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A hermenêutica e a revisão da prisão preventiva

domingo, 18 de outubro de 2020

Atualizado em 16 de outubro de 2020 13:33

Apesar de ser a prisão em flagrante delito a mais recomendável - por oferecer de pronto a autoria e a materialidade necessárias para o início da persecução penal fazendo prevalecer a certeza visual do cometimento do crime na prisão de constatação -, a prisão preventiva, pela sua própria caracterização processual, que representa uma prévia análise laboratorial seguida de uma fundamentação convincente e obrigatória, surge como sendo a predileta da legislação brasileira. Tanto é que referida prisão vai exigir um debruçar engenhoso e cauteloso para fazer incidir os requisitos de necessidade e conveniência da decretação da segregação provisória.

Pode-se dizer que se trata de uma prisão que irá patrocinar não só os requisitos explícitos de sua decretação, mas, também, os princípios constitucionais garantidores da pessoa cuja liberdade foi cerceada. Basta ver que as novas exigências consubstanciadas na lei 13.964/2019, que alteraram os artigos 282, § 2 e 4º e 311 do Código de Processo Penal, visando atingir um processo penal puramente acusatório, não permitem mais a intervenção isolada do magistrado para a decretação ex officio da prisão preventiva, muito menos a conversão da prisão flagrancial em preventiva, necessitando, para tanto, da representação formal da autoridade policial ou de pleito expresso feito pelo Ministério Público, conforme decidiu recentemente a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal1.

Retorna-se, desta forma, a tão apregoada formatação do processo penal democrático, consubstanciada no brocardo: Ne procedat judex ex officio.

O recente episódio da decisão proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, que concedeu ordem de soltura ao traficante André de Oliveira Macedo, conhecido por André do Rap, causou grande consternação no meio jurídico, verdadeira colidência de entendimentos, principalmente com a revogação da ordem por parte de decisão do ministro Luiz Fux, presidente da corte maior. Sem falar ainda do alardeamento popular, nitidamente contrário à concessão do benefício, uma vez que o acusado já registrava condenações na justiça que somavam 25 anos.

A já referida lei, que teve seu nascedouro no pacote anticrime, trouxe em seu bojo, de forma até sorrateira, vez que não fazia parte do texto original, e assim passou a existir após emenda ao artigo 316 do CPP apresentada pelo deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG): "Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal". Impôs, portanto, a obrigatoriedade da manifestação do juiz que decretou a medida de justificar a cada 90 dias a continuidade ou não da restrição. E foi com base na ausência de justificação que foi proferida a decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, por entender que ficou evidenciada a coação em razão da ilegalidade da prisão.

Muito já se escreveu e debateu a respeito do tema. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal realizou reunião do colegiado para firmar entendimento a respeito do prazo de 90 dias para a revisão das prisões preventivas e a maioria respaldou a decisão do presidente da corte. Mas a questão que trago à baila é relacionada à Hermenêutica.

Está mais do que evidenciado que a decisão concessiva da liberdade pelo ministro teve como base a interpretação literal da lei, sem fazer qualquer abordagem com relação ao seu conteúdo. Centrou-se nas exatas palavras do texto legislativo e por essa senda enveredou seu pensamento. Mas a lei, apesar de representar um dispositivo que visa normatizar determinada situação, conferindo-lhe a segurança jurídica recomendável, quando vista de soslaio, pode provocar injustiça.

O intérprete, segundo a melhor orientação hermenêutica, deve olhar para a lei não só na fachada da sua exteriorização, mas também buscar por trás do biombo que a esconde, os meandros reveladores da sua real intenção. Apelar pela literalidade da lei, focando unicamente em suas palavras, será um reducionismo interpretativo e que fatalmente irá colidir com valores maiores compreendidos no entorno desta mesma lei. Os romanos, com a sabedoria peculiar na época de Cícero, já proclamavam que summum jus, summa injuria, no sentido de que quanto mais o intérprete for apegado às fórmulas estreitas da lei mais encontrará um direito sem modulação, assim a suma justiça que se busca se transforma em suma injustiça.

A decisão estribada unicamente no aspecto gramatical da lei afasta-se dos padrões publicamente reconhecidos. Prejudica e em muito a busca e a pesquisa necessárias para perquirir a ratio essendi da norma, da sua adequação e aplicabilidade e, pior,  inclina-se contra os interesses já repudiados pelo grupo maior da comunidade, que foi injustamente preterido quando o ministro abrigou a pretensão de um pequeno e diminuto grupo de pessoas que se encontravam reclusas,  na mesma vala jurídica. O desfecho, como era esperado, não iria definir literalmente um resultado considerado justo e proporcional aos princípios da justiça.

O caso em tela merecia a incidência da interpretação teleológica que incentiva o intérprete a buscar o verdadeiro significado da lei e encontrar o seu alcance, levando-se em consideração as regras salutares do Direito e a prevalência do bem comum.

"A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto"2.

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1 Disponível aqui.

 

2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.