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A figura do double damages nos crimes de cartel

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Atualizado às 08:21

O instituto do double damages é uma figura recente no ordenamento jurídico brasileiro. Este mecanismo foi implementado há menos de um ano com a lei 14.470, em 30 de novembro de 2022. Trata-se de um tema (ainda) pouco debatido no ambiente acadêmico e na jurisprudência, seja em razão da sua novidade ou da complexidade interpretativa do dispositivo. Nessa toada, o objetivo do presente trabalho é elucidar essa alteração legislativa, proporcionando uma melhor cognição da sua natureza e aplicação, no desiderato de que novas discussões possam ser propostas a partir disso.

Para localizar essa alteração dentro do sistema normativo brasileiro é preciso voltar-se ao artigo 47 da lei 12.529/11, a conhecida Lei de Defesa da Concorrência, que, muito sucintamente, tem por premissa "[a] proteção do consumidor e do próprio povo é, portanto, a pedra de toque da criação da legislação antitruste"1. Dentro desse contexto, prevê os critérios para aferição de crimes concorrenciais e dispõe em um rol exemplificativo algumas dessas condutas anticompetitivas.

Um dos ilícitos antitrustes mais populares é o cartel, que trata de "qualquer acordo ou prática concertada entre concorrentes para fixar preços, dividir mercados, estabelecer quotas ou restringir produção, adotar posturas pré-combinadas em licitação pública, ou que tenha por objeto qualquer variável concorrencialmente sensível."2. Impera destacar que a sua responsabilização pode ocorrer, simultaneamente, em três esferas jurídicas distintas: (i) a administrativa, é justamente a descrita acima, com previsão no art. 36, § 3º, inciso I, da lei 12.529/11; (ii) a criminal, tipificada como um crime à ordem econômica no art. 4º, da lei 8.137/19903; e (iii) a civil, alcançada pela possibilidade de defesa dos interesses individuais ou individuais homogêneos, nos termos do art. 47, do Código Civil, ou da tutela dos interesses difusos e coletivos, por danos morais e patrimoniais decorrentes de infração à ordem econômica, conforme retira-se do art. 1º, inciso V, da lei 7.347/1985.

Essa diferenciação entre as três esferas é imprescindível à compreensão da figura do double damages pois, apesar da previsão dar-se na legislação que tutela a esfera administrativa - vide artigo 47 da lei 12.529/11 -, a sua permissão direciona-se à possibilidade de tutela dos interesses individuais, no âmbito da responsabilidade civil. Uma vez resolvida esta situação, direciona-se para os questionamentos inerentes ao seu entendimento: quais os agentes envolvidos na aplicação o instituto? Como se aplica? E, em que se aplica o dispositivo?

Primeiramente, conforme dita o parágrafo 1º artigo 47, o double damages pode ser empregado por aqueles que sofrerem danos decorrentes da prática de cartel em um mercado brasileiro ou que tenha efeitos no Brasil. Estes poderão reclamar o dobro da somatória de seu dano em face de um dos agentes (em específico) que tenha participado do conluio. Trata-se, nesse sentido, de uma duplicação do valor de indenização pleiteada, baseada no prejuízo específico causado àquela empresa pela prática concorrencial ilícita da outra.

Essa inserção legislativa, de imediato, prevê exceções à sua aplicação. O parágrafo segundo traz que a disposição não será aplicável às empresas que já tiverem celebrado Acordo de Leniência ou Termo de Compromisso de Cessação (TCC) de conduta com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ressalta-se que não se excluí a indenização pelos danos causados, apenas se veda que estes sejam cobrados em dobro.

 (Imagem: Reprodução/Gabriela Wilxenski Rodrigues)

Esquema: Indivíduos prejudicados x integrantes do cartel(Imagem: Reprodução/Gabriela Wilxenski Rodrigues)

O racional por detrás dessa disposição pode ser entendido como uma proteção do próprio instituto da Leniência e do TCC, isto é, um modo não desincentivar empresas a aderirem aos programas, já que estão cientes de que não serão penalizadas de modo semelhante aos demais. Caso fosse diferente, incorrer-se-ia no risco de prejudicar a adesão dos programas, uma vez que, para o Acordo de Leniência, a confissão é um dos requisitos essenciais à sua celebração, realizada por meio de cláusula expressa, com modelo próprio disponibilizado pelo Cade em seu Guia sobre o Programa de Leniência. Paralelamente, para os TCCs, o requisito é o de reconhecimento da participação na conduta investigada, conforme disposto no art. 225 do Regime Interno do Cade (RICade)4.

Para que o indivíduo prejudicado demande em juízo civil aquele que o prejudicou é necessário que pleiteie uma quantia específica. Há que se atentar para não confundir as sanções. As sanções pecuniárias, tanto administrativas quanto penais, seguem métodos de aferição próprios, que não se confundem entre si. Aponta-se, então, que a base da demanda civil é identificada pelo parágrafo 4 do artigo 47, este estabelece que "não se presume o repasse de sobrepreço nos casos das infrações à ordem econômica previstas nos incisos I e II do § 3º do art. 36 desta lei". Deste modo, recaí sobre o autor o ônus de provar qual foi a extensão do dano sofrido, é justamente essa quantia que, conforme o novo enunciado legislativo, poderá ser reivindicado em duplicidade.

Compreendido quem pode fazer o uso desse instituto, a quem ele se aplica e como é possível utilizá-lo, passa-se à identificação do quantum: sobre qual valor se aplica a duplicação. Na toada do exposto acima, o parágrafo 3 busca fornecer parâmetros para tal, é delimitado que se responde apenas pelo dano individualmente causado, inexistindo solidariedade entre os demais autores da infração à ordem econômica.

O Código Civil não esclarece, todavia, acerca do procedimento de cálculo desse dano individual. Para tal, é necessário voltar-se a doutrina, por se tratar de tema amplamente debatido seleciona-se a definição amplamente aceita de que a responsabilidade civil "dirige-se à proteção da vítima, visando a reparar integralmente o dano sofrido por ela, e não a retirar do agente ofensor os lucros ilegitimamente auferidos com a conduta lesiva a direitos alheios"5. Percebe-se que o sistema brasileiro se centra no exato valor em que a vítima foi prejudicada, in casu, que foi prejudicada especificamente por aquele integrante do cartel, assim, "a proibição do enriquecimento sem causa que permite remover do patrimônio do agente a transferência patrimonial desprovida de título justificativo"6, possibilita à vítima reclamar esse valor, a aplicação em dobro ocorre pelo caráter sancionatório da disposição.

À vista disso, poder-se-ia crer que a questão estava sanada, contudo, o real problema se encontra no processo de aferição dessa quantia. O cálculo do dano causado por práticas colusivas são de difícil computação, isso pois além de existirem diferentes metodologias para tal7, os dados envolvidos podem carecer de construções econométricas complexas, dificultando a etapa. Este é um problema a parte, que foge do objeto do presente trabalho haja vista à complexidade que demandaria. Portanto, apenas dispõe-se aqui que, no Brasil, a responsabilização civil por danos ocorridos em cartéis passa por uma etapa desafiadora no que diz respeito ao seu quantum indenizatório, mas existem produções recentes que buscam mitigar a problemática e promover um o uso e o aprimoramento do instituto8.

Buscou-se por meio dessa visão panorâmica, ainda que muito brevemente, trazer à lume esclarecimentos acerca da alteração legislativa conhecida como double damages. Entende-se que é um tópico promissor, com poucas experiencias empíricas, mas que sinalizam a constante busca por aprimoramento das regras e práticas do direito antitruste no Brasil.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros.

__________

1 Frazão, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 32.

2 BRASIL, CADE. Cartilha do Cade, 2016, p.16. Disponível aqui. Acesso em: 6 out. 2023.

3 Aqui há que se alertar sobre a previsão posterior e específica para os cartéis em licitação pública, dada no art. 90 da lei 8.666/1993, com a nova lei de licitações, lei 14.133/2021, a disposição se mantém apenas com a pena aumentada.

4 Para uma leitura completa sobre o tema ver: Athayde, Amanda. Acordos de Leniência no Brasil: Teoria e Prática. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

5 PEREIRA, Caio Mário. Responsabilidade Civil. 13. ed. Grupo GEN, 2022. E-book, p. 30.

6 Ibid., p. 30.

7 Para ver alguns métodos de cálculo aplicáveis ver: Carvalho, Henrique de Araújo. Quantificação do dano em ações reparatórias individuais por danos decorrentes da prática de cartel no brasil: indo além do an debeatur. Revista de Defesa da Concorrência, v. 7, n. 1, 2019.

8 Para conferir discussões sobre o tema, ver: Oliveira, Isabel Cristina Veloso de; Ragazzo, Carlos Emanuel Joppert. Ações de reparação de danos concorrenciais no Brasil: obstáculos e sugestões. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2023.