O CP de 1940, quando iniciou sua trajetória normativa, elencou várias condutas humanas praticadas reiteradamente à época e construiu vários tipos penais com a intenção de realizar a persecução penal contra os infratores, tendo como lema o postulado jurídico nec delicta maneant impunita (que nenhum crime fique impune). A título de exemplo, o estelionato, crime contra o direito patrimonial, traduzia por vários núcleos verbais a ação do sujeito obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. Era o suficiente para proteger a sociedade contra a criminalidade descrita no preceito legal.
O tema da violência urbana se exibe, há muitos anos, como se fosse a última grife e rende dividendos inesgotáveis de notícias e comentários. Todos os dias, mais mesmo que o futebol, atropela os acontecimentos e vem estampado na primeira página. É frustrante ver a escalada estarrecedora de crimes de conteúdo explícito de violência continuar a crescer sem limites e a sociedade acuada, com o torniquete de sua liberdade apertado ao extremo.
A leitura atualizada da criminalidade traz uma formatação diferente. Basta observar que uma prática criminosa, que vinha se consolidando nas grandes cidades, consistia em roubadores arremessarem pedras contra os vidros dos veículos parados no trânsito, com o objetivo de quebrá-los para, em seguida, subtrair objetos de valor que se encontrassem no interior, antes que o motorista ou terceiros pudessem reagir. Essa dinâmica, rápida e oportunista, deu origem ao apelido "gangue da pedrada", expressão que se popularizou em nosso cotidiano.
Com o tempo, no entanto, muitos motoristas passaram a instalar películas "antivandalismo", que resistiam satisfatoriamente ao impacto das pedras e não só dificultavam, como também impediam a ação criminosa. Em resposta, os roubadores passaram a empregar lanças metálicas artesanais, com pontas alongadas e perfurantes - como as lanças que fazem parte de portões residenciais, por exemplo - capazes de quebrar o vidro, mesmo que exista a referida película protetora. A violência, que antes era indireta, agora se apresenta como ameaça real e imediata às vidas das vítimas.
Esta nova conduta, assustadora sob todos os aspectos, enseja redobrado cuidado na hermenêutica penal, uma vez que a vontade do agente pode ocasionar a morte da vítima, resultado este não desejado, inicialmente, pelo roubador. E, como é notório, o direito penal exige a responsabilidade subjetiva para sua aplicação, sob pena de atipicidade de conduta.
Assim, pode-se questionar, considerando a morte da vítima decorrente da lesão provocada pela lança arremessada pelo roubador, se estaríamos diante de latrocínio? Seria o caso de roubo em concurso material com homicídio? Ou haveria espaço para discutir a ocorrência do crime aberrante (aberratio criminis, neste caso), hipótese em que o agente deseja praticar o roubo, mas, por erro na execução, provoca resultado diverso do pretendido?
O latrocínio parece, à primeira vista, o enquadramento mais intuitivo, pois a ação é iniciada por dolo direto de praticar o crime de roubo, sendo a morte da vítima pela lança, consequência da violência empregada na subtração. Isso porque o latrocínio é crime complexo e preterdoloso: complexo, porque se configura com a junção de dois delitos (roubo e homicídio); preterdoloso, pois a conduta inicial - roubo - é dolosa e o resultado agravador - morte da vítima - é culposo, sendo este o cenário que se vislumbra para quem deseja, inicialmente, roubar bens da vítima e não a matar.
Insta recordar, neste ponto, a fundamental súmula 610 do STF: "Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima". Ou seja, o bem maior tutelado deve ser a vida da vítima, critério este para a aferição da consumação do latrocínio, independente da subtração ou não de bens.
Mas, durante esta análise, pode-se apostar que uma pergunta nasce instantaneamente: e o dolo eventual? O agente, ao arremessar uma lança pontiaguda, em direção a uma pessoa no interior do veículo, não assume o risco de matá-la? Lembre-se que o dolo eventual se caracteriza quando o agente "assume o resultado", isto é, prevê que, com sua conduta de arremessar a lança, há chances reais de acertar a vítima, que pode morrer em razão disto. Mesmo assim, o agente resolve seguir na empreitada criminosa, em clara indiferença quanto à produção do resultado.
Nesse passo, o onus probandi incumbe à acusação demonstrar, na hipótese, a previsibilidade concreta do resultado morte e a postura de indiferença do agente quanto a sua ocorrência, ocasião em que fica caracterizado o dolo eventual quanto à morte e a caracterização de duas infrações penais, roubo e homicídio, em concurso de crimes. Tudo a depender da dinâmica dos fatos e da sempre escorreita investigação criminal.
Por fim, eventual alegação de aberratio criminis, prevista no art. 74 do CP, aparenta não se sustentar, nesse contexto, uma vez que o erro na execução pressupõe resultado diverso do pretendido, em que o agente deseja praticar um crime, mas, com erro na execução da conduta, acaba praticando outro: o agente deseja quebrar a janela do vizinho, arremessa uma pedra, erra a janela e acerta o vizinho. Ou, então, acerta a janela e o vizinho que estava próximo.
Aqui, no cenário proposto, temos situação diversa. O ato de quebrar o vidro é parte integrante da conduta criminosa, razão pela qual não há que se falar em erro na execução, mas em enquadramento quanto à ocorrência de resultado não diretamente desejado pelo agente.
Então, caso se entenda pelo dolo eventual na morte, como ato autônomo da conduta de roubar, temos roubo e homicídio, em concurso de crimes. A grande curiosidade é que, pela conexão com crime doloso contra a vida, o delito de roubo também seria julgado pelo Tribunal do Júri.
Portanto, a controvérsia jurídica que se impõe exige do intérprete e do operador do direito uma abordagem cuidadosa, sustentada tanto em fundamentos teóricos quanto em elementos probatórios. A dogmática penal não pode se omitir diante da escalada de violência urbana. Deve atuar como expressão técnica da proteção à vida e à segurança coletiva, sempre em sintonia com os comandos legais e os princípios constitucionais que estruturam o sistema penal.