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Europa avança na responsabilização de grandes plataformas

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Atualizado às 08:36

No início deste ano, havia a expectativa de que o projeto de lei que visa combater fake news e regulamenta a responsabilidade dos provedores de aplicações (PL 2.630/2020) seria aprovado na Câmara dos Deputados. Porém, por conta de algumas discussões pontuais - como a que trata do direito de remuneração pelo conteúdo jornalístico e a definição sobre qual seria o órgão responsável pela aplicação de sanções - e por uma interminável discussão esquerda x direita sobre se o projeto configuraria ou não censura, o projeto foi retirado de pauta, o debate arrefeceu e não há previsão de que seja votado no curto e médio prazo.

Na Europa, contudo, o tema avançou bastante. Em abril, ficou decidido que as grandes plataformas teriam que criar e/ou reforçar seus mecanismos de moderação de conteúdo, regra que entrou em vigor no final de agosto. Além das principais redes sociais, a regulamentação inclui sites de busca (Google e Bing) e gigantes do comércio digital, como Amazon, Alibaba, Apple Appstore e Booking. Alguns dos problemas combatidos são os mesmos existentes aqui, como a falta de explicação clara sobre as recomendações de conteúdo feitas pelas plataformas e a impossibilidade ou grande dificuldade de o usuário definir se concorda ou não com a distribuição de conteúdo de acordo com seu perfil.

Trata-se do Digital Services Act (DSA), que entrou em vigor dia 25 de agosto passado1, com alcance nos 27 países da União Europeia. Esta norma, somada ao Digital Markets Act (DMA)2, tem a complexa e importante tarefa de deixar a internet mais segura, tornando cada vez mais difícil a propagação de conteúdo ilícito: fake news, discursos de ódio, promoção do terrorismo e ataques à democracia. Como a norma engloba também plataformas de comércio, alcança ainda o combate à pirataria e um controle mais rigoroso do uso de dados para envio de propaganda direcionada aos usuários3.

Lá como cá, as autoridades tentam equilibrar as regras entre o combate à ilicitude e o respeito à liberdade de expressão e à livre iniciativa, permitindo que os usuários atingidos com alguma medida restritiva possam contestar a decisão da plataforma, lembrando-se que na União Europeia não há necessidade de ordem judicial específica para remoção de conteúdo ilícito, tal como ocorre no Brasil, por força do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

Ao contrário, na Europa vigora o conhecido sistema notice and take down, ou seja, a responsabilidade da empresa nasce caso não tome as providências necessárias que estejam a seu alcance para bloquear a ilicitude após notificação direta do interessado, que deve se dar preferencialmente por canais eletrônicos e de fácil acesso da própria plataforma. A norma prevê ainda que os usuários, caso estejam insatisfeitos com as providências tomadas pela plataforma, possam optar por "qualquer organismo de resolução extrajudicial de litígios" certificado pelas autoridades dos países-membros para resolver os conflitos relativos às decisões internas e que sejam imparciais, independentes e possuam conhecimento técnico especializado.

A regulação europeia avança sobre um ponto sensível, imputando maior responsabilidade aos grandes players do comércio eletrônico, que deverão manter controle e armazenar boa gama de informações sobre vendedores4 e produtos, além de estarem aptos a fazer o rastreamento do material ilícito que for colocado à venda em suas páginas. No Brasil, certas plataformas de vendas (marketplaces) tentam - com relativo sucesso - aplicar a anúncios e ao comércio de mercadorias e serviços as mesmas regras de necessidade de ordem judicial para sua remoção, equiparando a venda de uma mercadoria falsa a uma crítica política, protegida pela liberdade de expressão.

Outras medidas salutares são a obrigação de as empresas passarem por auditorias independentes e o compartilhamento dos relatórios anuais de transparência com as autoridades para avaliação sobre o cumprimento das diretrizes determinadas. Assim como o Marco Civil brasileiro serviu de inspiração para outros países e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) europeu foi uma das principais fontes de nossa Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), as regras que recém entraram em vigor na União Europeia devem influenciar normas semelhantes em outros países, inclusive no Brasil. Afinal, muitas - se não todas - as plataformas digitais abrangidas pelo DSA também são acessadas globalmente e não há motivos para agirem com transparência e respeito aos dados na Europa e não atuarem de igual modo em outros países.

Embora falar em regulamentação não seja algo que agrade os grandes provedores, existe o contraponto de que se outros países seguirem regras semelhantes, aquelas plataformas não terão dificuldade em se adequar a um regulamento único (ou muito parecido) e implementá-lo mundo afora, servindo inclusive como vantagem competitiva diante de um público que se mostra cada vez mais atento e preocupado com a preservação de seus dados pessoais. Para assegurar que as grandes empresas sigam as novas regras, as multas europeias podem chegar a 6% do faturamento global da empresa.

A Europa tem tradição em impor derrotas a grandes companhias estadunidenses da área de tecnologia. Desde a condenação da Microsoft por práticas anticoncorrenciais (inclusão de seu player de música como parte integrante do sistema operacional Windows) em 20045; passando pelo célebre caso do direito ao esquecimento de 2014 envolvendo Google, o cidadão espanhol Mario Costeja González e a agência espanhola de proteção de dados; até a recente condenação (final de 2022) da Microsoft, na França, a uma multa de 60 milhões de euros pelo mau uso de cookies6.

Nesta mesma linha, a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen publicou em sua conta na rede social X que "estamos trazendo nossos valores europeus ao mundo digital".

Num mundo digital globalizado, em que poucas empresas são amplamente dominantes em seus setores de atuação, mostra-se conveniente uma regulação internacional das big techs. Mas se leis nesse sentido já suscitam enormes discussões internas, o que dirá em fóruns globais.

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1 Nesta data, começou a valer para 19 empresas de tecnologia que possuem mais de 45 milhões de usuários ativos nos países da União Europeia. A partir de fevereiro de 2024, passará a reger as demais empresas.

3 Para saber mais sobre o Digital Services Act, indicamos a leitura de artigo de Karina Nunes Fritz publicado aqui no Migalhas e de reportagem do site Poder360.

4 A norma fala em obtenção, pelas plataformas, de nome, endereço postal, telefone, e-mail, cópia do documento de identificação do comerciante, seus dados bancários e número do registro comercial, se houver.

5 Confira-se reportagem da revista Exame sobre este caso.

6 Segundo reportagem do jornal português Diário de Notícias, os cookies eram utilizados sem o consentimento do usuário, que não tinha a opção de rejeitá-los ao navegar no site de buscas Bing.