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O homem que vendeu a pele

domingo, 2 de maio de 2021

Atualizado em 3 de maio de 2021 07:33

O título acima (The man who sold his skin) é de uma película tunisiana indicada na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar 2021. Relata a história de um jovem que, em razão da guerra em seu país, pretende ir para a Europa em busca de sua noiva que teve um casamento arranjado com um homem rico e com ele vive em Bruxelas. Com sérias dificuldades para financiar sua proposta, aceita ter suas costas tatuadas por um artista de referência na arte do corpo, recebendo uma recompensa em dinheiro. Foi quando percebeu que seu corpo se transformou em uma obra de arte itinerante e cobiçada, sendo exibido em muitos países. Concluiu que sua situação de refugiado, em razão da vulnerabilidade social, pesou muito na sua tomada de decisão e percebeu que não vendeu somente suas costas e sim todo seu corpo e liberdade. Passou a ser uma mercadoria, como dizia seu tatuador, com acesso mais fácil a vários países, mas com desprezo total à sua dignidade.

É interessante observar que a evolução do comportamento humano faz várias imagens saltarem à frente do pensamento e, num repente, transformam uma situação imaginária em uma realidade de difícil aceitação. No limiar entre a realidade e ficção às vezes é melhor responsabilizar a mente, que começa a fabricar quimeras, do que aceitar o fato como uma situação mal concebida e concretizada. Ou ainda, fazer um download dos pensamentos que nela habitam e permitir o acesso somente daquelas situações rotineiras e compatíveis com o cotidiano.

A inspiração do filme, no entanto, teve como pano de fundo o caso real de Tim Steiner, que cedeu suas costas para ser tatuada por um conceituado mestre que as transformou em verdadeira obra de arte. Um colecionador interessou-se pelo trabalho e propôs a compra do corpo. Em razão da proibição legal, ficou convencionado que Steiner passaria seis dias por ano na casa do comprador, o qual receberia a pele tatuada após sua morte para emoldurá-la e exibi-la no mercado de arte, auferindo consideráveis dividendos financeiros.

Atualmente, a tatuagem rompeu as barreiras da rejeição e ocupa uma posição de destaque artístico e estético em que são projetados pequenos desenhos, escritos e até mesmo a tomada de quase todo corpo pelos mais ousados, como é o caso relatado. Não se pode negar que a juventude é a que mais procura pela técnica, mas os mais maduros também dela são apreciadores. Assim como a grafitagem é uma técnica de realizar uma intervenção urbana visando expor a arte de rua (street art), a tatuagem toma o corpo como uma expressão de arte (body art).

Com relação à alteração estética realizada no corpo humano, como a que sucede com a tatuagem, o Estado não pode exercer um policiamento intensivo e nem se arvorar em coproprietário e estabelecer restrições às pessoas que, como opção, assim procederam. Biologicamente o corpo já é uma obra de arte intrincada, perfeita e ainda praticamente indecifrável, apesar do hercúleo esforço da ciência. Transformá-lo em uma obra de arte, com valor financeiro estipulado pelas mais sofisticadas galerias de artes, é retirar do homem o seu mais expressivo valor, que é a liberdade. Dá até a impressão que diante de uma ideia enviesada da natureza humana, a pessoa vai se miniaturizando para dar passagem ao inexorável.

Na legislação brasileira a vida, pelo regramento constitucional, é um bem indisponível e o corpo humano é protegido pelas leis, tanto na sua garantia corporal, como psíquica. Basta ver os inúmeros dispositivos protetivos existentes a respeito. Não se cogita, desta forma, qualquer negociação pois é considerado bem extra commercium.

A regra mandamental é a proibição in vita da disposição do próprio corpo. Coloca-se um fim a qualquer questionamento a respeito da propriedade absoluta do corpo, a não ser que seja em decorrência de exigência médica que, também, deverá ser previamente delineada pelo próprio Estado. Se, de um lado, há a tutela legal individualizada ao cidadão, de outro, há restrições impostas em razão dos objetivos morais e éticos decorrentes da legislação.

A questão colocada em discussão exige uma séria ponderação a respeito dos limites éticos da arte realizada no corpo humano. Não se pode deixar de se encantar diante das belas figuras e imagens traçadas na pele humana e imprimir a elas um valor artístico a superar o próprio homem. E situação mais gravosa ainda é, após sua morte, retirar a pele para emoldurá-la visando à preservação da obra e sua inclusão nas futuras negociações. Na realidade a intenção é, sem parâmetros e sem escrúpulos, perpetuar a obra e não o humano que a sustentou durante a vida. A beleza de uma tela convencional, elaborada pelo processo incrível da imaginação humana, exposta em ambiente propício, deve sim ser admirada e comemorada e até mesmo conter seu valor de mercado, sem, no entanto, permitir qualquer equiparação com a tatuagem, por mais perfeita que seja a obra.

Longe também de configurar a doação post mortem regulada pela lei brasileira 9.434/97, que é permitida com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo a lei que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Desta forma, se a pessoa, em vida deixou registrado documento no sentido de que pretende doar seus órgãos post mortem, é possível uma revisão da decisão por parte dos familiares, anulando-a por completo. Isto demonstra que a autonomia da vontade da pessoa sofre severa limitação em se colocar como eventual doador.

Desta forma, pelo menos para o momento atual, é juridicamente impossível realizar a doação de tecido humano post mortem para a exploração artística no Brasil.