistinta, provocando uma vibração emotiva que instaura uma atmosfera propícia ao poético, valorizando a energia não verbal, que reverbera no que é dito, o alicerce estético da experiência e do conhecimento, conferindo à experiência estética e ao imaginário um papel privilegiado. Isso se poria no lugar da pretensão de clareza e objetividade, em um discurso neutro e inodoro, típicos do pensamento científico, que se tenha a "obscuridade púrpura".

Para Yuk Hui ("Tecnodiversidade", Ubu Editora, 2020, p. 154 e ss.), em uma interpretação que ele mesmo denomina de "fenomenológica pós-Heideggeriana" da pintura, a arte torna visível o invisível, invisível compreendido como o não-racional, como o Aberto e o Ser, algo que sempre escapa da presença.

A arte que produz um "passo além do que é humano, um passo em direção a um domínio assombroso voltado para o humano", trazendo a presença do estrangeiro guardado dentro dela. A arte depende também da inclusão do estrangeiro (Outro, o estranho, o infamiliar), caso contrário, o Mesmo continua indefinidamente e aqui não mais seria possível existir imaginação poética, que justamente desestabiliza o Mesmo, a identidade do nome.

Apenas com a poética (e artes que se aproximem da abordagem poética) sairíamos da representação, indo além da mediação e chegando a uma interação/experimentação. Com a poética ocorre a suspensão e exposição da língua, um discurso inoperoso de potência, como diria Giorgio Agamben, que torna possível o pensamento do pensamento. Ocoreria assim a desativação do dispositivo sujeito-objeto, em uma poética da inoperosidade, desativando a função utilitária, pouco comunicativa por demasiado informativa, permitindo uma abertura da linguagem e aproximando-se da experiência, que tanto nos tem faltado, como denunciava Walter Benjamin desde o fim da I Guerra Mundial, quando acaba o mundo em que ainda hoje vivemos nos destroços, a espera desta reconstrução.

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1 Daí a crítica de Karl Popper no desenvolvimento de sua filosofia da ciência, característica do racionalismo crítico, no sentido de ser o direito uma pseudociência, isto na sua versão apenas dogmática, ao contrário da zetética. A abordagem zetética, diferencia-se da análise apenas dogmática, ou seja, de uma abordagem tecnicista, permitindo-se uma crítica e alargada; tal diferenciação foi trabalhada pioneiramente por Tércio Sampaio Ferraz Jr., seguindo os desenvolvimentos de Theodor Viehweg, seu orientador de doutorado na Alemanha, preocupando-se mais com as perguntas, com o questionar, do que com as respostas, tidas como dogmas ou verdades absolutas, afirmando a relatividade e precariedade de todo o conhecimento. Acerca da diferença entre dogmática e zetética ver Tércio Sampaio Ferraz Júnior, "Teoria da Norma Jurídica", Editora Atlas, 5ª. Edição, 2016, p. 21 e ss.