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Obstrução de justiça: Considerações acerca da delimitação do sujeito ativo no crime

terça-feira, 7 de junho de 2022

Atualizado em 6 de junho de 2022 19:05

Das mudanças estruturais da criminalidade decorre a necessidade de o Estado criar mecanismos de combate às organizações criminosas. Nesse âmbito, legislações são editadas para reprimir essas novas estruturas criminosas, trazendo problemas de diferentes ordens para os atores enfrentarem no cotidiano forense1, especialmente aqueles que atuam no direito penal econômico. A lei 12.850/13 - lei de organização criminosa - não fugiu dessa regra. Esta lei veio para regulamentar as premissas firmadas na convenção das nações unidas contra o crime organizado transnacional - convenção de palermo. O presente artigo tem por objeto o § 1.º do art. 2.º da mencionada lei, que criminaliza o embaraço ou o impedimento das investigações de infração penal envolvendo as organizações criminosas - i.e a obstrução de justiça - e suas problemáticas na delimitação do sujeito ativo no tipo penal.

O tipo penal de obstrução de justiça trata de eventuais cenários que possam prejudicar (embaraçando ou impedindo) as investigações criminais - aqui reside outra controvérsia em razão da adoção da palavra "investigações criminais", que poderia abarcar ou não a fase judicial - de tal maneira que possa causar obstáculos à investigação, como também a absoluta inviabilidade da persecução penal. Por essa vagueza na redação do legislador, entende-se também que há outro empecilho no que tange ao sujeito ativo do dispositivo legal.

O sujeito ativo no crime é definido por Marinelli e de Bem2 como "aquele que pratica a conduta (ação ou omissão) descrita no tipo legal'', bem como "é responsável pela criação do perigo ou pela lesão ao bem jurídico tutelado pela norma violada". Em relação à obstrução de justiça, o tipo é genérico ao dispor sobre quem pode incorrer na conduta nele incriminada. Há apenas a expressão "quem impede ou, de qualquer forma, embaraça", sem qualquer ressalva ou delimitação. Portanto, há uma lacuna que irá ser preenchida pela doutrina e pela jurisprudência.

Na doutrina pátria, há duas principais correntes acerca do sujeito ativo do crime de obstrução de justiça. A primeira delas - aqui representada por Bitencourt e Busato- defende que os atos de obstrução são post factum impunível e, por isso, os membros da organização criminosa não poderiam ser sujeitos ativos desse delito. Ou seja, estes agentes, ao impedirem ou embaraçarem a investigação, estariam incorrendo em ato de não autoincriminação ou exercendo sua ampla defesa. Dentro dessa primeira corrente, é defendida a possibilidade de o advogado ser sujeito ativo do crime, quando agir como um "pombo-correio" dos membros da organização criminosa e tal ação atrapalhe efetivamente a investigação. A segunda corrente - aqui representada por Masson e Marçal- sustenta a possibilidade de o membro da organização ser sujeito ativo nesse delito, ao argumento de que (i) o legislador não fez ressalva a essa possibilidade, e (ii) os membros da organização criminosa são os mais interessados em atrapalhar ou embaraçar as investigações. Em relação ao advogado, essa corrente doutrinária, tal como a primeira, defende a possibilidade do advogado ser sujeito ativo do crime quando age de forma abusiva, visando a atrapalhar ou a embaraçar as investigações em curso contra os seus clientes.

É certo que, em respeito à legalidade estrita, o tipo penal deveria ser mais claro, e não deixar tanta margem para interpretações. Todavia, diante de sua vagueza, a interpretação deve estar alinhada à melhor técnica dogmática penal possível. Nesse enredo, dentro da doutrina que se filia à primeira corrente, a vedação da incriminação de membros da organização criminosa sob o argumento de configurar post factum impunível não prospera, pois é possível afirmar que o maior interessado em impedir/embaraçar a investigação é o próprio investigado-membro da organização criminosa. Assim, seria ilógico negar que o sujeito ativo (destinatário da norma penal) pensado pelo legislador não seria o próprio membro da organização criminosa, mesmo porque seria ele o beneficiário direto desse impedimento ou embaraçamento.

Outrossim, para que não haja qualquer meio de expansão do tipo, a partir de denúncias genéricas, sobretudo diante do grande aumento de denúncias envolvendo esse tipo penal em casos de delitos econômicos, a segunda corrente deve ser seguida com certos limites e critérios. Explica-se. Quando houver indício de possível prática de obstrução de justiça por membros de organização criminosa, visando embaraçar ou atrapalhar a investigação criminal, a análise deve ser criteriosa, pois a linha entre a configuração de um ato criminoso de obstrução de justiça e um ato legítimo de não autoincriminação é tênue.

 Por exemplo, o sujeito que está sendo investigado e não colabora com a justiça, ficando em silêncio (direito fundamental) em seus depoimentos - agindo, assim, passivamente - não estará, em hipótese alguma, praticando o delito de obstrução de justiça. Por outro lado, o sujeito que ativamente adota uma postura coercitiva contra as testemunhas ou, na iminência de se deflagrar uma operação, destrói provas materiais de crimes envolvendo organização criminosa, poderá estar praticando o crime de obstrução de justiça.

Em relação à atuação do advogado, o direito de defesa deve ser absolutamente resguardado, sem qualquer espécie de flexibilização. No entanto, esse direito fundamental não pode ser utilizado como blindagem a maus profissionais que praticam ilícitos durante o exercício de sua atividade profissional. A nosso sentir, o melhor parâmetro seria adotar os filtros jurisprudenciais para separar o que é direito de defesa e o que é obstrução de justiça. Por exemplo, poderá cometer o delito de obstrução de justiça o advogado que tem acesso ilícito a investigações em curso e está um passo à frente para embaraçar ou atrapalhar o seu decurso ou o advogado que participa conjuntamente com os seus clientes que são membros da organização criminosa na destruição de provas. De modo diverso, o ato de aconselhar o seu cliente a não firmar acordo de colaboração premiada não poderá ser considerado obstrução de justiça, uma vez que se trata de uma legítima estratégia defensiva.

Na jurisprudência, parece ser pacífico o entendimento de que não há vedação para o membro da organização criminosa ser sujeito ativo do delito de obstrução de Justiça. O STF5, no julgamento do inquérito 4.720/DF, entendeu ser "inviável a conclusão apresentada pela defesa técnica no sentido de que eventual integrante de organização criminosa não poderia ser sujeito ativo do delito de obstrução às respectivas investigações". Este precedente vem sendo seguido pelo STJ6 e pelo TRF-47.

Sobre a possibilidade de o advogado ser sujeito ativo do delito e quais os parâmetros para tal, até o momento ainda não há algum julgamento paradigmático nos tribunais superiores. Todavia, há casos em que acusação enquadrou a estratégia de defesa em crimes envolvendo organização criminosa como obstrução de justiça, a exemplo de um julgado recente no Mato Grosso do Sul, em que o MP denunciou por obstrução de justiça um advogado que orientou o seu cliente a não firmar acordo de colaboração premiada. Felizmente, neste caso, a denúncia fora rejeitada. Em decisão técnica, o magistrado da 1.ª vara Criminal de MS delineou os limites da atuação técnica lícita: a não coação ou ameaça por parte do advogado e a falta de qualquer outra providência do advogado para seu cliente não celebrar colaboração premiada além da orientação técnica. No caso, o juízo concluiu que mesmo se houvessem indícios de que o advogado agiu para impedir a colaboração, seria atípica a conduta, porquanto não foi alimentada "com ofertas de cooptação, pressão, violência efetiva ou disposição para o uso de violência contra testemunhas, peritos e agentes policiais do MP ou magistrados"8, bem como "que nem mesmo se a conduta buscasse impedir eventual colaboração premiada - o que não é a imputação contida na denúncia - poderia ser enquadrada pelo artigo § 1.º, do art. 2.º, da lei 12.850/13, tendo em vista não ser um ato necessário para investigação criminal"9.

Na esteira do exposto, observa-se a necessidade de revisão do tipo penal de obstrução de justiça para a melhor delimitação do seu sujeito ativo. Diante das correntes apresentadas, o entendimento de Masson e Marçal, acompanhada da limitação quanto ao seu âmbito de aplicação, parece compreender de forma mais racional os cenários até então vivenciados para a delimitação do sujeito ativo do tipo. A jurisprudência, nesses casos, tem um papel importante na resolução dos problemas que, eventualmente, a doutrina não venha a solucionar, a exemplo do advogado como sujeito ativo. Espera-se que, no transcorrer dos processos, essa incerteza seja superada para que a persecução penal venha a ser mais bem executada ao tratarmos desse tipo penal, pois do contrário "ou haverá ofensa ao direito de defesa, ou haverá impunidade quanto a condutas delituosas praticadas no interesse de organizações criminosas", como bem pontuado por Navarro Zonta10.

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1 CALLEGARI pontua que "Os problemas desta tendência da nova política criminal recaem em dois aspectos na hora de configuração dos tipos penais. Em primeiro lugar, em face dos problemas para tornar concreto legislativamente o conceito de "organização criminosa", opta-se por definições abertas, com traços próximos ao do crime habitual ou da formação de quadrilha. Em segundo lugar, mediante estas figuras delitivas, está se impondo na doutrina e na legislação um modelo de transferência da responsabilidade de um coletivo a cada um dos membros da organização, que se afasta dos critérios dogmáticos de imputação individual de responsabilidade que vigem normalmente para o Direito Penal." CALLEGARI, André Luís; MASIERO, Clara Moura; MELIÁ, Manuel Cancio; RAMÍREZ BARBOSA, Paula Andrea. Crime organizado: tipicidade, política criminal, investigação e processo: Brasil, Espanha e Colômbia. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 18.

2 DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo Orsini. Direito penal - parte geral: lições fundamentais. 5. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2020, p. 496.

3 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014, p.83.

4 MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020, p. 104.

5 STF, 2º T., Inq. nº 4720, Rel. Min. Edson Fachin, j. 28 de agosto de 2021.

6 STJ, 6º T., AREsp nº 1603565/MS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 03 de mar. de 2021.

7 TRF4, 8º T, ACR nº 5020227-98.2015.4.04.7000, Des. Rel. João Pedro Gebran Neto, j. 18 de maio de 2022.

8 TJMS, 1.ª Vara Criminal, Processo Criminal nº 0021665-98.2019.8.12.0001, Juiz de Direito Roberto Ferreira Filho, j. 25 de abril de 2022, fls. 4164 do processo.

9 Ibid., fls. 4165 do processo.

10 ZONTA, Ivan Navarro. O crime de obstrução de justiça: problemas do tipo penal do crime de embaraço a investigação que envolve organização criminosa. Migalhas, 8 de abril de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/363418/crime-de-obstrucao-de-justica.