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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 30 de novembro de 2025

A longevidade no exame do Enem 2025

O tema da redação do Enem 2025 foi "Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira". Sem dúvida, trata-se de um enfoque atual e com total pertinência aos candidatos mais jovens do certame. É a oportunidade para o aluno refletir a respeito das políticas públicas existentes e outras ações que favoreçam os idosos, assim como fazer projeções para um aprimoramento futuro. O presente espaço, no entanto, não é para formatar uma redação a respeito do tema e sim, como integrante da terceira idade, legitimado, portanto, para tanto, retratar aos mais jovens a experiência de se pertencer ao grupo e relatar como é a convivência do idoso com as demais faixas etárias, com o propósito de angariar nova ideias para alavancar ainda mais um relacionamento salutar. Não se trata de uma reflexão acadêmica e sim de experiência de vida. O fatiamento etário da pessoa é regulado não só pela realidade biológica, mas, também, pela própria normatização social que estabelece a fase da criança, do adolescente, da maturidade e do envelhecimento e, em cada uma delas, cria tutelas específicas e necessárias para os diversos estágios. Nesta progressão, o idoso será aquele que irá reunir a maior carga protetiva, pois passou por todas as anteriores e ambiciona ainda uma longevidade com qualidade de vida. Assim é que o homem, ao completar 60 anos de idade, vem cingido pelo Estatuto do Idoso, lei 10.741/03, que lhe confere uma somatória de direitos, compreendendo os já conquistados e os difusos, aqueles não descritos, mas que vão se afirmando ao longo do tempo. A proteção vai além, em razão da longevidade atingida e a vulnerabilidade reconhecida. A lei 13.466/17, altera e dá outra configuração ao Estatuto do Idoso ao criar uma nova categoria acima de 80 anos de idade, inserindo-o no rol de absoluta prioridade em comparação com os demais idosos, não prevalecendo a preferência somente em casos de emergência. Quando se fala em estatuto é interessante observar que o legislador pátrio, após a Constituição Federal de 1988, optou por congregar todas as pessoas que se encontram em situações semelhantes e necessitam de um plus diferenciador de proteção - temporariamente ou não, quer seja em razão da faixa etária ou até mesmo de uma doença, como ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto da Pessoa com Deficiência - alçando-as a um patamar superior com o intuito de ofertar  a resposta que seja adequada e satisfatória O envelhecimento - fase da vida que se desenvolve lentamente e faz do homem um ser temporal com início, meio e fim - é inevitável. E é justamente nesse declínio que a pessoa necessita receber tutelas específicas por parte do Estado para que possa levar adiante seu processo e usufruir do bem-estar almejado, apesar da normal redução da capacidade física e mental. É incontestável que o corpo vai experimentando as vicissitudes do tempo e carregando as marcas que apontam sua vulnerabilidade. Faz lembrar o relato feito pelo imperador Adriano a Marco, de forma sincera e realista, na obra de Yourcenar: "Esta manhã, pela primeira vez, ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro e mais meu conhecido do que minha própria alma, não é senão um monstro sorrateiro que acabará por devorar seu próprio dono".1 A longevidade, nesta progressão, não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável na história da humanidade. Pode se observar, pelos atuais regramentos, que o preconceito em razão da idade pode dar azo ao ageísmo - parâmetro biomarcador preconceituoso manifestado mais por estereótipos do que pela realidade - que leva o rótulo de idoso e a consequência de ser excluído da cidadania proclamada constitucionalmente. A vida estendida, com base na ficção etária, ampara a vida longeva e atribui à família, à comunidade, à sociedade em que vivem os idosos e ao Poder Público, o dever e responsabilidade de assegurar a plena efetivação dos direitos consagrados constitucionalmente relacionados à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, à convivência familiar e outros anunciados Não é demais concluir que toda pessoa humana, embora seja diferenciada pela sua faixa etária, contém, na sua imensa grandeza, o sentido do próprio universo assim como é depositária de todo valor da humanidade. Cada uma passa a ser, na realidade, o todo e não parte do todo. Desta forma, com tal desiderato, o homem deve se organizar em todas as etapas de sua vida para buscar o espaço que lhe seja mais conveniente e digno de sua condição, para se aproximar do Supremo Bem, assim referido por Aristóteles ao propor o caminho da realização e perfeição. Assim caminha a humanidade.  ________ 1 Yourcenar M. Memórias de Adriano. Tradução: Calderaro M. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2005.
O CP de 1940, quando iniciou sua trajetória normativa, elencou várias condutas humanas praticadas reiteradamente à época e construiu vários tipos penais com a intenção de realizar a persecução penal contra os infratores, tendo como lema o postulado jurídico nec delicta maneant impunita (que nenhum crime fique impune). A título de exemplo, o estelionato, crime contra o direito patrimonial, traduzia por vários núcleos verbais a ação do sujeito obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. Era o suficiente para proteger a sociedade contra a criminalidade descrita no preceito legal. O tema da violência urbana se exibe, há muitos anos, como se fosse a última grife e rende dividendos inesgotáveis de notícias e comentários. Todos os dias, mais mesmo que o futebol, atropela os acontecimentos e vem estampado na primeira página. É frustrante ver a escalada estarrecedora de crimes de conteúdo explícito de violência continuar a crescer sem limites e a sociedade acuada, com o torniquete de sua liberdade apertado ao extremo. A leitura atualizada da criminalidade traz uma formatação diferente. Basta observar que uma prática criminosa, que vinha se consolidando nas grandes cidades, consistia em roubadores arremessarem pedras contra os vidros dos veículos parados no trânsito, com o objetivo de quebrá-los para, em seguida, subtrair objetos de valor que se encontrassem no interior, antes que o motorista ou terceiros pudessem reagir. Essa dinâmica, rápida e oportunista, deu origem ao apelido "gangue da pedrada", expressão que se popularizou em nosso cotidiano. Com o tempo, no entanto, muitos motoristas passaram a instalar películas "antivandalismo", que resistiam satisfatoriamente ao impacto das pedras e não só dificultavam, como também impediam a ação criminosa. Em resposta, os roubadores passaram a empregar lanças metálicas artesanais, com pontas alongadas e perfurantes - como as lanças que fazem parte de portões residenciais, por exemplo - capazes de quebrar o vidro, mesmo que exista a referida película protetora. A violência, que antes era indireta, agora se apresenta como ameaça real e imediata às vidas das vítimas. Esta nova conduta, assustadora sob todos os aspectos, enseja redobrado cuidado na hermenêutica penal, uma vez que a vontade do agente pode ocasionar a morte da vítima, resultado este não desejado, inicialmente, pelo roubador. E, como é notório, o direito penal exige a responsabilidade subjetiva para sua aplicação, sob pena de atipicidade de conduta. Assim, pode-se questionar, considerando a morte da vítima decorrente da lesão provocada pela lança arremessada pelo roubador, se estaríamos diante de latrocínio? Seria o caso de roubo em concurso material com homicídio? Ou haveria espaço para discutir a ocorrência do crime aberrante (aberratio criminis, neste caso), hipótese em que o agente deseja praticar o roubo, mas, por erro na execução, provoca resultado diverso do pretendido? O latrocínio parece, à primeira vista, o enquadramento mais intuitivo, pois a ação é iniciada por dolo direto de praticar o crime de roubo, sendo a morte da vítima pela lança, consequência da violência empregada na subtração. Isso porque o latrocínio é crime complexo e preterdoloso: complexo, porque se configura com a junção de dois delitos (roubo e homicídio); preterdoloso, pois a conduta inicial - roubo - é dolosa e o resultado agravador - morte da vítima - é culposo, sendo este o cenário que se vislumbra para quem deseja, inicialmente, roubar bens da vítima e não a matar. Insta recordar, neste ponto, a fundamental súmula 610 do STF: "Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima". Ou seja, o bem maior tutelado deve ser a vida da vítima, critério este para a aferição da consumação do latrocínio, independente da subtração ou não de bens. Mas, durante esta análise, pode-se apostar que uma pergunta nasce instantaneamente: e o dolo eventual? O agente, ao arremessar uma lança pontiaguda, em direção a uma pessoa no interior do veículo, não assume o risco de matá-la? Lembre-se que o dolo eventual se caracteriza quando o agente "assume o resultado", isto é, prevê que, com sua conduta de arremessar a lança, há chances reais de acertar a vítima, que pode morrer em razão disto. Mesmo assim, o agente resolve seguir na empreitada criminosa, em clara indiferença quanto à produção do resultado. Nesse passo, o onus probandi incumbe à acusação demonstrar, na hipótese, a previsibilidade concreta do resultado morte e a postura de indiferença do agente quanto a sua ocorrência, ocasião em que fica caracterizado o dolo eventual quanto à morte e a caracterização de duas infrações penais, roubo e homicídio, em concurso de crimes. Tudo a depender da dinâmica dos fatos e da sempre escorreita investigação criminal. Por fim, eventual alegação de aberratio criminis, prevista no art. 74 do CP, aparenta não se sustentar, nesse contexto, uma vez que o erro na execução pressupõe resultado diverso do pretendido, em que o agente deseja praticar um crime, mas, com erro na execução da conduta, acaba praticando outro: o agente deseja quebrar a janela do vizinho, arremessa uma pedra, erra a janela e acerta o vizinho. Ou, então, acerta a janela e o vizinho que estava próximo. Aqui, no cenário proposto, temos situação diversa. O ato de quebrar o vidro é parte integrante da conduta criminosa, razão pela qual não há que se falar em erro na execução, mas em enquadramento quanto à ocorrência de resultado não diretamente desejado pelo agente. Então, caso se entenda pelo dolo eventual na morte, como ato autônomo da conduta de roubar, temos roubo e homicídio, em concurso de crimes. A grande curiosidade é que, pela conexão com crime doloso contra a vida, o delito de roubo também seria julgado pelo Tribunal do Júri. Portanto, a controvérsia jurídica que se impõe exige do intérprete e do operador do direito uma abordagem cuidadosa, sustentada tanto em fundamentos teóricos quanto em elementos probatórios. A dogmática penal não pode se omitir diante da escalada de violência urbana. Deve atuar como expressão técnica da proteção à vida e à segurança coletiva, sempre em sintonia com os comandos legais e os princípios constitucionais que estruturam o sistema penal.
domingo, 16 de novembro de 2025

A Laudato Si e a COP30

Com o início da COP30, que conta com a participação de quase 60 chefes de Estado ou de governo, é oportunidade para que todos os representantes se debrucem sobre o tema principal que pretende construir um novo modelo de civilização, já que o existente é considerado desgastado e com inúmeras sequelas advindas das ações humanas que provocam mudanças antropogênicas, com o desmatamento e degradação do meio ambiente, afetando o bem-estar das pessoas. Não se tratar de atender propostas de alguns países para buscar medidas preventivas e sim que a casa comum da humanidade necessita, com urgência, de reparos. O ser humano, nesta toada de aniquilação, não é só o responsável pela catástrofe ecológica, como, também, passa a ser vítima de tamanha degradação. Há, portanto, necessidade premente de construir condutas que possam corrigir os modelos de crescimento para que seja restabelecida a convivência perfeita entre o humano e a natureza. A esse respeito tem total aderência, assim como pode servir de base e sustentação para a reunião mundial, a Carta Encíclica Laudato Si, de iniciativa do Papa Francisco, que incorporou a humildade franciscana em seus atos e preocupou-se, não só com o avanço da biotecnologia, como, também, com o ser humano, visto tanto na sua individualidade, como na sua contextualização coletiva. Prega a mensagem de união de toda família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral. O Bispo de Roma assim se manifestou na oportunidade: "Lanço um convite urgente para renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental que vivemos e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós".1 Pode-se até dizer que a salvadora expressão "desenvolvimento sustentável", entendida hoje na sua interpretação mais extensiva, cunhada com a intenção de balizar as intervenções do homem no meio ambiente, provocou uma nova responsabilização social e desencadeou o interesse para que várias comunidades mundiais assinassem compromissos e convenções para estancar ou até mesmo tutelar a vida e a saúde das pessoas, além de evitar danos irreversíveis ao próprio ambiente, provocados pela prática indevida das atividades econômicas. Todos os povos, notadamente os chefes de Estado já se certificaram por meio de inúmeras as projeções, que é impossível um crescimento ilimitado num mundo dotado de recursos finitos e esgotáveis. A natureza não possui a capacidade ilimitada de prover a economia e daí a necessidade do acesso ecologicamente equilibrado e da exploração racional das riquezas naturais. O brado de alerta anunciado no documento papal faz com que novos olhares sejam direcionados para um tema de tamanha importância - a humanidade, decisivamente, não pode continuar sugando o capital natural do planeta além da sua capacidade de renovação e de regeneração dos estoques de bens - e que até hoje garantem a sobrevivência de todos os seres na Terra. Problemas comuns a todos os povos demandam soluções concretas globais.  As nações, nas suas individualizadas posturas, pretendem se adequar e ajustar ambientalmente as suas políticas públicas às práticas cotidianas de proteção e conservação do patrimônio ecológico mundial. Os governantes sabem que não é mais possível qualquer postergação. A natureza já está respondendo e cobrando, indistintamente, preço elevado para tamanho descaso. Aquilo que deveria ser uma casa comum, representando o condomínio mundial ou patrimônio comum, a res communis omnium (coisa comum a todos), passa a ser um objeto de fruição imediata, tratando a natureza como se máquina fosse, podendo montá-la e desmontá-la, de acordo com as necessidades e conveniências do modelo econômico. A reflexão do documento papal faz ver que muitas propostas consideradas viáveis e oportunas para o momento em que foram editadas, com o passar do tempo restaram frustradas, quer seja pela imposição dos mais poderosos, quer seja pelo desinteresse dos demais. _________ 1 Papa Francisco. Laudato Si'. Paulus Editora, Edições Loyola Jesuítas, 2015, p. 16.
domingo, 9 de novembro de 2025

Novembro sempre azul

O Novembro Azul já nasce, não com a tonalidade delicada do Outubro Rosa, mas sim enlaçando o azul, cor que retrata o céu e o mar traduzindo harmonia e segurança e, acima de tudo, sensação de amplitude, bem-estar e liberdade, com a intenção de conscientizar o homem a fazer a devida prevenção do câncer de próstata e orientá-los a respeito dos exames preventivos, como o toque retal e o PSA, ambos com chances de aumentar consideravelmente a cura. Trata-se de uma campanha, endossada como política pública, que já vem se solidificando e atingindo consideravelmente seu intento. Novembro Azul, enlaçado pela fita azul, veio a reboque do Outubro Rosa, com a finalidade de alertar os homens da importância do diagnóstico preventivo do câncer de próstata. O nome é relacionado com o dia 17/11, considerado o Dia Mundial de Combate ao Câncer de Próstata. Na Austrália, em 2003, surgiu o movimento Movember, que é a junção da palavra moustache, que significa bigode, com "november", referente ao mês de novembro, dedicado à saúde do homem. Daí que os símbolos da campanha passaram a ser, no Brasil, o bigode e a fita de cor azul. Os homens são mais arredios do que as mulheres para a realização de qualquer exame médico preventivo. Talvez seja pela sua própria natureza ou até mesmo pela desinformação a respeito das doenças mais prováveis para o mundo masculino. Assim, o Ministério da Saúde edita programa relacionado com o câncer de próstata buscando a população masculina na faixa etária dos 20 aos 59 anos de idade, com a finalidade de chamar a atenção e despertar o interesse pela própria saúde, além de propiciar os serviços, preventivos ou não, dos agravos com maiores taxas de ocorrência. A Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, por sua vez, implantou um interessante programa que carrega um nome chamativo: "Filho que AMA leva o pai ao AME", que visa alertar o filho a convencer o pai para uma consulta médica, oportunidade em que se avistará com profissionais da enfermagem para as avaliações necessárias, além de exames laboratoriais de sangue e eletrocardiograma e também com consultas com cardiologistas e urologistas. Se, por ventura, houver necessidade de investigar outro problema de saúde, serão realizados mais exames no AME, em busca do diagnóstico necessário. Com o arsenal tecnológico de hoje à disposição da medicina científica, exames de última geração vêm explorando e conseguindo ótimos resultados para se obter a leitura do genoma humano, descoberta que possibilita a correção de eventual enfermidade genética que acompanha seguidas gerações. A TGH - Terapia Gênica Humana é de vital importância para solucionar o problema de milhões de pessoas vitimadas pelas doenças de cunho genético. Moser, com razão, concluiu: "Esta virou uma espécie de melodia que soa aos ouvidos de todos como esperança de vitória definitiva sobre um mal que atormenta a humanidade de todos os tempos."1 Pois bem. Como é sabido, a atriz Angelina Jolie, em razão do mapeamento genético que resultou positivo para a potencialidade do câncer que vitimou sua mãe - cerca de 87% de desenvolver a mesma doença, sem apresentar, no presente, qualquer início da moléstia - submeteu-se a uma mastectomia dupla (retirado dos seios). Pode-se imaginar, no mesmo caminho, a situação de um homem que carrega histórico familiar favorável ao desenvolvimento de câncer de próstata e se submeta a um mapeamento genético, conclusivo pela potencialidade da doença, unicamente pelas informações genéticas, sem apresentar, no presente, qualquer início da moléstia. A pergunta que se faz é se justifica a intervenção médica preventiva com a confiança no provável desenvolvimento das células cancerosas. Quer dizer, a cirurgia será realizada em um paciente saudável no momento atual e sem os sintomas, mas com possibilidade de desenvolver a doença. Trata-se de um questionamento eminentemente bioético. O exame realizado é resultado de um refinamento científico de vários anos de pesquisa e acompanhado por outras práticas médicas conclusivas e irrefutáveis. A tecnologia revela novos contornos que trazem benefícios para o homem, no sentido de proporcionar-lhe uma vida com melhor qualidade, evitando doenças incuráveis e sofrimentos dolorosos, sem qualquer ofensa ao princípio da dignidade humana. Indiscutível a nova realidade que se avizinha e com ela espessas nuvens precisam ser dissipadas. O procedimento invasivo, se optado pelo paciente, será realizado ainda sem a manifestação da doença e, no caso de prostatectomia radical, além da possível aplicação da radioterapia, carregará o receio da impotência sexual e da incontinência urinária. É, realmente, uma decisão que irá marcar uma nova etapa na prevenção médica da humanidade, tendo como sustentáculos os princípios da autonomia da vontade do paciente e da beneficência, ambos da bioética. ________ 1 Moser,Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 225.
domingo, 2 de novembro de 2025

A leitura ética e a lei

A ética, em sua origem, nada mais é do que o costume, a tradição, ambos voltados para a moral. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização moral e correta da conduta humana, passada de geração em geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos da convivência humana. É a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. Daí pode-se dizer que é um conhecimento que não envelhece. Transmite-se do pai para o filho, do mestre para o aluno, do experiente profissional ao novato, todos encarregados de aprimorá-la de tal forma que, se determinado conceito for rejeitado pela identidade pessoal e social, será automaticamente eliminado e outro, melhor acabado, mais consentâneo, ocupará seu lugar, no âmbito de um processo gradativo, mas seguro em suas bases. "Enfrentar os desafios éticos, salienta o saudoso bioeticista Hossne, é um grande desafio que começa primeiramente com a identificação dos problemas éticos, passa pelo equacionamento dos conflitos, para chegar à reflexão ética e, finalmente, concretizar-se em disposições de ordem moral e/ou legal."1 A discussão a ser travada será sempre com relação ao caminho mais salutar para o homem, em qualquer área de sua vida. A ética não é cogente, é resultado de um pensamento inteligente. A ética não é coercitiva, mas crítica. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução que, com o passar do tempo, busca a perfeição. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem, que, na sua essência, busca a felicidade e o bem viver. Também não se propõe a instalação de éticas múltiplas, para serem acionadas de acordo com a necessidade de cada caso. Na realidade, a ética, pela sua própria origem e essência, é una. O ethos é variável a cada cultura, a cada geração, mas sempre se faz presente com sua relevante contribuição, jorrando suas convicções morais sobre os temas em discussão.                   Aristóteles, cujo pensamento se torna obrigatório integrar a definição perquirida, assenhorou-se do termo para evidenciar as pesquisas que têm como objeto analisar e aprofundar as qualidades peculiares do ser humano integrando-as em várias áreas de sua atuação, quer seja na economia, na política, no ensino, no comércio, além de muitas outras. O pensamento filosófico, desta forma, surge como o grande arquiteto da ética, visando construir os melhores valores de conduta, exibindo como padrão a figura do homem prudente que, mais tarde, com a evolução própria no pensamento romano, passou para virtus in medio, ressaltando agora a figura do homo medius. É sempre o mediano o melhor equalizador das regras. Não se encontra nos extremos e exatamente por isso não terá a cautela desguarnecida e também não excederá na sua prudência. Enquanto a ética como identidade social vem de uma consolidação firmada ao longo do tempo, sem qualquer normatização a respeito e sim por meio da propagação espontânea, levando-se em consideração os critérios da Justiça popular, ou no sábio pensamento do Papa Bento XVI, a sabedoria da vida e experiências concretas de uma comunidade humana, a lei, por sua vez, é resultado de uma avaliação política e social, levando sempre como parâmetros as limitações da existência humana, observando criteriosamente os interesses atuais e concretos da comunidade a que serve. Ambas tangenciam pontos comuns e que são perquiridos desde os primórdios da civilização, consistentes em proporcionar ao homem condições para uma convivência harmônica com a criação de espaços para que cada um possa realizar e atingir seus objetivos, tudo com a garantia de um Estado democraticamente constituído. Pode-se dizer que a ética é uma plataforma de normatização interna, enquanto que a lei exerce a mesma função externamente. E, às vezes, pode ocorrer colidência entre elas na apreciação de uma determinada conduta que possa vir revestida de uma apreciação antiética, mas sem qualquer reprovação legal. Isto ocorre em razão da rápida e necessária mutação da lei que, por sua própria natureza, é mais dinâmica e confere uma avaliação mais condizente com as necessidades sociais. Daí dizer-se que a ética caminha com mais vagar, com maior fardo e encontra muitas vezes instransponíveis dificuldades para promover transformações em seu conceito. Mas a realidade exige que, quanto maior for o grau de desenvolvimento do homem para atingir seu estágio de bem-estar, maior deve ser a elasticidade do pensamento ético. ________ 1 Hossne, William Saad. Ética e Cultura/Danilo Santos de Miranda (org), Edições SESC-SP, 2011, página 197.
domingo, 26 de outubro de 2025

A relevância dos cuidados paliativos

Levando-se em consideração a inevitabilidade da morte, o homem, com o interesse em fazer preservar a dignidade que deve permear todos os ciclos de sua vida, elegeu agora sua finitude como sendo aquela que merece a atenção adequada. Tanto é verdade que a ars moriendi, em busca de uma morte que seja digna e compatível com o ser humano, abraçou a conceituação da ortotanásia contida no Código de Ética Médica no sentido de que, "nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal".1 É sempre pertinente abordar o tema a respeito dos cuidados paliativos, que no segundo sábado do mês de outubro, comemora o Dia Mundial de Cuidados Paliativos. Apesar de o termo carregar o significado de atuação final, na realidade o tratamento dispensado visa conferir ao paciente de doença grave as melhores condutas terapêuticas para o controle da moléstia. A OMS redefiniu em 2023 a conceituação dos cuidados paliativos como sendo uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes - crianças e adultos - e suas famílias que enfrentam problemas associados a doenças potencialmente fatais. Previne e alivia o sofrimento da dor e de outros problemas, sejam eles físicos, psicossociais ou espirituais. Cuidados paliativos, nesta visão, descartam qualquer apressamento da morte, mas sim provocam o surgimento de um cuidar cauteloso para conferir ao paciente a continuidade da sua dignidade. O estertor da morte é suavizado, de acordo com a intenção demonstrada pelo paciente in vita ou nas diretivas antecipadas de sua vontade. Seria, a título de exemplo, tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar na sua toada, com segurança e lentamente, levantando-o quando suas forças minarem, até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. Daí, muitas vezes, como sói acontecer, nem mesmo os parentes poderão executá-la a contento. A respeito da legislação existente sobre o tema, pode ser apontada a lei 14.758/23 que, apesar de não lançar seu olhar diretamente para os cuidados paliativos, oferece tal serviço aos pacientes oncológicos para que possam receber toda a assistência e tratamento com a dignidade reconhecida na Constituição Federal e estabelece, também, os regramentos indispensáveis para os cuidados paliativos. Ainda nessa mesma linha, a portaria GM/MS 3.681/2024 instituiu a Política Nacional de Cuidados Paliativos no SUS abrangendo abordagem de tratamento e prevenção destinadas tanto à pessoa cuidada quanto aos seus familiares e cuidadores. O Código de Ética Médica, por sua vez, traz as resoluções CFM 1.805/06 e CFM 1.995/12, que regulamentam o oferecimento dos cuidados paliativos aos pacientes com doenças crônicas e incuráveis com a intenção de promover uma qualidade de vida mais ajustada tanto para o paciente como para a família. A resolução 2.068/13, com outro enfoque, aprova a medicina paliativa como área de atuação de especialidade. A dor, o medo, a depressão, a insegurança, a ansiedade, o isolamento são circunstâncias que habitam a frágil vida do doente terminal. A mente do enfermo, que ainda opera em meio a tanto tumulto, necessita buscar refúgio para se amparar, ou um colo para depositar suas últimas esperanças. Este espaço é geralmente ocupado pela figura do cuidador especializado, que irá entronizá-lo em uma espécie de redoma, aproximando-o do convívio dos familiares e amigos, da sua opção espiritual, de atender a realização de seus desejos quando possíveis, para que fique conectado com a dignidade da vida. Não só. Os cuidados alcançam também os familiares dos pacientes que recebem orientações para lidar com a doença e o apoio para o enfrentamento do luto. Hoje, nota-se o surgimento de várias clínicas e hospitais especializados nesta função caritativa e que prezam pela qualidade do atendimento, por meio de um corpo clínico com aderência na área e equipamentos necessários para atendimento rotineiro aos pacientes. Tal desiderato faz ver que não basta somente o sucesso da ciência em proporcionar a tão ambicionada longevidade. É preciso que haja a qualidade de vida compatível com a ambição humana. E, quando vencidas todas as etapas, a pessoa defrontar-se com a terminalidade de uma doença, que tenha ela um serviço de saúde adequado em que possa receber o conforto e a atenção, refletindo, desta forma, a merecida dignidade de seus últimos dias. _______ 1 Art. 41, parágrafo único da resolução CFM 2.217/18.
domingo, 19 de outubro de 2025

Outubro sempre rosa

É interessante observar que os meses do ano são marcadores de campanhas de políticas públicas específicas com a finalidade de orientar homens e mulheres a respeito da prevenção de determinadas doenças. E a característica principal é a cor relacionada a eventuais moléstias, como, por exemplo, Janeiro Branco (saúde mental), Setembro Amarelo (prevenção do suicídio), Outubro Rosa (câncer de mama), Novembro Azul (câncer de próstata) e outras mais. Fica, desta forma, mais fácil a conscientização sobre as doenças e os cuidados preventivos. A modernização, aliada à aceleração social e ao dinamismo participativo, obrigaram o Estado a se aproximar do cidadão e a realizar práticas e políticas públicas com investimentos consideráveis na área da prevenção. O efeito da globalização fez com que o Estado se abrisse para sua comunidade interna e flexibilizasse muitas de suas funções e, dentre elas, as intervenções relacionadas com a área da saúde Tal iniciativa demonstra que o gasto público é bem menor quando ajustado para a prevenção de doenças, principalmente aquelas consideradas graves, longas e que consomem recursos públicos vultosos. O novo arranjo dá um considerável alento ético e político para construir um alicerce sólido em favor das identidades pessoais e coletivas da comunidade por meio de ferramentas que automatizam processos e ampliam a eficiência. A OMS, por sua vez, que aponta a nova era de desafios globais, define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Assim, os programas de saúde no contexto coletivo são de vital importância, pois uma de suas metas é justamente promover o bem comum com a diminuição dos riscos para a saúde individual e coletiva, além do que cumpre o afirmativo constitucional da dignidade da pessoa humana. O avanço desmedido da biotecnologia proporciona a realização de exames sofisticados que perscrutam lado a lado os segredos das células que circulam nos corpos humanos, silenciosas e inatingíveis, transportando um roteiro genético imutável, uma missão a ser cumprida de acordo com a programação do DNA, que estabelece todo o histórico de vida da pessoa. O movimento atingiu proporção mundial e a mensagem é veiculada por meio de materiais educativos, publicações de artigos esclarecedores, debates e encontros a respeito da proposta, com grande aceitação popular. O próprio Estado já se apresenta como arauto do movimento e desempenha importante papel nesta tarefa, pois cabe a ele a missão constitucional de patrocinar políticas públicas que visem à redução de doenças, tendo como prioridade as ações preventivas. O Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Estado da Saúde, lançou o programa "Mulheres de Peito", que conta com cinco unidades móveis, conhecidas como "Carretas da Mamografia", que percorrem todas as regiões do Estado oferecendo o exame gratuitamente, sem necessidade de pedido médico. De janeiro a setembro de 2025, foram realizados 45.699 exames, possibilitando, desta forma, o acesso ao diagnóstico precoce em busca de tratamentos modernos e de qualidade, aperfeiçoando o cuidado integral à mulher, com o aprimoramento dos resultados. Ainda nessa mesma linha de câncer de mama, com aplicação da Tabela SUS Paulista, que complementa os valores ofertados pelo SUS, ampliou e em muito os procedimentos voltados à saúde da mulher, atualizando os valores e impulsionando a realização de inúmeros tratamentos para as portadoras da doença. Finalmente, na conjugação de esforços entre uma rede varejista e o Estado de São Paulo, criou-se um espaço de acolhimento e solidariedade com uma campanha de venda de lenços temáticos com a motivação do Outubro Rosa, cuja arrecadação será revertida totalmente ao Icesp - Instituto de Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), referência na América Latina no tratamento da doença e que atende exclusivamente pela rede pública, sendo que mais de 16 mil mulheres com câncer de mama foram acolhidas.
domingo, 12 de outubro de 2025

A relevância do cão-guia

A humanidade já convive e respira a inteligência artificial, em que a criatividade humana, de antemão, rascunhou de forma definitiva sua tendência de se apropriar dos engenhos produzidos pelos algoritmos, que não criam, mas com agilidade necessária, reciclam o que já foi produzido. Na conjugação da máquina, que articula as palavras adequadas, com a atuação do humano que delas se apropria e impõe sua criatividade, nasce, consequentemente, uma parceria híbrida. Além dessa nova realidade já tomou assento o movimento conhecido por transumanismo, como se ainda vivesse no tempo da ficção científica, em que se procura capacitar o homem com as tecnologias emergentes para que ele possa atingir a cobiçada potencialidade da vida. Ao lado e ao cerco de toda essa parafernália, inofensivo, encontra-se o cão-guia, desprovido de toda tecnologia, mas com radar e waze acionados pela sua natureza. O deficiente visual no Brasil, compreendendo a cegueira e a baixa visão, passa por sérias dificuldades de locomoção em nossas cidades, muitas delas antigas, sem sinalização sonora ou no solo, com inúmeros obstáculos arquitetônicos que dificultam sua inclusão social. Daí as novas vias e logradouros públicos, em virtude das recentes legislações, pelo menos nos locais de grande circulação, vão implantando adaptações que visam melhorar a acuidade visual. Muitas vezes o portador de deficiência visual opta pelo uso da bengala, mas as calçadas irregulares, os degraus imprevisíveis e até mesmo os obstáculos de maior porte, como um suporte metálico instalado para ostentar uma propaganda, por exemplo, não são alcançados pelo tatear da bengala. E, inevitavelmente, ocorre a queda com graves ferimentos ou fraturas. Apesar de se ter notícia que a integração do cão e do homem remonta à própria história da humanidade, o cão de assistência teve sua origem logo após a Primeira Guerra Mundial, com o treinamento de cães para acompanhar os soldados veteranos que ficaram cegos. Como os resultados foram positivos a ideia prosperou e, hoje há escolas com profissionais habilitados para a seleção de cães de serviços e responsáveis por um treinamento rigoroso e intensivo para que os animais possam interpretar situações de perigo e conduzir com segurança seu par. No Brasil, um cão adestrado e pronto para o trabalho importa em investimento considerável, valor inacessível para maioria das pessoas com restrições visuais. A relevância do cão-guia, definido como animal castrado, isento de agressividade, de qualquer sexo, de porte adequado, treinado com o fim exclusivo de guiar pessoas com anomalia visual, ganhou tanta importância que a lei 11.126, de 27/7/05, regulamentada pelo decreto 5.904, de 21/9/06, conferiu o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia. Isto quer dizer, em consonância com a cidadania plena apregoada pela Constituição Federal, que a pessoa usuária de cão-guia tem o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veículos, compreendendo todas as modalidades de transporte interestadual e internacional com origem no território brasileiro, e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo. Nada mais é do que a celebração do princípio da isonomia. Recentemente, no Rio de Janeiro, ocorreu um caso em que o cão-guia, registrado como Teddy, foi impedido de embarcar com sua tutora, autista, com 12 anos, em um voo internacional. Foi necessário invocar a tutela jurisdicional para expedir liminar autorizando o embarque. A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico numa sociedade adequadamente ordenada. O animal, por sua vez, deixa a categoria de coisa e ingressa na especial de seres sencientes, com capacidade suficiente para demonstrar emoções, como o sofrimento e angústia, além de receber a tutela necessária de proteção à vida, à segurança e ao seu bem-estar. O animal, preparado para uma missão tão nobre, passa a ser uma extensão do corpo do deficiente visual, integrando-se a ele como o L'Oeil Qui Voit ou, como dizem os americanos, The Seeing Eye. Na realidade, apesar de se apresentarem como uma dupla, formam um só conjunto, com movimentos harmônicos e coerentes, num silêncio quase que indizível, num linguajar expressivo que se lê pelo leve contato corporal, e ao som de suave comando de voz caminham com mesma naturalidade do pacato cidadão. Para tanto, o cão de assistência, com o equipamento obrigatório, composto por coleira, guia e arreio com alça, portará também sua identificação e seu condutor deverá exibir, quando solicitado, documento comprobatório do registro da escola de cães-guia, acompanhado do atestado de vacina e sanidade do animal. É indiscutível, e causa até mesmo admiração, que um cão que passa por um austero e rigoroso treinamento, deve reunir inteligência acima do padrão normal para realizar todas as ações programadas com a segurança recomendada. Não se limita a uma parceria unicamente para desviar o tutor dos obstáculos que surgem à frente, mas sim compreende uma convivência extremada em razão do companheirismo. Ambos se entendem por palavras e gestos em perfeita sintonia pelo espírito colaborativo que os une.
Não com muita frequência, mas esporadicamente, a imprensa noticia o fato de a mãe ter abandonado o filho após o parto. Tal conduta, por si só, considerada crime no CP, leva o cidadão a refletir a respeito e, ao mesmo tempo, vislumbra espaço para um salutar e construtivo debate em busca de políticas públicas necessárias para amenizar situação tão delicada. É de se atentar que não se pode emitir antecipadamente um édito condenatório em desfavor da mãe que, despreparada para a maternidade, ou até mesmo sem condições financeiras para suportá-la, tome a drástica decisão do abandono. É difícil estabelecer os motivos que levam a mãe a tomar a decisão tão lamentável que, de regra, é censurável por todos. Com o aprofundamento do raciocínio em torno da questão, vê-se que, quando grávida, não optou pelo aborto. Nem mesmo pelo infanticídio, quando se encontrava sob a influência do estado puerperal. Não se pode concluir, portanto, que a genitora não desejasse o nascimento do filho, uma vez que venceu todas as etapas, desde a concepção até o nascimento com vida. Passou, com certeza, por inúmeras dificuldades, muitas de ordem socioeconômicas, outras morais, mas, mesmo assim, proporcionou o nascimento ao filho. Pode-se concluir, de forma paradoxal, que a entrega do filho a uma instituição apropriada, vem a ser uma atitude até responsável da mãe, revelando seu interesse em proporcionar ao recém-nascido melhores condições de vida. É um verdadeiro ato de amor, embora com requinte de absurdo. É melhor assim do que abandoná-lo clandestinamente, em condições indignas e subumanas. Já tramitaram pela Câmara Federal PLs, que não vingaram porque as propostas apresentadas corriam o risco de se atropelarem nas próprias pernas por tentar dar um salto sem observar seus limites ao criar a figura do parto anônimo, voltado à mulher grávida, que não deseja a criança, conferindo a ela atendimento pré-natal e o parto, ambos gratuitamente. Assim como o filho será deixado no hospital ou unidade de saúde por determinado prazo, período em que poderia ser reivindicado por ela ou por qualquer parente biológico. Findo o período, a criança seria encaminhada à adoção. A parturiente que optou pela entrega do filho será submetida a acompanhamento psicológico, isenta de qualquer responsabilidade civil ou criminal em relação ao filho e a sua identidade. A incongruência da proposta legislativa reside justamente no sigilo de identidade da mãe que impossibilita ao filho o conhecimento de sua origem genética. Dentre todos os direitos elencados na Constituição Federal, um deles assume relevância no assunto ora debatido: o da dignidade da pessoa humana. Toda pessoa tem o direito de conhecer sua origem, seu patrimônio genético, seus dados biológicos. Privar o filho de conhecer sua origem genética é negar a ele sua própria identidade biológica. Pode ser até que, futuramente, tenha necessidade de se submeter a transplante de medula óssea e, tateando pela escuridão de sua origem, vai se inscrever em bancos de doação, sem a mínima chance de tentar a compatibilidade entre os parentes. Da mesma forma, não serão observados os impedimentos matrimoniais. A resolução 485/23, do CNJ, clareou com novas luzes para encontrar uma solução para dirimir o conflito entre o direito à identidade da criança e o direito ao sigilo da mãe. Referido texto legal garante à gestante ou parturiente que manifestar de forma inequívoca o interesse de entregar o filho para adoção, o encaminhamento à Vara da Infância e do Adolescente para dar início ao procedimento judicial, ofertando a ela o atendimento por equipe interprofissional. Todo o processo tramitará em segredo de Justiça, oportunidade em que a gestante será informada sobre o direito ao sigilo do nascimento do filho, alcançando os membros da família extensa e o pai indicado, além de ser informada a respeito do direito da criança de conhecer sua raiz biológica, após os 18 anos, de acordo com o art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente, in verbis: "O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos". Em perfeita sintonia com a ciência que valoriza conhecer a função que cada gene exerce no interior do corpo humano. Ter um DNA significa ler a informação genética e descobrir o código da vida.
domingo, 28 de setembro de 2025

Setembro Verde e o doador de órgãos

O Brasil carrega vocação natural para a realização de transplantes. Para tanto celebra no dia 27/9, data instituída pela lei 11.584/07 que criou o Dia Nacional da Doação de Órgãos, a campanha que leva o nome de Setembro Verde, que aponta duas bandeiras: uma da conscientização da doação de órgãos e a outra que propõe a inclusão de pessoas com deficiência. Dá-se o nome de transplante ou transplantação ao procedimento cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro um tecido ou órgão colhido de um doador. Autotransplante, assim designado, ou transplante autoplástico, quando é feita a transferência de tecidos de um lugar para outro, no mesmo organismo, como ocorre com as cirurgias de "ponte de safena". Homotransplante ou transplante homólogo quando se dá entre indivíduos da mesma espécie, embora geneticamente diferentes. Xenotransplante, quando ocorre a transferência de um órgão ou tecido entre espécies diferentes, como é o estágio atual das pesquisas envolvendo animais como doadores de órgãos para receptores humanos. A longevidade faz ver que o homem quer, a todo custo, prolongar sua vida. Pode até ser uma vocação natural procurar viver mais e, para tanto, corrigir os defeitos para se atingir uma existência mais rica, voltada para valores espirituais, de liberdade, da própria dignidade humana, de solidariedade social. É uma eterna recriação. A medicina detecta o órgão doente, e, em seguida, mediante uma intervenção reparadora-destruidora-substitutiva, consegue manipular um órgão são e recolhido de outro organismo, corrigindo aquele comprometido na sua funcionalidade. No Brasil, em razão do que dispõe a lei 9434/1997, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. Além disso, por ser uma regra de exceção, a doação para fins terapêuticos ou para transplantes, só pode contemplar o cônjuge, parentes consanguíneos até o 4º grau, ou ainda mais excepcionalmente, qualquer outra pessoa, desde que seja mediante autorização judicial. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas. Na modalidade post mortem, referida lei estabelece que a doação de órgãos só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Quando se tratar, no entanto, de relacionamento homossexual, por analogia, o companheiro ou a companheira estará legitimado a autorizar a doação. Com a dinâmica social - local apropriado para os ensaios de ações de aconchego e cidadania - como se tudo fosse orquestrado, alguns projetos de leis, que gravitavam em torno do tema, ganharam espaço, principalmente aqueles relacionados com a doação de órgãos presumida, que já fez parte do texto original da lei 9.434/1997. Naquela oportunidade, criou-se e passou a admitir a possibilidade da doação presumida de órgãos e tecidos, devendo o cidadão fazer constar da sua CNH se era ou não doador. A lei 10.211/01, no entanto, alterou essa opção e prevalece agora somente a vontade do cônjuge ou parente até o segundo grau. Quer dizer, o desejo manifestado anteriormente pelo cidadão a respeito da utilização ou não das partes de seu corpo e órgãos, não mais se concretiza e prevalece o ditado pelos interesses dos familiares ou responsáveis A nova tendência legislativa (PL 1.774/23) é fazer prevalecer a doação presumida post mortem, também conhecida por "silêncio-consentimento" de órgãos e tecidos, aquela em que a pessoa em vida faz uma declaração para ser concretizada após a morte. Como a que prevalece em alguns países. Na Espanha, por exemplo, a pessoa já nasce sendo doadora de órgãos e qualquer restrição em contrário, deve constar de documento de uso pessoal. Referida proposta faz prevalecer o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos sustentáculos da bioética. Da mesma forma em que, no tratamento terapêutico prevalece a autonomia do paciente, regida pelo princípio da autodeterminação, a disposição do corpo, suas partes e órgãos ficariam, com igual razão, ao indivíduo. Uma vez que o corpo a ele pertence, poderia direcionar a finalidade que julgar conveniente, principalmente quando se encontrar lúcido e consciente, diante de uma futilidade terapêutica. É sabido que a lista de espera por um órgão percorre um longo caminho, uma peregrinação que muitas vezes culmina em frustração pela falta de doadores. Assim, se vingar o conteúdo de lege ferenda, a pessoa poderá assinar um documento público, manifestando, de forma inequívoca, sua vontade de ser doadora de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, sem qualquer restrição ao princípio da autonomia da vontade.
domingo, 21 de setembro de 2025

A malformação do embrião e o aborto

O ser humano, em razão de sua própria natureza, guiado pela inteligência de que é dotado, esbarra frequentemente em fatos novos que introduzem conceitos e valores diferentes daqueles que originariamente registrou, desde sua infância até a idade madura. Isto porque a conceituação ética finca raízes profundas e dificilmente, numa primeira tentativa, possibilitará uma radical mudança de pensamento. Quando se fala em abortamento, que é o termo correto para designar a interrupção da gravidez, vem à tona a ojeriza ética pelo procedimento, que é considerado um ato atentatório contra a vida. A lei, com sua função homologatória do pensamento da sociedade civil e, com base em critérios próprios, estabelece as causas permissivas e impeditivas do abortamento, desprezando qualquer conotação religiosa, em razão da laicidade prevista na Constituição. Assim pontuando, é interessante recordar que o STF já teve oportunidade de se manifestar a respeito do abortamento de feto anencéfalo, na ADPF - arguição de descumprimento de preceito fundamental 54. Para o deslinde do tema polêmico foram realizadas audiências públicas para interpretar os pensamentos de vários segmentos, tais como religiosos, científicos, médicos, jurídicos e, principalmente, o da sociedade civil. Cada um deles trouxe sua contribuição a respeito do tema, visando auxiliar os ministros da mais alta Corte no julgamento, que contabilizou oito votos a favor do acolhimento da pretensão e dois contrários. O Estado Democrático de Direito possibilita este compartilhamento da cidadania no julgamento. Ouvir todas as vozes favoráveis e contrárias é um instrumento eficaz para se realizar uma boa Justiça. Afinal é do atrito das pedras que brota o fogo. O Código Penal brasileiro, como é sabido, contempla somente duas hipóteses de abortamento. A primeira, para salvar a vida da gestante e a segunda proveniente de estupro. Em ambos os casos, há necessidade de comprovação das situações para justificar o ato do abortamento, sem, no entanto, qualquer exigência de deferimento judicial para o procedimento. Um tertium genus, em razão da decisão da Corte Maior, pretende se incorporar às causas permitidas. Inquestionavelmente, terá que ser elaborada a lei por parte do poder competente para operar o acréscimo pretendido. Ocorre que, além da anencefalia, outras anomalias fetais, como a Síndrome de Body Stalk, Síndrome de Edwards, casos de gêmeos siameses toracoonfalópagos, unidos pelo mesmo tronco, e outras mais, ocorrem eventualmente e inviabilizam a vida extrauterina. O questionamento que se faz é se tem aplicação a decisão proferida pelo STF com relação à anencefalia, exclusivamente. A decisão proferida tem perfeita aplicação e se apresenta como um meridiano a ser seguido em todos os casos semelhantes. Se o feto é considerado uma spes vitae desde sua concepção, não há nenhum motivo para impedir o seu nascimento, uma vez que é detentor do direito à vida e não pode ser condenado no seu casulo intrauterino. A própria legislação civil considera o embrião como um nascituro que - na etimologia da palavra e no tempo verbal, com maior precisão, vem a significar aquele que vai nascer - enquanto que o feto portador de uma doença que comprometa sua atividade encefálica, sem qualquer chance de vida fora do útero, não carrega tal garantia. O STF, dessa forma, definiu que a vida em potencial se inicia somente com a concepção in ventre, deixando claro que na fertilização in vitro - quando se manipula o material procriativo do homem e da mulher - não há tal potencialidade. Trata-se, na realidade, de uma situação acobertada pela hermenêutica, que conta com a analogia para encontrar uma integração jurídica que seja consistente e que possibilite aplicar um entendimento jurisprudencial da Corte Suprema a uma situação semelhante a um novo caso concreto que se apresenta. A hermenêutica, instrumento interpretativo da mens legis, é encarregada, não só de direcionar o texto jurisprudencial, como, também, ampliá-lo para que possa atender a outras necessidades que guardam certa semelhança ou analogia com o fato apresentado. Nesta linha de pensamento, pelas interpretações literária, gramatical, lógica e teleológica, o intérprete poderá conferir a dimensão necessária à decisão da Corte Maior, ampliando-a, como no questionamento presente, dando especial realce para a causa supralegal de exclusão da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa. E na sequência de tal entendimento o anteprojeto de lei que propõe a reforma do Código Penal inseriu, taxativamente, de forma ampliativa, a seguinte cláusula de exclusão de ilicitude no inciso III do art. 128 do Código Penal, de aborto praticado por médico, in verbis: "Quando há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais". Percebe-se, sem qualquer dificuldade, que a decisão da Suprema Corte, como um caleidoscópio que gira para vários enfoques, faz com que  o reflexo de sua luz exterior possibilite um sensato diálogo jurídico alicerçado nos princípios constitucionais da dignidade, da autonomia, da liberdade e até mesmo da saúde integral da mulher, também dialoga com a medicina que se encarrega de fazer o prognóstico de letalidade perinatal incompatível com a vida extrauterina, assim como dialoga com a bioética que, dentre os seus princípios, afasta o prolongamento do sofrimento em casos de fetos sem spes vitae.
domingo, 14 de setembro de 2025

A extensão do sigilo médico

De vital importância no relacionamento médico-paciente o documento chamado prontuário médico, de característica sigilosa e científica, pelo qual o paciente é seguido pari passu pela equipe multiprofissional que o assiste. Assim, na realidade, o paciente passa a ser o proprietário dos dados constantes no prontuário e sua guarda fica sob a responsabilidade do médico ou da instituição de saúde, não podendo repassá-los para terceiros, salvo se por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente ou representante legal.  A finalidade é exclusivamente preservar a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind do direito americano. A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. Tamanho é o estreitamento da relação que todas as providências, procedimentos e informações relacionadas com o paciente, devem acompanhar o prontuário médico. Na definição ofertada pelo Conselho Federal de Medicina, "o prontuário médico é documento valioso para o paciente, para o médico que o assiste e para as instituições de saúde, bem como para o ensino, a pesquisa e os serviços públicos de saúde, além de instrumento de defesa legal" (resolução CFM 1.638/2002). Ora, ocorrendo a divulgação do segredo, sem justificativa legal, quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada do paciente ou familiares. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, permanece vivo para o profissional. É necessário, no entanto, que o médico tenha conhecimento do fato em razão de sua profissão, quer dizer, que tenha atendido ou prestado qualquer tipo de assistência ou realizado exames no paciente. Se, por ventura, tomou conhecimento quando não se encontrava nesta condição, evidente que fica descaracterizada a infração ética prevista no art. 73 do Código de Ética Médica (resolução CFM 2217/18). Mesmo que se trate de pessoa conhecida publicamente, a divulgação do quadro médico feita por boletins, somente poderá ocorrer se os familiares autorizarem e na medida da autorização. O núcleo do tipo do Código de Deontologia Médica vem sintetizado no verbo revelar, dando a entender que basta a divulgação, a propagação, por qualquer meio que seja idôneo para levar ao conhecimento de terceiros um fato sigiloso, de conhecimento restrito às pessoas encarregadas da prestação do serviço de saúde. Já no enfoque do Código Penal, em seu art. 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada do paciente acarretando não só a inconveniente persecução policial, que somente poderá ser iniciada mediante representação da vítima ou de seu representante legal, por se tratar de ação penal pública condicionada.
domingo, 7 de setembro de 2025

O embrião e seu direito alimentar

É importante destacar que a legislação brasileira, com foco não só nos direitos fundamentais explicitados na Constituição Federal, lança também seu radar para outras pretensões encobertas e difusas, mas já presentes e consistentes nos acontecimentos do dia a dia. O Direito, em razão da premente necessidade social, deixou de ser um instrumento de articulação teórica relacionado com a busca de uma sustentação legal para amparar determinada pretensão e saiu a campo como um agente desbravador e inovador, com capacidade suficiente de gerenciar situações até mesmo inusitadas e que exigem uma pronta definição. Para atingir suas metas e franquear o acesso aos seus diversos eixos, de um lado conta com a própria dinamização da sociedade que vai adquirindo e assimilando novas posturas e, de outro, com a colaboração indispensável da ciência, principalmente aquela relacionada com pesquisas e técnicas aprovadas como apropriadas para os seres humanos. Com tal roupagem o Direito desbrava novos campos e incorpora muitas conquistas aparentemente inatingíveis e que gravitam em torno do homem, tais como as questões relacionadas com a criança, o adolescente, o idoso, a pessoa com deficiência e muitas outras. Um tema que frequentemente suscita interesse é aquele voltado para o embrião e, especificamente, na conquista do direito de pleitear o já reconhecido alimentos gravídicos. No Brasil ainda tramita, desde 2007, o Estatuto do Nascituro, que certamente provocará intensos debates envolvendo desde a concepção, do início da vida humana, dos direitos reprodutivos da mulher, como também as variações a respeito do procedimento da reprodução humana. Nossa legislação, sem o auxílio da engenharia genética, possibilitava o ajuizamento da ação de alimentos somente após o nascimento com vida. O avanço na área da reprodução humana, regulamentada hoje pela resolução 2.320/22, do Conselho Federal de Medicina, foi tão acentuado que, num repente, a fecundação intraútero, que até então era o critério norteador do início da spes vitae, desloca-se para a manipulação humana extracorpórea com a consequente formação de embriões. Assim credenciado, desde que seja o embrião fecundado intraútero, em razão de sua vulnerabilidade, conta com a tutela protetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, dogma constitucional inafastável e irretocável que, pela melhor hermenêutica, encarta a mais ampla interpretação possível, embora não seja ele ainda considerado como pessoa humana. O Código Civil, em seu artigo 2º, é taxativo em afirmar: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Tanto é que o legislador pátrio, visando cobrir a lacuna legislativa, elaborou a lei 11.804/2008 com o propósito de atingir a concessão de alimentos devidos ao nascituro. A esse respeito até o Estatuto da Criança e do Adolescente, na sua linha de tutela específica, acrescenta ainda o direito de proteção à vida e à saúde, proporcionando um nascimento sadio e harmonioso à criança e em condições dignas de existência. A lei que trata dos alimentos gravídicos confere o direito à mulher gestante, não casada e que também não viva em união estável, de receber alimentos, desde a concepção até o parto. Para tanto, deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do pretenso pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos por uma das partes. Apesar de a lei referir-se a "alimentos gravídicos", o termo mais adequado com a realidade legislativa, pelo menos no âmbito jurídico, seria "alimentos ao nascituro", que compreendem as despesas relacionadas com a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames, internações, parto e medicamentos indispensáveis, além de outras que o juiz considerar pertinentes. Apesar de ser a gestante a legitimada para invocar a tutela jurisdicional, a proteção jurídica é voltada para o embrião, que além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro.
A cada dia que passa o mundo vai se transformando rapidamente. A revolução tecnológica cresce a passos largos e o homem, que a ela se incorpora com a mais grata satisfação - isto porque carrega promessas e vantagens incomparáveis e incontáveis com as oferecidas até então pelo cotidiano - não percebe que está sendo dominado por uma inteligência, embora artificial e por ele mesmo criada, com o rigorismo da mais perfeita tecnologia. Quando se fala em inteligência artificial dá-se a impressão que o tema pertence a mais distante ficção científica, justamente por incorporar um mundo ainda não experimentado. Mark Twain tinha razão quando afirmava que a principal diferença entre a ficção e realidade é que a ficção tinha que ter um conteúdo de credibilidade, enquanto a realidade gozava de pleno crédito. Mas a realidade faz ver que já convivemos com ela, que apenas iniciou seus primeiros passos com algoritmos altamente inteligentes com suporte racional suficiente para resolver, com perfeição, os mais intrincados problemas que o ser humano demandaria muito tempo para equacioná-los, sem contar, ainda, com a grande margem de erros. A inteligência do homem não nasce pronta, vai se criando com o tempo pelos métodos convencionais de ensino e vai se alimentando da observação de tudo que vê ao seu redor, constituindo-se na soma de experiências de inúmeras áreas do saber, trilhando, desta forma, as chamadas inteligências múltiplas, percorrendo o caminho que leva à sabedoria. As nações, na realidade, se preocupam em disputar a primazia e o poderio do progresso humano na busca de um super-homem, não se importando muito com o bem estar do ser humano. Ocorre que, pela limitação do homem, até então não vencida pela ciência, o foco é utilizar uma máquina e programá-la para executar tarefas de várias ordens, copiando, no que for possível, os comportamentos humanos. Desta forma, receberá ela as atividades cognitivas semelhantes às do cérebro humano, que é formado por dois hemisférios bem definidos. Tanto é que, com tal pensamento, foi criado o computador "Deep Blue", com especialidade no jogo de xadrez, que em 1997 venceu Gary Kasparov, campeão mundial da categoria. Com total pertinência e acuidade necessária a consistente observação feita por Guarcello, em obra recentemente lançada: No entanto, o mundo mudou de forma drástica no último século, impulsionado pelo avanço da tecnologia e pela revolução digital. Novos modelos de negócios surgiram, muitos dos quais passaram a utilizar ferramentas modernas e inovadoras para substituir não apenas o trabalho humano, mas estruturas empresariais inteiras. Brevemente, por exemplo, um robô poderá ser capaz de criar um novo produto utilizando inteligência artificial - sem qualquer supervisão humana.1 Assim, as novas máquinas passaram a executar tarefas para as quais foram programadas. Com o aperfeiçoamento que lhes confere o homem e com a introdução dos modelos conexionistas, que copia o funcionamento do cérebro humano, fazendo a interação adequada com vieses cognitivos especializados para realizar determinadas tarefas, podem, muitas vezes, em poucos segundos, resolver problemas que o homem consumiria horas ou dias para solucioná-los. Nesta linha de raciocínio, a máquina pode traduzir um difícil e complexo texto que causaria aflição além de enorme grau de dificuldade ao mais experiente profissional, porém, não irá compreender o seu significado. "As máquinas, esclarece eticamente De Masi, por mais sofisticadas e inteligentes que sejam, não poderão jamais substituir o homem nas atividades criativas.2 O avanço incansável na área da inteligência artificial, que cada vez amplia mais as interrogações a respeito de suas fronteiras, causa certa inquietação à humanidade. Pelo que se percebe e se anuncia, em pouco tempo, o corpo humano será dotado de sensores para, numa rápida leitura biométrica, fornecer informações a respeito de todos os estímulos, emoções, sensações que passam no interior da pessoa, fazendo revelações até mesmo desconhecidas pelo próprio ser humano. Sem falar ainda dos carros autônomos que transitarão pelas ruas sem a convencional figura do motorista; os drones que riscarão os céus para se incumbirem de entregas de produtos; os robôs que substituirão os serviçais e outros mais. Sem cogitar, também, da criação da memória afetiva para a máquina, que passa a ser programada para uma superinteligência artificial e, a partir daí, poderá disputar espaços com seu criador, destronando-o com facilidade, vindo a assumir o controle do universo. Faz lembrar a peça do autor checo Karel Tchápek, A Fábrica de Robôs, escrita em 1920, em que os robôs criados com a finalidade de executar todas as funções de uma indústria, após atingirem altíssimo índice de produtividade, revoltaram-se e destruíram o sistema. Com traços humanoides, assumem a linha de frente e extinguem a sociedade que os projetou, considerando-a sem importância. Os direitos fundamentais, que hoje são proclamados na Constituição Federal, deverão ser revistos porque, com a nova dimensão da IA, a nascente tecnologia deverá tutelar os "neurodireitos", impedindo que a mente humana seja acessada e até mesmo manipulada, acarretando sérias consequências e prejuízos à pessoa. Faz repetir a sensação descrita por Harari: "A mão fria do passado emerge do túmulo dos nossos ancestrais, nos agarra pelo pescoço e nos força a olhar na direção de um único futuro. Sentimos esta constrição desde o momento em que nascemos. E assim presumimos que ela é parte natural e inescapável do que somos.3 _______ 1 Guarcello, Glaucia. Menos forescast, mais foresight. Editora Alínea, 2025, p. 37. 2 De Masi, Domenico. O ócio criativo - Entrevista a Maria Serena Palieri-. Tradução de Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 107. 3 Harari, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 67.
domingo, 24 de agosto de 2025

Você, seu sangue e sua medula óssea

Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas, descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da biblioteca de Alexandria.1 É certo que a ficção científica nunca foi o campo preferido do Bruxo do Cosme Velho e nem mesmo propôs a popularização dos achados científicos, mas faz ver que o homem sempre se interessou por aventuras biológicas relacionadas com o sangue. Tamanha verdade que a própria ciência médica entabulou os procedimentos envolvendo transplantes sanguíneos com inquestionáveis sucessos para a saúde humana. E assim é possível caracterizar o homem como proprietário de um imenso latifúndio, chamado corpo humano e, ao mesmo tempo em que representa um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade. As novas práticas médicas produzem uma mudança no humano e, consequentemente, realidades no mundo exterior com reflexo imediato no bem-estar da pessoa. A doação de órgãos e tecidos no Brasil é feita inter vivos, modalidade em que qualquer pessoa capaz poderá consentir e, na impossibilidade, seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada em relação à medula óssea. Sempre e sempre a título gratuito, em razão do disposto no art. 199 § 4.º da Constituição Federal e da lei 9.434/1997, em seu art. 1º. Percebe-se, pelo relato legislativo, que a pessoa não divide com o Estado a legitimidade de doar sua medula óssea e pode fazê-lo a quem lhe aprouver, prevalecendo sua autonomia. Na realidade, a doação nada mais é do que um ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sustentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa, tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor. Diga-se, de passagem, a esse respeito, que serve de parâmetro a lei 13.289, de 20/5/16, que criou o selo Empresa Solidária com a Vida, destinado às empresas que desenvolvem programa de esclarecimento e incentivo aos seus funcionários para que sejam doadores de sangue e medula óssea.2 Para ser doador de sangue basta possuir boas condições de saúde e ter entre 16 e 69 anos, desde que a primeira doação tenha sido feita até os 60 anos e pesar mais de 50 kg. A lei permite a doação feita por adolescente, mas exige o termo de autorização assinado por um dos pais ou pelo responsável legal. Admite-se a doação feita por homem até quatro vezes ao ano, obedecendo um período de 60 dias de intervalo. Quando mulher, até três doações, com intervalo de 90 dias. A doação de medula óssea, por sua vez, pode ser feita por qualquer pessoa entre 18 a 55 anos de idade, no gozo de boas condições de saúde. O procedimento é invasivo e se resume na retirada do sangue do interior dos ossos da bacia, mediante punções. O material coletado irá determinar as características genéticas que são exigidas para a compatibilidade entre doador e paciente, por meio de um sistema que realiza o cruzamento de informações entre ambos, visando a realização do transplante. Em caso de compatibilidade, o doador será comunicado e nasce daí a necessidade de se fazer a atualização constante do cadastro, quando se submeterá a exames complementares. Tamanha é a importância do procedimento que o transplante também pode ser realizado com a utilização de células-tronco de cordão umbilical de recém-nascidos, preservadas e doadas voluntariamente pelas mães. Geralmente o doador é procurado na família. Se a busca não der resultado positivo, faz-se a consulta ao Redome - Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea que, por sua vez, age articulado com o cadastro mundial, sendo as buscas realizadas simultaneamente no Brasil e nos bancos internacionais. Assim, quanto maior o número de pessoas inscritas, maior a possibilidade de se encontrar doador compatível. Com as novas tecnologias apontadas para aprimorar a vida e o bem-estar do homem, respeitadas as condições exigidas, qualquer um pode ser doador e irá contribuir imensamente com a construção de uma sólida formação em humanidades. Basta procurar pelo hemocentro mais próximo e manifestar o interesse. É, sem dúvida, um ato de extremada solidariedade, revelador de um sentimento humanitário digno de todo respeito e admiração, demonstrando que a natureza humana proporciona o bem-estar àquele que é saudável e acode o vulnerável com os recursos do corpo humano alheio. ________ 1 Conto Alexandrino, escrito em 1884. Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 
O Brasil, apesar de sua vasta extensão territorial e de sua população expressiva, passa a ser o único país que criou um sistema de atendimento à saúde que, entre outros princípios, carrega o da universalidade. Justamente em razão dessa peculiaridade cumpre integralmente o preceito disciplinado no art. 196 da Constituição Federal em que figura como órgão provedor e entrega a gratuidade dos serviços de saúde, que são financiados com recursos da União, Estados, Distrito Federal e municípios. Para tanto, além de várias investidas - sempre com a intenção de oferecer mais dividendos de saúde para a população - criou a Ouvidoria do SUS, que constitui um dos principais canais de participação e controle social dentro da Administração Pública em saúde. Mais do que um espaço de atendimento ao cidadão, é um instrumento estratégico de gestão que viabiliza o diálogo entre a população e os gestores públicos, promovendo transparência, responsabilização e a melhoria contínua dos serviços de saúde. No Estado de São Paulo, a Ouvidoria Geral do SUS, vinculada à SES/SP - Secretaria de Estado da Saúde, atua como articuladora de uma vasta e capilarizada rede de ouvidorias, presente tanto na esfera estadual quanto nas gestões municipais. Essa rede representa um elo fundamental entre o cidadão e o sistema de saúde, contribuindo, de forma decisiva, para o aperfeiçoamento das políticas públicas e para o fortalecimento da democracia participativa. Ao contrário das ouvidorias gerais, que possuem uma atuação transversal nas diversas áreas da Administração Pública, a Ouvidoria do SUS possui um escopo de atuação especializado, técnico e orientado por princípios e diretrizes constitucionais próprios do sistema de saúde brasileiro. Sua função vai além do simples acolhimento de manifestações: ela escuta, analisa, encaminha, acompanha e devolve respostas aos usuários, sempre com foco na qualificação da gestão pública e dos serviços prestados. A escuta qualificada é um dos pilares fundamentais da Ouvidoria do SUS. Isso significa tratar cada manifestação com atenção, respeito e compromisso, garantindo ao cidadão o direito de ser ouvido, compreendido e ter sua manifestação analisada de forma técnica e justa. Essa prática promove o acolhimento e a humanização do atendimento e fortalece a confiança da população nas instituições públicas de saúde. A atuação da Ouvidoria do SUS é orientada por princípios fundamentais, que garantem não apenas a sua efetividade, mas também sua legitimidade social: 1.      Universalidade: Assegura que todo cidadão, independentemente de sua origem, condição ou localização, tenha direito de se manifestar sobre os serviços de saúde, sendo acolhido de maneira ampla e humanizada.   2.      Equidade: Oferece múltiplos canais de acesso - como atendimento presencial, telefone, carta, e-mail ou mídias digitais - para garantir que todos tenham a possibilidade de se expressar da forma mais compatível com sua realidade. 3.      Regionalização: Por meio da presença de ouvidorias em Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde, permite o atendimento mais próximo das demandas locais, respeitando as especificidades de cada território e promovendo maior eficácia e transparência nas respostas. 4.      Hierarquização: Respeita a organização dos níveis de atenção à saúde, articulando-se com os diversos componentes da rede assistencial do SUS de forma estruturada e coerente. 5.      Descentralização: Fortalece a presença das ouvidorias em todo o território, aproximando a escuta da realidade vivida pela população e facilitando a avaliação dos serviços com base nas experiências reais dos usuários. 6.      Participação Popular: Constitui um dos elementos mais importantes da Ouvidoria, pois garante que a população tenha voz ativa na gestão do SUS, contribuindo para a construção de políticas públicas mais eficientes, justas e alinhadas às reais necessidades da sociedade. A robustez da estrutura da Ouvidoria do SUS no Estado de São Paulo é reflexo do compromisso com a escuta cidadã e com a melhoria da gestão em saúde. Atualmente, a Rede de Ouvidorias da SES/SP conta com mais de 650 ouvidorias distribuídas entre os níveis estadual e municipal. Essa presença capilarizada permite uma cobertura eficiente em todo o território paulista, alcançando populações das mais diversas realidades e contextos. Mais de 870 profissionais atuam nessa rede, sendo que cada unidade de saúde possui ao um Ouvidor responsável, comprometido com a escuta qualificada e com a interlocução entre o cidadão e os serviços públicos. Embora nem todas as unidades disponham de equipes completas, a atuação em rede viabiliza o compartilhamento de informações, o apoio técnico e a padronização de procedimentos, garantindo um padrão de qualidade em toda a rede de atendimento. Além disso, a Ouvidoria Geral do SUS - SES/SP - realiza webconferências regulares com os profissionais da rede, promovendo capacitação continuada, alinhamento de práticas e atualização sobre temas estratégicos. Esses encontros abordam aspectos como: gestão e melhoria dos processos de trabalho; atualizações legislativas e normativas sobre ouvidorias; compartilhamento de experiências e boas práticas entre ouvidores; monitoramento e análise de indicadores de desempenho; uso de sistemas informatizados de registro e acompanhamento de manifestações, além de temas técnicos e operacionais ligados à gestão e à atenção em saúde. Essas iniciativas fortalecem a coesão da rede, aumentam a eficiência do atendimento e promovem a transparência institucional, traduzindo as manifestações dos cidadãos em subsídios reais para a melhoria do SUS. A relevância da atuação da Ouvidoria do SUS está na sua capacidade de transformar a escuta em ação. As manifestações recebidas - que podem incluir elogios, reclamações, denúncias, sugestões e solicitações - são insumos valiosos para o aprimoramento da gestão pública. Elas permitem identificar falhas, mapear gargalos, propor ajustes e até reformular políticas públicas com base na percepção e experiência direta dos usuários do sistema. É, sim, uma via de reciprocidade em que o cidadão oferta sua colaboração, seja lá a que título for, e recebe a devolutiva esperada. Nesse sentido, a Ouvidoria não apenas reage aos problemas, mas antecipa soluções e orienta a gestão pública para um modelo mais eficiente, participativo e centrado no cidadão. Ao devolver à sociedade respostas fundamentadas e mudanças efetivas, fortalece-se a confiança da população nas instituições e se consolida um modelo de governança pública mais transparente, justo e democrático. A Ouvidoria do SUS no Estado de São Paulo, com todos os seus encargos, é muito mais que um canal de atendimento: é uma ferramenta estratégica de gestão, um espaço de cidadania ativa e um elo indispensável entre a população e os gestores do sistema de saúde. Sua atuação qualificada, descentralizada e integrada fortalece o SUS, promove a melhoria contínua dos serviços e reafirma o compromisso do Estado com uma saúde pública acessível, equitativa e de qualidade. Ao acolher a voz do cidadão e transformá-la em ação, a Ouvidoria cumpre sua missão de contribuir para um SUS mais eficiente, humano e próximo das necessidades reais da população.
domingo, 10 de agosto de 2025

Uma carta com poesia ao pai

O título não é nada original. É de uma carta, posteriormente transformada em livro, que o autor checo Franz Kafka escreveu para seu pai. Carta de desabafo, por considerá-lo tirano, ditador e que, provavelmente, tenha exercido influência direta em suas obras, pelo caráter irônico da existência e do culto extremado do absurdo. O pai, no entanto, jamais recebeu a missiva. Deixando de lado a revolta kafkiana, desperta a atenção de qualquer filho escrever uma carta ao pai, principalmente nos dias de hoje.  Ao pai presente, ao ausente, seja porque se foi ou porque nunca quis ser, ao pai são e ao doente, ao pai jovem e ao experiente, ao pai discípulo e ao docente, ao pai que divide a alegria, ao silente do dia a dia, ao pai, enfim, seja lá qual ele for. Escrever ao pai que você gostaria de homenageá-lo no seu dia, entregar a ele o mais caloroso dos abraços, proporcionar a melhor festa, com o cardápio do seu gosto, com a caloria da comida e do afeto, contar a história de sua vida, buscar seu assunto predileto, com muita calma, sem traumas. Fazer como os românticos romanos: acordar cedo, colher a mais bela flor do dia -carpe diem- e depositar a de cor branca para aquele que já partiu e a de cor vermelha para aquele com quem compartilha este mundo feito um jardim. Escrever ao pai, com letras garrafais, que você o tem como amigo, o melhor parceiro, que divide corpo e alma por inteiro, com a total liberdade de vasculhar os segredos do seu coração. Segurar em suas mãos e saltar o fosso, vencer o pantanoso e movediço solo, com total segurança, como se ainda fosse criança. Abrir as comportas da infância e encontrar seu herói, seu paladino, com poderes quase divino, a protegê-lo nesta aventura maravilhosa chamada vida, sem vergonha de ser feliz, como propõe o refrão musical. Escrever ao pai que você gostaria de dar as mais deliciosas gargalhadas, de suas histórias e piadas, com suas palavras curtas e ricas, de ouvir a repetição constante das novidades já envelhecidas, dos sonhos cantados em trovas e versos, como o conquistador do universo. Tamanho o êxtase que daria asas e afagos para a imaginação, pegaria carona nas nuvens sombrias do horizonte, faria caricaturas no céu e brincaria de ciranda com as estrelas, sem querer ouvi-las como o poeta.       Escrever ao pai que você sofreu reveses sucessivos, que foi tocado pelo desespero, mas encontrou, lá no fundo, tudo junto, no nascedouro, a semente de fé e esperança que ele lançou e emergiu rompendo o círculo vicioso da boa crença. Narrar que na sua vida você já se viu diante de feridos tentando juntar seus cacos pelos caminhos e você os recolheu e os assistiu, pela bandeira de solidariedade que carrega. Escrever ao pai relatando o quanto você o admira pela maneira simples e prazerosa de encarar a vida quando com ela fala, quando enche seu coração de júbilo e destila generosidade e respeito ao próximo, alma nobre e sem idade que, certamente, ganhará o passaporte para a eternidade. Contar a ele, em letras de forma que, quando fechava os olhos, ouvidos e razão, abria, de todas as formas o coração, pulsando-o com paixão. Escrever ao pai para que ele saiba que, agora como pai, você vem enfrentando suas cruzadas com as armas balizadas para arrostar os moinhos eleitos e que os ecos de seus feitos ainda reverberam. E também que ele saiba que seu filho vai levar a marca do bom guerreiro, a do pai, fiel amigo e companheiro, além de perpetuar a relação cultivada bem estreita com a felicidade. Se a sua carta já estiver pronta, entregue-a o mais rápido possível, pessoalmente, de preferência. O escrito lacra o sentimento da sua gratidão. Se, no entanto, ele já se foi, revisite você mesmo e lá irá encontrar alojado em seu coração aquela imagem inesquecível, adornada de sentimentos e emoções que a vida continua a proporcionar.                                                           
domingo, 3 de agosto de 2025

Um dilema bioético

Recordo-me de uma peculiar situação, que chamou muito minha atenção para um dilema eminentemente bioético, em que uma mãe invocou a tutela jurisdicional em desfavor do próprio filho, portador de plena capacidade de discernimento, com o objetivo de obrigá-lo a se submeter a sessões de hemodiálise, vez que era portador de uma doença que impedia o funcionamento normal dos rins. O filho, com 22 anos de idade, que já se negara a realizar o procedimento de transplante em duas oportunidades, entendeu que a recusa ao tratamento era direito seu. Todas as vezes em que um tema com perfil bioético como o relatado bate às portas da Justiça, em razão da inusitada articulação, provoca sempre muitos questionamentos relacionados com a própria complexidade do homem e de sua determinação com relação à vida e à morte.  A cultura do povo brasileiro apresenta dogmas inquebrantáveis a respeito da vida e, a própria Constituição Federal conferiu a inviolabilidade necessária para a preservação do direito à vida. Assim, diante destas ponderações, é mais adequado entender que a mãe esteja agindo de forma correta e até mesmo providencial, pois pretende conferir a necessária assistência médica ao filho. Porém, já não é mais detentora da legitimidade de pleitear benefícios em favor dele, em razão de sua maioridade e capacidade para a realização dos atos da vida civil. Mas, não se pode negar também que é difícil aceitar uma conduta passiva da mãe diante da recusa do filho em se cuidar. O imbróglio ganha proporção maior quando vem à tona o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos basilares da bioética, consagrado de forma definitiva no Código de Ética Médica, (resolução CFM 2.217/18), que confere a total liberdade de manifestação diante de opções médicas apresentadas para o enfrentamento de uma determinada doença, cabendo ao paciente aceitar uma delas ou a todas recusar, de acordo com seus critérios de conveniência. O homem, na imensidão dos direitos humanos conquistados, ingressou numa esfera protetiva individualizada, de tal forma que o profissional da área da saúde, que fez o juramento hipocrático, dentre eles o de lutar pela prevalência da vida humana, vê-se obrigado a se curvar diante da manifestação de qualquer direito assegurado ao paciente. O paternalismo, que durante muitos anos imperou na ars curandi, passa agora pelo crivo da justiça e somente poderá levar adiante o propósito profissional se não ferir as camadas protetivas da cidadania. Estabelece-se, desta forma, um patamar de Justiça na colidência existente entre a intervenção médica, que seria a recomendada para a moléstia, e a negativa do paciente em autorizá-la, de acordo com a sua capacidade de autogoverno. Com a precisão acadêmica que lhe é peculiar, Gracia, enaltecendo o direito do paciente, enfatiza: "Este é quem tem de dizer o que considera bom para si, não o profissional. Não se pode fazer as pessoas felizes à força. Ou melhor, há que deixar que cada um viva de acordo com sua ideia de felicidade".1 Quer dizer, a decisão do paciente é tão importante que supera até mesmo a recomendação médica, baseada no princípio da beneficência, para a realização de um determinado procedimento que possa produzir resultados satisfatórios, como também a súplica familiar para anular a resistência ao tratamento. No caso examinado a Justiça agiu cum grano salis, com a cautela recomendada. De um lado foi confirmado que o paciente reúne todas as condições de discernimento com relação à sua conduta, embora apresente, por outro lado, imaturidade afetiva e emocional, circunstância que, por si só, autorizou a medida pleiteada. É racional para entender a gravidade do caso, mas, ao mesmo tempo, ignora o esforço familiar para reverter seu quadro clínico para que possa obter um resultado satisfatório e equilibrar sua saúde. Mas não se pode dizer que o filho esteja infringindo qualquer conteúdo legal. Pelo contrário. A Constituição Federal, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos assevera que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". A legislação brasileira, que preza a vida como um bem indisponível e merecedor de toda tutela estatal, por sua vez, não estimula a prática do suicídio e muito menos permite a realização do suicídio assistido. Mas, respeita a decisão da pessoa humana diante da recusa de se submeter a um tratamento médico recomendado. Fala mais alto a voz da consciência do paciente do que todo aparato médico colocado à sua disposição. Na realidade, ele não está fazendo a opção pela morte e sim pela não realização de tratamento, que não trará qualquer benefício. É até difícil aceitar esta nova postura sabendo que a recusa ao tratamento poderá acarretar danos maiores à saúde. Mas o divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. O filósofo italiano Ordine, em seu reconhecido manifesto, fazendo referência a Pico Della Mirandola, revela que a dignidade humana se baseia no livre arbítrio e proclama que "quando Deus criou o homem, não podendo atribuir-lhe nada específico, porque tudo já havia sido concedido aos outros seres viventes, decidiu deixá-lo indefinido, para conceder a ele mesmo a liberdade de escolher o seu próprio destino".2 1 Gracia, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2010, p. 313. 2 Ordine, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Tradução Luiz Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 155.
domingo, 27 de julho de 2025

Múltiplas doações de órgãos

No Brasil, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. Além disso, por ser uma regra de exceção, a doação para fins terapêuticos ou para transplantes, só pode contemplar o cônjuge, parentes consanguíneos até o 4º grau, ou ainda mais excepcionalmente, qualquer outra pessoa, desde que seja mediante autorização judicial. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas. Quando, no entanto, se tratar de doação post mortem, há necessidade da comprovação da morte encefálica, com a juntada dos exames realizados para sua confirmação e da autorização do cônjuge ou parente em linha colateral ou reta até o segundo grau.           Nem sempre, porém, ocorre a doação de órgãos. Após o evento morte, familiares são consultados a respeito da autorização para doar os órgãos do parente. É, sem dúvida, um momento crucial e que pode fazer prevalecer o sentimento altruísta ou o silêncio que acompanha a própria morte emudecida na vala da impotência. A morte ocorre com a falência da atividade encefálica, mesmo que os outros órgãos estejam ativos, ainda que impulsionados por drogas e aparelhos. A volição, as ordens, a manipulação de todo sistema nervoso, dos órgãos sensoriais, são ditadas pelo cérebro, que é o administrador deste grande latifúndio chamado corpo humano. Pois bem. Confirmada a morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante, com aptidões específicas, faz-se a comunicação à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado, que indicará o nome do receptor, devidamente cadastrado. De nada valerá a doação feita em vida, aquela em que a pessoa fazia constar da CNH sua intenção de doar seus órgãos. Esta declaração perdeu validade e a legislação revogadora legitima somente o cônjuge ou parente maior de idade até o segundo grau, para autorizar a retirada dos órgãos (lei 10.211/2001). É muito difícil para a família decidir a respeito da doação de vários órgãos e tecidos de um ente que faleceu, às vezes prematuramente. Em primeiro lugar, porque nunca se cogitou sobre tal possibilidade e, em segundo, porque carece de informações a respeito do ato. Na realidade, o sentimento que aflora de imediato é para que fique intocável o cadáver, de tal forma que ele represente sempre a imagem última do ente falecido. Se o homem ainda não se encontra preparado para a vida, muito distante se encontra da morte. Daí o dilema crucial em autorizar a retirada de órgãos. Se o falecido, em vida, deixou transparecer que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. Os responsáveis pela autorização não se inibirão e, prontamente, assinarão o termo autorizativo. Do contrário, sempre ocorrerá uma junta familiar para decidir a respeito da doação. É sempre um momento difícil porque concorre com o evento morte, em que, por ironia, o paciente ainda registra batimento cardíaco, mesmo com a declaração da morte encefálica. Dá-se a impressão que é um apressamento da morte, uma modalidade de eutanásia. Na verdade, é a oportunidade única para se decidir a respeito da doação, pois o paciente já expirou em razão da falência do tronco cerebral. A vida se esvaiu e no leito há um corpo movido a uma propulsão biológica conduzida, por tempo limitado. A morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.  A disponibilidade do corpo tem seus limites e somente poderá ocorrer quando, para fins terapêuticos e humanitários, ficar evidenciado o benefício. Sacrifica-se um bem em favor de outro, levando-se em consideração o progresso das técnicas médicas que possibilitam uma reposição com considerável margem de sucesso.   Descobre-se agora que o corpo humano é um repositório infindável de órgãos, com a possibilidade de doá-los e recebê-los. E, importante, sem conhecer o receptor beneficiado. É um ato de extrema solidariedade revelador de um sentimento indizível que transcende a natureza humana, merecedor de todo respeito e admiração. Vale a pena lembrar o verso do poeta Renato Castelo Branco: "Posso partir, porque já semeei minhas sementes. Podes plantar meu corpo no ventre do mundo".
Na última década vem-se notando um recrudescimento de epidemias que se encontravam controladas ao longo do tempo, em razão de não se atingir a média satisfatória de imunização, principalmente das crianças, com notável redução dos índices de cobertura. É o caso, por exemplo, do sarampo, cujo vírus voltou a circular no país. Muitos genitores, em razão de informações errôneas, equivocadas e sensacionalistas, e outros levados pela própria convicção, deixaram de realizar a cobertura vacinal dos filhos, em evidente flagrante de descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. Em alguns casos, em razão de risco eminente, há até a intervenção da Justiça com a finalidade de estabelecer um prazo determinado para que os pais fossem obrigados a providenciar a imunização dos filhos. O PNI - Plano Nacional de Imunizações, criado em 1973, tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis, visando proporcionar melhor qualidade de vida às pessoas, com o fornecimento de cerca de 20 vacinas para todas as faixas etárias, disponíveis gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde. Entre as doenças imunopreveníveis por essas vacinas estão a poliomielite1, sarampo2, rubéola3, tétano4, coqueluche5, além de outras doenças graves. Geralmente produzem reações leves, de pouca duração e sem efeitos colaterais. Assim, por ser um dever inerente ao poder familiar, de nenhuma valia a escusa dos pais. Pode até ser que a recusa dos genitores tenha alguma fundamentação contrária à imunização, porém a decisão do casal não é suficiente para afrontar o comprometimento familiar erigido no texto constitucional. Em razão dessa determinação legal, os pais devem tomar todas as providências e praticar as ações necessárias para realizar a efetivação dos direitos referentes à saúde da prole. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente é incisivo ao afirmar que "é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades públicas", de acordo com o art. 14, parágrafo único, impondo uma multa de 23 salários de referência, que será aplicada em dobro em caso de reincidência, consoante o art. 249 da legislação menorista, além do que pode ensejar a instauração de processo penal contra os responsáveis pela criança pelo crime de maus tratos, vez que desencadearam uma situação de vulnerabilidade. Assim, as autoridades da saúde, após elegerem as melhores políticas públicas para o país, elencando um rol de vacinas recomendadas para as diversas idades das crianças, provocam uma vinculação de obrigatoriedade por parte dos responsáveis. Tanto é que, para o controle do Estado e dos pais, criou-se a caderneta de vacinação, exigida em muitas oportunidades. A omissão dos responsáveis, além de provocar o abuso de autoridade parental, também quebra o princípio da paternidade responsável e a violação do melhor interesse da criança. O STJ decidiu, recentemente, que os pais que não vacinaram os filhos contra a Covid-19 podem ser multados. Isto porque o STF considerou constitucional a obrigatoriedade da imunização, desde que a vacina tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou que sua aplicação seja imposta por lei.6 A não imunização, pela desídia dos genitores, não prejudica somente os filhos do casal. Exerce uma expansão difusa, abrangendo e colocando em risco toda uma comunidade. O filho não é propriedade exclusiva dos pais, como acontecia no Direito Romano que conferia ao pátrio poder o direito de vida e morte sobre eles (jus vitae et necis). Com o nascimento é ungido com a cidadania que confere a ele a personalidade civil de pessoa, tornando-o sujeito de direitos com todos os atributos legais, a começar pela dignidade prevista constitucionalmente. Biologicamente o filho carrega o DNA dos pais, porém é detentor de personalidade própria e conta com a tutela protetiva integral desde a tenra idade, período em que os seus representantes devem suprir todas as esferas de interesse para o seu bem-estar. Pode-se dizer que não prevalece, in casu, a autonomia de vontade dos pais porque o bem que está em jogo tem dupla proteção: uma, a individual, direcionada à saúde do próprio filho, conferindo a ele os cuidados necessários; a outra, de caráter difuso, é a voltada para a própria coletividade, que é o bem maior e o objetivo da realização da saúde pública. Pairando colidência entre o Estado e o indivíduo, devem prevalecer os interesses do ente que exerce maior cobertura protetiva. A vontade dos responsáveis não atinge a prole quando se tratar de tema em que há a obrigação legal cogente. Cogita-se até mesmo de se inserir na legislação uma norma de apresentação obrigatória da carteira de imunização como pré-requisito para a matrícula escolar. Mas tal exigência não resiste ao crivo da constitucionalidade. A criança não pode ser prejudicada por não ter acesso à escola pela negligência dos pais. Seria duplamente penalizada. Tanto é que a falta de atualização da carteira de vacinação não pode impedir a matrícula escolar, devendo a situação ser regularizada no prazo de sessenta dias pelo responsável, sob pena de comunicação ao Conselho Tutelar para as providências, de acordo com o art. 4º da lei paulista 17.252/20. Finalmente, cumpre salientar que o Ministério Público, dentre as atribuições conferidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é o órgão legitimado para promover as medidas de proteção às crianças e adolescentes cujos direitos sejam ameaçados, violados ou não reconhecidos, segundo preceitua o art. 98 do Estatuto menorista. 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.
domingo, 13 de julho de 2025

A relevância do teste do pezinho

A medicina vai buscando cada vez mais caminhos estreitos para ganhar o interior do corpo humano e dele extrair a leitura do Código genético. Michel Foucault norteou seu pensamento filosófico por canais extensos, muitas vezes rompendo barreiras que se apresentavam intransponíveis e, no saldo positivo de suas conquistas, deixou relevantes contribuições para a humanidade, principalmente quando enfrentou os procedimentos e políticas ditadas pelo Estado para se ocupar do homem como ser vivente, intervindo na população para deitar regras a respeito dos nascimentos, mortes, taxas de reprodução, fertilidade e outras correlatas. Os avanços da biotecnologia e da biotecnociência ganham corpo e projetam-se em muitas áreas da saúde, principalmente na engenharia genética, iniciada após a decifração do DNA. Há um fascínio incontrolável do pesquisador em vencer todas as barreiras que se apresentam e, a um só tempo, encontrar tecnologias conceptivas que sejam seguras e viáveis, com o total controle sobre o patrimônio genético. É até natural, pois o homem - pelo seu próprio comportamento e em razão da inteligência de que é dotado - carrega uma característica investigativa e pesquisadora voltada para conhecer os mistérios que desafiam e rondam seu mundo interior. A lei 9.263/1996, regulamentando o § 7º do art. 226 da Constituição Federal - que trata do planejamento familiar a ser desenvolvido por ações preventivas e educativas - estabeleceu como atividades básicas a assistência à concepção e contracepção, atendimento pré-natal, a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato, além do controle das doenças sexualmente transmissíveis e prevenção dos cânceres de mama, próstata e pênis. O Ministério da Saúde, na esteira de buscar benefícios para o cidadão, criou inédito programa de saúde visando identificar casais que carregam riscos genéticos hereditários e, para tanto, propõe a eles a realização de uma investigação laboratorial para evitar o nascimento de criança com a mesma doença. Trata-se do aconselhamento genético com a finalidade de orientar e ajudar as pessoas portadoras de doenças genéticas com o risco de recorrência nos familiares, ofertando o diagnóstico e o manejo disponível. Nesta mesma linha de assistência encontra-se o chamado "teste do pezinho" (lei 8.069/1990), de caráter preventivo, gratuito e obrigatório, disponível nas redes hospitalares, a ser realizado no período entre o terceiro e quinto dia de vida da criança, a partir das gotinhas de sangue extraídas do calcanhar do recém-nascido, com a finalidade de detectar precocemente a existência de até sete doenças raras e graves, possibilitando um diagnóstico que irá conferir o tratamento adequado de tais moléstias, com a chance de extirpá-las. Pode, também, ampliar a pesquisa que terá seu campo dilatado para cerca de cinquenta doenças, igualmente raras e severas. O teste do pezinho, que integra a Triagem Neonatal na política pública de saúde preventiva, tem como suporte legal o dever do Estado de reduzir os riscos de doenças e ao acesso às ações voltadas para a proteção e recuperação da saúde, conforme proclama o art. 196 da Constituição Federal. É de se observar, por se tratar de uma ação preventiva, que há outras modalidades de exames, como, por exemplo, o teste da orelhinha (acuidade auditiva); o teste do olhinho (reflexo vermelho nos olhos); o teste do coraçãozinho (oximetria de pulso) e o teste da linguinha (frênulo lingual). A Constituição Federal do Brasil, no § 7º do art. 226, apregoa que "o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". Fica explicitado que incumbe ao Estado a responsabilidade de conscientizar as famílias a quem cabe definir o número de filhos. Diferentemente de países que exercem o controle populacional.  É preciso sim conscientizar cada vez mais os pais, orientando-os a respeito da importância da realização do teste do pezinho e os benefícios contidos no procedimento. Trata-se, na realidade, de proporcionar à criança uma proteção prioritária e integral com a intenção de conferir a ela o dividendo contido no princípio bioético da beneficência, desde o nascimento, contribuindo, dessa forma, pela progressão de uma vida sem riscos graves para a saúde. 
domingo, 6 de julho de 2025

Quando a vida e a morte se confundem

Do Estado americano da Geórgia veio a notícia de que uma mulher com 30 anos, somando nove semanas de gravidez, teve a morte encefálica declarada e, a partir desse evento, passou a ser mantida em suporte de vida com a intenção de proteger o embrião para que pudesse se desenvolver dentro de um padrão de viabilidade. No Brasil ocorreu fato semelhante. Uma mulher, com 21 anos, grávida de gêmeos, sofreu uma grave hemorragia cerebral. Levada ao hospital, apesar dos esforços médicos, o quadro evoluiu para pior e três dias após a internação foi declarada sua morte encefálica. A gestação iniciava o segundo mês e a equipe médica decidiu mantê-la biologicamente viva para que os embriões pudessem se desenvolver. Um verdadeiro aparato médico envolvendo também enfermeiros, fisioterapeutas e nutricionistas monitoraram 24h a gestação artificial. Até música infantil fez parte do ambiente da UTI. Os bebês nasceram pouco antes de completar sete meses, com saúde compatível com os prematuros da idade. Elogiável a conduta da equipe responsável pela manutenção da gestação que não mediu esforços para conseguir levar a bom termo o nascimento das crianças, contando, também, com o apoio e autorização da família, assim como o parecer favorável da Comissão de Bioética do hospital. A morte encefálica, diferentemente da cardiopulmonar, introduzida há pouco tempo na área médica, justamente para facilitar a doação de órgãos, tem lugar quando todas as medidas de suporte vital resultaram fracassadas, fazendo ver que o paciente se encontra em situação de irreversibilidade absoluta. Não se confunde com a prática eutanásica, que é a conduta em que, por ação ou omissão, alguém antecipa a morte de um doente que, apesar da gravidade da doença, ainda tem vida encefálica. No Brasil, a decretação da morte encefálica foi permitida pela lei 9.434/1997, estabelecendo que será registrada por dois médicos que não sejam participantes da equipe transplantadora e que obedecerão, os critérios clínicos e tecnológicos definidos pela resolução do Conselho Federal de Medicina. O primeiro deles consiste na realização do exame clínico, que deve ser repetido pelo prazo mínimo de seis horas de observação. O segundo deve ser realizado obrigatoriamente por um médico neurologista. Após, faz-se os exames complementares utilizando-se a angiografia cerebral, o eletroencefalograma, a cintilografia de perfusão cerebral ou ultrassom cerebral com Doppler e outros, se necessários. Vencido tais procedimentos o paciente é juridicamente declarado morto. Tem-se que, apesar dos sinais vitais permanecerem, a vida já se escoou e o corpo humano nada mais é do que um cadáver. Assim, no caso da mãe que teve a morte encefálica declarada, toda conduta daí por diante foi realizada no cadáver, seguindo as normas éticas e jurídicas para tanto. Todo o tratamento dispensado foi no sentido de manter a mãe como se viva fosse para que pudesse exercer com sucesso a função de incubadora viva. Desta forma, como por ironia, habitam o mesmo corpo a vida e a morte e, fora dele, eventuais receptores aguardam a doação de órgãos. A morte, já consumada, independentemente de qualquer utilização que se queira dar aos órgãos, tecidos e partes do cadáver, observando sempre a necessidade do consentimento do cônjuge ou parente na linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive. A vida, por representar o bem maior e supremo do homem, patrocinada com todo privilégio pela Constituição Federal, é detentora da prioridade absoluta. E sem necessitar do consentimento de qualquer parente legitimado. No embate entre os dois opostos, a vida tem toda a preferência, mesmo ocorrendo no útero de mãe já morta. Tanto é que a hipótese de aborto foi descartada pela própria legislação penal, deixando a entender que, com a morte da mãe, os embriões que se encontravam em condições de continuar sua peregrinação uterina, seriam também declarados mortos. Diante de tal quadro, os gêmeos que habitavam a silenciosa clausura, tiveram todo o aparato médico para que pudessem nascer com condições de saúde condizentes com a desconfortável situação em que se encontravam. Tais nascimentos são abrigados pelo pensamento bioético e contam com a aprovação do Direito. A vida humana, de inestimável valor, deve prevalecer em qualquer hipótese de perigo e cabe ao homem praticar as condutas necessárias para fazer prevalecer a spes vitae.
domingo, 29 de junho de 2025

O obeso e a caneta emagrecedora

A Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária exigiu, em Reunião Ordinária Pública da Diretoria Colegiada, tanto a prescrição médica em duas vias e também, a retenção dela para a aquisição de medicamentos análogos ao hormônio GLP-1, como, por exemplo, Mounjaro, Ozempic, Wegovy e outros, conhecidos vulgarmente por canetas emagrecedoras para o tratamento de diabetes e obesidade, a partir do dia 23/6. A medida tem perfeita aderência porque, principalmente para atingir um emagrecimento satisfatório, aumentou e em muito o consumo do medicamento e daí pode acarretar danos à saúde pública, quer seja pela automedicação, quer seja pelo uso inadequado do fármaco. Percebe-se, até com certa expectativa, que a inovação do medicamento, principalmente relacionado à obesidade, tem todo potencial para trazer dividendos de saúde para as pessoas que se encontram acima do peso e que são portadoras de comorbidades. Estudos da Organização Mundial de Saúde, que elegeu a obesidade como a doença do século XXI, revelam que 30% da população mundial sofre com sobrepeso e obesidade e que um adolescente nestas condições tem mais de 70% de chance de se tornar um adulto obeso. E este mesmo órgão, que definiu o anoréxico como o portador do IMC igual ou inferior a 18, classificou o obeso como o portador do IMC igual ou maior a 30.   A obesidade é uma condição crônica relacionada diretamente com a saúde pública e, pelo que se deduz das estatísticas publicadas anualmente, vem, literalmente, ganhando corpo em visível crescimento na população brasileira, apresentando-se não só como doença, mas também como fator de risco para outras moléstias, principalmente em período de quadro epidemiológico. Percebe-se, por outro lado, um crescimento considerável da obesidade entre crianças e adolescentes que, desde a mais tenra idade, vêm convivendo em ambientes obesogênicos, tanto por ingerirem alimentos ultraprocessados, como pelos comportamentos sedentários. Da mesma forma que a anorexia, o excesso de peso provoca problemas graves para a saúde, pois, a exemplo do que acontece nos EUA, país que lidera o ranking do tecido adiposo, a população brasileira se alimenta de produtos ricos em gordura e carboidrato, que ficam alojados no organismo. O crescimento desordenado da população obesa atinge graus de morbidade e passa a ser um problema de saúde pública, que deve acudir as doenças decorrentes da obesidade, tais como: cardiovasculares, diabetes, câncer, hepatite, apneia do sono, estresse e outras. Todo indivíduo sabe que o controle do peso é um fator importante para gozar de boa saúde. Já foi a época do Renascentismo em que a beleza feminina era mais roliça, conforme se vê da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Hoje, a beleza toma uma forma mais esquálida na qual a magreza deve prevalecer. Porém, não se pode levar a obesidade a ponto de impedir a pessoa de exercer suas funções rotineiras, nem mesmo privá-la do lazer. O que deve ser levado em consideração para a avaliação de uma pessoa não é unicamente a massa corporal e sim a competência, a inteligência e a aptidão para viver com dignidade e realizar seus projetos de vida. Se o Estado pretende, na esfera de seus objetivos sociais, ditar regras específicas a respeito da saúde pública, notadamente com medidas proibitivas aos obesos, deve desenvolver programas de proteção à saúde dessa nova categoria, orientando-a a conter o controle de seu peso, com políticas claras de nutrição saudável e balanceada, além de possibilitar com maior frequência o acesso à cirurgia bariátrica, mais conhecida como redutora de estômago. Cria-se, desta forma, para o Estado-providência, outra proteção e agora relacionada com o fantasma da obesidade que ronda o país. Aí sim fica justificada a intromissão estatal nesta área de intimidade pessoal.  É importante observar que, na lista de benefício para a saúde humana, a Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias - responsável pela análise e incorporação ou alteração de tecnologias e assistência terapêutica no âmbito do SUS - Sistema Único de Saúde - abriu Consulta Pública a respeito da incorporação do medicamento Wegovy no SUS.
domingo, 22 de junho de 2025

O corpo e o padrão de beleza

O ser humano, pela sua própria natureza, preocupa-se com o seu bem-estar e estabelece regras rígidas de estética para o seu próprio corpo. Para tanto, muitas vezes, como um bom espartano, frequenta academias e praças de exercício para conseguir um peso que lhe seja satisfatório, de acordo com o programa de saúde adotado e com os objetivos almejados. O modelo de beleza, principalmente o feminino, está intimamente ligado aos padrões internacionais, sempre capitaneados pelas famosas musas que ocupam as passarelas. Assim, cada um leva sua vida de acordo com os critérios escolhidos, compreendendo todas as opções praticadas na sociedade, com sua autonomia e independência, fazendo aquilo que for de seu interesse para alcançar os objetivos de vida propostos, sem, no entanto, colidir com o do alheio. Quer dizer, no universo das diferenças, procura-se um senso comum que seja do agrado de todos, não só no relacionamento entre as pessoas, mas também na estética do próprio corpo. O padrão de beleza evolui com os critérios da própria humanidade. Cada época adota seu modelo, entoando o ritmo do let's stay young forever. Atualmente, pelas exigências da indústria da moda, as modelos devem apresentar um corpo cada vez mais magro. Para tanto, sacrificam-se e muitas vezes rejeitam alimentos ou fingem saboreá-los, ingressando no transtorno psicológico da anorexia. É a beleza presente, já fugidia no corpo esquálido. Fica até difícil apontar um padrão de mulher que possa representar o belo. Há um consenso na literatura mundial de que a mulher mais bonita é Anna Karenina, personagem do autor russo Liev Tostói. De tão formosa, fazia as pessoas perderem a fala. Para o nosso lado, com o suor e a cor indígena, José de Alencar pintou Iracema como a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que às asas da graúna e mais longos que o talhe da palmeira. Bonita e misteriosa, Capitu foi descrita por Machado de Assis com olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Beleza é fundamental, cantava Vinicius de Moraes, com as escusas devidas às mulheres não portadoras do predicado. Nenhuma delas, no entanto, somando-se a elas a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, apresentava-se magra, ou melhor, magérrima, como a exigência atual. A preocupação com a aparência física é louvável, mas a modelagem do corpo para se adaptar à ditadura da moda, com o jejum obrigatório e a consequente utilização de laxantes, diuréticos e medicamentos para emagrecimento, transformam jovens saudáveis em belezas esqueléticas, atingindo a magreza em seu nível excessivo e prejudicial à saúde. Somam-se no mundo vários casos de morte por anorexia. Lembro-me, com certa melancolia, da morte da cantora Karen Carpenter, considerada uma das vozes mais envolventes, principalmente quando entoava Close to you que, juntamente com seu irmão, formou o grupo The Carpenters. Começou a fazer dietas obsessivas e desenvolveu anorexia nervosa, vindo a falecer aos 32 anos, no auge da fama. De um lado fica até difícil dimensionar a intervenção estatal para regular a imagem do corpo, que é a extensão da intimidade individual. Pode-se até cogitar em situações que justifiquem um posicionamento governamental com ações preventivas somente, impedindo a jovem de agredir o próprio corpo e provocar sua morte, numa visão holocáustica, como árvore seca no coração de um deserto, descrito pelo Nobel da Paz Elie Wiesel. O padrão de beleza desloca-se, portanto, da exigência imposta comercialmente pelas agências da moda e meios de comunicação e ingressa no limite ético determinado pelo bem-estar físico e mental, nos parâmetros de respeito à dignidade humana, um dos fundamentos de nossa Constituição. O próprio IMC - Índice de Massa Corpórea, por si só, não é um marcador para se encontrar o peso saudável. Segundo a OMS, o indicador de 18,5 kg é classificado como abaixo do peso, ingressando na classificação de pessoa magra. Para se chegar ao peso permitido, basta pegar a altura e multiplicar por ela mesma. Em seguida, dividir o peso pelo resultado da primeira operação. Assim o corpo perfeito não é mais aquele preconizado pela estética corporal ditada pelos regramentos da beleza, que recomendam uma silhueta esquia para se enquadrar nos parâmetros exigidos e, sim, aquele que satisfaz a própria pessoa ofertando-lhe a melhor sensação de bem-estar. Mens sana in corpore sano, é a receita infalível.
domingo, 15 de junho de 2025

O ageísmo e a proteção legal do idoso

Dia 15/6, durante o mês conhecido por Junho Violeta, é comemorado o Dia Mundial da Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa, com a finalidade de sensibilizar e, ao mesmo tempo, aparelhar a sociedade para o enfrentamento de diversas violências contra tal pessoa. Procura, acima de tudo, dar ênfase ao etarismo que, de certa forma, vem ganhando força e discriminando as pessoas da terceira idade. Além do que, irá promover o preconceito em razão da idade e dar azo ao ageísmo. O período compreendendo a infância, a juventude e a idade adulta passa tão rápido que, ao se dar conta da real situação etária, a pessoa já se encontra nas fileiras da idade avançada e, agora, principalmente, preocupada com os cuidados necessários para atingir uma longevidade saudável, sonho de consumo do cidadão. É exatamente o sentimento do tempus fugit, conforme bem elucida a expressão romana. O homem, durante sua vida, vai rompendo várias barreiras e, com o incessante avanço da medicina, aliada à biotecnologia, que oferece melhores condições de saúde, vai ultrapassando suas marcas de existência, superando em muito a expectativa prevista. Basta ver que em 1940 atingia 45,5 anos e em 2023 alcançou a marca de 76,4 anos, de acordo com os índices do IBGE.1 Machado de Assis, em suas obras, quando descrevia um personagem com 40 anos de idade, referia-se a ele como sendo um idoso. Interessante o encontro de Brás Cubas com Quincas Borba, que contava 38 a 40 anos de idade, assim relatado: "Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto de expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar de escarninho, que lhe era peculiar."2 A Constituição Federal, em seu art. 230, estabelece: "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar pessoas idosas, assegurando sua participação na sociedade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida." Assim é que a lei 8.842/1994 criou a chamada Política Nacional do Idoso, conclamando a observar os seus direitos da cidadania, defender sua dignidade, bem-estar e inserir-se como o principal agente das transformações propostas na referida lei. Posteriormente, dando cumprimento à determinação constitucional, foi editada a lei 10.741/2003, conhecida como Estatuto do Idoso, legislação que regulamenta os direitos conferidos aos idosos, estabelecendo condições para a preservação da saúde mental e física, assim como seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, tendo como diretriz o princípio da dignidade da pessoa humana. De uma rápida leitura, percebe-se que o arsenal legislativo é compatível e suficiente para amparar os idosos, que cumpriram todos os estágios na vida e agora são detentores de um significativo compêndio de vida, tudo levando a crer que o país está envelhecendo com comprometimento e seriedade. Porém, ainda não está preparado para tanto. A discriminação, os preconceitos e a violência contra os idosos, tanto no âmbito familiar como fora dele, são práticas constantes e ocupam uma agenda infindável de ocorrências e processos. A falta de acessibilidade vai se acentuando cada vez mais. Degraus, rampas íngremes, calçadas mal conservadas, vagas preferenciais ocupadas por pessoas comuns representam obstáculos limitadores para o idoso que tem sua mobilidade reduzida, sujeito a quedas com sérias consequências em razão do descompasso da arquitetura urbana com a necessidade do idoso. Na área da saúde, a população idosa tem sua especificidade e necessita de políticas públicas que possam refletir a atenção integral, compreendendo não só o acesso a serviços médicos preventivos, prolongados e domiciliares, cobertura vacinal e cuidados humanizados, com a utilização dos fármacos de primeira geração, assim como outras necessidades sociais, como os esclarecimentos sobre a velhice, saneamento básico, água encanada, esgoto, renda e previdência social compatíveis. O homem, antes e acima de tudo, é um ser temporal, com início, meio e fim, e não um marco definido pelo idadismo.  Assim é que vai superando cada tempo seu, ampliando suas expectativas e apostando em um futuro com mais esperança e até mais entusiasmo - pois contará com uma rica experiência adquirida ao longo da vida e encontrará um campo propício para demonstrar seu dinamismo, sua articulação e fertilidade em descobrir iniciativas e ideias novas - enfim promovendo tudo aquilo que lhe trouxer satisfação. 1 Disponível aqui. 2 Assis, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas/ Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 89.
domingo, 8 de junho de 2025

A felicidade como direito fundamental

Na World Happiness Report 2025, pesquisa realizada pela Universidade de Oxford, o Brasil, dentre os 147 países avaliados, ocupa a 36ª posição no ranking de felicidade, que leva em consideração os índices de liberdade de expressão, renda, desigualdade e estrutura social.1 Trata-se, sem dúvida, de uma conquista relevante para o país que alcançou índices superiores aos da Espanha, Itália e Japão. A leitura que se faz é no sentido de que o Brasil, sem artificializar o espaço natural, há várias décadas vem passando por significativas transformações, demonstrando, de forma inequívoca, que saiu de um país essencialmente agrícola e, em pouco mais de 30 anos, atingiu um desenvolvimento em vários segmentos e agora já dialoga com certa facilidade com a inteligência artificial. E, pelo que se vê da pesquisa publicada, a felicidade do povo continua em alta. A Constituição Federal é o maior diploma jurídico do país. Elenca em seu bojo um vastíssimo rol de tutelas e, como um caleidoscópio, vai girando e fazendo o movimento de rotação e, ao mesmo tempo, de translação em torno do ser humano, dimensionando-o como destinatário exclusivo de sua programação. Apresenta uma infindável relação de direitos e obrigações envolvendo Estado e cidadãos na órbita jurídico-política e, dentre eles, como ponto de destaque o direito fundamental à felicidade, conforme proposta da abordagem do título. Assim é que a Constituição, na realidade, dita o projeto social, político e econômico a ser seguido pelos administradores públicos. Em contrapartida, em caso de descumprimento, o cidadão poderá pleitear a realização de seus direitos consagrados invocando a tutela jurisdicional. A esse respeito, preleciona Canotilho: "Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)".2 E é interessante observar que a Constituição, como qualquer outra lei ordinária, não é estática e necessita, de acordo com os reclamos sociais, fazer os ajustes e acertos para que possa levar adiante o projeto idealizado pela nação. Fica até difícil definir o que é felicidade. Muitos já se aventuraram em tão árdua tarefa e, por mais amplo e abrangente que seja o conceito, sempre ficará em descoberto determinada leitura, em razão da própria natureza humana, com sua dinâmica e mutabilidade variáveis.  A conceituação de felicidade se modifica de época para época. Pode-se arriscar, sem muito compromisso, em dizer que se trata de uma emoção humana que procura retratar uma situação, mesmo que efêmera, mas que transmite a sensação de alegria, bem-estar e que possibilite usufruir as boas coisas da vida. Quer dizer, feliz é aquele que procura viver intensamente seus momentos e retirar deles a receita para o seu bem viver. E, por incrível que pareça, as legislações não trazem, explicitamente, a consagração do direito à felicidade, que teria o condão de reunir, num artigo só, tudo que está sendo conferido como direitos e obrigações entre as pessoas, assim como seu relacionamento com o Estado. A Declaração de Direitos de Virgínia, que precedeu a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, idealizada por Thomas Jefferson, proclamava em seu art. 1º: "Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança". Nesta vinculação, as ações sociais são de vital importância para se atingir os propósitos almejados. Não se trata de um estímulo ao cidadão para carregar a bandeira em defesa da felicidade, e sim de uma garantia conferida pelo próprio Estado. O ideal seria um texto legal apontando a felicidade como um direito fundamental, porém, a felicidade carrega um caminho árduo para ser atingida e, necessariamente, passa por todos os percalços apontados na legislação vigente.  ______________ 1 Disponível aqui.  2 Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional - 7ª ed. - Coimbra: Livraria Almedina, Portugal, 2003, p.408.
Quando surgiu pela primeira vez a proposta de uma revolução digital - ainda mero indicador de uma realidade que continha uma modesta estrutura funcional - não se imaginava que a humanidade fosse abraçar e impulsionar toda a virada histórica projetada. Inevitável qualquer esforço em contrário, porque a tecnologia digital expandiu de tal forma que não se pode afirmar ter atingido o ponto de chegada que, pelo visto, cada vez mais ficará distante. A banalização da vida, infelizmente, tem encontrado nas redes sociais um palco fértil para a sua manifestação mais cruel, haja vista a complexidade de fiscalização existente. Em ambientes digitais, projetados para o consumo rápido, efêmero e emocional, práticas perigosas - muitas vezes travestidas de brincadeiras - têm ganhado corpo e audiência. É nesse contexto que se insere o chamado "desafio do desodorante", uma prática que consiste no desafio à vítima para inalação contínua do aerossol, até a perda de consciência. O caso recente da menina de 11 anos1, que morreu em decorrência desse comportamento em São Bernardo do Campo, é expressão trágica de um fenômeno mais amplo e inquietante: a repetição de condutas manipuladoras e com alto poder de persuasão, habilidosa e maliciosamente direcionadas a pessoas vulneráveis, levanta questões urgentes sobre a responsabilidade digital e a atuação do Direito Penal. A análise jurídica da conduta daqueles que produzem ou difundem esse tipo de conteúdo exige atenção ao art. 122 do Código Penal, cujo alcance foi ampliado pela lei 13.968/19. Tradicionalmente voltado à instigação, induzimento e auxílio ao suicídio, o novo tipo penal trouxe relevante alteração: passou a prever, como crime, o ato de induzir ou instigar alguém não apenas ao suicídio, mas também à prática de automutilação, ou ainda de prestar-lhe auxílio material para tal finalidade. A consumação independe do resultado, embora as consequências mais graves - como a morte ou a lesão corporal de natureza grave - ensejem aumento da pena. Há, inclusive, previsão de majorantes específicas quando a vítima é pessoa vulnerável, como os menores de idade e incapazes. No ambiente digital, essa previsão legal ganha contornos específicos. A instigação - uma das modalidades previstas no tipo penal - consiste no estímulo, reforço ou encorajamento de uma ideia já alojada no ânimo da vítima; enquanto o induzimento traz o conceito de implantar na mente da pessoa uma ideia até então inexistente. Desta forma, é importante destacar que, consoante o que se verifica nos fatos noticiados, a "trend" chamada de "desafio do desodorante" consiste em uma batalha para ver quem consegue inalar grandes quantidades do produto químico no menor tempo1" (trend é uma palavra da língua inglesa, que significa "tendência" e que indica, nas redes sociais, os conteúdos mais populares, que são replicados por grande número de usuários). E é interessante observar, com tal comportamento, que as condutas consideradas ilícitas se desenvolvem como se fossem parceiras das lícitas, dificultando, desta forma, as incautas vítimas de perceberem o mal ali contido. Portanto, quem inicia esta absurda "batalha" gera o nexo causal entre conduta (instigação/induzimento) e o resultado morte, chamando pela incidência do crime previsto no art. 122 do Código Penal, cujas penas vão de reclusão, de seis meses a dois anos. Agora um ponto crucial: nos termos do § 2º do art. 122 do Código Penal, "se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte, a pena é de reclusão, de dois a seis anos". E mais: no § 3º do mesmo art.: "A pena é duplicada: (...) II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. § 4º A pena é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real. § 5º Aplica-se a pena em dobro se o autor é líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes é responsável". Indaga-se: é possível aplicar todas as duplicações e aumentos previstos no novo dispositivo? Ou haveria, para um mesmo desafio (mesmo caso concreto), a incidência do princípio do ne bis in idem (ninguém pode ser punido mais de uma vez pelo mesmo fato)? Parece que, no caso concreto, pode, sim, ensejar a aplicação cumulativa das majorantes, tudo a depender da forma como a conduta foi praticada. Igualmente importante é o fato de que a lei não exige, para a configuração do crime, que o agente esteja imbuído do animus necandi (vontade de matar) ou laedendi (de causar lesão), bastando a vontade de criar/fomentar na vítima a automutilação. Então, quando esse incentivo ocorre por meio de plataformas de grande alcance, com linguagem voltada a públicos impressionáveis, o potencial lesivo se amplia consideravelmente e, ainda que o agente não conheça diretamente quem será afetado, a sua contribuição para o resultado torna-se penalmente relevante - é o nexo causal entre conduta e resultado, nos termos do art. 13 do Código Penal - conditio sine qua non. É nesse ponto que o Direito Penal precisa intervir, não como instrumento de censura, mas como mecanismo de contenção diante de comportamentos que, por sua natureza, transcendem a esfera privada e alcançam consequências socialmente intoleráveis. Com efeito, o "desafio do desodorante" não é um fenômeno isolado, nem fruto de exceção; ele integra um ciclo contínuo de práticas virais que flertam com o sensacionalismo, a autodestruição e a morte. A criação e difusão de conteúdo que instiga condutas perigosas não pode ser naturalizada nem amparada em uma concepção absoluta e descontextualizada da liberdade de expressão: esta, como toda liberdade, possui limites que se impõem, observando sempre o direito à vida e à proteção dos mais vulneráveis. 1 Disponível aqui.
domingo, 25 de maio de 2025

A leitura do DNA do brasileiro

Para o historiador, é importante garimpar todas as informações a respeito do fato que pretende pesquisar; é como se fosse um arqueólogo que utiliza métodos científicos em busca de vestígios que possam transmitir os hábitos e culturas que, com o passar do tempo, deixaram de existir. Aplica-se a mesma regra àqueles pesquisadores científicos que procuram desvendar a genética humana. Assim como a história do Brasil é importante para o conhecimento do país, vez que relata todos os acontecimentos relevantes até os dias atuais, o conhecimento do genoma da população é igualmente necessário para desvendar as informações genéticas que apontem as características do povo. Na realidade, em razão da tecnologia cada vez mais apurada, estamos diante da identidade externa, que é constatada com mais facilidade e a interna, que é justamente a coleta científica de informações genéticas de um grupo. O projeto "DNA do Brasil", assim conhecido, liderado pelos pesquisadores da USP, coletou importantes informações a respeito do DNA do povo brasileiro e já mereceu publicação feita recentemente pela revista Science. O objetivo da pesquisa é conhecer os fatores genéticos do povo brasileiro para compreender as doenças mais prevalentes e atuar preventivamente, formando uma verdadeira arquitetura do genoma pátrio onde serão encontrados indicadores clínicos que detectarão os prováveis grupos de risco e as recomendadas ações que devem ser tomadas para combatê-los. A leitura do DNA, desta forma, irá oferecer condições para garimpar informações importantes com a finalidade de desvendar e reconhecer o código genético da população e, a partir desse marco, possa fazer a prevenção contra as doenças com predisposição genética localizada. É sabido que a população brasileira não é proveniente de uma única origem. Pelo contrário. Pela sua formação histórica, é fruto de uma miscigenação exacerbada. Aqui encontramos desde os povos indígenas, africanos, portugueses, italianos, espanhóis, alemães e outros imigrantes europeus, asiáticos, formando uma integração genética e cultural. Uma verdadeira Torre de Babel genética. O que até então parecia uma evidência, agora, com sólidas conclusões, chega-se a uma afirmação categórica no sentido de que a miscigenação esteve sempre presente e que cerca de 60% da herança genética é europeia, enquanto que 27% reside no continente africano e 23% proveniente da comunidade indígena.1 Conhecer a função que cada gene exerce no interior do DNA significa ler a informação genética e descobrir o código da vida. A ciência inclina-se, desta forma, para desvendar os genes responsáveis por determinadas moléstias, como Alzheimer, Síndrome de Down, Mal de Parkinson e muitas outras, com a intenção de alterar o código genético e possibilitar sua erradicação definitiva. O estudo, por se tratar de uma inovação, que certamente renderá inúmeros benefícios para a saúde da população, merece o prestígio da comunidade uma vez que desempenhará importante tarefa e proporcionará ao Estado novas leituras para desenvolver políticas públicas que visem à redução de doenças tendo como prioridade as ações preventivas. Parte-se para uma medicina preventiva estruturada no genoma para garantir a saúde das pessoas. É uma verdadeira ponte ligando harmoniosamente o passado a um futuro promissor carregando melhores práticas para a ars curandi. _____________ 1 Disponível aqui. 
domingo, 18 de maio de 2025

Os dilemas do Papa Leão XIV

A proclamação do Habemus Papam fez com que o cardeal americano Robert Francis Prevost, da Ordem Agostiniana, fosse eleito Papa e, no mesmo ato, adotou o nome de Leão XIV, certamente com propósitos inovadores que nortearam também o Papa Leão XIII, que deixou inesquecível legado para a Igreja Católica.  O novo Bispo de Roma, em suas primeiras aparições públicas, mesmo com sua modernidade e conectividade, demonstrou, não só preocupação, como, também, nítido interesse, a exemplo de seu antecessor, Papa Francisco, com a intenção de abrir novos canais de comunicação para que a Igreja possa dialogar com as mais recentes tecnologias e, principalmente, controlar os avanços, muitas vezes desmedidos, da inteligência artificial, além de condenar a guerra da Ucrânia, da Faixa de Gaza e outros conflitos. Outros temas, que já se encontravam fermentando na pauta papal, aguardam o momento adequado para aflorarem, dentre eles o desenvolvimento incessante das pesquisas envolvendo seres humanos, as interferências sobre o início e o fim da vida, a reprodução homóloga e heteróloga, a utilização de contraceptivos para combater a crise demográfica, a engenharia genética, a maternidade de substituição, o aborto, a clonagem, as terapias gênicas, a eugenia, a eutanásia, ortotanásia, suicídio assistido e o acolhimento dos homossexuais, refletido no documento Instrumentum Laboris que, pela primeira vez, usou a sigla LGBT, além do interesse em abrigar as famílias irregulares, principalmente as privações estabelecidas aos divorciados, dentre outros. Pela maciça participação na escolha do novo Papa, percebe-se que a comunidade cristã ambiciona uma resposta mais ajustada a respeito da religião católica com a cultura dos novos tempos. É de se recordar que Eclesia semper reformanda, conforme determinação do Concílio Vaticano II. As sensatas e bem colocadas ponderações do Sumo Pontífice apontam uma estreita aproximação com a ciência da Bioética e seus salutares aconselhamentos. A bioética, pelo seu caleidoscópio multidisciplinar, que consegue encontrar a correta lente para a leitura adequada de dilemas intrincados eticamente, ocupa um espaço de destaque que reúne todos os predicados para atender as múltiplas exigências do mundo atual. Tem potencial suficiente para unificar as várias línguas dissonantes e apresentar um canal por onde todos podem se manifestar com vistas ao tão reclamado bem comum. No trilhar do pensamento bioético busca-se a resposta para os temas que aguçam e desafiam o homem ainda despreparado e que não carrega de pronto uma definição a respeito da aceitação ou rejeição de condutas que podem quebrar o consenso ético ou da utilização de técnicas que venham a ser incompatíveis com a expectativa da vida individualizada. Dá para sentir que a Igreja, sob o cajado do Papa Leão XIV, está disposta a participar dos grandes dilemas bioéticos da humanidade, numa proposta de renovação comedida, tendo como lema a Igreja peregrina. É um caminhar lento e refletido em busca da renovação, sem decisões precipitadas, que certamente encontrará resistência dos setores mais tradicionais da Cúria Romana. E a bioética, pela sua pertinência e consistência, certamente trará significativos dividendos nesta árdua tarefa. É nessa toada que as ideias germinam com mais profundidade e se reproduzem com rapidez. Como a parábola do semeador que saindo a semear, lançou semente no terreno fértil com a intenção de obter uma boa colheita.
domingo, 11 de maio de 2025

A mãe por adoção

Muitos poetas derramaram seus versos e escritores suas prosas enaltecendo a figura materna. E com justa razão. A mãe é sempre destaque ímpar, inconfundível, insubstituível e que proporciona sentimentos profundos de respeito e gratidão. É o canal por onde transita o sentimento mais nobre do ser humano. A cada ano que passa, de forma justa e devida, as homenagens se repetem e perpetuam o reconhecimento do carinho dispensado para quem dispensou afeto sem limites, desde a vida uterina.  Há, se assim for possível dizer, categorias diferenciadas de mães. A mãe biológica, aquela que gerou e deu à luz o filho; a genética, que cedeu seu material procriativo; a maternidade substitutiva, aquela em que a mulher suporta a gravidez em favor de outra, com a consequente entrega da criança após o parto e a maternidade proveniente da adoção. A figura da mãe de adoção sempre ocupou um lugar relevante com presença marcante no Brasil. Com incidência maior na segunda metade do século passado, era até assunto corriqueiro quando a mulher assumia uma criança "para criar", expressão própria para designar o ato de tomar para si tamanha responsabilidade de solidariedade. Daí que a população, principalmente das cidades menores, denominava de "filho de criação" aquele gerado neste regime. Geralmente a entrega era compartilhada entre parentes ou pessoas muito próximas dos pais que, em razão de dificuldades financeiras para sustentar o filho, confiavam-no àqueles que gozavam de bom nome e com condições para tanto. E a criança passava a ser um membro da nova família, sem, no entanto, qualquer reconhecimento judicial ou documental. Após a Constituição Federal de 1988, o conceito de família experimentou um alargamento necessário visando, de forma aprumada com a realidade, acomodar os vários núcleos que se formaram em torno do conceito original, restrito por demais. Na realidade, ocorreu uma evolução, ainda em fase de efervescência, com relação ao direito de procriação. Todos os filhos, havidos ou não fora do casamento, assim como aqueles provenientes da adoção, gozam dos mesmos direitos, sem quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Nasce, então, não só pela introdução legal, mas também como um novo conceito social, a paternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto, que é o caso da adoção. Quando se fala a respeito da adoção, o tema transcende o humano e até mesmo os limites estabelecidos pela lei, justamente pela sublime motivação que o reveste. Desde os primórdios da civilização, sempre despertou a atenção pela sua característica de relação afetiva, na qual uma criança é recebida por uma família, geralmente carregada de uma sensibilidade extremada na busca de tal vínculo, e que proporcionará a ela um acolhimento caloroso com o propósito de se iniciar uma nova história de vida. Vigora a regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita a regra da própria natureza), que prevalecia no Direito romano. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o envolvimento emocional, que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar.  Nasce, então, não só pela introdução legal, mas também como um novo conceito social, a maternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto, que é o caso da adoção. A ascendência genética, por si só, já não é mais suficiente para determinar a filiação. Pelo contrário, em razão das novas práticas consolidadas no âmbito da dignidade da pessoa e no princípio do melhor interesse da criança, o vínculo da socioafetividade se expandiu e incorporou a contribuição daqueles que participaram da construção dos laços afetivos com a criança.