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Direito ao silêncio

domingo, 23 de maio de 2021

Atualizado em 21 de maio de 2021 10:59

De quando em quando a ocorrência de um fato de grande repercussão no Brasil traz à baila um instituto jurídico devidamente assentado e estabilizado, mas que aguça a curiosidade popular que, com sua costumeira medida de justiça, não se conforma com o regramento estabelecido. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pelo Senado Federal para apurar eventual omissão do Governo Federal durante o período pandêmico, além de investigar as verbas públicas encaminhadas aos governadores dos Estados e prefeitos, deparou-se com uma decisão determinada pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, que concedeu ordem de habeas corpus ao ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello para que possa valer-se do direito de manter-se silente durante sua oitiva, vez que não é obrigado a produzir provas contra si mesmo.

A decisão colidiu com o inconformismo popular que já tem como jurisprudência remansosa consagrada pela sabedoria do cidadão, no sentido de que quem for indagado a respeito de ter praticado uma determinada conduta considerada ilícita e nada responder a respeito para justificá-la, concorda com a imputação. É a regra do quem cala, consente. Uma vez que não se defendeu e teve oportunidade para tanto, o silêncio passa a ser incriminador. O julgamento popular é instantâneo, produz coisa julgada e se torna rapidamente imutável, sem qualquer chance de reversão.

Ao leigo passa a impressão de que a postura de indiferença, de antipatia e de arrogância daquele que está sendo inquirido e se cala, representa um deboche às autoridades encarregadas da arguição e já proporciona um julgamento antecipado. Diante de tal cena, a população brasileira, aquela que não conhece a técnica jurídica, vê dinamitar e implodir os conceitos tão arduamente construídos pela crença popular e, no exercício de sua indignação, conclui, de forma frustrada, que o direito individual deve prevalecer sobre o coletivo, mais uma vez desprestigiado.

A verdade que se extrai do pensamento jurídico penal bate de frente com o adágio popular, pois o Direito é fruto de um sistema jurídico devidamente regulamentado e assentado em princípios e regras que vão se aperfeiçoando com o passar do tempo, sempre visando atender de forma justa e correta os reclamos sociais. Cai por terra, da mesma forma, justificadamente, a sabedoria popular que proclama ser a voz do povo a voz de Deus.

O direito ao silêncio não é uma prática exclusiva da Comissão Parlamentar de Inquérito e sim faz parte da legislação processual penal, podendo ser utilizado por qualquer pessoa que se encontra respondendo a um processo criminal. É um instrumento de tutela conferido constitucionalmente para que o acusado possa se recusar a responder às perguntas que venham incriminá-lo. Cinge-se na esfera protetiva da ampla defesa, corolário inseparável dos direitos da personalidade, assim denominado por Pontes de Miranda. Não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando for convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino. Narra o texto evangélico que Cristo, em razão de sua missão, lançou mão do direito ao silêncio quando interrogado perante Pilatos. Várias perguntas feitas pelo príncipe dos sacerdotes e pela turba ficaram sem respostas.1

A Carta Constitucional, desta forma, estende os braços e alcança o princípio da presunção da inocência, que guarda estreita vinculação com a regra do nemo tenetur se detegere (ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo), direito assegurado nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana no instituto do privilege against self-incrimination (privilégio da não autoincriminação). O exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada.

Tanto é verdade que o juiz, antes de iniciar o interrogatório do acusado, irá adverti-lo a respeito do seu direito de não responder às perguntas que lhe forem formuladas, assim como o seu silêncio não será interpretado em prejuízo de sua defesa e nem importará em confissão, segundo a regra estabelecida no artigo 186 do Código de Processo Penal. No caso citado, na realidade - uma vez que a Comissão Parlamentar de Inquérito é detentora de poderes próprios das autoridades judiciárias - nem haveria necessidade de pleitear a tutela jurisdicional, pois trata-se de direito que pode ser invocado pela pessoa no exato momento de sua arguição.

Todo este arsenal protetivo ao acusado é resultante do próprio sistema acusatório brasileiro. Incumbe ao Estado - por meio de seus agentes persecutórios quando se tratar de ação pública incondicionada e ao particular no âmbito da ação privada - demonstrar a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas espúrias, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira. É a reserva que assegura ao cidadão o direito de não realizar provas contra si mesmo.

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1 Evangelho São Mateus, 27.13,14.