COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Informação privilegiada >
  4. Sonegação fiscal: O valor probatório do lançamento tributário

Sonegação fiscal: O valor probatório do lançamento tributário

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Atualizado às 07:43

Numerosos julgados dos tribunais brasileiros afirmam que "o lançamento tributário goza de presunção de legalidade e legitimidade. Possíveis vícios formais ou materiais na constituição do crédito tributário são passíveis de exame no âmbito judicial cível, não competindo ao Juízo criminal reexame dessa matéria" (TRF4 APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5001177-21.2013.4.04.7109/RS). Da mesma forma, atestam que "os procedimentos administrativos, realizados por servidores públicos no exercício de suas funções, gozam de presunção de legitimidade e veracidade, próprias dos atos administrativos, sendo consideradas provas irrepetíveis, elencadas no rol de exceções previsto no artigo 155 do Código de Processo Penal" (TRF4, ACR 5002808-92.2016.4.04.7012).

Esses precedentes, citados a título de exemplo, demonstram que o problema relativo ao valor probatório do lançamento tributário segue relevante e atual nos processos que têm por objeto o esclarecimento da suspeita de crimes contra a ordem tributária. A discussão passa pela relação entre o processo administrativo-fiscal, o processo penal, o princípio da independência das instâncias e a interpretação do art. 155 do CPP.  

A independência das instâncias

Helena Regina Lobo da Costa pondera que o princípio da independência das instâncias administrativa e penal carece de fundamentação científica convincente, o que pode dar ensejo a resultados paradoxais e que pouco se coadunam com a ideia de um sistema jurídico estruturado e dotado de racionalidade interna1. Em atenção à advertência da autora, vale o esforço para compreender o melhor sentido da ideia. Desde logo, consideramos que se trata de uma independência relativa, como propõe Marion Bach2, ou de uma independência mitigada, tal como assentou o STF no julgamento da RCL 41.557.

Assim, levando em conta o objetivo deste artigo, a análise ficará restrita ao âmbito dos processos administrativo-tributário e penal, disciplinas com regimes jurídicos próprios, que lhes conferem a devida autonomia. Todavia, é importante observar a existência de princípios e regras comuns, como, por exemplo, legalidade, tipicidade, devido processo, contraditório e ampla defesa, estabelecidos a partir da Constituição. Também há, por óbvio, notas distintivas, sendo as mais importantes a pessoa ou o órgão que decide e o regime probatório.

A Fazenda Pública é a grande protagonista do processo administrativo-fiscal. Na forma do art. 142 do CTN, compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento. Havendo lançamento de ofício (um auto de infração, por exemplo) o contribuinte poderá impugná-lo, instaurando-se a fase litigiosa do processo (processo, e não procedimento, como ensina Egon Bockman Moreira)3.

A impugnação será analisada pelos órgãos internos de controle, tal como o CARF, órgão pertencente à estrutura da Receita Federal do Brasil. Desse modo, a decisão final pertence à administração tributária, característica que lança dúvidas (e gera muita discussão) a respeito da incidência da garantia de imparcialidade, tal como compreendida nos processos judiciais, tendo em perspectiva os interesses em jogo.

Em sentido oposto, a jurisdição criminal tem como princípio maior a imparcialidade do juiz, proclamada na Constituição e no Pacto de São José da Costa Rica. Pelo menos em tese, o juiz figura como terceiro desinteressado no resultado, equidistante das partes do processo.

Já no que respeita à atividade probatória, há no processo fiscal distribuição do ônus da prova para as "partes". Essa distribuição é coerente com o princípio da legalidade, pois a legislação tributária impõe aos contribuintes o dever de manter, em boa ordem e com elementos confiáveis, os documentos da sua contabilidade. Descumprida essa obrigação, o Fisco pode considerar a escrituração imprestável e realizar o lançamento por arbitramento, procedimento que o autoriza, desde que sob motivação idônea, presumir a ocorrência de determinados elementos da obrigação tributária.

No processo criminal, por sua vez, impera o princípio constitucional da presunção de inocência. Não há distribuição, mas, sim, atribuição da carga probatória exclusivamente ao acusador, de modo que ao arguido não incumbe qualquer carga probatória. Para superar o in dubio pro reo, que vem a ser uma manifestação da presunção de inocência, é preciso prova robusta que supere a dúvida razoável: "na dúvida, a absolvição se impõe", ensina Aury Lopes Jr4.

É dizer, para os específicos fins de constituição do crédito tributário, o ordenamento jurídico admite certas presunções em favor do Fisco e contrárias aos interesses do contribuinte. No processo penal, não se atribui ao acusado o ônus de provar a sua inocência e muito menos se admitem presunções caso ele não consiga se desincumbir desse ônus.

Existem, também, importantes pontos de interseção. O tipo do art. 1º da Lei 8.137/90 é um ótimo exemplo de norma penal em branco. O significado do preceito primário depende de outras normas legais e infralegais, tais como os regulamentos tributários. Já a Súmula Vinculante 24 estabelece, como regra geral, a necessidade de conclusão do processo administrativo de lançamento para que se possa dar início à persecução penal.

Sobre o artigo 155 do Código de Processo Penal

Parece não haver dúvidas de que o lançamento é prova não repetível. Isso não significa, porém, que ele represente prova absoluta, suficiente para sustentar a condenação do acusado.

Ao contrário do que sugerem os julgados acima citados, a independência das instâncias exige que o acusador produza provas idôneas a corroborar a tese da denúncia no curso da instrução do processo criminal. O contraditório diferido, a que se refere o art. 155 do CPP, não significa contraditório dispensado e muito menos contraditório inexistente. Como qualquer outra prova documental que integra o esforço de reconstrução do fato histórico narrado na denúncia, o processo administrativo de que resulta o lançamento deve obrigatoriamente ser introduzido no processo criminal para que possa ser submetido ao contraditório das partes.

Considerando as características do processo administrativo-fiscal, notadamente a possibilidade de o Fisco recorrer a presunções, o lançamento deve ser interpretado como ponto de partida da atividade probatória, jamais o seu ponto de chegada. Nem mesmo a prova pericial produzida antecipadamente está imune à possibilidade de ser questionada pelas partes durante a instrução processual, não obstante, como regra geral, as perícias sejam elaboradas por pessoas que possuem qualificação técnica suficiente para serem consideradas peritas no assunto.

Nestes termos, atribuir ao lançamento o caráter de prova absoluta parece ser um grande equívoco, que pode significar, em última análise, a própria negação da ideia de independência das instâncias.

Vale destacar, ainda, que as presunções do direito tributário não se sobrepõem ao princípio constitucional da presunção de inocência. "Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado", decidiu o STF, no julgamento do HC 84580, sob a liderança do Ministro Celso de Mello.

Assim, nos crimes contra a ordem tributária, compete ao acusador demonstrar, para além de dúvida razoável, a intenção do agente de iludir o Fisco e impedir o desempenho da atividade tributária mediante fraude, afastando eventuais presunções que deram suporte à decisão proferida na esfera administrativa.

Não se trata de rediscussão do lançamento e muito menos de convalidação do seu conteúdo e efeitos, mas, sim, apenas e só, de produção de prova relativa aos elementos do tipo descrito na denúncia, questões estas que não pertencem ao rol de competências da administração tributária. Trata-se, com efeito, de temas atribuídos pela Constituição exclusivamente ao Poder Judiciário.

Por outro lado, a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica asseguram ao acusado a ampla defesa com todos os meios e recursos necessários e que lhe são inerentes. Ainda que a ele não tenha sido atribuída qualquer carga probatória, o acusado tem o direito fundamental de se defender por meio da mais ampla produção de prova.

Nesses termos, negar ao acusado a possibilidade de questionar o lançamento (inclusive a sua validade) representa cerceamento de defesa e negativa de jurisdição. Isso porque a presunção de legitimidade do ato administrativo - que decorre de regime jurídico próprio do direito administrativo - tem finalidade específica e, repita-se, não se sobrepõe ao princípio constitucional da presunção da inocência e nem tampouco às garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

Por fim, nos raros casos em que a decisão administrativa conclui pela inexistência de provas de fraude ou dolo de sonegação, o esforço probatório da acusação deve ser ainda maior. As provas produzidas (sob contraditório) pelo acusador devem ser capazes de desconstituir o sentido da declaração constante do lançamento definitivo. Caso contrário, as conclusões da instância administrativa favoráveis ao contribuinte devem prevalecer, sendo interditado ao juiz suprir eventual deficiência de provas com conjecturas e ilações desprovidas de suporte probatório5.

A este respeito, a jurisprudência do STJ inclina-se ao reconhecimento da relevância das decisões proferidas na instância administrativa6: HC 135.426/SP, rel. p/ acórdão Min. JORGE MUSSI, Quinta Turma, DJe de 18/4/2013; RHC 173.448/DF, Quinta Turma, rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, DJe de 13/3/2023.

O fato é que, em qualquer hipótese, exige-se contraditório. A ausência de contraditório verdadeiro abre espaço para o decisionismo típico do sistema inquisitório, o qual permite que as lacunas de conhecimento possam ser preenchidas pela íntima convicção do juiz, geralmente fundada em hipóteses e especulações. E quando isso acontece, verifica-se, paradoxalmente, a distorção da independência das instâncias.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros. 

__________

1 Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador: ne bis idem como medida de política sancionadora integrada. São Paulo, USP, 2013, p. 119.
Veja-se, também, da Rocha, Cláudia, in A distorção do princípio da independência das esferas e os limites à produção da prova nos crimes tributários. A Prova no Processo Penal, Florianópolis, emais, 2023, p. 133 - 147, Coord: Lucchesi, Guilherme Brenner e da Rosa, Luísa Walter.

2 Multiplicidade Sancionatória Estatal pelo Mesmo Fato: ne bis in idem e proporcionalidade. Londrina, Thoth, 2022, p. 165 - 166.

3 Processo Administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/99 (com especial atenção à LINDB), 6. ed., Belo Horizonte, Forum, 2022, p. 27 - 49.

4 Direito Processual Penal, 18. ed., 2. t., São Paulo, Saraiva: 2021, p. 400.

5 Veja-se, sobre o tema, Da Rocha, Cláudia, ob. cit., p. 143-144.

6 Sobre o tema, Paciornik, Joel Ilan e Cavali, Marcelo, in Efeitos das decisões administrativas sobre processo penal e das decisões penais sobre o processo administrativo. Código de Processo Penal - Vol. 2, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2022, Coord: Madeira, Guilherme; Badaró, Gustavo e Schietti Cruz, Rogerio.